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A era dos carros de combate – como prova a guerra na Ucrânia – ainda não acabou

 

1. Introdução

As imagens da guerra atualmente em curso na Ucrânia, de carros de combate (CC) destruídos por armas anticarro e por “drones camicases”, divulgadas à exaustão na imprensa e nas mídias sociais, criaram no grande público, pouco afeito às táticas, técnicas e procedimentos do combate blindado, a impressão de que os CC tinham se tornado alvos fáceis, e por isso mesmo, obsoletos. Dessa forma, estavam dadas as condições para que analistas apressados e normalmente com pouco conhecimento de causa decretassem a “morte dos carros de combate”.

Não foi a primeira vez que isso aconteceu. Ao fim da Primeira Guerra Mundial, autoridades de defesa britânicas anunciaram que o carro de combate estaria morto ou morrendo, e que os CC nunca mais seriam usados. Os britânicos dissolveram suas unidades blindadas em 1928. O Ministério da Guerra, explicando a decisão, declarou que “tanques não eram mais uma ameaça[1]”.

Em 1936, as instruções de blindados do Exército francês afirmavam: “Na ofensiva, deve-se enfatizar que hoje a arma antitanque é, para o tanque, o que a metralhadora foi para a infantaria durante a Guerra Mundial”. Três anos depois, um livro best-seller de um general da reserva do exército francês argumentou que o CC havia falhado como uma arma inovadora, já que “uma arma anticarro de 75 ou 77 milímetros, que custava 150 francos, poderia destruir um CC que custava um milhão de francos.” (HENKIL, 2022). Um ano se passou e, em maio de 1940, os CC alemães lideraram com enorme êxito a invasão da França.

Em 1960, ao perceber que o anuncio do fim dos CC era uma afirmação recorrente, Sir Basil Liddell Hart escreveu que, “de tempos em tempos, durante os últimos 40 anos, autoridades anunciaram que o CC estava morto ou morrendo. Mas, a cada uma dessas vezes, ele ressurgiu da sepultura que lhe haviam consignado”[2].

Esse não é um fenômeno exclusivo dos blindados. Algo semelhante ocorreu com aeronaves de combate após o primeiro míssil superfície-ar se fazer presente no campo de batalha. O general da Força Aérea de Israel Ezer Weizman, famoso piloto de combate que foi comandante durante a Guerra dos Seis Dias de 1967, disse em 1975 que “o míssil havia dobrado a asa do avião.” Sete anos depois, com o auxílio de contramedidas eletrônicas e armamento apropriado, a força aérea israelense destruiu 19 baterias de mísseis superfície-ar sírias no Líbano sem sofrer uma única baixa. (HENKIL, 2022)

Isso deveria servir como uma advertência contra declarações prematuras de que sistemas de armas estão finalmente desatualizados.

Este texto tentará demonstrar que, mais uma vez, erraram aqueles que, ao testemunharem os acontecimentos atualmente em curso na Ucrânia, anunciaram a morte dos CC. Ainda não será dessa vez.

2. As ameaças aos carros de combate

A história dos CC tem sido uma constante disputa entre sua blindagem e sua capacidade de engajar alvos a grande distância, com rapidez e precisão, de um lado, e as armas anticarro que lhes contrapõem, de outro. Quando os carros surgiram, no Somme, em 1916, suas blindagens resistiam às metralhadoras alemãs, mas não às granadas de artilharia. Rapidamente, os alemães desenvolveram um fuzil antitanque, com um projetil maior e mais pesado, que tinha a capacidade de perfurar a blindagem. Trata-se da mesma disputa de sempre, como a existente entre a espada e o escudo, entre a catapulta e a fortificação, entre o projetil e o colete balístico.

Essa competição continua desde então. À medida que as ameaças foram se aprimorando, as blindagens também se aperfeiçoaram, desde as simples chapas de aço, passando pelas blindagens compostas, chegando às reativas, até as mais modernas, as chamadas blindagens ativas.

Atualmente, o leque de ameaças ao carro de combate é enorme: helicópteros armados com armas anticarro, CC e outros blindados inimigos, mísseis, “drones camicases” (loitering munitions), projéteis de orientação terminal dispersos por bombas de aeronaves, foguetes, projéteis de artilharia, munições cluster, minas anticarro, aí se incluindo as modernas minas de efeito direcionado, e armas leves, como granadas anticarro lançadas por fuzil ou por lançadores de granadas.

Em contrapartida às ameaças, surgiram os equipamentos de defesa ativa, que são aqueles que dispõem de munições ou módulos explosivos que reagem para interferir ou destruir os projéteis que são direcionados contra o carro ou veículo blindado no qual estão instalados. (MATEOS, 2018). Um exemplo desse tipo de equipamento é o sistema Rafael Trophy Active Protection System, que foi instalado em diversos CC, tais como o Merkava israelense, a família Abrams norte-americana, o Leopard 2A8 alemão e, especula-se, também estará na próxima versão do Challenger III britânico.

De acordo com a informação do fabricante, o sistema cria “uma bolha de neutralização” ao redor do veículo. Ele detecta, classifica e engaja rapidamente todas as ameaças conhecidas, incluindo mísseis, foguetes e granadas alto-explosivas. O sistema ainda tem a capacidade de localizar a origem da ameaça, permitindo que a tripulação responda ao fogo de forma eficaz[3].

Figura 1 – Funcionamento do Sistema – Fonte Reddit, adaptado pelo autor

Vê-se, portanto, que não há nenhuma razão para se acreditar que as novas ameaças, representadas por veículos aéreos não tripulados, por exemplo, não possam ser sobrepujadas por novas e modernas alternativas de blindagens e outros tipos de defesa ativa.

3. A relevância do Carro de Combate no campo de batalha

A invasão russa à Ucrânia, desencadeada em 24 de fevereiro de 2022, demonstrou com clareza e sem qualquer margem para outra interpretação, que a guerra de alta intensidade, o confronto cinético entre massas de exércitos regulares, ainda é uma realidade inescapável. No ambiente caótico do combate, as características de poder de fogo, ação de choque e proteção blindada, além da velocidade, conferidas aos exércitos por suas tropas blindadas, ainda são essenciais.

A essência do emprego do CC está na penetração das linhas defensivas inimigas, permitindo o aprofundamento do avanço das tropas atacantes e a abertura e exploração de brechas que redundarão no desequilíbrio de seu dispositivo. O uso de uma massa de blindados se mostrou essencial nas principais batalhas de alta intensidade do século 20. E não é diferente agora, no momento em que escrevo este artigo, quando as forças ucranianas iniciam uma operação ofensiva com o objetivo de tentar expulsar o invasor russo de seu território.

Lançar-se contra uma posição fortificada, como é o caso da posição defensiva russa, com trabalhos de organização do terreno realizados durante meses, na presença de obstáculos, campo de minas, setores de tiro delimitados, tiros de artilharia amarrados, itinerários de contra-ataques definidos e ações dinâmicas de defesa treinadas, em um ambiente em que o defensor possui meios de inteligência de sinais e de imagens que lhe permitem ampla consciência situacional, não é, por óbvio, uma tarefa simples.

Os comandantes ucranianos conhecem perfeitamente essa dificuldade. E por isso sabem que não podem prescindir dos blindados. Essa é a razão pela qual o presidente da Ucrânia, Volodimyr Zelenski, tanto insistiu – e continua insistindo – junto a seus parceiros ocidentais, pelo envio de caros de combate e demais veículos blindados à Ucrânia.

Em atendimento a essas demandas, diversos países se mobilizaram. Os EUA prometeram o envio de seus carros M1 Abrams. Os britânicos enviaram seus Challenger II. Alemães, poloneses, noruegueses, finlandeses, espanhóis e portugueses enviaram seus Leopard, nas versões I e II. Além de diversos outros países europeus que ainda detinham equipamentos de origem soviética, e os estão também enviando aos ucranianos. Trata-se de um enorme esforço, visto que os próprios países europeus da OTAN, via de regra, não dispõem de grandes quantidades de CC. Isso os está obrigando a acelerar seus programas de aquisição desse tipo de equipamento, para repor seus próprios inventários e manter – e até mesmo ampliar – suas capacidades operacionais.

Assim, a Polônia firmou um acordo para comprar centenas de VBC M1A2 Abrams SEPv3, além de outros blindados da mesma família, dos Estados Unidos [5]. Na mesma direção, a Romênia divulgou a intenção de comprar 54 unidades do mesmo CC norte-americano [6].  Os alemães, por sua vez, anunciaram a compra de novos Leopard [7]. Os britânicos estão estudando a ampliação de sua frota. Os franceses, também encomendaram novos carros Leclerc para seu exército[8].

Como demonstram os exemplos acima, as potências europeias, alarmadas pela guerra no velho continente, estão investindo na ampliação e modernização de suas frotas de carros de combate. Isso sem falar nos diversos projetos de CC autônomos e semiautônomos, que já estão em fase de desenvolvimento nas principais potências militares do planeta.

4. Conclusão

A guerra, para Clausewitz, nada mais é do que “um ato de força para obrigar o inimigo a submeter-se a nossa vontade”. E, como a guerra em curso no território ucraniano nos lembra, suas características totais permanecem, pois ela é travada em alta intensidade, com toda a “violência, ódio e animosidade” que a compõe.

Travar e vencer essas guerras de alta intensidade, em nome de seus povos, é a missão primordial dos exércitos nacionais. Para isso, desde o tempo de paz, devem manter um poder de combate crível, composto das capacidades militares necessárias para, em um primeiro momento, dissuadir eventuais adversários de agirem contra suas nações. Caso tal dissuasão falhe, deverão atuar decisivamente para garantir a integridade e os interesses nacionais. Para tanto, deverão, obviamente, ter construído, desde o tempo de paz, as capacidades militares necessárias.

É nesse contexto que a manutenção de forças blindadas e mecanizadas potentes, adestradas e compostas por um núcleo de soldados profissionais adestrados e motivados, é essencial. Elas serão a espinha dorsal da Força Terrestre em operações.

Afinal, sempre que os exércitos entrarem em combate eles deverão possuir uma tropa capaz de manobrar para obter vantagem sobre o inimigo, vencê-lo e sobreviver ao encontro. Para isso sempre serão necessários meios de proteção, poder de fogo e mobilidade adequados. O principal material de emprego militar para se alcançar isso ainda é – e continuará sendo em um futuro previsível – o carro de combate.

 

ESTE ARTIGO FOI ORIGINALMENTE PUBLICADO NA REVISTA AÇÃO DE CHOQUE, EDIÇÃO 21. LEIA A REVISTA COMPLETA, COM MUITO BONS ARTIGOS SOBRE O COMBATE DE BLINDADOS: https://www.calameo.com/read/007489941ce703935a1c5 

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[1] JP Harris, Men, Ideas and Tanks, British Military Thought and Armoured Forces, 1903-1939.

[2] Stuart Crawford, “Quality or Quantity? The Tank Conundrum”, UK Defence Journal, July 27, 2022, Quality or Quantity? The Tank Conundrum (ukdefencejournal.org.uk).

[3] https://www.rafael.co.il/worlds/land/trophy-aps/ Veja o vídeo do funcionamento do sistema em https://www.youtube.com/watch?v=KVma76ZQ2dQ&ab_channel=RAFAELAdvancedDefenseSystemsLtd

[4] https://apnews.com/article/technology-poland-district-of-columbia-business-5f1681545d1bbe41ea4fb40fe719b21e

[5] https://www.romania-insider.com/romania-abrams-tanks-purchase-2023

[6] https://www.reuters.com/world/europe/germany-aims-buy-18-leopard-2-tanks-545-mln-euros-source-2023-05-12/

[7] https://ukdefencejournal.org.uk/britain-considering-expanding-tank-fleet/

[8] https://www.thedefensepost.com/2023/01/16/france-leclerc-battle-tanks/ 

REFERÊNCIAS

CLAUSEWITZ, Carl Von. Da guerra. Disponível em https://www.amigosdamarinha.com.br/wp-content/uploads/2018/04/Da-Guerra-Carl-Von-Clausewitz.pdf Acesso em 27 Jun 2023

CRAWFORD, Stuart. The age of the tank is not yet over. Disponível em https://ukdefencejournal.org.uk/the-age-of-the-tank-is-not-yet-over/ Acesso em 27 Jun 2023

GUTIERREZ, Roberto. O futuro dos Tanques. Revista Ejercitos. Disponível em https://www.revistaejercitos.com/2018/11/11/el-porvenir-de-los-carros-de-combate/ Acesso em 27 Jun 2023

HENKIN, Yagil. The “Big Three” Revisited. Initial Lessons from 200 Days of War in Ukraine. Disponível em https://www.usmcu.edu/Portals/218/EXP_Henkin_BigThreeRevisited__PDF.pdf Acesso em 27 Jun 2023

MATEOS, Francisco. Sistemas de proteção ativa. Revista Ejercitos. Disponível em https://www.revistaejercitos.com/2018/09/16/sistemas-de-proteccion-activa/ Acesso em 27 Jun 2023