Mesmo o observador mais desatento já percebeu que algo está fora de ordem no mundo. A Europa caminha para completar seis meses assistindo a uma guerra de alta intensidade em seu território. Mísseis chineses cruzam o espaço aéreo de Taiwan para atingir mares da Zona Econômica Exclusiva do Japão. Foguetes palestinos cruzam-se no ar com mísseis israelenses, de forma tristemente rotineira. Autoridades iranianas dizem que, embora não desejem, poderiam construir a bomba atômica, se quisessem, a qualquer momento. No Cáucaso, azerbaijanos e armênios rompem o frágil cessar-fogo na região de Nagorno Karabakh. Tudo isso em meio ao agravamento das consequências das mudanças climáticas, da gravíssima crise alimentar na África, da resiliência da pandemia da covid e do surgimento de uma possível nova pandemia, da varíola dos macacos.
A solução para tantas controvérsias internacionais e desafios mundiais, na ordem internacional pós-guerra fria, teria de passar obrigatoriamente por uma ação concertada dos Estados, tendo a Organização das Nações Unidas (ONU) como centro de gravidade. Mas não é isso o que se vê. A ONU, modelada pelos vencedores da 2.ª Guerra Mundial, está sendo incapaz de fazer face aos desafios que se impõem. Seu Conselho de Segurança, instância mais importante do organismo e local em que tais assuntos são prioritariamente tratados, está bloqueado, com a Rússia exercendo constantemente seu poder de veto.
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Toda essa instabilidade não ocorre por acaso. Estamos a assistir às dores do fim de uma ordem internacional estabelecida no pós-guerra fria e o surgimento de outra, ainda lutando para emergir; um momento em que as velhas certezas foram postas em dúvida e as novas ainda não surgiram, em que as instâncias de poder, os freios e contrapesos que valiam antes, perdem aceleradamente sua relevância. Percebendo o momento, os principais Estados do sistema internacional se movimentam na defesa do que consideram ser seus interesses vitais.
A invasão russa à Ucrânia, flagrantemente ilegal sob o prisma do Direito Internacional, é a culminância de um processo de décadas, para o qual Vladimir Putin vinha preparando seu país há alguns anos. Em 2007, numa conferência na Alemanha, Putin declarou que o mundo testemunhava um “quase incondicional hiperuso da força nas relações internacionais, força que está mergulhando o mundo num abismo de permanente conflito”. Ele se referia, obviamente, aos EUA. Um ano depois dessa declaração, os EUA declararam que Geórgia e Ucrânia, dois antigos Estados da União Soviética, poderiam se unir à Otan. Para Putin, era mais um exemplo deste “hiperuso da força”. Ato contínuo, a Rússia invadiu a Geórgia. Em 2014, aconteceu o que Michael Mandelbaum, no livro The Four Ages of American Foreign Policy (Ed. Oxford, 2022), considera ser o episódio que é, ao mesmo tempo, símbolo e causa do fim da era pós-guerra fria: a anexação da Crimeia e a guerra civil provocada pelos russos na Ucrânia. Os russos procuravam mudar o status quo do continente, desafiando, em última análise, o país que era seu garantidor: os EUA. Como obteve êxito em 2014, Putin se sentiu confiante para a invasão de 2022.
Percebendo que sua segurança está em risco, os países europeus resolveram prestar atenção a uma verdade que foi bem sintetizada numa máxima atribuída frequentemente a Rui Barbosa: “Uma nação que confia em seus direitos, em vez de confiar em seus soldados, engana-se a si mesma e prepara a sua própria queda”.
Desde que a invasão da Ucrânia pela Rússia começou, em fevereiro, os Estados-membros da União Europeia anunciaram aumentos nos gastos com defesa no valor de cerca de € 200 bilhões. Isso representa uma enorme mudança. Entre 1999 e 2021, os gastos combinados do bloco em defesa haviam aumentado apenas 20%, em comparação com 66% dos EUA, 292% da Rússia e 592% da China.
Deste modo, a Alemanha anunciou um vigoroso aumento dos investimentos em defesa, a começar por uma injeção de € 100 bilhões. A Polônia decidiu aumentar seus gastos para 3% do PIB, anunciando a aquisição de centenas de veículos blindados e aeronaves. A França anunciou um aumento de € 3 bilhões em seus investimentos, para citar apenas alguns exemplos.
O rearmamento dos países europeus ocorre de forma simultânea ao aumento das tensões na Ásia, onde, no Estreito de Taiwan, se desenrola a maior crise desde a década de 1990 e, no Japão, toma vulto um movimento para a modificação da Constituição pacifista e reestruturação das Forças Armadas. Ao mesmo tempo, no Oriente Médio, o Irã se aproxima da fabricação da arma atômica.
A solução para a diminuição de tantas tensões passaria, necessariamente, por uma revisão das instâncias de interlocução entre os países, especialmente da mais importante delas, a ONU. Urge modernizar suas estruturas, tornando-a mais representativa da ordem internacional atual, para que ela possa, de fato, ser eficaz em seu propósito primeiro: manter a paz e a segurança internacionais.
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