A pandemia provocada pelo novo Coronavirus, causadora da COVID-19, talvez seja a primeira crise de proporções realmente mundiais a ocorrer na era da internet, da instantaneidade da comunicação, da desinformação, das fakenews. É também uma crise sem precedentes, por sua escala e repercussões sociais, econômicas, políticas e possivelmente, militares.
A instantaneidade e o volume das informações, muitas transmitidas por mídias sociais sem nenhum tipo de checagem quanto à veracidade, alarma as populações, que exigem de seus governantes repostas imediatas. Governos do mundo todo são desafiados a oferecer soluções, apresentando decisões e políticas públicas que protejam a saúde de seus cidadãos e minimizem os efeitos econômicos e sociais. Tais ações envolvem aspectos geopolíticos importantes, que devem ser considerados.
O aspecto do controle das fronteiras, por exemplo, mostra o enfraquecimento de organizações intergovernamentais, que se mostram incapazes de liderar iniciativas conjuntas para a solução da crise. Os países-membros da União Europeia, além de outros países europeus que não pertencem ao bloco, mas são signatários da Convenção de Schengen, deveriam garantir a livre circulação de pessoas por suas fronteiras. Assim, uma crise dessa natureza deveria implicar em uma solução concertada, que previsse soluções que não limitassem esse fluxo. Não é o que está acontecendo. Apesar do posicionamento contrário da Comissão Europeia, alguns países europeus, como Áustria, Dinamarca, Polônia, Eslováquia, República Tcheca e Malta, já decidiram restringir o fluxo de pessoas por suas fronteiras. Mas isso não acontece apenas entre os signatários do acordo de Schengen. A Rússia já fechou suas fronteiras com a Polônia (na Região de Kaliningrado), Noruega e China. O governo norte-americano proibiu voos internacionais da Europa continental para os EUA, por trinta dias. A Arábia Saudita proibiu todos os voos internacionais por duas semanas. Medidas semelhantes estão sendo anunciadas por outros países, a cada momento. Na América do Sul, a Colômbia acaba de anunciar o fechamento de sua fronteira com a Venezuela.
A questão do trânsito de pessoas pela fronteira da Colômbia com a Venezuela alerta para um problema ainda maior. À crise da COVID-19 se junta a crise dos refugiados, em um efeito cascata. Há cerca de 1,5 milhões de migrantes venezuelanos na Colômbia. Em todo o mundo, segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), existem mais de 70 milhões de pessoas deslocadas, ou seja, pessoas forçadas a deixar suas regiões de origem por motivos de guerra, perseguição, violência e violação aos direitos humanos. Grande parte dessas pessoas vivendo em condições precárias, sem acesso a mínimas condições sanitárias. A incidência da COVID-19 nos campos de refugiados ao redor do mundo pode ter consequências terríveis.
A crise encontra o mundo em um momento em que o sistema internacional está assistindo ao acirramento da competição entre os EUA e a China. E, diferentemente de outras crises sanitárias ocorridas no passado, como a SARS, de 2003, ou a gripe aviária, de 2005, quando ocorreu uma grande cooperação internacional, no caso atual, ao contrário, a cooperação internacional, especialmente entre EUA e China, está bastante restrita. Na verdade, a crise está exacerbando as tensões geopolíticas já existentes entre as duas potências.
Na guerra pelo domínio da narrativa, a competição está acirrada. Na China, há uma campanha de propaganda nas redes sociais, em especial no WeChat (a versão chinesa do WhatsApp), culpando o ocidente e a CIA pela epidemia. No ocidente, ao contrário, ganham espaço as versões de que o vírus é uma estratégia chinesa para vencer a guerra econômica, deixando o ocidente de joelhos. Mas não se trata apenas de atribuir a um lado ou outro a culpa pela pandemia. Há que se demonstrar a superioridade gerencial na solução do problema. Nesse sentido, os chineses montaram uma campanha nos meios de comunicação, tentando provar que a resposta à crise demonstraria que a capacidade de governança chinesa seria superior àquela demonstrada pelo ocidente. Ao mesmo tempo, a China toma medidas práticas para demonstrar ser um país apto a auxiliar outros em dificuldade. A Itália, por exemplo, país ocidental mais severamente afetado pela epidemia até o momento, tem recebido suprimentos médicos e auxílio da China de forma muito mais eficiente do que aquele oferecido pela própria União Europeia ou por outros países do ocidente.
A ajuda chinesa à Itália, apesar de muito mais simbólica do que efetiva, contrasta com a postura isolacionista dos EUA. A decisão do país de suspender os voos da Europa para os EUA, tomada no meio da noite, de surpresa, causou um verdadeiro caos nos aeroportos europeus. Muitos países ficaram irritados, considerando que aliados não devem ser tratados dessa forma e que tal iniciativa deveria ter sido tomada em conjunto.
A pandemia da COVID-19 já é um daqueles eventos que impactam profundamente uma geração. Não apenas pela gravidade da crise sanitária, que afeta diretamente a vida de bilhões de pessoas em todo o mundo. Não apenas pelas consequências econômicas relevantes, que trarão repercussões ainda não precisamente estimadas. Também não exclusivamente por ser a primeira na era da comunicação instantânea, nem mesmo por somar-se às várias outras crises já existentes, em um terrível efeito cascata. Mas, também, pelo potencial efeito acelerador das mudanças geopolíticas em curso, especialmente aquelas que envolvem a competição entre China e EUA.