LIDERANÇA MILITAR EM TEMPOS DE CRISE
Qual é o papel de um líder militar em tempos de crise? Quais devem ser suas prioridades? Essas perguntas vêm à tona em virtude da exoneração do Capitão1 Brett Crozier2, que comandava o porta-aviões de propulsão nuclear USS Theodore Roosevelt. O Comandante Crozier perdeu seu comando em razão do vazamento de uma correspondência3 que ele enviara a seus superiores, com cópias para outras 20 ou 30 pessoas, e que acabou sendo publicada pela imprensa norte-americana.
Na carta, tratando dos casos de COVID-19 que ocorriam em sua tripulação, Crozier alegou que os EUA não estão em guerra e que, portanto, os marinheiros “não precisariam morrer” e que, se providencias imediatas não fossem tomadas, “a Marinha estaria falhando em proteger seu ativo mais preciso – os marinheiros”. Ele argumentou, ainda, que não podia proporcionar o isolamento necessário à prevenção da epidemia dentro do porta-aviões, solicitando o desembarque imediato dos quase 5 mil tripulantes.
A Marinha decidiu retirar Crozier do comando imediatamente. Alegou que a atitude do comandante de agir fora da cadeia de comando quebrava de maneira irreparável a confiança do escalão superior, o que não se pode admitir. O Secretário da Marinha, Tomas Modly4, alegou que nenhum dos 114 casos que tinham sido detectados até aquele momento era grave e que Crozier demonstrava uma capacidade de julgamento extremamente deficiente durante a crise.
Ao sair do navio, que está atracado na ilha de Guam, no Oceano Pacífico, destituído do comando, Crozier foi homenageado pela tripulação que gritava seu nome5, em uma manifestação pública de apreço pouco comum nos meios militares.
Retorno então às perguntas do início deste texto, contextualizando-as ao caso de Crozier. Qual era o seu papel como líder militar diante da grave situação com a qual se deparou? Quais deveriam ser suas prioridades?
O manual C20-10 Liderança Militar, conceitua: “A Liderança militar consiste em um processo de influência interpessoal do líder militar sobre seus liderados, na medida em que implica no estabelecimento de vínculos afetivos entre indivíduos, de modo a favorecer o logro dos objetivos da organização militar em uma dada situação.” (grifos nossos).
O mesmo manual acrescenta que a liderança deverá ser apoiada em três pilares: proficiência profissional (saber), senso moral e traços de personalidade característicos de um líder (ser) e atitudes adequadas (fazer).
A proficiência profissional do Cap Crozier, até este incidente, parecia indiscutível. Seu currículo era exemplar e nenhum oficial chega à posição de comandante de um porta-aviões da Marinha norte-americana sem uma brilhante carreira e sem passar por uma seleção rigorosa.
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Seu senso moral, que pode ser caracterizado pelo balizamento de seu comportamento pelos valores mais importantes de um líder militar, neste episódio, merece ser discutido. Em uma apressada análise inicial, parece demonstrar coragem ao se manifestar em favor do que acreditava ser correto para o bem-estar de seus subordinados. Porém, cabe uma consideração importante: naquele momento, a verdadeira manifestação de coragem que se espera de um comandante é a de permanecer no cumprimento da missão e do seu dever. No linguajar militar, manter a tropa galvanizada no sentido de “durar na ação”, mesmo se sujeitando a incompreensões que possam surgir em um primeiro momento. A lealdade à instituição militar a que pertence e representa como comandante, outro valor característico do senso moral, também foi fortemente abalada ao permitir que fosse tratado publicamente um assunto que deveria ser tratado exclusivamente pela cadeia de comando.
A “atitude adequada”, terceiro pilar da liderança militar, também foi comprometida no episódio. O “fazer” que caracteriza a atitude adequada se evidencia na forma como o líder emprega os valores e competências de sua personalidade no manejo das situações que sua tropa enfrenta. No caso, Crozier deveria envidar todos os esforços para que seus liderados cooperassem para o atingimento dos objetivos definidos pela Marinha norte-americana para o USS Theodore Roosevelt. E, dentre estes objetivos, certamente está o de mantê-lo como uma ferramenta militar capaz de cumprir qualquer missão que venha a lhe ser imposta, inclusive dissuadir eventuais inimigos, especialmente em se tratando de um porta-aviões de propulsão nuclear, um poderoso instrumento de combate. Ao permitir que a questão da infecção de COVID-19 ganhasse notoriedade, Crozier ajudou a escancarar uma vulnerabilidade importante da Marinha, reduzindo drasticamente, ao menos momentaneamente, sua capacidade operacional e sua prontidão para fazer frente a inúmeros e incertos desafios que poderão advir da crise da COVID-19.
Além disso, ao afirmar que os EUA “não estão em guerra” e por isso deveria priorizar a segurança da tripulação, o comandante deliberadamente optou pelos interesses da tripulação, e não pelos da instituição ou de seu país. Atuou meramente como se fosse um representante dos interesses de seus subordinados, e este não é o papel de um comandante, muito menos, de um líder. Sua intenção de interromper o serviço do navio, desembarcando toda a tripulação, somente se justificaria se manifestada exclusivamente por intermédio da cadeia de comando e apenas em caso de grave comprometimento da saúde a bordo, que de qualquer maneira inviabilizaria a operacionalidade do navio. Mas este não parece ser o caso. Até esse momento, não há notícias de que qualquer tripulante precisasse de internação hospitalar.
Não se está aqui a pregar que o Comandante seja insensível ao bem-estar de seus subordinados. Muito pelo contrário. Esta é a atitude adequada do líder, mas sempre com o foco no cumprimento da missão. A preocupação com a saúde dos comandados é obviamente da maior importância para qualquer líder militar, e todas as ações para que sua tropa permaneça saudável são necessárias nas atuais circunstâncias. Mas a atenção do Comandante Crozier deveria estar focada, tanto quanto ou ainda mais, na manutenção da prontidão de sua tropa e de sua unidade. Afinal, disponibilidade e prontidão permanente são características necessárias e inalienáveis da profissão militar, em qualquer parte do mundo.
Há ainda mais um importante aspecto a ser considerado. As instituições militares, altamente hierarquizadas, possuem comandantes em vários níveis diferentes, desde os mais elementares grupos até os de nível estratégico. Os líderes de nível mais baixo sabem que sua visão é limitada pelas informações que estão disponíveis ao seu nível de comando. Em razão disto, eles sabem que devem confiar no discernimento dos escalões superiores, que possuem outros elementos para a tomada de decisão que não são de seu conhecimento. Este entendimento também faltou ao Comandante Crozier, que achou que sua visão sobre o assunto deveria ser definitiva.
A reação da imprensa norte-americana ao caso, de maneira majoritária, foi favorável a Crozier. Destacou a coragem do comandante, que entre “a carreira e o bem estar de seus subordinados”, teria escolhido sacrificar a carreira em favor de sua tripulação.
Mas não me parece que deva ser essa a interpretação de soldados profissionais. Esses sabem que o cumprimento da missão e a manutenção da operacionalidade de suas tropas é o farol inescapável. Essa, aliás, é uma característica definidora dos homens e mulheres que abraçam a profissão das armas.
Finalmente, lembro que sem hierarquia e disciplina, não há Força Armada. E relembro as palavras do Marechal Osorio, liderança inconteste, amado por seus subordinados, mas que conhecia perfeitamente a importância da disciplina: “Se um militar tivesse o direito de aprovar os feitos de seus superiores, também teria o de censurar ou de se lhes opor; daí viriam a indisciplina e a morte do Exército”.