A liderança política na guerra da Ucrânia
Uma boa definição de liderança é a adotada pelo Exército Brasileiro: “A liderança militar consiste em um processo de influência interpessoal do líder militar sobre seus liderados, na medida em que implica o estabelecimento de vínculos afetivos entre os indivíduos, de modo a favorecer o logro dos objetivos da organização militar em dada situação”[1].
Ou seja, o líder deve se esforçar em construir engajamento, deve levar as pessoas a quererem fazer o que deve ser feito para o atingimento dos objetivos da organização a que todos pertencem.
A guerra da Ucrânia contrapõe dois líderes políticos, os presidentes Volodymyr Zelensky e Vladimir Putin. Putin está no poder há mais de 22 anos, sendo um líder experiente e experimentado na cena internacional. Já conduziu seu país por crises e guerras. Lidera de forma autocrática, cercado por um grupo fiel de assessores que estão ao seu lado há vários anos e que, por isso mesmo, dificilmente divergem de suas decisões. Coerentemente com esse estilo de liderança, permanece afastado, cultivando uma imagem quase venerável. A foto de uma reunião, no início da guerra, com seus mais importantes generais, Shoigu e Gerasimov, sentados em uma extremidade de uma enorme mesa, à uma grande distância do líder, bem representa essa postura.
Para conduzir os russos na direção dos objetivos que ele traçou, Putin se apoia em uma narrativa que tenta transmitir aos seus concidadãos uma situação de relativa normalidade. Nesse sentido proibiu que a guerra seja chamada pelo que é – efetivamente uma guerra – determinando que ela fosse apresentada aos russos apenas como uma “Operação Militar Especial”. Coerentemente com essa narrativa, até o momento, não decretou uma mobilização geral, evitando assim reconhecer que o país necessite adotar medidas extraordinárias em razão do conflito.
Putin apela ao nacionalismo e ao orgulho russos, alegando que o país estava sendo ameaçado pela expansão da OTAN em direção às fronteiras russas e que as minorias étnicas russas na Ucrânia estavam sendo maltratadas pelo governo ucraniano. Ele recorre constantemente às imagens de grandeza do império russo e desdenha da legitimidade da própria existência da Ucrânia como nação independente. Esse discurso encontra eco na sociedade russa e as taxas de aprovação de Putin, que estavam em torno de 60% antes da guerra, passaram a ser de mais de 80%[2] depois do início do conflito.
Zelensky, por sua vez, é um outsider, novato na política, o que torna seu caso interessante de ser analisado sob o prisma dos estudos de liderança. Comediante famoso em seu país, foi guindado à presidência sem antes ter passado por qualquer cargo político. Eleito em 2019 com mais de 70% dos votos, sua aprovação pelos ucranianos, no início de 2022, estava em torno de 30%. Após o início do conflito, sua popularidade triplicou, passando de 90% de aprovação[3].
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Tal fato demonstra que, quando testado pelo conflito, Zelensky surpreendeu a todos fazendo basicamente o que se espera de um líder político nessas situações: galvanizar a vontade de lutar do povo ucraniano e angariar apoios internacionais fundamentais ao esforço de guerra de seu país.
Para efetivamente exercer a liderança, a pessoa deve reunir três qualidades fundamentais: proficiência profissional, ou seja, saber fazer o que deve ser feito no cargo que desempenha; senso moral, servindo de exemplo das virtudes morais esperadas dos liderados; e atitude, tomando as medidas adequadas, no tempo correto, em prol do atingimento dos objetivos almejados por toda a coletividade.
Zelensky soube exercer a presidência em tempos de guerra, até o momento, atendendo a esses requisitos. Mantendo-se no nível de decisão político/estratégico, delegou as decisões de nível operacional e tático aos generais ucranianos. Manteve-se na capital do país, Kiev, durante todo o tempo, mesmo na fase inicial da guerra, com a cidade sob ataque e quando se acreditava que as tropas russas conquistariam a capital rapidamente, demonstrando com isso coragem pessoal e empatia com a população.
Utilizando com maestria sua capacidade de comunicação, cultivada certamente pela profissão de ator, Zelensky passou a se dirigir diariamente à população, sempre com uma mensagem de otimismo e de união do povo ucraniano. Ao mesmo tempo, se dirigiu à comunidade das nações, falando em inúmeros fóruns por videoconferência, conversando com os mais importantes chefes de Estado, inclusive recebendo muitos deles em Kiev. Soube assim aproveitar-se da boa vontade já existente em favor da Ucrânia no Ocidente para angariar apoios importantíssimos para o esforço de guerra ucraniano.
Zelensky é visto visitando as tropas e condecorando soldados, inspecionando hospitais, indo à frente de combate. Ele se comunica diretamente ao mundo pelas redes sociais. Sua mensagem é de colaboração, objetivos compartilhados e formação de equipe.
Tal estilo de liderança, entretanto, não o constrange de tomar medidas duras, se julgar necessário. Um exemplo foi o recente afastamento de seu chefe do serviço de inteligência, um amigo de infância, além da procuradora geral, em razão de centenas de casos de servidores acusados de traição e colaboracionismo com os russos.
Ao se comparar os estilos de liderança de Zelensky e Putin, vemos as enormes diferenças entre os dois. É inegável que Zelensky se comunica muito melhor e com mais facilidade, e comunicação é uma capacidade fundamental aos líderes. Seu estilo é mais adequado aos parâmetros ocidentais modernos, de uma liderança participativa, que conta com o engajamento e as ideias dos liderados.
Putin prefere o estilo autocrático, que chama para si a responsabilidade das decisões, estabelecendo objetivos, fixando normas e avaliando resultados. Ele é o único a encontrar as soluções e espera que sua equipe cumpra seus planos e ordens sem qualquer tipo de ponderação.
É inegável que ambos os estilos apresentam resultados. Pessoalmente, prefiro o estilo participativo, mas sei que haverá momentos em que cabe somente ao comandante supremo a decisão, sendo necessária uma ação imediata, sem espaço para ponderações.
Das guerras sempre emergiram, ao longo da história, líderes que souberam conduzir povos e exércitos em face a enormes desafios. Não será diferente agora. Caso a Ucrânia venha a ser exitosa, conseguindo, se não a vitória completa, que parece ser muito distante nesse momento, pelo menos um acordo de paz digno, que mantenha o país independente e viável, não tenho dúvidas, Zelensky, um ator ucraniano desconhecido, será alçado a condição de um dos mais importantes líderes do século 21, um século até aqui bastante carente de figuras políticas inspiradoras.
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[1] Manual de Liderança Militar do Exército Brasileiro. Leia em https://bdex.eb.mil.br/jspui/bitstream/123456789/302/1/C-20-10.pdf
[2] Veja em https://www.statista.com/statistics/896181/putin-approval-rating-russia/
[3] Veja em https://www.newstatesman.com/chart-of-the-day/2022/03/how-president-zelenskys-approval-ratings-have-surged