Mil dias de guerra na Ucrânia
Na noite de 24 de fevereiro de 2022, a expectativa dos comandantes russos, do presidente Vladimir Putin e da maioria dos analistas militares era de que a invasão à Ucrânia seria resolvida em poucos dias. A previsão incluía a rápida capitulação das forças ucranianas e de sua liderança política, culminando em uma vitória acachapante da Rússia. Parecia impossível, ante ao desequilíbrio das forças militares, imaginar que a guerra se estendesse por muito tempo.
Hoje, mil dias depois, graças a uma surpreendente resistência inicial ucraniana, e a uma não menos surpreendente incompetência inicial das forças russas, bem como do socorro material prestado pelo Ocidente, que se organizou rapidamente após os primeiros dias do conflito, os combates prosseguem. Não sem ter cobrado um preço altíssimo, tanto das forças armadas e da sociedade ucraniana, quanto das forças invasoras.
A data de hoje marca, portanto, uma longa jornada de destruição e resistência, no maior conflito europeu desde a Segunda Guerra Mundial. A chegada do milésimo dia, entretanto apresenta um cenário preocupante, com novos episódios que ampliam os riscos de escalada do conflito.
O primeiro desses acontecimentos foi a chegada de milhares de soldados norte-coreanos, enviados para reforçar as tropas russas. Essa movimentação marca uma perigosa internacionalização das forças em conflito, no que parece ser uma intensificação do esforço da Rússia de expulsar as tropas ucranianas que invadiram a região de Kursk.
O segundo episódio é a utilização, até aqui inédita, pela Ucrânia, dos mísseis americanos ATACAM (Army Tactical Missile Systems) para bombardear um depósito de munições na cidade de Bryansk, a cerca de 100 quilômetros da fronteira. O ataque ocorreu apenas dois dias após o presidente dos EUA, Joe Biden, modificar sua posição inicial e autorizar o uso de armas fabricadas nos EUA – como os mísseis ATACMS – contra alvos em território russo. Essa autorização era uma aspiração antiga dos ucranianos, negada por cerca de dois anos – justamente pelo temor das autoridades americanas de que levasse o conflito a uma escalada que pudesse envolver diretamente a OTAN na guerra.
O terceiro é a resposta russa, que consistiu na mudança de sua doutrina nuclear. A nova versão, publicada hoje, prevê que ataques convencionais à Rússia, provenientes de países apoiados por potências nucleares, poderiam ser interpretados como ataques conjuntos e, portanto, poderiam ser respondidos com um contra-ataque nuclear. A nova orientação do documento foi delineada exatamente para o que acaba de acontecer: um ataque convencional ucraniano apoiado por uma potência nuclear, os EUA. Essa atualização aumenta o risco de uma escalada nuclear em resposta a ações que antes seriam tratadas apenas no âmbito dos conflitos convencionais
Isso não significa que seja plausível se imaginar que a Rússia vá usar uma bomba atômica contra um país da OTAN. Afinal, os russos sabem que estariam abrindo a Caixa de Pandora que poderia levar a um conflito nuclear de grandes proporções, o que implicaria na mútua destruição dos adversários.
Entretanto, abre uma janela para uma possibilidade muito preocupante: o uso de uma arma nuclear tática contra um alvo em território ucraniano. Os estrategistas russos poderiam partir da premissa de que o uso de uma bomba atômica contra um alvo em território ucraniano não provocaria uma reação nuclear da OTAN contra a Rússia, uma vez que não consistiria em um ataque direto a um país da Aliança. Essa premissa, bastante lógica, permitiria a conclusão de que o risco de uma “mútua destruição assegurada” resultante de um confronto entre potências nucleares estaria afastada. Tal ataque estaria alinhado com a estratégia de escalar o conflito ao máximo para conseguir a imediata rendição do adversário, estratégia conhecida na doutrina russa como “escalar para desescalar”. Seria, entretanto, uma medida gravíssima e sem precedentes desde 1945, que causaria uma enorme instabilidade no Sistema Internacional.
Como se vê, mil dias após o início do conflito, não há sinais de resolução. Mas, um fato novo terá uma enorme repercussão para os acontecimentos que estão por vir na Ucrânia: a eleição de Donald Trump.
O próximo presidente dos EUA assumirá daqui a 8 semanas, no dia 20 de janeiro, e parece disposto a cumprir sua promessa de impor a paz na Ucrânia. Entretanto, sua única ferramenta para isso parece ser a completa retirada do apoio americano à Ucrânia, o que obrigaria Kiev, por absoluta falta de meios para manter um conflito de alta intensidade, a sentar-se à mesa para negociar sob condições bastante desvantajosas. Isso provavelmente implicaria em grande perda territorial e a uma mitigação de sua soberania, pois provavelmente o país teria que concordar com termos que impedissem sua entrada para a OTAN e que, no mínimo, atrasassem uma eventual adesão à União Europeia.
Tal decisão, se concretizada, colocaria a comunidade internacional diante do dilema de chancelar os resultados de uma guerra de conquista – um ato ilegal segundo o Direito Internacional. Seria a constatação da vigência, em pleno século 21, do descrito por Tucídides, há 2,5 mil anos, no famoso Diálogo Meliano: “Os fortes fazem o que podem, e os fracos sofrem o que devem”.
O efeito colateral de um acordo nesses termos será uma exacerbação das tensões e uma corrida dos fracos para se tornarem fortes. Assim, o eventual cessar dos canhões na Ucrânia por imposição de Trump pode não anunciar um novo período de paz, mas apenas um breve interregno antes do surgimento de um novo conflito.