A data de hoje marca os dois anos da invasão russa à Ucrânia, momento oportuno para uma breve análise acerca de alguns, dentre vários, desdobramentos que o conflito trouxe aos campos da geopolítica, da economia, das relações internacionais e da defesa. Isso sem falar nas terríveis consequências humanitárias para as pessoas, contadas aos milhões, diretamente afetadas pela tragédia da guerra.
As repercussões geopolíticas são evidentes. A guerra é a manifestação mais violenta do momento de contestação da ordem internacional liderada pelos Estados Unidos, erigida no pós Guerra Fria. Trata-se principalmente da ascensão chinesa e do desafio que passou a ser oferecido à liderança norte-americana por atores estatais que buscam o protagonismo no sistema internacional. Isso ficou muito bem caracterizado na conversa entre Putin e Xi Jinping, em frente aos repórteres, em Moscou, em março do ano passado, quando Xi disse a Putin que o mundo estava vivendo um momento de mudanças, como não era visto há cem anos, e que eram eles próprios, os dois líderes, que as estavam promovendo. Putin respondeu, concordando.
Compre na Amazon, por este link, e apoie o Blog do Paulo Filho
A Rússia, tendo conquistado quase 20% do território ucraniano, renovou a preocupação de segurança entre os europeus, que até 24 de fevereiro de 2022 pareciam acreditar que os conflitos de grande escala estavam superados no continente. Esta mudança de percepção foi acompanhada por um notável redirecionamento nos investimentos em defesa por parte dos países europeus. De acordo com um levantamento realizado pelo Institut de Relations Internationales et Stratégiques, entre 2022 e meados de 2023, as aquisições de sistemas e materiais militares pelos países europeus totalizaram quase 100 bilhões de euros, representando um aumento de cerca de 33% em relação ao ano anterior. A Alemanha e a Polônia foram responsáveis por aproximadamente um terço desse aumento substancial, com encomendas avaliadas em cerca de 28 e 16 bilhões de euros, respectivamente. Dos 27 países europeus pesquisados, 25 aumentaram seus orçamentos de defesa de 2022 para 2023, evidenciando uma mudança de tendência. Apenas Hungria e Grécia foram exceções, registrando uma diminuição em seus orçamentos de defesa neste período.
No campo dos estudos estratégicos, a guerra na Ucrânia veio para derrubar mitos, reforçar fundamentos e apresentar novidades. A principal característica do conflito – sua alta intensidade, caracterizada pelo atrito e pelo maciço emprego da artilharia pelos dois lados – derrubou uma crença recente de que os conflitos modernos poderiam ser resolvidos apenas por pequenos exércitos, altamente móveis, dotados de ferramentas tecnológicas no estado da arte. É claro que mobilidade e tecnologia são importantes. Mas, para se conquistar um território invadido, defendido em linhas de trincheiras apoiadas por extensos campos de minas e por poderosa artilharia, o que ainda importa são as massas dos exércitos, constituídos por uma reserva mobilizável contada em centenas de milhares de soldados. Essa é a razão pela qual o serviço militar obrigatório volta a ser adotado e discutido por diversos países europeus. Também se deve a isso o esforço acelerado de abertura de fábricas de munições, para superar a enorme deficiência europeia nessa produção, especialmente quanto à granadas de artilharia.
Ao mesmo tempo em que se assiste ao emprego de técnicas, táticas e procedimentos utilizados desde a Primeira Guerra Mundial, o Teatro de Operações da Ucrânia serve de palco para inovações. Os sistemas aéreos remotamente pilotados, ou drones aéreos, que já tinham surgido como armas importantes na guerra de 2020 entre Armênia e Azerbaijão, se apresentam como sistemas fundamentais nos conflitos atuais. Seus congêneres navais, entretanto, fazem sua estreia, com resultados surpreendentes, sendo os responsáveis pelo afundamento de diversos navios da frota russa no Mar Negro. O emprego dos mísseis hipersônicos russos também é uma inovação digna de nota.
No campo econômico, um primeiro aspecto a se destacar é a constatação de que a coerção econômica que os EUA e seus aliados pretendiam infligir à Rússia por intermédio das dezenas de sanções e embargos não atingiram os resultados esperados. Os russos conseguiram, em grande medida, substituir as trocas comerciais embargadas por novas relações com países do chamado “Sul Global”, que não aderiram às sanções. Nesse sentido, o caso da Índia é exemplar. O país aumentou em mais de 13 vezes o valor das importações de petróleo da Rússia, totalizando, em 2023, cerca de 37 bilhões de dólares.
Essa não é uma boa notícia para a manutenção da paz no mundo. A constatação, por parte das grandes potências, de que a ferramenta da coerção econômica não é mais tão eficaz como foi no passado, pode vir a significar uma opção direta pela solução militar, sem a “escala” pela pressão econômica. Ou seja, pode vir a significar o aumento do risco da eclosão de novos conflitos armados.
Finalmente, há que se destacar a questão humanitária. A guerra sempre impõe enorme sofrimento às populações atingidas, e não seria diferente no caso da guerra na Ucrânia. Cerca de 14 milhões de pessoas foram forçadas a abandonar as suas casas desde o início da invasão russa, há dois anos, e quase 6,5 milhões vivem fora do país como refugiados. O número de baixas fatais de combatentes de ambos os lados é tratada com sigilo, e os números não são confiáveis. Entretanto, é um consenso entre os analistas que, somadas, ultrapassam facilmente a cifra de meio milhão de soldados. Há também os deploráveis episódios de maus tratos e violações graves e generalizadas dos direitos humanos, com centenas de casos relatados de violações do Direito Internacional dos Conflitos Armados, sem falar na enorme destruição de infraestrutura, inclusive de cidades quase por completo, como os casos de Bakhmut e Avdiivka.
Clique e descubra as ofertas do dia na Amazon!
Assim, constata-se que a guerra na Ucrânia pode ser caracterizada como um divisor de águas, evidenciando a fragilidade da ordem internacional pós-Guerra Fria e o recrudescimento das tensões geopolíticas.
O conflito na Ucrânia também terá impactos importantes e duradouros no campo dos estudos estratégicos. O retorno da guerra de alta intensidade, de atrito e da artilharia, convivendo com novas armas e tecnologia no estado da arte, obrigará os governos de todo o mundo a aumentarem seus investimentos em defesa, repensarem suas estratégias, suas formas de mobilização e o preparo de suas forças armadas.
Por fim, embora no momento não se vislumbre a possibilidade de um desfecho a curto prazo, destaca-se a urgência de uma solução para o conflito. A guerra na Ucrânia causou um enorme sofrimento humano, com milhões de pessoas deslocadas, cidades devastadas e enormes perdas de vidas. A reconstrução da Ucrânia será um desafio monumental, que exigirá um esforço global para garantir a recuperação do país e o bem-estar de sua população.
Excelente análise de cenário. Acessível. Empática e imparcial.
Obrigado!