Ontem, dia 03 de maio de 2024, a guerra na Ucrânia completou oitocentos dias. Essas efemérides, embora não tenham nenhuma importância prática nos campos de batalha, convidam à reflexão sobre o desenrolar dos acontecimentos.
No campo tático/operacional, especialmente na frente Oriental, o momento é favorável aos russos, que pressionam a frente e obtêm ganhos territoriais de forma lenta, mas constante. Analistas do Black Bird Group, da Finlândia, a partir do estudo de fotografias de satélites, concluíram que, se entre 01 de junho e 01 de outubro do ano passado os russos perderam a posse de 414,26 Km2 de território ocupado na Ucrânia, a maré virou em 2024. De 01 de janeiro deste ano a 02 de maio, os russos recuperaram uma área equivalente à perdida em 2023, mas com alguma sobra: 432,3 Km2, a maior parte na região de Donetsk.
O esforço do povo ucraniano de se contrapor à invasão de seu território por um exército russo muito maior, e dotado de vastos recursos bélicos, está cobrando um preço muito alto. A carência de pessoal nas fileiras do exército ucraniano é grave. Embora o presidente Zelensky recentemente tenha anunciado em 31 mil o número de soldados mortos em combate, serviços de inteligência ocidentais acreditam que esse é um número muito subestimado, tendendo a ser, provavelmente, mais que o dobro dessa quantidade. Para tentar repor essas baixas em suas fileiras, o país mudou suas leis de recrutamento, reduzindo a idade elegível para o serviço militar de 27 para 25 anos. Zelensky também pediu aos governantes ocidentais que encorajassem os ucranianos em idade de prestação do serviço militar que estejam refugiados em seus países, a voltarem à Ucrânia.
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Ao problema da falta de pessoal se soma a carência de armas e munições. Os quase seis meses de interrupção de ajuda militar por parte dos EUA diminuíram de forma muito importante as capacidades militares do exército ucraniano, especialmente suas capacidades de defesa antiaérea e de realização de fogos com sua artilharia de campanha. A recente aprovação, pelo congresso americano, da ajuda de US$ 61 bilhões se deu em um momento verdadeiramente crítico para os ucranianos e, embora se tenha anunciado que essa ajuda já começa a se materializar com a chegada de armas e munições à Ucrânia, ainda levará um bom tempo para que todo esse dinheiro se materialize em poder de combate real, no terreno.
Os russos, por sua vez, embora também estejam sofrendo pesadas baixas, têm uma capacidade muito maior do que a Ucrânia de repor seus efetivos militares. Isso passa tanto por uma base populacional muito maior – a Rússia possui 144 milhões de habitantes, enquanto a Ucrânia possuía, antes da guerra, cerca de 42 milhões – quanto por uma maior aceitação de risco por parte dos seus planejadores militares, que não hesitam em seguir em frente e manter operações ofensivas mesmo em face de pesadas baixas.
No que concerne aos suprimentos de armas e munições, a Rússia conseguiu alcançar um equilíbrio logístico graças à imposição de um regime de economia de guerra, com sua base industrial de defesa trabalhando em um regime de três turnos, 24 horas por dia, e às importações da Coreia do Norte e do Irã.
Essas condições, no momento em que a primavera e a aproximação do verão melhoram a transitabilidade do Teatro de Operações, levam muitos analistas a prever o desencadeamento de uma nova ofensiva russa, cujos objetivos ainda não estão claros. Talvez se restrinjam a tentar conquistar a integralidade dos territórios das quatro províncias ucranianas anexadas formalmente pela Rússia: Lugansk, Donetsk, Kherson e Zaporizhzhya, ou talvez tenha objetivos mais ambiciosos, com a conquista de novos territórios ucranianos. Preparando-se para essa possibilidade, as forças ucranianas já estão há algum tempo a preparar novas posições defensivas em profundidade.
No campo diplomático, o fato da balança da guerra, em 2024, estar pendendo para o lado russo está por trás de uma importante mudança recente no discurso dos aliados europeus da Ucrânia: a possibilidade de utilização de equipamentos fornecidos pela OTAN para ataques em profundidade sobre alvos no interior do território russo. Esse uso vinha sendo vetado pela aliança ocidental desde o início da guerra, em razão do temor de causar uma escalada do conflito que levasse a um enfrentamento direto entre a Rússia e a OTAN. Entretanto, o ministro das relações exteriores do Reino Unido, David Cameron, deu essa permissão acerca dos sistemas de armas fornecidos pela Grã-Bretanha. Além de Cameron, outras lideranças europeias começam a se manifestar no mesmo sentido. O presidente francês Emmanuel Macron também tem subido o tom de sua retórica, afirmando que a França não descarta o envio de tropas em socorro à Ucrânia caso a manutenção da soberania ou a própria sobrevivência daquele país esteja e risco. Britânicos e franceses se comprometeram ainda a ajudar com bilhões de euros no esforço de guerra ucraniano.
Essa maior assertividade na retórica dos líderes europeus vem acompanhada de uma conscientização de que seus países devem confiar cada vez mais em si mesmos e nas alianças forjadas dentro da própria Europa, dependendo menos do guarda-chuvas dissuasório oferecido pelos Estados Unidos, principal membro da OTAN. Nesse sentido, o presidente Macron disse, em discurso na universidade de Sorbonne, que “a Europa pode morrer”. O presidente francês acrescentou, em entrevista à revista The Economist, que “se a Rússia vencer na Ucrânia não haverá segurança na Europa”. “Quem garante que a Rússia irá parar na Ucrânia? Que segurança poderiam ter países como Moldávia, Romênia, Polônia, Lituânia e outros países vizinhos?” foram as perguntas feitas por Macron.
Ainda no campo diplomático, Suíça e Ucrânia anunciaram a realização de uma conferência de paz, a se realizar na Suíça, nos dias 15 e 16 de junho. Mais de cem países já foram convidados. Entretanto, como a Rússia não deve participar do evento, uma vez que acusa a Suíça de ter abandonado sua histórica neutralidade em favor da Ucrânia, é muito provável que outros países – especialmente aqueles do chamado “Sul Global” – se recusem a participar.
Assim, neste momento em que a invasão russa à Ucrânia completa 800 dias, nada indica que a guerra esteja próxima de um término. Se, de um lado, a Ucrânia claramente não possui, nas condições atuais, poder de combate suficiente para expulsar o invasor de seu território, por outro lado, os russos dificilmente encontrarão facilidade em obter novos ganhos territoriais enquanto os ucranianos continuarem a receber apoio dos EUA e da Europa. O que se pode prever é a manutenção de uma guerra de atrito, acompanhada de uma intensificação nos bombardeios aeroestratégicos de ambos os lados, buscando alvos de valor estratégico, como fábricas, centrais elétricas, pontes importantes, entroncamentos ferroviários etc.
Essa previsão vale até as eleições nos EUA, em novembro. Caso Donald Trump vença, é provável que o apoio americano à Ucrânia mingue consideravelmente. Se isso acontecer, a Rússia estará em uma posição de força para impor uma paz nos seus termos. A menos que a Europa compre a briga ucraniana. Em qualquer das hipóteses, infelizmente para as populações direta e indiretamente flageladas pela guerra, a paz ainda está muito longe.
Tenho por mim que os russos travam uma guerra de desgaste e administração de recursos, tendo como objetivo recuperar territórios e reconstruí-los antes de avançar para o próximo objetivo, não operam uma guerra relampago. Os russos estão travando uma guerra civilizacional, isto é, uma guerra de valores. Entre valores ocidentais versus euroasiáticos, entre liberdades individuais versus liberdades coletivas. Os russos consideram os ucranianos irmãos históricos e não querem destruir toda a Ucrânia de uma vez, eles irão destruir, ocupar, e reconstruir, parte por parte, e repovoar as regiões com russos(as) étnicos. Logo, a natureza da guerra será de uma guerra prolongada e os ucranianos com tendencias ocidentais entenderão porque o idioma ucraniano é mais próximo do russo do que do alemão ou outros da Europa ocidental. Os russos perderam a guerra de informação e ideológica na Ucrania, mas não vão perder a guerra material, isto é, a guerra de domínio por territórios. No fim, o Estado Ucraniano cairá tal como é hoje e será substituído por um Estado Ucraniano mais russo, com muito mais russos étnicos do que outrora já existiu na Ucrânia.