A CRISE NA CAXEMIRA
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“Eu sou o comandante Abhinadan, meu número é 27981, sou piloto de caça, minha religião é hindu. Desculpe-me. Isso é tudo o que tenho a dizer.” A declaração do piloto indiano abatido em território paquistanês segue estritamente os manuais militares. Ele se identifica conforme os tratados internacionais e deixa claro que não vai falar mais nada. Apesar de estar vendado, sabe que, na era da informação, certamente a entrevista seria filmada. E foi. O vídeo com a imagem do oficial espalha-se pelo mundo rapidamente, para a alegria nacionalista dos paquistaneses e fúria dos indianos. A mais recente crise entre as duas potencias asiáticas atinge o ápice.

É claro que a escalada de uma crise entre países que detêm armamento nuclear é muito grave e preocupante. Qualquer erro de cálculo de um dos lados pode provocar uma ação que ultrapasse um ponto irreversível. E a prisão filmada de um piloto de caça que teve sua aeronave abatida é um desses eventos que mobilizam as populações de ambos os lados, inserindo um componente bastante perigoso pelo potencial de influenciar emocionalmente os governantes na condução da crise.

A Caxemira é uma área ao norte do subcontinente indiano disputada por Paquistão e Índia desde a independência desses países, em 1947. Uma guerra foi travada à época, mas o problema não foi solucionado. O acordo de cessar-fogo previu a divisão da área, parte menor sob autoridade paquistanesa, parte maior sob autoridade indiana. Mas a questão permaneceu não resolvida. Desde então houve vários conflitos. A partir da década de 1980 a situação se agravou pela atuação de terroristas favoráveis às pretensões paquistanesas.

Em 14 de fevereiro deste ano, 42 paramilitares indianos foram mortos num ataque suicida na parte da Caxemira administrada pela Índia, causando grande comoção popular. Foi o ataque que causou o maior número de baixas nestas três décadas de ações terroristas. O grupo terrorista Jaish-e-Mohammad (Exército de Maomé), que tem sua base na Caxemira paquistanesa, reivindicou a autoria do ataque.

O primeiro-ministro indiano, Narendra Modi, acusou o Paquistão de usar o grupo para atacar indianos. O Paquistão negou envolvimento. Então, em 26/2 aeronaves indianas cruzaram a linha de controle que demarca a fronteira e atacaram o que foi descrito como um grande campo de treinamento do grupo terrorista, na região de Balakot, Caxemira paquistanesa.

No dia seguinte, 24 caças paquistaneses foram identificados pelos radares indianos voando provocativamente próximos à linha de fronteira. Três F-16 teriam cruzado a linha na direção do espaço aéreo indiano. Em resposta, oito caças indianos decolaram para interceptar as aeronaves paquistanesas. O que aconteceu a seguir foi um combate aéreo em que o Mig-21 do comandante Abhinadan foi abatido. Embora pudesse ter sido previsto, provavelmente um combate aéreo não era o resultado esperado pelos paquistaneses quando planejaram a ação militar.

A História está cheia de exemplos em que guerras foram iniciadas por erros de avaliação, falhas de interpretação ou simples enganos. A crise escala de lado a lado até que não há alternativa senão a guerra.

Esse parece ser um exemplo de como uma crise pode escalar rapidamente, quase saindo do controle. De um lado, o governo da Índia, às vésperas de eleições gerais, sentiu-se compelido a agir contra o grupo terrorista que matou dezenas de indianos. Do outro, ao atacar uma região além da linha de controle, em área paquistanesa, os indianos claramente cruzaram uma linha vermelha. Do ponto de vista paquistanês, o ataque causou sério dano à reputação do governo do primeiro-ministro Imran Khan e à honra das Forças Armadas do país. Era óbvio que o Paquistão se sentiria compelido a retaliar. A retaliação causou o abate de uma aeronave e a prisão de um piloto. Um rastilho de pólvora galvanizando a opinião pública de ambos os lados.

A decisão de devolver o piloto indiano em boas condições de saúde, dois dias após a captura, de forma digna, foi uma saída encontrada pelo governo paquistanês para desescalar a crise, oferecendo à Índia a possibilidade de também abrandar o discurso. Colaboraram para esse desfecho as manifestações de diversos líderes mundiais, além da ONU, clamando por comedimento. A situação permanece explosiva, mas no momento em que escrevo parece que as tensões retrocederam alguns pontos.

O caso traz ensinamentos e relembra questões muito importantes e por vezes ignoradas. Há formas corretas e métodos próprios para o gerenciamento de crises. Os erros e acertos do passado estão aí para ser relembrados e estudados. São exemplos o acerto na condução norte-americana da crise dos mísseis em Cuba, que impediu uma guerra nuclear entra EUA e URSS, e os erros do primeiro-ministro britânico Neville Chamberlain ao conduzir as negociações com a Alemanha nazista, uma das causas da 2.ª Guerra Mundial.

Por mais que se discorde dos princípios, da ideologia e das ações do adversário, reconhecer seus dilemas, entendendo a lógica que norteia seu comportamento, é um princípio fundamental a ser observado na condução de uma crise. Outro é manter abertos os canais de comunicação, proporcionando “saídas honrosas”, de modo a evitar que, emparedado, o oponente não veja outra solução a não ser aumentar o grau de enfrentamento.

A passionalidade que normalmente acompanha uma crise entre Estados vizinhos faz acontecimentos muitas vezes banais tomarem rumos inesperados. Para tentar minimizar essa possibilidade todos os agentes do Estado que podem vir a ter alguma participação nos eventos devem receber diretrizes muito claras, normas e regras de fácil interpretação, para que enganos, dificuldades de entendimento ou erros de avaliação não resultem em consequências ainda mais graves.

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