Na guerra, a verdade é a primeira vítima.
ÉsquiloAs notícias que nos chegam em tempo de guerra são quase sempre
Contraditórias; na maior parte das vezes, confusas. As mais numerosas
são, em grande parte, sofrivelmente suspeitas.
Clausewitz
Na cacofonia da guerra, separar informação de opinião, boato ou propaganda nunca foi uma tarefa fácil. Desde o pai da tragédia grega, Ésquilo, cinco séculos antes de Cristo, passando por Carl Von Clausewitz, magistral teórico da guerra do século 19, até os dias atuais, em que cada celular, nas mãos de cada indivíduo afetado pela tragédia dos combates, transforma transeuntes comuns em uma fonte de informações, esta é uma realidade inegável.
Os mais recentes conflitos, transmitidos praticamente ao vivo pela internet, são somente a mais recente constatação desse fato. Tomemos por exemplo a guerra que ocorre neste exato momento na região de Nagorno-Karabakh, entre Azerbaijão e Armênia. A profusão de vídeos, relatos, análises e reportagens sobre o conflito, se interpretada literalmente, nada esclarece, muito pelo contrário, torna impossível o entendimento e a análise da guerra. Desinformação, análises equivocadas, ou simples mentiras se misturam a notícias verdadeiras e análises embasadas em argumentos sólidos.
Diferenciar umas das outras é uma tarefa árdua. Nesse sentido, são emblemáticos os vídeos de games populares, em que a artilharia antiaérea derruba aeronaves em sequências de cadências de tiros inacreditáveis e trajetórias de voo que desafiam as leis da física, espalhados pelas redes sociais como sendo cenas reais do campo de batalha.
Para se entender esse fenômeno com alguma propriedade, é necessário que se compreenda que aspectos culturais interferem na compreensão da construção das narrativas midiáticas e no jornalismo. E que a melhor ferramenta de que os leitores/ouvintes/espectadores dispõem é o desenvolvimento de um pensamento crítico capaz de refletir sobre as diferentes versões da realidade que se apresentam, de forma a analisá-las à luz de seus variados contextos socioculturais e históricos, suas intenções e objetivos, sejam estes ostensivos ou encobertos.
Seres humanos são seres interpretativos, instituidores de sentido. Toda ação social (aí incluída também a guerra, é claro) é significativa tanto para aqueles que a praticam quanto para os que a observam, não em si mesma, mas em razão dos muitos e variados sistemas interpretativos que os seres humanos utilizam para definir o que significam as coisas, e para codificar, organizar e regular sua conduta uns em relação aos outros. Estes sistemas ou códigos de significado dão sentido às ações humanas e nos permitem interpretar as ações alheias, constituindo, em conjunto, o que pode ser definido como sendo as nossas culturas[1].
Assim, é impossível analisar as notícias que nos chegam em tempo de guerra sem a compreensão da fundamental importância da cultura como mediadora dos relatos das partes envolvidas e mesmo dos observadores externos encarregados de sua cobertura midiática. Afinal, os fatos certamente serão relatados à luz de interpretações humanas, sujeitas a influências culturais das mais diversas ordens.
Além de considerar o aspecto cultural, é importante que se verifique o conceito de “narrativa dominante”, qual seja, a percepção majoritária da opinião-pública de uma sociedade imersa em um conflito, ou mesmo da comunidade internacional, ou das potências regionais ou extrarregionais que detêm a capacidade econômica ou militar de interferir nos destinos de um conflito armado. O controle dessa chamada narrativa dominante é objeto de permanente disputa pelas partes em conflito. Esse é um dado da realidade, amplamente documentado, presente na doutrina de emprego militar dos principais exércitos do mundo.
A importância do estudo da narrativa está na necessidade de se estabelecer a diferença entre as representações factuais e fictícias do mundo.
O jornalismo é – ou deveria ser – um exemplo de narrativa objetiva, onde se buscaria representar fielmente o real. Mas isso nem sempre é fácil, ainda mais quando se tem a tarefa de tentar relatar fielmente o que está acontecendo em uma guerra. Essa dificuldade, ou impossibilidade mesmo, de se representar os fatos fielmente, é explicada não só pela cultura, como abordamos acima, mas também pela sobreposição de três narradores, ou três vozes, na comunicação jornalística. A primeira é a do veículo jornalístico, a segunda é a do jornalista e a terceira, da personagem. Esses três narradores vivem uma relação mais tensa do que harmônica e a força de cada um deles se refletirá na configuração final do que será publicado.[2]
No conflito ou na guerra, a disputa desses três narradores será também influenciada pela tentativa, pelas partes em conflito, de fazer sobrepujar sua narrativa. Assim, os exércitos em guerra buscam atuar sobre os três narradores da comunicação jornalística, de modo a influenciá-los. Mas não somente isso. Tentarão também atuar diretamente sobre a opinião pública, de forma ostensiva ou velada.
De uma perspectiva puramente militar, da lógica do conflito, essa é a coisa certa a se fazer, uma vez que a opinião pública nacional e internacional é decisiva para o resultado da guerra. Nesse sentido, o caso mais emblemático é o da Guerra do Vietnã, que poderia ter ser vencida até com alguma facilidade no campo militar, e foi perdida quando a opinião pública norte-americana se colocou em posição contrária à continuidade da guerra.
Na segunda Guerra do Golfo, em 2003, Muhammad Saeed al-Sahhaf era o Ministro da Informação do governo iraquiano. A ele cabia fazer prevalecer a narrativa de seu país sobre o andamento do conflito. Suas entrevistas eram tão descoladas da realidade que ele logo foi apelidado de “Comical Ali”. O exemplo caricato mostra o insucesso da estratégia. Mas na maioria das vezes o trabalho é bem feito e o público nem mesmo percebe que ele está ocorrendo, ainda mais nos tempos de mídias sociais, fake news e pós-verdades. Convido o leitor a fazer uma experiência. Acesse as informações sobre a guerra de Nagorno-Karabakh primeiro pelas fontes armênias, depois pelas azeris, e as compare. Tenho certeza de que parecerão dois conflitos diferentes. Outro exemplo pode ser o conflito de fronteira entre Índia e China, ocorrido recentemente. O resultado será o mesmo.
Assim, é essencial que o leitor/ouvinte/espectador externo, não diretamente envolvido no conflito, entenda que para além do conflito bélico, também há em curso, sempre, uma guerra de narrativas, na qual o seu coração e sua mente são o objetivo a ser conquistado.
Retornando-se à questão que abre este artigo, qual seria, então, a melhor ferramenta disponível para que o cidadão comum enfrente essa cacofonia informacional presente sempre que há um conflito?
O pensamento crítico parece ser a melhor ferramenta de que dispõe o público em geral para lidar com a desinformação, a dúvida, a orquestração, as versões contraditórias e as fakes news[3] que surgem da montanha de dados e informações que emergem dos conflitos.
Pensar criticamente significa avaliar atentamente argumentos feitos por outros e construir bons argumentos por si mesmo. Exige um certo grau de ceticismo e permanente contestação dos fatos apresentados. O leitor/ouvinte/espectador deve perguntar-se constantemente: de onde vem essa informação? Quem a produziu é capaz (tem conhecimento suficiente, tem acesso aos dados e informações) de informar tal fato? As evidências apresentadas permitem que se chegue à conclusão descrita? Qual é o interesse do produtor da informação, qual seu partido no conflito? A fonte é primária ou está apenas retransmitindo o que foi produzido por outros?
Mas reconheça-se que a tarefa é árdua, especialmente considerando-se a tal “pós-verdade”. A Universidade de Oxford a elegeu como a “palavra do ano” de 2016, definindo-a como algo “que se relaciona ou denota circunstâncias nas quais fatos objetivos têm menos influência em moldar a opinião pública do que apelos à emoção e a crenças pessoais”. A luta interior daquele que quer se aproximar da verdade também é contra suas próprias emoções e crenças pessoais. Há, portanto uma pergunta ainda mais difícil a se fazer: creio nessa informação porque ela é verdadeira ou porque ela simplesmente reforça minhas crenças pessoais, preferências ou desejos?
Ésquilo e Clausewitz continuam a ter razão. A verdade é a primeira vítima da guerra. E para que o leitor/ouvinte/espectador não seja a segunda, só conheço uma ferramenta: o pensamento crítico.