Em 1.º de outubro de 2019 a República Popular da China completou 70 anos. Nessa data, em 1949, Mao Tsé-tung discursava na Praça Tiananmen, proclamando a vitória do movimento revolucionário que comandava. Iniciava-se a fase em que o povo chinês, de História milenar, passaria a ser governado pelo Partido Comunista Chinês.
O desfile militar em comemoração da data, cuidadosamente preparado, procurou mostrar uma China militarmente poderosa e unida sob a liderança do presidente Xi Jinping. O ardor patriótico e o orgulho nacional são as mensagens que o desfile quis transmitir ao público interno do país e ao mundo.
Mas a verdade é que o aniversário de 70 anos da vitória comunista chegou com a China num cenário geopolítico desafiador para as suas lideranças. O desafio mais evidente é a questão de Hong Kong.
Antiga colônia inglesa, Hong Kong tem o status de “região administrativa especial” desde o acordo que, em 1997, devolveu a cidade à soberania da China. No acordo, a potência asiática comprometeu-se a manter a política de “um país, dois sistemas”, garantindo uma série de liberdades sociais, políticas e econômicas que inexistem na China continental.
Acontece que a população de Hong Kong percebe uma crescente ingerência do governo central. Esse sentimento desencadeou, em 2014, uma série de manifestações que ficaram conhecidas como “revolução dos guarda-chuvas”. As manifestações prolongaram-se por quase três meses. Este ano, a partir do início de julho, milhões de manifestantes saíram novamente às ruas para protestar. A causa inicial das manifestações, pressionar o governo local a retirar a lei que autorizava extradições para a China continental, serviu de estopim para uma série de outras reivindicações, que retomam a pauta de defesa da democracia dos protestos de 2014.
Para analisar o dilema que o governo chinês enfrenta ao responder aos protestos em Hong Kong vou me socorrer do general francês André Beaufre. O militar ensinou em seu livro Introdução à Estratégia, de 1963, que o “impulso estratégico”, ou seja, a capacidade que um Estado tem de atuar com maior ou menor intensidade em face de um desafio, depende diretamente de quatro fatores: liberdade de ação, forças materiais, forças morais e tempo disponível. Forças materiais, forças morais e tempo disponível não faltam ao governo chinês. O que lhe é escassa, em relação a Hong Kong, é a liberdade de ação. A imprensa repercute todos os acontecimentos na cidade praticamente em tempo real. O trauma do massacre da Praça Tiananmen, em 1989, está ainda presente na sociedade internacional. A repercussão dos acontecimentos em Taiwan também preocupa. Assim, o governo chinês “pisa em ovos” e tenta fazer prevalecer uma narrativa que confere aos manifestantes uma postura impatriótica, violenta e subordinada a interesses internacionais.
Já em outro desafio enfrentado neste aniversário de 70 anos, o separatismo da província de Xinjiang, terra da minoria étnica islâmica uigur, o fator “liberdade de ação” é muito mais favorável aos chineses. Isolada no oeste chinês, na Ásia Central, essa região recebe pouquíssima atenção do restante do mundo quando comparada com Hong Kong. Apenas informações dispersas, sobre “campos de reeducação” onde milhares, se não milhões, de uigures estariam internados, além de acusações da criação de um avançado sistema de vigilância social, chegam ao Ocidente.
A questão de Taiwan é bem mais complexa, por colocar a China e os EUA em lados opostos. A ilha, que a imensa maioria dos países do mundo, incluídos os EUA, reconhece ser, de direito, parte do território chinês, mantém-se, de facto, soberana, com governo próprio. Para a China, essa é uma situação inadmissível, que só perdura em razão da política norte-americana de relações com a ilha. Apesar de não reconhecer seu governo e de não manter relações diplomáticas oficiais, os EUA continuam a vender armas e a proteger a ilha contra “qualquer tentativa de se determinar o futuro de Taiwan pelo uso da força, incluindo-se aí embargos e boicotes”.
Ao tratar de Taiwan, e relembrando a importância dos mares para o comércio internacional, convido o leitor a consultar um mapa da China. Observe sua costa para o Oceano Pacífico. Compare com a costa brasileira para o Atlântico. Notou a diferença? A saída brasileira para o mar é completamente livre. A saída da China para o Pacífico é bloqueada por inúmeros pontos controlados por países adversários. Ao Norte, a saída pelo Mar Amarelo é bloqueada pela Península Coreana e, em seguida, pelo Japão. Mais ao sul, na altura de Xangai, pelo Mar do Leste da China, a saída é bloqueada por uma cadeia de ilhas, também japonesas, chamadas Ryukyu, onde se destaca Okinawa, sede de parte das tropas norte-americanas estacionadas no Japão. Prosseguindo para o sul, a saída é bloqueada por Taiwan, definida pelo general MacArthur como “um porta-aviões que não se pode afundar”. A frase é autoexplicativa da importância geoestratégica da ilha para os norte-americanos. Finalmente, no Mar do Sul da China, a saída é atravancada pelos países vizinhos, Filipinas, Brunei, Malásia e Vietnã, com os quais a China disputa a soberania de várias ilhotas, bem como a soberania do mar e a exclusividade da exploração econômica.
A incômoda situação da China em relação ao Oceano Pacífico é a causa da grande ênfase que o país tem dedicado ao desenvolvimento de sua Marinha. Já são cerca de 300 navios e o país está produzindo seu terceiro porta-aviões, o primeiro de fabricação própria.
Como se vê, são muitos os desafios neste 70.º aniversário. Também poderiam ser listados a manutenção do crescimento econômico, os problemas do acentuado envelhecimento da população, a guerra comercial com os EUA e a ascensão da Coreia do Norte ao status de potência nuclear. Mas isso fica para uma próxima conversa.