Como os britânicos veem seu papel no mundo em 2030 – e como estão se preparando para exercê-lo
O Reino Unido acaba de divulgar um documento cuja leitura considero muito importante, fundamental mesmo, para quem se dispõe a compreender o jogo que as grandes potências estão a disputar na arena internacional. Nele, são apresentadas as revisões das políticas integradas de defesa e segurança, relações internacionais e desenvolvimento da Grã-Bretanha [1].
O documento tem, na introdução, a visão do Primeiro-Ministro Boris Johnson para o Reino Unido no ano de 2030. Em resumo, trata-se de uma visão otimista sobre o papel de seu país no mundo, que enxerga o Reino Unido como uma das mais influentes nações do planeta, com uma economia forte e que, em razão da ênfase na adoção de inovações científicas e tecnológicas, estará mais bem equipada para enfrentar um mundo ainda mais competitivo.
Johnson entende que o Reino Unido deverá exercer um papel mais ativo como membro permanente do Conselho de Segurança da ONU na defesa de uma ordem internacional que ele acredita ser a mais adequada à humanidade. Enfatiza o papel do país na defesa do livre mercado internacional, na defesa dos direitos humanos e das normas internacionais. Reforça que a influência do país será amplificada pelas alianças e parcerias com outros países, dentre os quais ressalta os Estados Unidos da América.
Destaca ainda que o Reino Unido continuará a ser o principal aliado europeu dentro da OTAN. Enfatiza que, como uma nação europeia, os britânicos estarão comprometidos com a segurança Euro-Atlântica, mas que o Reino Unido deverá ter respeitada a sua soberania, fazendo as coisas de forma diferente da União Europeia, econômica e politicamente, quando isso for do interesse do país.
O Primeiro-Ministro prossegue, enfatizando a importância do Indo-Pacífico, região com a qual os britânicos estarão crescentemente engajados economicamente. Também faz referência à África, em especial ao oeste africano, citando nominalmente a Nigéria. Cita ainda o Oriente Médio e os países do Golfo Pérsico, que, segundo Johnson, receberá apoio para ser cada vez mais autossuficiente para prover sua própria segurança.
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Ainda de acordo com Johnson, em 2030, o Reino Unido liderará as economias do mundo na chamada economia verde, como parte dos esforços mundiais para lidar com as mudanças climáticas e a diminuição da biodiversidade. O país será reconhecido como uma superpotência científica e tecnológica e será vanguarda na regulação global sobre tecnologia, cibernética, e proteção de dados.
O documento, após apresentar a visão de futuro esperada pelo Primeiro-Ministro, se debruça sobre as estratégias que o país deverá adotar para que tal cenário seja construído: 1) adotar a Ciência e Tecnologia como um aspecto central para a segurança nacional e para a política internacional do país; 2) moldar a ordem internacional, criando um mundo favorável às democracias e aos valores universais (sic); 3) fortalecer a defesa e a segurança no próprio Reino Unido e no mundo; e 4) aumentar a resiliência, tanto no Reino Unido quanto no mundo, contra ameaças imprevisíveis como grandes desastres naturais ou ataques cibernéticos.
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As quatro estratégias apresentadas implicarão em algumas ações estratégicas. Uma será a busca de posições de liderança em organismos multilaterais, com o objetivo de influenciar as regulações internacionais, especialmente na governança do mundo digital. Outra será a busca pela liderança global para que o mundo atinja a marca de neutralidade nas emissões de carbono no ano de 2050. Proteger os interesses do Reino Unido no domínio espacial, inclusive com a criação de um Comando Espacial, é mais um exemplo.
A região do Indo-Pacífico e a China recebem uma grande atenção no documento. O país buscará desenvolver capacidades que sejam voltadas para lidar com um mundo em que a China ganhará cada vez mais importância em múltiplos aspectos da vida dos cidadãos britânicos.
Essas estratégias consideram que há quatro tendências principais para as mudanças no mundo na próxima década: 1) mudanças geopolíticas e geoeconômicas; 2) intensificação da competição no sistema internacional; 3) rápida mudança tecnológica; e 4) desafios transnacionais, ou seja, que afetam toda a humanidade, como as mudanças climáticas.
Assim, os britânicos reconhecem que, em 2030 o mundo será mais multipolar e que o centro de gravidade econômico e geopolítico do mundo terá se transferido para a região do Indo-Pacífico. Atores não estatais, como grandes companhias de tecnologia, terão um papel geopolítico até então inédito.
Essa multipolaridade intensificará a competição, que será ainda mais complexa pela presença de atores não estatais. Haverá a competição ideológica, entre sistemas políticos, e pela primazia na influência sobre a regulação do sistema internacional, especialmente no que concerne às novas tecnologias e ao uso do espaço.
O ambiente doméstico e internacional, de acordo com o cenário apresentado, ficará menos seguro, com a proliferação de armas químicas, biológicas, radiológicas e nucleares (QBRN); armas convencionais mais avançadas e novas tecnologias militares. O documento destaca que, entre 2016 e 2019, o mundo testemunhou a maior quantidade de conflitos armados internacionais desde 1946 e que esta tendência deve se manter até 2030.
A ciência e a tecnologia desempenharão um papel crucial no contexto estratégico. Serão críticas para o funcionamento das sociedades e da economia, sendo, por isso mesmo, arena de intensa competição interestatal e não-estatal. Também criarão vulnerabilidades representadas por ataques aos domínios espacial e cibernético. A disseminação de desinformação online continuará a minar a coesão nacional, o sentido de comunidade e a própria identidade nacional, na medida em que as pessoas estarão cada vez mais expostas ao mundo virtual. Além disso, as ameaças à privacidade das pessoas, bem como às liberdades individuais, serão crescentes.
O documento prevê que a pandemia da COVID-19 não será a única crise global da década de 2020. As mudanças climáticas e a diminuição da biodiversidade causarão instabilidade e migrações em massa. O documento afirma ainda que, se nada for feito para a redução das emissões de carbono, o mundo sofrerá um crescimento no aquecimento global da ordem de 3,5o C até o fim do século. Isso causará ainda mais efeitos extremos como tempestades, ondas de calor, inundações etc. Doenças infecciosas causadas por zoonoses tendem a aumentar na medida em a população mundial aumenta e a busca por novas áreas agrícolas causa desequilíbrios nos habitats animais. Assim, outra pandemia na década de 2020 seria, conforme a publicação, uma possibilidade realística.
O terrorismo, doméstico e internacional, será crescente, em função de diversas causas materiais e se manterá sendo uma grande ameaça para o Reino Unido e para diversos outros países do mundo. O documento considera bastante provável que até 2030 ocorra um atentado terrorista bem-sucedido utilizando armas QBRN.
Traçadas as estratégias para que, enfrentando as ameaças mundiais da próxima década, se construa o cenário desejado pelo Primeiro-Ministro, o documento passa a listar uma série de ações governamentais a serem adotadas.
Aqui, vou me concentrar apenas nas relacionadas ao campo militar que considerei mais relevantes. O documento lista muitas outras.
Os britânicos reafirmam sua presença militar não só na defesa do próprio território, mas fazem questão de enfatizar a importância dos seus territórios além-mar: Gibraltar, Ilhas Falklands (Malvinas) e suas possessões no Atlântico, Índico e Caribe.
Reafirma-se a importância da OTAN para a segurança coletiva da Europa. Para isso, os britânicos pretendem aumentar seus gastos de defesa em cerca de US$ 33 bilhões (24 bilhões de libras) nos próximos 4 anos, elevando-os para 2,2% do PIB e mantendo-se como maior contribuinte europeu para a OTAN.
O Reino Unido modernizará seu arsenal, com armas nucleares, armas de ataque de precisão, caças de 5ª geração e armas cibernéticas ofensivas. A marinha britânica aumentará sua presença no Indo-Pacífico, a começar ainda neste ano de 2021, quando o porta-aviões HMS Queen Elizabeth liderará uma Força-Tarefa aeronaval multinacional em operações no Mediterrâneo, Oriente Médio e Indo-Pacífico.
O país também investirá em sua capacidade dissuasória independente, aumentando seu arsenal nuclear. Em 2010, o Reino Unido havia decidido reduzir o total de ogivas, de 225 para 180, número que seria atingido em meados da década de 2020. Agora, o país mudou a política. Ao invés de proceder a redução, aumentará seus estoques para um total de 260 ogivas. É interessante notar que é a primeira vez que ocorre um aumento no arsenal nuclear britânico, desde o fim da Guerra Fria.
Como se vê, o documento tornado público pelo governo britânico mostra que o país compreende as mudanças globais nas quais está inserido e conclui que sua posição está sob desafio de uma nova ordem mundial que emerge do oriente. O diagnóstico, a visão de futuro e a estratégia para implementá-la mostram que o país não está disposto a ver desafiado seu status de potência regional com grande influência global.
Reafirmo a importância que atribuo à leitura do documento, para que reflitamos também sobre nosso papel no sistema internacional, sobre nossas aspirações para o futuro e sobre que lugar no palco internacional almejamos deixar nosso país para as futuras gerações de brasileiros.