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OITOCENTOS DIAS DE GUERRA NA UCRÂNIA

Ontem, dia 03 de maio de 2024, a guerra na Ucrânia completou oitocentos dias. Essas efemérides, embora não tenham nenhuma importância prática nos campos de batalha, convidam à reflexão sobre o desenrolar dos acontecimentos.

No campo tático/operacional, especialmente na frente Oriental, o momento é favorável aos russos, que pressionam a frente e obtêm ganhos territoriais de forma lenta, mas constante. Analistas do Black Bird Group, da Finlândia, a partir do estudo de fotografias de satélites, concluíram que, se entre 01 de junho e 01 de outubro do ano passado os russos perderam a posse de 414,26 Km2 de território ocupado na Ucrânia, a maré virou em 2024. De 01 de janeiro deste ano a 02 de maio, os russos recuperaram uma área equivalente à perdida em 2023, mas com alguma sobra: 432,3 Km2, a maior parte na região de Donetsk.

O esforço do povo ucraniano de se contrapor à invasão de seu território por um exército russo muito maior, e dotado de vastos recursos bélicos, está cobrando um preço muito alto. A carência de pessoal nas fileiras do exército ucraniano é grave. Embora o presidente Zelensky recentemente tenha anunciado em 31 mil o número de soldados mortos em combate, serviços de inteligência ocidentais acreditam que esse é um número muito subestimado, tendendo a ser, provavelmente, mais que o dobro dessa quantidade. Para tentar repor essas baixas em suas fileiras, o país mudou suas leis de recrutamento, reduzindo a idade elegível para o serviço militar de 27 para 25 anos. Zelensky também pediu aos governantes ocidentais que encorajassem os ucranianos em idade de prestação do serviço militar que estejam refugiados em seus países, a voltarem à Ucrânia.

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Ao problema da falta de pessoal se soma a carência de armas e munições. Os quase seis meses de interrupção de ajuda militar por parte dos EUA diminuíram de forma muito importante as capacidades militares do exército ucraniano, especialmente suas capacidades de defesa antiaérea e de realização de fogos com sua artilharia de campanha. A recente aprovação, pelo congresso americano, da ajuda de US$ 61 bilhões se deu em um momento verdadeiramente crítico para os ucranianos e, embora se tenha anunciado que essa ajuda já começa a se materializar com a chegada de armas e munições à Ucrânia, ainda levará um bom tempo para que todo esse dinheiro se materialize em poder de combate real, no terreno.

Os russos, por sua vez, embora também estejam sofrendo pesadas baixas, têm uma capacidade muito maior do que a Ucrânia de repor seus efetivos militares. Isso passa tanto por uma base populacional muito maior – a Rússia possui 144 milhões de habitantes, enquanto a Ucrânia possuía, antes da guerra, cerca de 42 milhões – quanto por uma maior aceitação de risco por parte dos seus planejadores militares, que não hesitam em seguir em frente e manter operações ofensivas mesmo em face de pesadas baixas.

No que concerne aos suprimentos de armas e munições, a Rússia conseguiu alcançar um equilíbrio logístico graças à imposição de um regime de economia de guerra, com sua base industrial de defesa trabalhando em um regime de três turnos, 24 horas por dia, e às importações da Coreia do Norte e do Irã.

Essas condições, no momento em que a primavera e a aproximação do verão melhoram a transitabilidade do Teatro de Operações, levam muitos analistas a prever o desencadeamento de uma nova ofensiva russa, cujos objetivos ainda não estão claros. Talvez se restrinjam a tentar conquistar a integralidade dos territórios das quatro províncias ucranianas anexadas formalmente pela Rússia: Lugansk, Donetsk, Kherson e Zaporizhzhya, ou talvez tenha objetivos mais ambiciosos, com a conquista de novos territórios ucranianos. Preparando-se para essa possibilidade, as forças ucranianas já estão há algum tempo a preparar novas posições defensivas em profundidade.

No campo diplomático, o fato da balança da guerra, em 2024, estar pendendo para o lado russo está por trás de uma importante mudança recente no discurso dos aliados europeus da Ucrânia: a possibilidade de utilização de equipamentos fornecidos pela OTAN para ataques em profundidade sobre alvos no interior do território russo. Esse uso vinha sendo vetado pela aliança ocidental desde o início da guerra, em razão do temor de causar uma escalada do conflito que levasse a um enfrentamento direto entre a Rússia e a OTAN. Entretanto, o ministro das relações exteriores do Reino Unido, David Cameron, deu essa permissão acerca dos sistemas de armas fornecidos pela Grã-Bretanha. Além de Cameron, outras lideranças europeias começam a se manifestar no mesmo sentido. O presidente francês Emmanuel Macron também tem subido o tom de sua retórica, afirmando que a França não descarta o envio de tropas em socorro à Ucrânia caso a manutenção da soberania ou a própria sobrevivência daquele país esteja e risco. Britânicos e franceses se comprometeram ainda a ajudar com bilhões de euros no esforço de guerra ucraniano.

Essa maior assertividade na retórica dos líderes europeus vem acompanhada de uma conscientização de que seus países devem confiar cada vez mais em si mesmos e nas alianças forjadas dentro da própria Europa, dependendo menos do guarda-chuvas dissuasório oferecido pelos Estados Unidos, principal membro da OTAN. Nesse sentido, o presidente Macron disse, em discurso na universidade de Sorbonne, que “a Europa pode morrer”. O presidente francês acrescentou, em entrevista à revista The Economist, que “se a Rússia vencer na Ucrânia não haverá segurança na Europa”. “Quem garante que a Rússia irá parar na Ucrânia? Que segurança poderiam ter países como Moldávia, Romênia, Polônia, Lituânia e outros países vizinhos?” foram as perguntas feitas por Macron.

Ainda no campo diplomático, Suíça e Ucrânia anunciaram a realização de uma conferência de paz, a se realizar na Suíça, nos dias 15 e 16 de junho. Mais de cem países já foram convidados. Entretanto, como a Rússia não deve participar do evento, uma vez que acusa a Suíça de ter abandonado sua histórica neutralidade em favor da Ucrânia, é muito provável que outros países – especialmente aqueles do chamado “Sul Global” – se recusem a participar.

Assim, neste momento em que a invasão russa à Ucrânia completa 800 dias, nada indica que a guerra esteja próxima de um término. Se, de um lado, a Ucrânia claramente não possui, nas condições atuais, poder de combate suficiente para expulsar o invasor de seu território, por outro lado, os russos dificilmente encontrarão facilidade em obter novos ganhos territoriais enquanto os ucranianos continuarem a receber apoio dos EUA e da Europa. O que se pode prever é a manutenção de uma guerra de atrito, acompanhada de uma intensificação nos bombardeios aeroestratégicos de ambos os lados, buscando alvos de valor estratégico, como fábricas, centrais elétricas, pontes importantes, entroncamentos ferroviários etc.

Essa previsão vale até as eleições nos EUA, em novembro. Caso Donald Trump vença, é provável que o apoio americano à Ucrânia mingue consideravelmente. Se isso acontecer, a Rússia estará em uma posição de força para impor uma paz nos seus termos. A menos que a Europa compre a briga ucraniana. Em qualquer das hipóteses, infelizmente para as populações direta e indiretamente flageladas pela guerra, a paz ainda está muito longe.

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The dispute between the United States and China and its implications for Brazil in the domains of security and defense

Este artigo foi publicado no Macau Journal of Brazilian Studies, e trata da disputa entre EUA e China, e suas implicações para a Segurança e Defesa do Brasil.

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Leia o artigo:

Gomes Filho_Paulo THE DISPUTE BETWEEN THE UNITED STATES AND CHINA




Seis meses de guerra entre Israel e o Hamas

Há exatamente seis meses o mundo era surpreendido pelos terríveis ataques terroristas perpetrados pelo Hamas em Israel. As imagens da violência gratuita, que atingiu crianças, mulheres, homens e idosos de maneira indistinta, matando cerca de 1,2 mil pessoas e fazendo mais de duas centenas de reféns, chocaram o mundo e criaram instantaneamente uma onda de indignação e apoio aos israelenses.

A partir de então, a Faixa de Gaza, em particular, e o Oriente Médio, como um todo, foram mergulhados em um conflito de gravíssimas repercussões humanitárias e que, no dia de hoje, pode estar à beira de uma escalada ainda maior.

A ação militar israelense, iniciada imediatamente após o ataque de 07 de outubro de 2023, foi desenhada para atingir o objetivo político fixado pelo governo: eliminar completamente o Hamas. A questão é que essa é uma tarefa extremamente complexa. A natureza irregular do grupo Hamas, cujos terroristas se misturam à população civil da Faixa de Gaza, em um ambiente densamente urbanizado, obrigam as tropas israelenses a efetivamente controlarem o ambiente, o que somente pode ser alcançado pela presença física dos soldados na área a ser controlada.

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Esse tipo de combate, em zona densamente urbanizada e em meio da população, coloca os militares constantemente sob o dilema de escolher os meios e métodos de combate que, de um lado, levem ao cumprimento do objetivo militar proposto mas, de outro lado, causem o menor sofrimento humanitário possível à população civil. Passados seis meses de ação militar em Gaza está claro que o exército israelense não conseguiu resolver essa equação da melhor forma. O sofrimento imposto à população civil de Gaza, mostrado diariamente pelos meios de comunicação e pela internet, foi degradando o apoio internacional a Israel, até o ponto em que o Conselho de Segurança da ONU determinou a interrupção das hostilidades e a devolução de todos os reféns capturados, o que foi até o presente momento ignorado, tanto por Israel, quanto pelo Hamas.

Em sua defesa, os israelenses afirmam que o Hamas coloca em risco sua própria população, ao propositalmente se misturar a ela e utilizar instalações civis, até mesmo hospitais, para fins militares. Isso é verdade. Nesse sentido há os casos emblemáticos do hospital de Khan Younes, transformado em quartel general do Hamas e o escândalo dos trabalhadores à serviço da ONU que foram demitidos em razão de sua participação direta nos atentados de 7 de outubro.

Entretanto, a dificuldade de se distinguir claramente entre combatentes e não-combatentes no campo de batalha, embora complique significativamente as operações militares, não isenta o exército israelense da responsabilidade de cumprir os princípios e leis de guerra. Esses princípios, que incluem a humanidade, a proporcionalidade, a distinção entre combatentes e não-combatentes, a limitação dos meios e métodos de combate, e a seleção de alvos em conformidade com uma análise minuciosa de sua necessidade militar, estão firmemente estabelecidos nas normas do Direito Internacional dos Conflitos Armados.

O conflito entre Israel e o Hamas envolve também outros atores, o que eleva o risco de uma escalada. Entre esses, o Irã se destaca por seu papel crítico, negando a Israel o direito de existência enquanto Estado e fornecendo suporte essencial para os ataques do Hamas. Além disso, o Irã fornece armas e apoio a diversos grupos militantes que se opõem a Israel, como o Hezbollah, no Líbano, milícias Xiitas, na Síria e no Iraque, e os Houthis, no Iêmen. Essa estratégia permite ao Irã evitar um envolvimento direto, minimizando os riscos desse tipo de confrontação. No entanto, essa dinâmica pode estar prestes a mudar. Em 1º de abril, um ataque israelense ao consulado iraniano na Síria resultou na morte do General Mohammad Reza Zahedi, da Guarda Revolucionária Iraniana, além de outros militares, levando a promessas de vingança por parte do Irã. Desde então, a defesa antiaérea de Israel permanece em alerta máximo, antecipando uma possível retaliação. Caso o Irã responda diretamente, isso marcará uma mudança significativa, já que suas ações contra Israel, como já foi dito, normalmente ocorrem por intermédio dos grupos militantes. Nesse caso, configurando-se um confronto direto entre Irã e Israel, a escalada do conflito pode tomar contornos gravíssimos e se alargar para todo o Oriente Médio.

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Os EUA são outro ator fundamental. Maior aliado de Israel, são os norte-americanos que exportam os sistemas e materiais de emprego militar fundamentais à manutenção do esforço de guerra israelense. Entretanto o apoio da população norte-americana às operações israelenses declinou rapidamente, e isso colocou o governo de Joe Biden sob forte constrangimento, especialmente em um ano eleitoral. Assim, o que se verifica no momento é uma forte pressão dos EUA sobre o governo israelense para que se encontre uma solução que ponha fim às hostilidades.

Além dos fatores externos, não se pode esquecer que o governo israelense do Primeiro-Ministro Benjamim Netanyahu está sob forte pressão interna. A oposição a seu governo, que era grande antes dos ataques de 7 de outubro e arrefeceu em razão da união nacional em torno da resposta militar, novamente se agrava, na medida em que se avolumam as críticas acerca da condução das operações e da incapacidade em se trazer de volta os reféns ainda mantidos em cativeiro pelo Hamas. Grandes manifestações populares pedindo a renúncia de Netanyahu tem acontecido nas principais cidades israelenses.

As pressões internas e externas sugerem a Netanyahu que a melhoria de sua popularidade, embora improvável, seja sua única chance de preservar sua carreira política. Essa melhoria, no entanto, depende de uma vitória decisiva sobre o Hamas, o que implicaria no controle total da Faixa de Gaza. Atualmente, isso se traduz na necessidade de dominar a cidade de Rafah, localizada no sul do enclave, na fronteira com o Egito. Rafah é o último bastião a ser controlado, mas a tarefa é complicada pela presença de aproximadamente 1,4 milhões de pessoas, muitas das quais se refugiaram ali vindas de outras partes do território, elevando dramaticamente o risco de um desastre humanitário ainda maior.

Dessa forma, o cenário que se apresenta hoje, no dia em que se completam seis meses de guerra, mostra muitas possibilidades de agravamento da situação. Por outro lado, as chances de desescalada se concentram nas tratativas intermediadas pelo Qatar, que embora por vezes pareçam avançar, têm sempre esbarrado em exigências inaceitáveis por um ou outro lado da disputa.

Assim, resta evidente a complexidade da situação. O cenário marcado pela grave questão humanitária e a possibilidade de escalada ressaltam a urgência de um esforço coordenado internacionalmente para se alcançar uma paz sustentável, que permita uma existência digna para todos os povos envolvidos. Isso não será conseguido sem a proposição de soluções inovadoras, visto que as tentadas nas últimas décadas não surtiram resultados. Resta saber se o mundo de hoje possui lideranças capazes de construir essas soluções.

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Vladimir Putin e o sonho de grandeza: Um quarto de século no poder

As eleições russas irão reeleger hoje o presidente Putin para mais um mandato. Com isso, Vladimir Vladimirovitch Putin, nascido em uma família de operários na cidade de Leningrado (atual São Petesburgo), em 07 de outubro de 1952, completará, já no próximo ano, um quarto de século como o líder supremo da Rússia.

Putin estudou Direito na sua cidade natal, ingressando depois na KGB, a conhecida agência de inteligência soviética. Dos quinze anos em que lá prestou seus serviços, seis foram passados em Dresden, na Alemanha Oriental. Em 1990 ele deixou a KGB, no posto de Tenente Coronel, para trabalhar na Universidade de Leningrado. Em seguida, passou a trabalhar na prefeitura de São Petesburgo, ascendendo ao posto de Vice-Prefeito em 1994. Em 1996, mudou-se para Moscou, onde passou a trabalhar no governo federal. Em 1998, o então presidente Boris Yeltsin o nomeou para comandar o FSB, herdeiro da KGB. Um ano depois, Yeltsin o escolhe para seu herdeiro como presidente, nomeando-o Primeiro Ministro.

Putin, então desconhecido, ganhou fama e a aprovação do público ao liderar uma operação bem-sucedida contra separatistas na Chechênia. Após a renúncia de Yeltsin, em 31 de dezembro de 1999, Putin venceu facilmente as eleições de março de 2000, com cerca de 53% dos votos. À época, não se podia imaginar que ele se perpetuaria no poder.

O objetivo geopolítico de Putin sempre foi o de afirmar a Rússia como uma grande potência, que deve estar sentada à mesa onde as principais decisões são tomadas. Essa postura reflete uma visão quase messiânica, em que Putin se vê como responsável por restaurar a grandeza perdida da Rússia após o fim do Império Russo e a dissolução da União Soviética. Isso fica claro em inúmeras manifestações de Putin, como por exemplo na que ele fez em junho de 2022, por ocasião do 350º aniversário de nascimento de Pedro, O Grande. Em discurso, ele comparou a guerra de vinte e um anos travada por Pedro contra a Suécia, da qual resultou a conquista da região onde foi fundada a cidade de São Petesburgo, à atual guerra na Ucrânia. Para Putin, essas campanhas militares não ocorreram em terras estrangeiras, mas foram guerras para retomar territórios historicamente russos.

Na visão de Putin, a Rússia trava uma guerra contra inimigos liderados pelos EUA, que manipulam a União Europeia e a OTAN com o objetivo de humilhar a Rússia. O governo da Ucrânia, nesse sentido, seria apenas mais um desses peões à serviço norte-americano.

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O atual processo eleitoral, claramente carente das condições para ser genuinamente democrático, ainda assim oferece a Putin um verniz de legalidade e democracia. Isso permite que ele se apresente, tanto aos cidadãos russos quanto à comunidade internacional como o legítimo líder político da Rússia. Transposta essa formalidade, Putin prosseguirá em sua cruzada para a transformação da ordem internacional, assumindo, como a invasão da Ucrânia demonstra, todos os riscos que julgar necessários.

Putin percebe o momento histórico como sendo favorável à consecução de seus objetivos de reconstrução de uma Rússia poderosa. Esse momento é favorecido pelo apoio da “amizade sem limites” da China liderada por Xi Jinping e pela acirrada tensão interna nos EUA, causada pela polarização política, que faz com que os eleitores norte-americanos prestem muito mais atenção aos problemas domésticos do que ao expansionismo russo. Além disso a incapacidade militar da Europa de enfrentar a Rússia sozinha e a posição pragmática de neutralidade adotada por países do “Sul Global” contribuem para essa situação.

Aos 71 anos, Putin garante sua permanência no poder até pelo menos até 2030. Se ele fosse um Romanov, já poderia ser listado como um dos czares mais longevos. Pedro, o Grande, reinou por 39 anos. No ritmo que vai, não se pode descartar a possibilidade de Putin chegar lá.

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Dois Anos de Guerra na Ucrânia: Repercussões Geopolíticas, Humanitárias e Militares

A data de hoje marca os dois anos da invasão russa à Ucrânia, momento oportuno para uma breve análise acerca de alguns, dentre vários, desdobramentos que o conflito trouxe aos campos da geopolítica, da economia, das relações internacionais e da defesa. Isso sem falar nas terríveis consequências humanitárias para as pessoas, contadas aos milhões, diretamente afetadas pela tragédia da guerra.

As repercussões geopolíticas são evidentes. A guerra é a manifestação mais violenta do momento de contestação da ordem internacional liderada pelos Estados Unidos, erigida no pós Guerra Fria. Trata-se principalmente da ascensão chinesa e do desafio que passou a ser oferecido à liderança norte-americana por atores estatais que buscam o protagonismo no sistema internacional. Isso ficou muito bem caracterizado na conversa entre Putin e Xi Jinping, em frente aos repórteres, em Moscou, em março do ano passado, quando Xi disse a Putin que o mundo estava vivendo um momento de mudanças, como não era visto há cem anos, e que eram eles próprios, os dois líderes, que as estavam promovendo. Putin respondeu, concordando.

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A Rússia, tendo conquistado quase 20% do território ucraniano, renovou a preocupação de segurança entre os europeus, que até 24 de fevereiro de 2022 pareciam acreditar que os conflitos de grande escala estavam superados no continente. Esta mudança de percepção foi acompanhada por um notável redirecionamento nos investimentos em defesa por parte dos países europeus. De acordo com um levantamento realizado pelo Institut de Relations Internationales et Stratégiques, entre 2022 e meados de 2023, as aquisições de sistemas e materiais militares pelos países europeus totalizaram quase 100 bilhões de euros, representando um aumento de cerca de 33% em relação ao ano anterior. A Alemanha e a Polônia foram responsáveis por aproximadamente um terço desse aumento substancial, com encomendas avaliadas em cerca de 28 e 16 bilhões de euros, respectivamente. Dos 27 países europeus pesquisados, 25 aumentaram seus orçamentos de defesa de 2022 para 2023, evidenciando uma mudança de tendência. Apenas Hungria e Grécia foram exceções, registrando uma diminuição em seus orçamentos de defesa neste período.

No campo dos estudos estratégicos, a guerra na Ucrânia veio para derrubar mitos, reforçar fundamentos e apresentar novidades. A principal característica do conflito – sua alta intensidade, caracterizada pelo atrito e pelo maciço emprego da artilharia pelos dois lados – derrubou uma crença recente de que os conflitos modernos poderiam ser resolvidos apenas por pequenos exércitos, altamente móveis, dotados de ferramentas tecnológicas no estado da arte. É claro que mobilidade e tecnologia são importantes. Mas, para se conquistar um território invadido, defendido em linhas de trincheiras apoiadas por extensos campos de minas e por poderosa artilharia, o que ainda importa são as massas dos exércitos, constituídos por uma reserva mobilizável contada em centenas de milhares de soldados. Essa é a razão pela qual o serviço militar obrigatório volta a ser adotado e discutido por diversos países europeus. Também se deve a isso o esforço acelerado de abertura de fábricas de munições, para superar a enorme deficiência europeia nessa produção, especialmente quanto à granadas de artilharia.

Ao mesmo tempo em que se assiste ao emprego de técnicas, táticas e procedimentos utilizados desde a Primeira Guerra Mundial, o Teatro de Operações da Ucrânia serve de palco para inovações. Os sistemas aéreos remotamente pilotados, ou drones aéreos, que já tinham surgido como armas importantes na guerra de 2020 entre Armênia e Azerbaijão, se apresentam como sistemas fundamentais nos conflitos atuais. Seus congêneres navais, entretanto, fazem sua estreia, com resultados surpreendentes, sendo os responsáveis pelo afundamento de diversos navios da frota russa no Mar Negro. O emprego dos mísseis hipersônicos russos também é uma inovação digna de nota.

No campo econômico, um primeiro aspecto a se destacar é a constatação de que a coerção econômica que os EUA e seus aliados pretendiam infligir à Rússia por intermédio das dezenas de sanções e embargos não atingiram os resultados esperados. Os russos conseguiram, em grande medida, substituir as trocas comerciais embargadas por novas relações com países do chamado “Sul Global”, que não aderiram às sanções. Nesse sentido, o caso da Índia é exemplar. O país aumentou em mais de 13 vezes o valor das importações de petróleo da Rússia, totalizando, em 2023, cerca de 37 bilhões de dólares.

Essa não é uma boa notícia para a manutenção da paz no mundo. A constatação, por parte das grandes potências, de que a ferramenta da coerção econômica não é mais tão eficaz como foi no passado, pode vir a significar uma opção direta pela solução militar, sem a “escala” pela pressão econômica. Ou seja, pode vir a significar o aumento do risco da eclosão de novos conflitos armados.

Finalmente, há que se destacar a questão humanitária. A guerra sempre impõe enorme sofrimento às populações atingidas, e não seria diferente no caso da guerra na Ucrânia. Cerca de 14 milhões de pessoas foram forçadas a abandonar as suas casas desde o início da invasão russa, há dois anos, e quase 6,5 milhões vivem fora do país como refugiados. O número de baixas fatais de combatentes de ambos os lados é tratada com sigilo, e os números não são confiáveis. Entretanto, é um consenso entre os analistas que, somadas, ultrapassam facilmente a cifra de meio milhão de soldados. Há também os deploráveis episódios de maus tratos e violações graves e generalizadas dos direitos humanos, com centenas de casos relatados de violações do Direito Internacional dos Conflitos Armados, sem falar na enorme destruição de infraestrutura, inclusive de cidades quase por completo, como os casos de Bakhmut e Avdiivka.

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Assim, constata-se que a guerra na Ucrânia pode ser caracterizada como um divisor de águas, evidenciando a fragilidade da ordem internacional pós-Guerra Fria e o recrudescimento das tensões geopolíticas.

O conflito na Ucrânia também terá impactos importantes e duradouros no campo dos estudos estratégicos. O retorno da guerra de alta intensidade, de atrito e da artilharia, convivendo com novas armas e tecnologia no estado da arte, obrigará os governos de todo o mundo a aumentarem seus investimentos em defesa, repensarem suas estratégias, suas formas de mobilização e o preparo de suas forças armadas.

Por fim, embora no momento não se vislumbre a possibilidade de um desfecho a curto prazo, destaca-se a urgência de uma solução para o conflito. A guerra na Ucrânia causou um enorme sofrimento humano, com milhões de pessoas deslocadas, cidades devastadas e enormes perdas de vidas. A reconstrução da Ucrânia será um desafio monumental, que exigirá um esforço global para garantir a recuperação do país e o bem-estar de sua população.

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A Europa desperta: a ameaça de Trump e o renascimento da Defesa europeia

O ex-presidente e virtual candidato à presidência pelo Partido Republicano nas próximas eleições dos Estados Unidos, Donald Trump, provocou uma onda de choque política entre os aliados europeus da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN). Em um discurso de campanha, Trump declarou ter advertido o líder de “um importante país europeu” que, caso falhasse no pagamento de suas obrigações financeiras para com a Aliança, ele, na qualidade de presidente dos EUA, recusaria defender o país europeu contra uma potencial invasão russa. Trump inclusive sugeriu que, nesse caso, poderia incentivar a Rússia a “fazer o que bem entendesse”.

Ao mencionar o descumprimento das obrigações financeiras, Trump se refere à diretriz da Aliança, criada em uma reunião de cúpula realizada no País de Gales, em 2014, que estabelece a meta de 2% do PIB para os investimentos de Defesa de cada um dos 31 membros da organização. O acordo de 2014 previa que os países deveriam se esforçar para atingir a meta em dez anos, ou seja, até este ano de 2024. Em 2014, apenas três Estados alcançavam aquele patamar. Em 2023, esse número já havia subido para onze. Jens Stoltenberg, Secretário Geral da OTAN, lamentou as palavras de Trump, afirmando que “qualquer sugestão de que os aliados não se defenderão mutuamente mina toda a nossa segurança, incluindo a dos EUA, e aumenta os riscos para os soldados americanos e europeus”. Disse ainda que, ao que tudo indica, no final deste ano, dezoito países terão atingido a meta de investimento em Defesa.

A ameaça de Trump reverberou ainda mais porque neste final de semana aconteceu a conferência anual de segurança de Munique, reunindo os ministros da defesa da Europa. A repercussão foi parar na capa da revista semanal alemã Der Spiegel, que pergunta se, dada a ameaça de Trump – e a real possibilidade de sua eleição – não estaria na hora dos europeus, especialmente a Alemanha, considerarem desenvolver a sua própria bomba nuclear.

Capa da Revista Der Spiegel. Edição de 17 Fev 2024

A promessa de assistência recíproca é a pedra angular da Aliança Atlântica. Está fundamentada no famoso artigo 5º, que determina que o ataque a um dos membros da organização “será considerado um ataque contra todos eles” e que, consequentemente, cada um deles tomará “as ações que julgar necessárias, inclusive o uso da força armada para restaurar e manter a segurança do Atlântico Norte”.

Ironicamente, na única vez em que o artigo 5º foi acionado nos 75 anos de existência da Aliança, não o foi por nenhum membro europeu, mas sim pelos EUA, após os ataques de 11 de setembro de 2001. Isso resultou no apoio efetivo da Aliança à guerra ao terror, incluindo às invasões do Iraque e do Afeganistão.

Entretanto, é inegável que Trump trouxe à tona uma realidade preocupante: os europeus se acostumaram a contar com o guarda-chuva dissuasório dos EUA, relegando perigosamente suas próprias capacidades de defesa a um segundo plano. Isso ficou especialmente patente no desabafo do general Alfons Mais, comandante do exército alemão, expressado no Linkedin, no dia em que os russos invadiram a Ucrânia. Disse o general[1]: “No meu 41º ano de serviço em tempos de paz, não teria pensado que teria de passar por uma guerra”. “E o Bundeswehr, o exército que tenho a honra de comandar, está mais ou menos de mãos vazias. As opções que podemos oferecer ao governo em apoio à aliança são extremamente limitadas.”

As palavras do general Alfons completarão dois anos no dia 24 de fevereiro. A guerra na Europa serviu como um duríssimo aviso e os europeus estão se mobilizando. Na conferência de Munique, várias declarações foram dadas nesse sentido. O chanceler alemão, Olaf Scholz, disse que a ameaça da Rússia à Europa é real e os países do continente precisam fazer muito mais para garantir a sua própria segurança. O primeiro-ministro dos Países Baixos, Mark Rutte, afirmou que a Europa deveria parar de reclamar de Trump, e se concentrar em aumentar os investimentos em defesa e “aumentar maciçamente a produção de armas”. O ministro da Defesa da Alemanha, Boris Pistorius, afirmou que seu país atingirá a meta este ano, pela primeira vez desde o fim da Guerra Fria, embora reconhecendo que isso pode não ser suficiente para a construção das capacidades de defesa necessárias.

A Europa vive um momento crucial em sua história. A crise de segurança no continente, representada pela ameaça russa e a possível escalada da guerra para outros países europeus convive com a perspectiva da eleição de Donald Trump à presidência dos EUA, que pode significar que o maior aliado pode vir a faltar em um momento crítico.

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Diante dessa conjuntura, é imperioso que a Europa reavalie sua dependência estratégica dos EUA e invista decisivamente na construção de suas próprias capacidades de defesa. Isso não significa abandonar a OTAN. Pelo contrário, a construção de uma autonomia europeia fortalecerá a Aliança.

Então, é de se esperar que assistamos, já em 2024 e nos próximos anos, a um aumento significativo dos investimentos europeus em Defesa, a um maior desenvolvimento de suas capacidades militares combinadas, ao fortalecimento da cooperação em inteligência e à promoção da indústria de Defesa, com a ampliação da produção de armas e munições, bem como o desenvolvimento de novas tecnologias bélicas.

Tudo isso vai trazer repercussões para os outros continentes, com o provável desencadeamento de uma corrida armamentista, no chamado Dilema de Segurança. Mas isso é assunto para um próximo artigo.

[1] https://www.linkedin.com/feed/update/urn:li:activity:6902486582067044353/

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A OTAN cuida de manter sua pólvora seca

A frase “Confie em Deus e mantenha a pólvora seca”, atribuída a Oliver Cromwell, político e militar inglês do século XVII, sugere que, embora a confiança na providência divina seja fundamental, a preparação e a ação humana desempenham papéis cruciais. Esta sábia lembrança ressalta a importância de que os homens estejam preparados tomem medidas práticas para enfrentar os desafios da vida, especialmente em tempos de conflito e incerteza.

Indubitavelmente, os tempos atuais, especialmente no contexto das Relações Internacionais, Estratégia e Geopolítica, caracterizam-se por uma notável incerteza e conflitualidade. Portanto, não é surpreendente que os líderes das potências mundiais – e aqueles mais conscientes dos riscos iminentes – estejam atentos à condição de seus arsenais, garantindo que “a pólvora esteja seca”.

Traduzindo-se a metáfora para as ações práticas da realidade, “manter a pólvora seca” implica assegurar que o aparato militar do Estado esteja plenamente operacional. No caso da OTAN, há evidências que indicam uma crescente preocupação em manter a Aliança como um instrumento de combate eficiente e eficaz, dessa forma percebido pela opinião pública ocidental mas também, e talvez principalmente, por seus principais adversários.

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Os investimentos em Defesa têm experimentado um aumento significativo em escala global. Segundo o Instituto Internacional de Pesquisa para a Paz de Estocolmo (SIPRI), a despesa militar global total registrou um incremento[1] de 3,7% em termos reais em 2022, alcançando um patamar recorde de 2,240 trilhões de dólares. Notavelmente, as despesas militares na Europa apresentaram o maior aumento anual em pelo menos 30 anos. Paralelamente, a OTAN anunciou recentemente um substancial incremento[2] de 12%, elevando seus investimentos para 2.03 bilhões de Euros até 2024. Esses números refletem uma clara resposta ao conflagrado ambiente geopolítico atual, destacando o comprometimento dos países membros da aliança em fortalecer suas capacidades de defesa e a prontidão para enfrentar os desafios emergentes.

Na próxima semana, a OTAN dará início ao que se tornará o maior exercício militar desde o término da Guerra Fria: o “Steadfast Defender”. As manobras militares sinalizam uma clara e renovada ênfase na preparação militar e na coordenação entre os países-membros, evidenciando a determinação da aliança em responder às ameaças percebidas. O Steadfast Defense contará com a participação de 90 mil militares, mais de 50 navios de guerra, aproximadamente 80 aeronaves e 1,1 mil veículos de combate. Destaque-se que o exercício simulará um conflito contra um “adversário de poder militar semelhante” à OTAN, sendo a Rússia o inimigo subentendido, embora não explicitamente nomeado. Este exercício, de magnitude sem precedentes, reforça a prontidão da OTAN com vistas a fortalecer sua capacidade de enfrentar desafios complexos no cenário geopolítico atual.

A intensificação da cooperação entre os países-membros da OTAN é evidenciada por recentes acordos de cooperação e planejamentos estratégicos integrados. Notavelmente, os países bálticos – Estônia, Letônia e Lituânia – solidificaram seu compromisso ao assinar um acordo para a construção da “Linha Defensiva do Báltico”. Este projeto visa a estabelecer uma robusta linha defensiva na fronteira entre essas nações e a Rússia, bem como com a Bielorrússia. A linha defensiva coordenará ações conjuntas dos três países, integrando medidas ativas e passivas de defesa desde os primeiros metros do território, preparando-se para eventuais incursões russas. Essa iniciativa destaca a colaboração proativa dos membros da OTAN na região, fortalecendo a segurança coletiva diante de desafios específicos e reforçando a prontidão para proteger suas soberanias.

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Além dos aspectos acima citados, é crucial ressaltar as declarações públicas proferidas por líderes da OTAN, tanto civis quanto militares, sublinhando a vital importância da prontidão militar e expressando inquietações específicas relacionadas aos desafios à segurança dos países-membros da aliança. O Almirante Rob Bauer, presidente do Comitê Militar da aliança, recentemente afirmou que, embora a OTAN não busque um conflito com a Rússia, está se preparando de maneira ativa para essa possibilidade. Já o ministro da defesa da Alemanha, Boris Pistorius, disse em entrevista que a Rússia poderia atacar a OTAN em menos de uma década, alertando que os estrategistas alemães acreditam que isso seria possível em um intervalo de 5 a 8 anos a partir do fim da guerra na Ucrânia. Essas declarações refletem não apenas o reconhecimento da complexidade do cenário geopolítico atual, mas também a determinação da OTAN em reforçar sua capacidade de resposta diante de potenciais ameaças à segurança coletiva.

Em síntese, a metáfora da “pólvora seca” ressoa de maneira notável no atual cenário geopolítico, onde os líderes da OTAN demonstram não estarem dispostos a deixar os acontecimentos correrem à própria sorte atuando proativamente para a construção de um instrumento militar capaz de fazer face às ameaças. A busca pela prontidão da OTAN para enfrentar desafios é evidenciada não apenas por investimentos substanciais em defesa, mas também pela realização do exercício militar “Steadfast Defender” e pela intensificação da cooperação entre os países-membros, como observado na construção da “Linha Defensiva do Báltico”.

A resposta unificada dos líderes da aliança, expressa por declarações públicas e estratégias coordenadas, reflete a seriedade com que a OTAN encara as ameaças percebidas, principalmente as relacionadas à Rússia. O compromisso declarado de se preparar para eventualidades, destaca a postura prudente adotada pela aliança.

À medida que a incerteza e a conflitualidade permeiam as Relações Internacionais, a OTAN busca integrar a cooperação entre os países-membros e a prontidão. Esta abordagem, alinhada à sabedoria da metáfora, oferece um paradigma eficaz para enfrentar os desafios do século XXI, onde a segurança global demanda uma preparação ativa e uma diplomacia assertiva.

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[1] Veja em https://www.sipri.org/media/press-release/2023/world-military-expenditure-reaches-new-record-high-european-spending-surges

[2] Veja em https://www.reuters.com/world/nato-increases-military-budget-by-12-203-billion-euros-2023-12-13/




O resultado das eleições presidenciais em Taiwan pode levar a um aumento das tensões com a China

Lai Ching-te, conhecido como William Lai, venceu as eleições em Taiwan, tendo conquistado cerca de 40% dos votos válidos. Hou Yu-ih, candidato do Partido Nacionalista (Kuomintang), obteve 33% dos votos, enquanto Ko Wen-je, candidato de uma terceira via, que se opõe aos dois partidos tradicionais, obteve uma surpreendente votação, com 26% dos votos. O resultado demonstra que os mais de dezenove milhões de eleitores da ilha decidiram manter no poder o grupo governista, do Partido Democrático Popular (DPP), para decepção do presidente Xi Jinping, da China, e de todo o Partido Comunista Chinês.

Lai Ching-te

Lai, um médico com mestrado em Harvard, é o atual vice-presidente. Com a vitória, seu partido iniciará um inédito terceiro mandato consecutivo. Desta forma, os eleitores referendaram a política da atual presidente Tsai Ing-wen, e do DPP, que busca manter Taiwan longe da influência chinesa, procurando evitar conflitos, mas fortalecendo os laços com os Estados Unidos e outros países do Ocidente. Além disso, ele promete também aumentar a capacidade militar de Taiwan e fortalecer a economia da ilha. O apoio da maioria dos eleitores à essa política fica ainda mais claro tendo-se em vista que um dos candidatos vencidos, Hou Yu-ih, do Kuomitang, fez sua campanha prometendo expandir os laços e reiniciar negociações comerciais com Pequim.

Foi o oitavo pleito eleitoral presidencial em Taiwan, que realiza eleições livres e diretas desde 1996. Os chineses não queriam a vitória de Lai, e deixaram isso bastante claro, sugerindo que sua vitória poderia levar Taiwan para mais perto da guerra. A China, que considera Taiwan uma província rebelde que deve ser reincorporada à plena soberania chinesa, vê em Lai um defensor da independência de Taiwan. Na verdade, ele mesmo, embora não tenha adotado essa retórica na campanha eleitoral, enfatizando que não planeja declarar a independência formal da ilha, chegou a declarar no passado ser um “pragmático defensor da independência” da ilha, algo que é absolutamente inaceitável para o governo chinês.

Xi Jinping tem aumentado de forma notável a atividade militar chinesa no entorno da ilha, em uma demonstração que reforça a mensagem que ele quer transmitir a Taiwan, aos chineses e ao mundo: a de que a reunificação é inevitável.

Taiwan é uma ilha de grande importância geoestratégica, posicionada em local fundamental para o comércio e a segurança regionais, já tendo sido definida pelo general norte-americano Douglas MacArthur como um “porta-aviões inafundável” ancorado eternamente em frente à China. Por isso, seu destino está ligado à competição sistêmica em curso entre Estados Unidos e China. Nesse sentido, os EUA devem manter sua postura de ambiguidade, sem reconhecer seu governo como um ente soberano, mas mantendo o apoio militar e relações próximas.

A vitória de Lai é, sem dúvida, um contratempo para Pequim. Suas políticas e atitudes no governo serão acompanhadas muito de perto por chineses e norte-americanos, bem como pelas demais potências mundiais. O mundo não pode ignorar o que acontece nessa pequena ilha, que está no centro do tabuleiro geopolítico global.

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A crise entre Venezuela e Guiana está longe de ser um assunto encerrado

Em dezembro passado, a população venezuelana compareceu às urnas, para votar em um referendo promovido pelo governo de Nicolás Maduro. Como era esperado, votou de forma massiva na opção “Sim”, respondendo às perguntas sobre a incorporação da região da Guiana Essequiba à soberania da Venezuela.

A pretensão venezuelana sobre a região que se estende de sua atual fronteira com a Guiana para o leste, até o corte do rio Essequibo, remonta as origens coloniais dos dois países, havendo um consenso entre os venezuelanos acerca da legitimidade da pretensão do país de incorporar à sua soberania uma área que corresponde a cerca de 2/3 do território guianense – uma área comparável ao estado brasileiro do Ceará – rica em minérios, petróleo e diamantes.

Figura 1 – Região da Guiana Essequiba / Fonte – Stratfor (2015)

Não se trata, apenas, da porção terrestre do território. É do trecho do Mar do Caribe que defronta a região do Essequibo que a Guiana retira as riquezas petrolíferas que levaram o país a ter atualmente a economia que mais cresce no mundo, com uma taxa de aumento do PIB, em 2023, de cerca de 38%. Para se ter uma ideia do tamanho das riquezas, estima-se que a Guiana possa se tornar o quarto maior país produtor offshore do mundo em 2035, com uma média de 1,7 milhão de barris/dia – ultrapassando EUA, México e Noruega.

Essa riqueza toda, que vem sendo explorada por mais de uma dezena de companhias petrolíferas internacionais de grande porte, de norte-americanas a chinesas, certamente está entre as razões que levaram o regime autoritário venezuelano a reacender o debate sobre a posse da região do Essequibo.

Mas essa não parece ser a principal razão, ou mesmo a única. O presidente Maduro está pressionado pelas eleições presidenciais previstas para acontecer no segundo semestre de 2024, em um momento em que a oposição conseguiu se reunir em torno de uma candidata única, a liberal Maria Corina Machado que, entretanto, está impossibilitada de participar por decisão da mais ata corte judicial venezuelana. Ao propor o referendo, o governo conseguiu mudar de assunto, retirando o tema eleitoral da pauta de discussões e inserindo uma questão que unifica os venezuelanos em torno de uma causa nacionalista. Uma estratégia clássica, utilizada muitas vezes ao longo da história, por governantes em apuros.

A campanha do governo pelo voto “sim” encontrou nos militares venezuelanos um forte ponto de apoio. O General Vladimir Padrino Lopes, Vice-Presidente e Ministro da Defesa, esteve onipresente nas mídias sociais e na imprensa defendendo a causa. Às vésperas do referendo, tropas foram acionadas para participar de operações militares e adestramentos, entoando gritos de guerra e músicas que reafirmam a posse venezuelana da região contestada, tudo com o claro propósito de transmitir à população venezuelana e à opinião pública internacional a mensagem de que o país possui capacidade militar para empurrar, manu militari, a linha de fronteira até o rio Essequibo.

Desde o conflito entre Equador e Peru, na década de 1990, a América do Sul tem se mantido livre de confrontos militares entre Estados nacionais. Assim, uma operação militar de conquista de território, em plena América do Sul, parece impensável. Mas, a irrazoabilidade de uma aventura militar se assenta em premissas de respeito ao direito internacional que talvez não estejam em alta conta em Caracas.

Passada a votação, a governo venezuelano diminuiu a intensidade do discurso nacionalista. Em uma reunião na ilha de São Vicente e Granadina, pequeno país insular do Caribe que desempenha a função de presidente temporário da Comunidade de Estados Latino-Americanos e do Caribe (CELAC), os presidentes Nicolás Maduro e Irfaan Ali se comprometeram a não usar a força um contra o outro, acordando em resolver as disputas territoriais entre Venezuela e Guiana com base no direito internacional. Não houve nenhum acordo acerca da disputa propriamente dita, mas uma nova reunião entre os dois ficou agendada para ocorrer em três meses, no Brasil.

A disputa atrai para a América do Sul a atenção de potências extrarregionais, por motivos geopolíticos e econômicos.

Estados Unidos e Reino Unido fizeram movimentos militares discretos, mas suficientes para transmitir uma mensagem clara à Venezuela de que estão atentos à questão. No dia 7 de dezembro, poucos dias após o referendo, o Comando Sul das forças armadas norte-americanas divulgou a realização de “exercícios aéreos conjuntos” com a Guiana. O Reino Unido, por sua vez, enviou um de seus navios de patrulha oceânica, o HMS Trent, para a região do litoral da Guiana. O navio inclusive recebeu a bordo, no dia 29 de dezembro o Chefe do Estado-Maior de Defesa das forças armadas da Guiana, brigadeiro Omar Khan[1]. A presença do navio britânico no mar que a Venezuela considera estar em litígio reacendeu a retórica nacionalista venezuelana e provocou uma reação do presidente Maduro, que determinou que cerca de 5.600 militares fossem mobilizados em exercícios conjuntos de suas forças armadas, na região de seu litoral.

Figura 2 – Brigadeiro Omar Khan sendo recebido no HMS Trent / Fonte – Conta @HMSTrent na rede social “X”

A Rússia, um importante fornecedor de materiais e sistemas de Defesa para a Venezuela, vem mantendo um perfil discreto em relação à questão. O Ministério das Relações Exteriores do país se pronunciou por intermédio de uma nota curta[2], instando os dois países a resolverem a questão por vias pacíficas e se opondo à intervenção de terceiros países. Uma viagem do presidente Maduro à Rússia, que estava prevista para acontecer em dezembro, acabou por ser adiada.

No que concerne aos interesses econômicos envolvidos, é bom lembrar que há companhias petrolíferas norte-americanas, canadenses, catari, chinesa, inglesa, francesa e espanhola explorando os recursos energéticos no litoral guianense. Certamente as potências envolvidas estão atentas aos acontecimentos, e atuarão, se necessário, na defesa das empresas de seus países.

Assim, fica claro que referendo deu ao presidente Maduro a oportunidade de reacender a questão. O território já foi acrescentado aos mapas oficiais do país o general Alexis José Rodríguez Cabello foi designado pelo presidente venezuelano como “governante único” da Guiana Essequiba. É de se esperar que o regime venezuelano reacenda a questão de forma artificial, criando incidentes esporádicos, de forma a manter o assunto em pauta, especialmente quando as eleições presidenciais – que ainda não possuem data marcada – se aproximarem.

Figura 3 – Mapa venezuelano incorporando a região do Essequibo / Fonte – Governo da Venezuela

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[1] https://x.com/HMSTrent/status/1740870713219715281?s=20

[2] https://mid.ru/en/foreign_policy/news/1919851/




O custo da resposta israelense aos ataques do Hamas

A guerra entre Israel e o grupo terrorista Hamas está sendo travada em altíssimos níveis de violência, o que faz os estudiosos da guerra se lembrarem dos ensinamentos de Carl von Clausewitz. Autor do clássico “Da Guerra”, o general prussiano do século 19 afirmou que esta é “um ato de força para compelir o nosso inimigo a fazer a nossa vontade”. A aplicação dessa força implicaria ser a ação militar um ato de extrema violência.

O ataque do Hamas, que no dia 7 de outubro atingiu indistintamente crianças, mulheres e idosos, foi meticulosamente executado de forma a causar terror e choque à população israelense, com o nítido objetivo de provocar uma forte reação. Não há novidade nisso. Dentro da perversa lógica dos planejadores dos atos terroristas, ao provocar a reação israelense, que certamente seria centrada na Faixa de Gaza, área habitada por mais de 2 milhões de palestinos, conseguiria alcançar o objetivo de chamar atenção para a causa do grupo, reunindo árabes e muçulmanos contra o inimigo “sionista” comum. Novos militantes seriam atraídos para a causa terrorista, atentados ocorreriam em outras partes do mundo e seria sabotada a aproximação que Israel vinha promovendo em direção aos países árabes, muito especialmente com a Arábia Saudita.

A reação israelense aos violentíssimos atentados terroristas perpetrados pelo Hamas pode ser explicada por Clausewitz mas, ao infligir grande sofrimento a civis não combatentes, causa indignação e protestos ao redor do mundo. Além disso, a forte reação internacional contra o que é considerado um excesso na resposta israelense parece indicar que o Hamas pode estar alcançando, pelo menos parcialmente, os seus objetivos. Isso claramente contraria os próprios interesses dos israelenses. Afinal, o processo de aproximação com os árabes foi interrompido e há uma onda desfavorável ao país na opinião pública internacional. Isso traz um questionamento fundamental: a resposta de Israel aos bárbaros atentados de 7 de outubro é exagerada?

O chinês Sun Tzu, autor do magistral “Arte da Guerra”, destaca que, dentre os cinco erros que podiam ser cometidos por um general estavam a “imprudência, que leva à destruição”, e a “cólera, que leva à precipitação”. Estariam os líderes israelenses motivados por uma cólera imprudente?

Certamente, a autocontenção israelense neste momento é uma atitude difícil de ser tomada, uma vez que seu inimigo, o grupo terrorista Hamas, ignora completamente qualquer princípio moral ou ético. Os terroristas descumprem completamente um princípio básico do Direito Internacional dos Conflitos Armados (DICA), o conjunto de normas e costumes que tentam limitar, por razões humanitárias, os meios e métodos de combate das partes em conflito: o princípio da distinção. O artigo 48 do Protocolo Adicional I às Convenções de Genebra define como uma regra fundamental para a proteção da população civil durante as hostilidades que “as Partes em conflito devem sempre fazer a distinção entre a população civil e os combatentes, assim como os bens de caráter civil e os objetivos militares”. Ao se misturar à população da Faixa de Gaza, utilizando indiscriminadamente instalações civis para fins militares, o Hamas borra propositalmente essa fronteira, impedindo, na prática, tal distinção pelos israelenses. É inegável que o Hamas deliberadamente coloca em risco, e de forma vil, a própria população palestina, seus bens e suas condições de subsistência.

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Por outro lado, esse comportamento do Hamas não autoriza o Estado de Israel a utilizar quaisquer meios ou métodos de combate para alcançar seus objetivos militares. Existem outros princípios básicos do DICA que devem ser observados: humanidade, necessidade militar, proporcionalidade e limitação. Os casos de ataques a instalações como hospitais e escolas, em que houve reconhecidamente um elevado número de baixas de civis, suscitam críticas e questionamentos justos. Afinal, Israel não poderia ter escolhido outro meio ou método de combate para atingir seus objetivos militares naquelas situações, causando menos sofrimento aos não combatentes? E, sob o ponto de vista de seus próprios interesses políticos e estratégicos, ao optar pelas ações que alcançam de forma imediata seus objetivos táticos mas causam muitos danos colaterais, não estariam os israelenses obtendo uma vitória de curto prazo, mas plantando uma derrota no nível estratégico para o futuro?

O objetivo dos beligerantes, em qualquer guerra, é chegar a uma paz que lhes seja melhor do que aquela que existia antes do conflito. A vitória de Israel, no campo da Tática, é questão de tempo. Mas, a conquista dos objetivos militares é só uma parte da operação. Depois dela, virá a mais difícil: estabilizar a Faixa de Gaza e encontrar uma forma para que israelenses e palestinos convivam em harmonia. Só assim haverá uma paz melhor do que aquela de antes de 7 de outubro. Para que isso aconteça, será primordial que os meios e métodos de combate empregados por Israel não deixem um rastro de ódio que faça a vitória tática se transformar em uma derrota política.

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