Na guerra vale tudo?
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Todas as guerras são baseadas no logro. Portanto, quando capazes de atacar, devemos parecer incapazes, ao usarmos as nossas forças, devemos parecer inativos, quando estivermos próximos, devemos parecer distantes e quando distantes, devemos parecer próximos.

Sun Tzu. A Arte da Guerra/Cap 1

Quem faz injuria vil e sem razão,

Com forças e poder em que está posto

Não vence, que a vitória verdadeira

É saber ter justiça nua e inteira

 

Camões. Os Lusíadas, Canto X, estrofe LVIII

 

O jornal The New York Times, em sua edição de 03 de fevereiro, publicou uma reportagem citando autoridades norte-americanas que, sem serem identificadas, afirmaram que a Rússia estava planejando divulgar um vídeo falso no qual seria mostrado um ataque ucraniano em território russo ou um ataque contra a comunidade étnica russa das regiões separatistas no leste da Ucrânia.

Esse tipo de operação, já utilizada muitas vezes ao longo da história em guerras passadas, em inglês recebem o nome de false flag operations[1].

Trata-se de atuar militarmente contra um objetivo e atribuir essa operação ao inimigo, com a finalidade de criar um pretexto para a reação – um casus belli[2] – legitimando-a aos olhos da comunidade internacional e perante seu próprio público interno.

É, evidentemente, uma ação realizada muito abaixo da linha da ética. Por essa razão, nos casos já documentados na história, dificilmente o Estado assume sua prática.

A Segunda Guerra Mundial foi iniciada coma invasão da Polônia pela Alemanha. E o pretexto para a invasão foi uma famosa operação de bandeira falsa, a Operação Himmler, que leva esse nome em razão de ter sido criada por Heinrich Himmler.

A Operação Himmler teve vários episódios: assalto à estação de rádio de Gleitwitz (atualmente Gliwice na Polônia); ataque à estação aduaneira de Hochlinden; e ataque à estação de serviço florestal de Pitschen.

O principal foi o assalto à estação de rádio de Gleitwitz (a cerca de 4 Km da então fronteira com a Polônia). Por volta das 20 horas do dia 31 de agosto de 1939, um pequeno grupo de seis agentes alemães das SS, vestidos com uniformes poloneses e liderado por Alfred Naujocks, atacou a estação de rádio de Gleiwitz e transmitiu uma curta mensagem antialemã, em polonês, afirmando que a rádio estava nas mãos dos poloneses. Os alemães deixaram os corpos de alguns poloneses fardados no local ao mesmo tempo em que as emissoras de rádio alemãs noticiaram o incidente na fronteira, relatando a invasão e a reação da polícia alemã, que teria matado os poloneses. Em Londres, a BBC retransmitiu a informação. No dia seguinte, Hitler usou o “incidente” como pretexto para iniciar a invasão da Polônia e a II Guerra Mundial.

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A invasão japonesa da Manchúria chinesa, em 1931, também foi uma operação de bandeira falsa. Em setembro de 1931, forças japonesas detonaram uma pequena quantidade de explosivos perto de uma linha férrea de propriedade de uma empresa japonesa, a South Manchuria Railway, nas proximidades de Mukden – atualmente Shenyang. A explosão não causou danos relevantes, e um trem passou pelo local sem problemas, minutos depois. Entretanto, o Exército japonês acusou chineses do ato e desencadeou a invasão que levou à ocupação da Manchúria, na qual o Japão estabeleceu seu estado fantoche de Manchukuo, seis meses depois. A operação foi exposta internacionalmente, levando o Japão ao isolamento diplomático e sua retirada da Liga das Nações em março de 1933.

Em setembro de 2003, o jornal The Guardian divulgou documentos em uma reportagem que mostrava a existência de um plano secreto, elaborado em 1957, de forma conjunta pelos serviços secretos britânico, o MI-6, e norte-americano, a CIA, para criar falsos incidentes na fronteira da Síria, a fim de criar um levante para derrubar o regime sírio. O plano não foi executado, por falta de apoio dos vizinhos árabes da Síria.

Em 26 de novembro de 1939, a União Soviética realizou disparos com sua própria artilharia contra a vila soviética de Mainila, acusando os finlandeses de terem efetuado os tiros. Assim, forjou o casus belli que desencadeou a Guerra do Inverno, contra a Finlândia.

Como disse Platão, somente os mortos verão o fim das guerras. O fenômeno acompanha a história humana desde tempos imemoriais e assim permanecerá por muito tempo. Entretanto, até as guerras, um ato de suprema violência, têm suas regras no Direito Internacional Humanitário (DIH), constantes nas convenções de Genebra e seus protocolos adicionais, além de outros tratados internacionais. Igualmente importantes são as normas não-escritas, consuetudinárias, vigentes por usos, tradições, convenções e costumes de honradez.

As operações de bandeira falsa são condenáveis sob todos os aspectos. Do ponto de vista do DIH, podem configurar crimes de guerra, enquadrados no artigo 8º do Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional: VII) utilizar indevidamente uma bandeira de trégua, a bandeira nacional, as insígnias militares ou o uniforme do inimigo ou das Nações Unidas, assim como os emblemas distintivos das Convenções de Genebra, causando deste modo a morte ou ferimentos graves.

Do ponto de vista moral, causam a repulsa de toda a comunidade internacional. Estratagemas para enganar o inimigo, como recomenda Sun Tzu no cabeçalho deste texto, sempre existiram, e sempre existirão. São exemplos notórios o cavalo de troia e o exército fictício comandado por Patton posicionado de modo a enganar os alemães sobre o local de desembarque no dia D, na II Guerra Mundial. Coisa completamente diferente é atuar de forma pérfida, desleal e traiçoeira, criando um casus belli falso.

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Afinal, as causas que justificam a guerra, como a legítima defesa contra uma agressão, a intenção moralmente correta, o fato de ser o último recurso e de ser travada para evitar um mal maior são os critérios que fazem com que os povos aceitem pagar o altíssimo preço de participar de um conflito armado.

Por tudo isso, a acusação feita à Rússia de que ela estaria preparando uma operação de bandeira falsa para forjar um casus belii é gravíssima. Se concretizada, por qualquer dos lados, certamente causará enorme repulsa internacional.

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[1] Na falta de uma tradução consagrada para a expressão, neste artigo vou usar “operação de bandeira falsa”.

[2] Na terminologia bélica, casus belli é uma expressão latina para designar um fato considerado suficientemente grave pelo Estado ofendido, para declarar guerra ao Estado supostamente ofensor.

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