Diálogos e divergências em Xangrilá: as Perspectivas de EUA e China sobre a Segurança no Indo-Pacífico
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Xangrilá é um lugar paradisíaco isolado nos vales montanhosos do Tibete, descrito no livro Horizonte Perdido, de James Hilton, como um lugar onde o tempo parece deter-se, no qual as pessoas vivem vidas extremamente longas em paz e harmonia, distante das turbulências do mundo exterior. Entretanto, as personagens do livro, ante a escolha de permanecer ou não por lá, vivem dilemas morais e filosóficos, o que sugere que a utopia de Xangrilá tem um preço. Mesmo o paraíso oferece complexidades e desafios.

O Hotel Sangri-la, em Cingapura, embora luxuoso, está longe de ser o paraíso. Ele é a sede de uma conferência anual de Segurança da Ásia, conhecida como “Sangri-la Dialogue”, promovida pelo International Institute for Strategic Studies (IISS). A escolha do nome da conferência é evidentemente simbólica e intencional. Se a fictícia Xangrilá de Hilton é um lugar de paz e reflexão, a conferência busca ser um fórum de discussão para a busca de soluções pacíficas para os conflitos na região asiática do Indo-Pacífico.

A conferência deste ano, que acabou de acontecer, ecoou o aumento das tensões na região, consubstanciadas pelo grande exercício militar chinês no entorno da ilha de Taiwan e pelas frequentes escaramuças entre navios chineses e filipinos no Mar do Sul da China.

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Muita gente importante esteve presente no encontro, realizado entre os dias 31 de maio e 2 de junho. Os presidentes das Filipinas, Ferdinando Marcos Junior, do Timor Leste, José Ramos Horta e da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, além da Primeira-Ministra da Lituânia Ingrid Simonyte, e do presidente eleito da Indonésia, Prabowo Subianto, fizeram seus discursos e participaram dos debates. Dentre os vários ministros da defesa presentes, destaco a participação do norte-americano, General Lloyd Austin, e do chinês, Almirante Dong Jun, que se esforçaram para convencer a plateia da validade de seus argumentos, em um ambiente em que o assunto, ao fim e ao cabo, girava em torno das relações EUA-China e seus reflexos para os países da região.

O General Austin, que fez sua décima visita ao Indo-Pacífico desde que assumiu a função de Secretário de Defesa, em 2021, fez questão de destacar que aquela é uma região de fundamental importância para os EUA. Deixou isso muito claro, dizendo que seu país estava profundamente comprometido com os países da região, e que isso não iria mudar.

Ao destacar o período conturbado que o mundo atravessa, referiu-se aos riscos para a segurança global representados pelas mudanças climáticas, pelas pandemias e pelos perigos representados pelo terrorismo e pelas armas nucleares. Lembrou da guerra e da instabilidade no Oriente Médio e da invasão russa à Ucrânia. Mas, de forma significativa, se referiu a “ações na região (do Indo-Pacífico) que erodem o status quo e ameaçam a paz e a estabilidade”. Essa última lembrança foi uma referência nada sutil à China, tanto na questão de Taiwan, quanto nas disputas em curso no Mar do Sul da China.

Austin ressaltou a importância das parcerias estratégicas que, de acordo com sua perspectiva, seriam guiadas não pela imposição da vontade de um único país, mas por uma visão compartilhada pelos EUA e seus parceiros na região em torno de princípios comuns, uma espécie de senso de mútua responsabilidade, que fortaleceria a capacidade de defesa e a interoperabilidade entre os países da região.

O ministro reafirmou que a região do Indo-Pacífico está “no coração” da Estratégia norte-americana, mesmo em um mundo em que a guerra na Ucrânia e o conflito no Oriente Médio exigem atenção do país. Para ressaltar ainda mais a sua importância, ele afirmou que seu país só pode estar seguro se a Ásia estiver segura. Essa é a razão pela qual os EUA continuarão mantendo sua presença e investimentos na região. Como exemplos, Lloyd citou a realização de diversos exercícios militares, acordos de cooperação e iniciativas conjuntas na área de desenvolvimento de sistemas e materiais de emprego militar que os EUA mantêm com vários países da área, com especial destaque para o Japão, Coreia do Sul, Índia e Filipinas.

Encerrando suas palavras, sem citar nominalmente a China, mas claramente se referindo a ela, Lloyd disse que ainda haverá quem desrespeite as leis internacionais, tentando impor sua vontade pela coerção e pela agressão, mas que os EUA e seus parceiros continuarão a buscar novos pontos de convergência para a construção de um futuro melhor para todos.

Recentemente nomeado ministro da Defesa da China, o Almirante Dong Jun, primeiro oficial da marinha a ocupar o cargo, enfatizou o compromisso dos povos da Ásia-Pacífico com a harmonia e a paz. Entretanto, segundo Dong, esses mesmos povos teriam uma memória compartilhada do sofrimento e da opressão impostos pelo colonialismo e pelo imperialismo.

Por essa razão, os países da região concedem uma grande importância à sua independência, rejeitando relações de vassalagem ou de submissão a blocos de países que levem à confrontação. Dessa forma, segundo o almirante, os países asiáticos desejariam conviver com uma ordem internacional igualitária e multipolar.

A linha de raciocínio do ministro chinês prossegue no sentido de mostrar que os países da região têm plenas condições de resolver suas questões de forma autônoma, sem receber ordens de países hegemônicos, em clara referência ao que os chineses consideram ser uma intromissão indevida dos EUA nas questões regionais.

Dong apresenta as iniciativas chinesas de “Desenvolvimento Global”, em conjunto com as iniciativas de “Segurança Global” e de “Civilização Global” como propostas de visão de um futuro compartilhado para toda a humanidade, que pode levar a um mundo de paz e desenvolvimento.

Dizendo que uma guerra nuclear não pode ser vencida e nunca deve ser travada, o ministro reafirmou o compromisso da China de nunca utilizar seu armamento nuclear a não ser como resposta a um ataque, ou seja, de nunca ser o primeiro a utilizar esse tipo de arma contra um inimigo.

Referindo-se aos conflitos da Ucrânia e do Oriente Médio, o almirante afirmou que a China se coloca de forma imparcial, na busca de uma solução pelo diálogo. Em relação aos EUA, disse que as duas partes não deveriam buscar a confrontação e deveriam valorizar a paz, promover a estabilidade e agir de boa-fé, atitudes que aumentariam a confiança mútua.

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Dong reafirmou que a questão de Taiwan é central para a China e criticou as ações do partido no poder na ilha, acusando-o de tentativas de suprimir a identidade chinesa e de minar as conexões sociais, históricas e culturais entre taiwaneses e chineses. Referindo-se de forma velada aos EUA, acusou o país vender armas e de ter contatos ilegais com o governo de Taiwan, o que eleva as tensões no Estreito, criando uma situação perigosa. Lembrou que a questão é um problema exclusivamente chinês, em relação ao qual não se admite interferência estrangeira, e que, apesar da China buscar uma reunificação pacífica, que as forças armadas do país permaneceriam em condições de impedir que a ilha busque a independência.

Em relação às disputas no Mar do Sul da China, o ministro da defesa da China disse que “um determinado país”, em clara referência às Filipinas, “encorajado por potências externas, quebrou acordos bilaterais e as suas próprias promessas, fez provocações premeditadas e criou cenários falsos para enganar o público”. Além disso, ao autorizar os EUA a desdobrarem mísseis em seu território, teria violado a carta da ASEAN, prejudicando a paz e a estabilidade da região. Nesse sentido, Dong afirmou que “a China tem exercido grande contenção face a tais infrações e provocações”, mas que havia um limite à essa restrição, esperando que as Filipinas “retornassem ao caminho correto do diálogo”.

Como se pode inferir das participações dos ministros da defesa de EUA e China na Conferência do Hotel Shangri-lá, os dois países possuem visões estratégicas concorrentes no que se refere à estabilidade, segurança e cooperação na região do Indo-Pacífico.

Enquanto Austin propõe uma rede de parcerias estratégicas liderada pelos EUA com os países da região, com o objetivo de solidificar uma postura de força coletiva, Dong promove uma visão de segurança regionalizada e autônoma, ressaltando a capacidade dos países da região de resolverem suas questões sem interferência externa.

Ambas as autoridades atribuem importância ao multilateralismo, entretanto, atribuem a seus respectivos países uma posição de liderança, nem sempre expressa com clareza, mas claramente presente nas entrelinhas dos discursos, caracterizando a disputa hegemônica em curso entre os dois países.

Nas principais questões geopolíticas envolvendo a China na região, referentes à Taiwan e ao Mar do Sul da China, enquanto Austin se posiciona de maneira velada contra ações que ele vê como ameaçadoras à paz regional por parte da China, Dong refuta essas alegações, reiterando o direito da China à soberania e à integridade territorial.

Dessa forma, fica claro que Austin e Dong representam duas abordagens distintas que refletem os interesses e as políticas externas de seus respectivos países. Conclui-se que a busca por pontos de convergência, como sugerido por Austin, e a disposição para diálogo, enfatizada por Dong, são essenciais para o desenvolvimento de uma paisagem geopolítica mais estável e pacífica no Indo-Pacífico.

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