CINCO LIÇÕES DE PANDEMIAS PASSADAS

Pandemias não são novidades para a humanidade. E o estudo das que já foram enfrentadas pode indicar perspectivas sobre o que está por vir. Iain King, em artigo para o Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais (CSIS) lista ensinamentos que as pandemias já enfrentadas legaram ao presente. Da leitura das reflexões de King, selecionei cinco lições que a história nos apresenta para o momento atual.

A primeira, no campo militar, aponta para uma tendência de paralização, ou redução, do impulso das campanhas militares em curso. Ele apresenta, como exemplo, a Guerra do Peloponeso, em 430 a.C., quando os atenienses foram infectados por uma peste. “Pessoas com boa saúde eram subitamente acometidas por fortes dores de cabeça, vermelhidão e inflamação nos olhos. Garganta e língua sangravam e exalavam um hálito artificial e fétido”. A descrição de Tucídides na magistral “História da Guerra do Peloponeso” mostra que a doença refreou o impulso ateniense, prolongando a guerra, que finalmente terminou vencida por Esparta. Outros exemplos seriam a epidemia que assolou a Rússia em 1771, obrigando a Imperatriz Catarina a diminuir a conscrição e negociar um acordo com a Prússia, com quem a Rússia disputava a posse da Polônia, e as epidemias que assolaram o Império Romano, refreando suas campanhas expansionistas.

Atualmente, a COVID-19 já provocou um cessar-fogo na guerra civil do Iêmen e uma sensível redução nas atividades russas e turcas na guerra civil da Síria. As grandes restrições orçamentárias que certamente virão após a crise farão com que as sociedades rediscutam a atuação de suas forças armadas em campanhas longínquas, nas quais os cidadãos médios veem pouca vantagem na relação custo x benefício. Por outro lado, também servirão de estímulo para se acentuarem as ações menos dispendiosas nos chamados “múltiplos domínios” do campo de batalha, como a atuação no campo informacional, com a intensificação de campanhas psicológicas e de desinformação, coisa que, aliás, já se vê nos dias atuais.

A segunda lição é o enfraquecimento da autoridade governamental. As revoltas na Inglaterra contra as medidas econômicas adotadas pelo Rei Ricardo II para responder aos efeitos da Peste Negra, no século 14, e o questionamento pela população de Atenas sobre a liderança de  Péricles para o enfrentamento de uma epidemia letal de tifo na cidade, que afinal acabaria matando o próprio Péricles, são dois exemplos históricos.

É fácil perceber que tais questionamentos ocorrerão daqui para frente, ainda mais se considerando que a atual instantaneidade das comunicações facilita tremendamente a comparação dos desempenhos das diversas lideranças no enfrentamento da pandemia. Governantes e líderes, em todas as esferas de atuação e de todos os níveis, sobre os quais pesarem a responsabilidade de respostas inadequadas ou insuficientes, tanto no enfrentamento da crise propriamente dita quanto de suas repercussões econômicas, sofrerão com o descontentamento popular.

Uma terceira lição é o crescimento da superstição e das fake news. No século 19, espalhou-se a crença de que cintos de lã protegiam do cólera e que a tuberculose era transmitida por parentes falecidos, que retornavam dos túmulos. Diversos registros, de várias épocas diferentes, retratam desespero, fatalismo, fervor e psicose durante os tempos de pandemia.

Em 2020, a COVID-19 se mostra uma oportunidade para a disseminação de desinformação e notícias falsas, intencionalmente, ou de forma desavisada. Remédios caseiros ou industrializados são alçados à condição de cura milagrosa todos os dias. Teorias da conspiração, das mais diversas, emergem e são aceitas por importantes estratos da sociedade.

Uma quarta lição é o aumento da xenofobia e da busca por culpados. Durante a Peste Negra, houve um aumento do antissemitismo e da hostilidade contra peregrinos, mendigos e leprosos. Praticamente todas as pandemias da história resultaram em suspeitas e hostilidades contra estrangeiros. Não é diferente na crise atual, quando casos de xenofobia já foram registrados em várias partes do mundo, bem como a busca de bodes-expiatórios, muitas vezes, como no caso da China e dos EUA, de forma recíproca.

A quinta lição é a de que as pandemias apontam novos vencedores e novos perdedores no campo econômico. Os trabalhadores que conseguiram sobreviver à Peste Negra puderam exigir salários mais altos, em razão da súbita carência de mão de obra. Governos tiveram que se ajustar a orçamentos bastante reduzidos nos anos seguintes às pandemias, elaborando novas políticas econômicas que favoreceram alguns grupos em detrimento de outros.

A COVID-19 obrigará a mudanças semelhantes. Cadeias logísticas baseadas no sistema “just in time” e esquemas produtivos globalizados certamente sofrerão modificações. Setores inteiros, como o do entretenimento e turismo, por exemplo, certamente levarão mais tempo para se recuperar, enquanto outros, como os ligados à indústria farmacêutica e de saúde acabarão sendo beneficiados no cenário pós pandemia.




AS RELAÇÕES SINO-AMERICANAS DEPOIS DA PANDEMIA

Crises mundiais normalmente induzem mudanças significativas no sistema internacional ou, pelo menos, agem como catalisadores que aceleram as que já estavam em andamento. Não há nenhuma razão para acreditar que desta vez será diferente. Nenhum país do mundo sairá incólume da pandemia e as relações diplomáticas, comerciais e políticas entre as nações certamente sofrerão consequências.

Ao tentar antecipar o cenário geopolítico com o qual o mundo se defrontará, a maior parte dos analistas concentra-se nas consequências da pandemia para as relações entre EUA e China.

Os dois países já travam a chamada “guerra comercial” que, dentre outras coisas, evidencia a tentativa dos EUA de reduziram os laços comerciais que foram criados nos últimos 40 anos e tornaram os norte-americanos, em muitos aspectos, dependentes da produção industrial chinesa.

A pandemia evidenciou esta dependência com a chamada “guerra das máscaras”, na qual o mundo assistiu a uma disputa entre diferentes países pela compra de equipamentos para o enfrentamento da COVID-19. Nesse sentido, é emblemática a fila com dezenas de aeronaves de carga norte-americanas indo buscar, na China, máscaras e equipamentos hospitalares.

É evidente que essa dependência externa de equipamentos estratégicos para o enfrentamento do vírus é inadmissível para qualquer país desenvolvido. Muito mais em se tratando dos EUA, maior potência mundial. É certo que os norte-americanos não admitirão mais passar por esse tipo de vulnerabilidade no futuro. Assim, pode-se esperar que a superpotência atue para modificar as atuais cadeias produtivas globais, buscando nacionalizar a produção de diversos itens considerados estratégicos. Este movimento certamente extrapolará a área da saúde e acontecerá também em outros setores, especialmente na área da tecnologia da informação e das comunicações.

Essa substituição das importações poderá ser acompanhada por parte da comunidade internacional. Isso intensificará a guerra comercial em um momento em que os impactos econômicos da pandemia afetam o gigante asiático. O PIB chinês, no 1º trimestre deste ano, caiu 6,8% em relação ao mesmo período do ano passado. Em relação ao trimestre anterior, a queda foi de 9,8%. É a primeira vez que ocorre uma queda do PIB desde 1992, ano em que essas informações passaram a ser divulgadas. A última vez em que o PIB anual da China teve retração foi em 1976, no fim da malfadada “Revolução Cultural”. Isso significa que uma ou duas gerações de chineses não sabem o que é viver em tempos de contração da economia.

Como se sabe, crises econômicas têm o condão de impulsionar insatisfações na população. A emergente classe média chinesa até aqui suporta as restrições à liberdade impostas pelo regime porque, afinal de contas, está progredindo economicamente. Entretanto, talvez essa mesma classe média não seja tão paciente com esse mesmo regime se entender que a reação governamental, tanto do ponto de vista da saúde pública quanto da economia, foi ineficiente. Pressionado no campo interno, o governo chinês poderá responder com mais veemência na guerra comercial contra os norte-americanos. Essa postura por um lado se prestará ao seu objetivo ostensivo, que é o de proteger os interesses econômicos do país. Por outro lado, também servirá para a propaganda interna do regime, que transmitirá aos seus cidadãos uma mensagem de um país altivo no cenário internacional, o que sempre serve ao fervor nacionalista e aumenta a coesão interna da população.

Aliás, já se nota uma maior assertividade chinesa nas relações internacionais. As respostas “alguns tons acima” de sua diplomacia a manifestações por eles consideradas “antichinesas”, no contexto da pandemia, surpreenderam diversos diplomatas e demonstram que o país quer ocupar uma posição de força no cenário internacional.

A estratégia chinesa de resposta à pandemia, com o envio de equipes médicas e de equipamentos para diversas partes do mundo, além da tentativa de mostrar que o regime pode oferecer a melhor governança no tratamento da crise, procura contrastar com a postura mais isolacionista dos norte-americanos, que no enfrentamento da COVID-19 claramente abdicaram do papel de liderança global que desempenharam em outras crises do século 20 e do início do século 21.

E este será um novo foco de possível enfrentamento entre as duas potências. Até que ponto os EUA admitirão maior presença e liderança chinesas em continentes onde até há pouco tempo a influência norte-americana era incontestável?

Como se vê, há várias razões para acreditar que haverá deterioração nas relações entre EUA e China no futuro imediato, pós-pandemia. Outras mais poderiam ser levantadas, como o enfraquecimento dos organismos multinacionais e as eleições norte-americanas. A solução das controvérsias entre os dois gigantes é de interesse de toda a comunidade internacional. Por isso, espera-se que as duas potências saibam encontrar os melhores caminhos para solucionar seus dissensos.




GUERRA NA SÍRIA EM PLENA PANDEMIA

A crise mundial provocada pela pandemia da COVID-19 silenciou o noticiário sobre a guerra civil na Síria, que envolve, como protagonistas, além dos próprios sírios, a Turquia e a Rússia. Entretanto, o conflito permanece, e a pandemia se soma aos terríveis efeitos da guerra sobre as populações das áreas afetadas.

A Turquia e a Rússia estão em lados opostos na guerra civil da Síria. Os russos apoiam o governo de Bashar al-Assad, enquanto os turcos apoiam algumas das forças rebeldes que se insurgiram contra o governo. Apesar disso, os presidentes Erdogan e Putin possuem boas relações pessoais. Essa proximidade foi importante para que os dois países firmassem o Acordo de Sochi, em 2018, no qual se criou uma zona desmilitarizada em Idlib, noroeste da Síria, fronteira com a Turquia.

Esse acordo foi transformado em “letra morta” com a última ofensiva das tropas sírias, decisivamente apoiadas pela Força Aérea russa, sobre a região de Idlib. Na ofensiva, que destruiu a infraestrutura da cidade, vitimando e expulsando centenas de milhares de civis, dezenas de soldados turcos que estão na região foram mortos. Houve reação turca, e as tensões entre a Turquia e a Rússia atingiram altos níveis.

Os dois presidentes voltaram à mesa de negociações e, no último dia 5 de março, anunciaram um novo acordo de cessar-fogo. Foi anunciado também um corredor de segurança, ao longo da rodovia M4, que atravessa a província, ficando estabelecido que ela deverá ser patrulhada por tropas de ambos os exércitos.

Para entender como os acontecimentos chegaram a este ponto, é importante retroceder a outubro do ano passado, quando os EUA declararam ter vencido o grupo terrorista Estado Islâmico na Síria e, em razão disso, decidiram retirar o grosso de suas tropas da região. Essa retirada criou as condições necessárias para que a Turquia interviesse diretamente no conflito. Assim, foi desencadeada a Operação “Primavera da Paz”, uma ofensiva no território sírio. Os objetivos, segundo o governo turco, seriam: combater grupos paramilitares curdos – considerados terroristas por Ancara, mas aliados dos norte-americanos na luta contra o Estado Islâmico – e garantir uma “zona de segurança” no território sírio, para onde seriam levados grande parte dos 3,5 milhões de refugiados que estão hoje em território turco.

A retirada norte americana também proporcionou a liberdade de ação que faltava para que o presidente sírio, Bashar al-Assad, decidisse desencadear uma ofensiva final sobre uma das últimas porções do território sírio que não estão sob o controle de seu governo, justamente as regiões de Idlib e Bab al-Hawa, na fronteira com a Turquia.

Assim, a operação turca e a ofensiva síria, executadas ao mesmo tempo e na mesma zona de ação, resultaram nos confrontos que se viram. A ofensiva do exército sírio ocorreu em regiões densamente povoadas, agravando a tragédia humanitária. Somente de dezembro até hoje, estima-se que 950 mil pessoas fugiram, na sua maioria mulheres e crianças, tentando, em vão, chegar à Turquia. Essas pessoas estão na faixa de fronteira entre os dois países, desabrigadas ou em abrigos improvisados, enfrentando as baixas temperaturas da região.

Com a pandemia, os refugiados estão ainda mais vulneráveis. Quando a doença atingir Idlib ou os campos de refugiados, que sofrem com precárias condições sanitárias, as consequências poderão ser terríveis.

Mesmo antes da pandemia, a tragédia humanitária em Idlib não obtinha quase nenhuma atenção no ocidente. Os EUA, que adotam no governo Trump uma política externa mais isolacionista, estavam concentrados nas eleições presidenciais deste ano. Já as potências europeias, apesar de preocupadas com a possibilidade de a Turquia abrir as portas para que milhões de refugiados rumem em sua direção, não possuíam força política para influenciar os rumos no conflito. ONU e demais organismos internacionais não encontravam soluções viáveis. No momento, com todos os esforços voltados para a COVID-19, parece ainda mais distante a chance de adoção de alguma medida prática em direção à solução do problema.

Assim, repousam sobre a Rússia e a Turquia os destinos da guerra na Síria e, em consequência, de milhões de refugiados. Os russos bancaram a permanência de Assad no poder. Com isso, fincaram o pé como uma potência extrarregional capaz de interferir nos destinos do Oriente Médio, ao mesmo tempo em que garantiram um governo amigo aos russos em um país estratégico aos seus interesses políticos, econômicos e militares. Mas não parece disposta a comprometer-se firmemente no apoio ao combate ao coronavirus na região.

A Turquia, por sua vez, possui desafios difíceis pela frente. Vizinha da Síria, envolvida em uma ação militar colhida por uma pandemia inesperada e gravíssima, poderá ter que lidar com as consequências de uma tragédia humanitária de enormes proporções em sua fronteira. É muito pouco provável que o país, sozinho, tenha os meios necessários para este enorme desafio.




LIDERANÇA MILITAR EM TEMPOS DE CRISE

Qual é o papel de um líder militar em tempos de crise? Quais devem ser suas prioridades? Essas perguntas vêm à tona em virtude da exoneração do Capitão1 Brett Crozier2, que comandava o porta-aviões de propulsão nuclear USS Theodore Roosevelt. O Comandante Crozier perdeu seu comando em razão do vazamento de uma correspondência3 que ele enviara a seus superiores, com cópias para outras 20 ou 30 pessoas, e que acabou sendo publicada pela imprensa norte-americana.

Na carta, tratando dos casos de COVID-19 que ocorriam em sua tripulação, Crozier alegou que os EUA não estão em guerra e que, portanto, os marinheiros “não precisariam morrer” e que, se providencias imediatas não fossem tomadas, “a Marinha estaria falhando em proteger seu ativo mais preciso – os marinheiros”. Ele argumentou, ainda, que não podia proporcionar o isolamento necessário à prevenção da epidemia dentro do porta-aviões, solicitando o desembarque imediato dos quase 5 mil tripulantes.

A Marinha decidiu retirar Crozier do comando imediatamente. Alegou que a atitude do comandante de agir fora da cadeia de comando quebrava de maneira irreparável a confiança do escalão superior, o que não se pode admitir. O Secretário da Marinha, Tomas Modly4, alegou que nenhum dos 114 casos que tinham sido detectados até aquele momento era grave e que Crozier demonstrava uma capacidade de julgamento extremamente deficiente durante a crise.

Ao sair do navio, que está atracado na ilha de Guam, no Oceano Pacífico, destituído do comando, Crozier foi homenageado pela tripulação que gritava seu nome5, em uma manifestação pública de apreço pouco comum nos meios militares.

Retorno então às perguntas do início deste texto, contextualizando-as ao caso de Crozier. Qual era o seu papel como líder militar diante da grave situação com a qual se deparou? Quais deveriam ser suas prioridades?

O manual C20-10 Liderança Militar, conceitua: “A Liderança militar consiste em um processo de influência interpessoal do líder militar sobre seus liderados, na medida em que implica no estabelecimento de vínculos afetivos entre indivíduos, de modo a favorecer o logro dos objetivos da organização militar em uma dada situação.” (grifos nossos).

O mesmo manual acrescenta que a liderança deverá ser apoiada em três pilares: proficiência profissional (saber), senso moral e traços de personalidade característicos de um líder (ser) e atitudes adequadas (fazer).

A proficiência profissional do Cap Crozier, até este incidente, parecia indiscutível. Seu currículo era exemplar e nenhum oficial chega à posição de comandante de um porta-aviões da Marinha norte-americana sem uma brilhante carreira e sem passar por uma seleção rigorosa.

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Seu senso moral, que pode ser caracterizado pelo balizamento de seu comportamento pelos valores mais importantes de um líder militar, neste episódio, merece ser discutido. Em uma apressada análise inicial, parece demonstrar coragem ao se manifestar em favor do que acreditava ser correto para o bem-estar de seus subordinados. Porém, cabe uma consideração importante: naquele momento, a verdadeira manifestação de coragem que se espera de um comandante é a de permanecer no cumprimento da missão e do seu dever. No linguajar militar, manter a tropa galvanizada no sentido de “durar na ação”, mesmo se sujeitando a incompreensões que possam surgir em um primeiro momento. A lealdade à instituição militar a que pertence e representa como comandante, outro valor característico do senso moral, também foi fortemente abalada ao permitir que fosse tratado publicamente um assunto que deveria ser tratado exclusivamente pela cadeia de comando.

A “atitude adequada”, terceiro pilar da liderança militar, também foi comprometida no episódio. O “fazer” que caracteriza a atitude adequada se evidencia na forma como o líder emprega os valores e competências de sua personalidade no manejo das situações que sua tropa enfrenta. No caso, Crozier deveria envidar todos os esforços para que seus liderados cooperassem para o atingimento dos objetivos definidos pela Marinha norte-americana para o USS Theodore Roosevelt. E, dentre estes objetivos, certamente está o de mantê-lo como uma ferramenta militar capaz de cumprir qualquer missão que venha a lhe ser imposta, inclusive dissuadir eventuais inimigos, especialmente em se tratando de um porta-aviões de propulsão nuclear, um poderoso instrumento de combate. Ao permitir que a questão da infecção de COVID-19 ganhasse notoriedade, Crozier ajudou a escancarar uma vulnerabilidade importante da Marinha, reduzindo drasticamente, ao menos momentaneamente, sua capacidade operacional e sua prontidão para fazer frente a inúmeros e incertos desafios que poderão advir da crise da COVID-19.

Além disso, ao afirmar que os EUA “não estão em guerra” e por isso deveria priorizar a segurança da tripulação, o comandante deliberadamente optou pelos interesses da tripulação, e não pelos da instituição ou de seu país. Atuou meramente como se fosse um representante dos interesses de seus subordinados, e este não é o papel de um comandante, muito menos, de um líder. Sua intenção de interromper o serviço do navio, desembarcando toda a tripulação, somente se justificaria se manifestada exclusivamente por intermédio da cadeia de comando e apenas em caso de grave comprometimento da saúde a bordo, que de qualquer maneira inviabilizaria a operacionalidade do navio. Mas este não parece ser o caso. Até esse momento, não há notícias de que qualquer tripulante precisasse de internação hospitalar.

Não se está aqui a pregar que o Comandante seja insensível ao bem-estar de seus subordinados. Muito pelo contrário. Esta é a atitude adequada do líder, mas sempre com o foco no cumprimento da missão. A preocupação com a saúde dos comandados é obviamente da maior importância para qualquer líder militar, e todas as ações para que sua tropa permaneça saudável são necessárias nas atuais circunstâncias. Mas a atenção do Comandante Crozier deveria estar focada, tanto quanto ou ainda mais, na manutenção da prontidão de sua tropa e de sua unidade. Afinal, disponibilidade e prontidão permanente são características necessárias e inalienáveis da profissão militar, em qualquer parte do mundo.

Há ainda mais um importante aspecto a ser considerado. As instituições militares, altamente hierarquizadas, possuem comandantes em vários níveis diferentes, desde os mais elementares grupos até os de nível estratégico. Os líderes de nível mais baixo sabem que sua visão é limitada pelas informações que estão disponíveis ao seu nível de comando. Em razão disto, eles sabem que devem confiar no discernimento dos escalões superiores, que possuem outros elementos para a tomada de decisão que não são de seu conhecimento. Este entendimento também faltou ao Comandante Crozier, que achou que sua visão sobre o assunto deveria ser definitiva.

A reação da imprensa norte-americana ao caso, de maneira majoritária, foi favorável a Crozier. Destacou a coragem do comandante, que entre “a carreira e o bem estar de seus subordinados”, teria escolhido sacrificar a carreira em favor de sua tripulação.

Mas não me parece que deva ser essa a interpretação de soldados profissionais. Esses sabem que o cumprimento da missão e a manutenção da operacionalidade de suas tropas é o farol inescapável. Essa, aliás, é uma característica definidora dos homens e mulheres que abraçam a profissão das armas.

Finalmente, lembro que sem hierarquia e disciplina, não há Força Armada. E relembro as palavras do Marechal Osorio, liderança inconteste, amado por seus subordinados, mas que conhecia perfeitamente a importância da disciplina: “Se um militar tivesse o direito de aprovar os feitos de seus superiores, também teria o de censurar ou de se lhes opor; daí viriam a indisciplina e a morte do Exército”.


[1[ Na Marinha do Brasil, Capitão de Mar-e-Guerra
[2] Veja um currículo do Cap Brett Crozier, elaborado em 2018
[3] Leia a correspondência
[4] Leia a declaração do Secretário Tomas Modly 
[5] Veja o vídeo



DESAFIO E RESPOSTA

Este artigo foi originalmente publicado no jornal O Estado de S, Paulo no dia 25 Março 2020

O acrônimo VUCA (Volatility/volatilidade, Uncertainty/incerteza, Complexity/complexidade, Ambiguity/ambiguidade), criado por T. Owen Jacobs, no livro Strategic Leadership: The Competitive Edge, popularizou-se entre os estudiosos do fenômeno da liderança a partir de sua adoção pelo War College, do Exército dos EUA, na década de 2000. Os termos servem para definir as principais características do ambiente na Era da Informação, que influenciam os líderes nos níveis político e estratégico na tomada de suas decisões.

A volatilidade se manifesta pela extrema velocidade dos acontecimentos, pela natureza efêmera e dinâmica das relações, que exigem constantes adaptações e realinhamento de planejamentos e estratégias. Lembra que, nos dias de hoje, mesmo a informação mais atual pode ser insuficiente para subsidiar uma adequada tomada de decisão. Reforça que líderes devem estar em condições de se antecipar aos acontecimentos, preparando-se para as mudanças que virão.

A incerteza, causada pela volatilidade, demonstra que é impossível deter todas as informações acerca de uma situação. Ela advém das múltiplas soluções e alternativas que competem entre si e, via de regra, causa atrasos no processo de tomada de decisões, uma vez que aumenta a quantidade de opiniões discordantes sobre o que vai acontecer no futuro.

A complexidade deriva da dificuldade de entendimento das múltiplas interações, entre os múltiplos fatores, que impedem que se identifique com clareza relações de causa e efeito. A complexidade, assim como a volatilidade, contribui para o aumento da incerteza.
Finalmente, a ambiguidade caracteriza-se por ser um tipo especial de incerteza. Ela decorre do fato de que diferentes grupos sociais podem ter distintas interpretações sobre um mesmo acontecimento. Isso em razão de diferenças de perspectivas, discordâncias ideológicas, discrepâncias culturais.

A crise causada pela pandemia da COVID-19 apresenta claramente todas essas características, obrigando os líderes das esferas governamentais e privadas, em todo o mundo, a decidirem sob estresse e pressão. Não é uma tarefa fácil, mas as ações de enfrentamento da crise definirão consequências sociais, econômicas, políticas, diplomáticas e militares.

Apesar do ambiente volátil, incerto, complexo e ambíguo, procurar antever os cenários pós-crise é fundamental para que os líderes criem uma visão de futuro e trabalhem no sentido de estabelecer prioridades e promover as mudanças necessárias à adaptação que a nova realidade exigirá.

No sistema internacional, as organizações multilaterais e intergovernamentais devem sair enfraquecidas, uma vez que foram incapazes de apresentar soluções. O fechamento das fronteiras entre a Alemanha e a França, principais líderes da União Europeia, é emblemático nesse sentido.

A COVID-19 chega em um momento em que os EUA estão se retraindo do cenário internacional. A reorganização das relações internacionais em um mundo com menor presença norte-americana, especialmente no Oriente Médio, abre espaço para uma reorganização que retorna a um modelo semelhante ao da guerra fria, de “esferas de influência”. A pandemia acirra a disputa entre EUA e China, uma vez que desorganiza relações comerciais e gera disputas por influência no campo psicossocial, com reflexos inclusive em terceiros países, que passam também a ser palco dessa disputa.

O agravamento de crises já em curso é outro efeito da pandemia: a violência crescente na região do Sahel, no norte da África; a emergência alimentar causada pelas nuvens de gafanhotos que destroem as plantações da região da Somália, e já migram para o Oriente Médio; a guerra civil no Iêmen e na Síria, com suas enormes quantidades de refugiados;  a crise do petróleo, motivada pela baixa intencional dos preços pela Arábia Saudita, que ameaça prejudicar ainda mais as já muito debilitadas economias do Irã e da Venezuela. Todos esses são exemplos de crises que, apesar de terem desaparecido dos noticiários, se intensificam a cada dia.

A desorganização da economia mundial talvez seja a mais grave consequência no plano das relações internacionais. A redução drástica do consumo e da produção industrial, além do desarranjo das cadeias globais de suprimentos, podem fazer as corporações transnacionais repensarem seus padrões produtivos, com profundas modificações no atual modelo de comércio internacional. Isso para mencionar apenas alguns aspectos do cenário que se aproxima.

Segundo a teoria geopolítica chamada “Desafio e Resposta”, desenvolvida pelo sociólogo inglês Arnold Toynbee, em 1934, as civilizações que aceitaram e venceram os desafios, representados por obstáculos e inferioridades, sobreviveram e se desenvolveram. Além disso, o autor afirmou que “o estímulo humano aumenta de força na razão direta da dificuldade”. Espera-se que, desafiadas, as lideranças de todo o mundo, em todos os níveis, nas esferas governamentais e privadas, saibam encontrar as melhores respostas.




O VIRUS E A GEOPOLÍTICA

A pandemia provocada pelo novo Coronavirus, causadora da COVID-19, talvez seja a primeira crise de proporções realmente mundiais a ocorrer na era da internet, da instantaneidade da comunicação, da desinformação, das fakenews. É também uma crise sem precedentes, por sua escala e repercussões sociais, econômicas, políticas e possivelmente, militares.

A instantaneidade e o volume das informações, muitas transmitidas por mídias sociais sem nenhum tipo de checagem quanto à veracidade, alarma as populações, que exigem de seus governantes repostas imediatas. Governos do mundo todo são desafiados a oferecer soluções, apresentando decisões e políticas públicas que protejam a saúde de seus cidadãos e minimizem os efeitos econômicos e sociais. Tais ações envolvem aspectos geopolíticos importantes, que devem ser considerados.

O aspecto do controle das fronteiras, por exemplo, mostra o enfraquecimento de organizações intergovernamentais, que se mostram incapazes de liderar iniciativas conjuntas para a solução da crise. Os países-membros da União Europeia, além de outros países europeus que não pertencem ao bloco, mas são signatários da Convenção de Schengen, deveriam garantir a livre circulação de pessoas por suas fronteiras. Assim, uma crise dessa natureza deveria implicar em uma solução concertada, que previsse soluções que não limitassem esse fluxo. Não é o que está acontecendo. Apesar do posicionamento contrário da Comissão Europeia, alguns países europeus, como Áustria, Dinamarca, Polônia, Eslováquia, República Tcheca e Malta, já decidiram restringir o fluxo de pessoas por suas fronteiras. Mas isso não acontece apenas entre os signatários do acordo de Schengen. A Rússia já fechou suas fronteiras com a Polônia (na Região de Kaliningrado), Noruega e China. O governo norte-americano proibiu voos internacionais da Europa continental para os EUA, por trinta dias. A Arábia Saudita proibiu todos os voos internacionais por duas semanas. Medidas semelhantes estão sendo anunciadas por outros países, a cada momento. Na América do Sul, a Colômbia acaba de anunciar o fechamento de sua fronteira com a Venezuela.

A questão do trânsito de pessoas pela fronteira da Colômbia com a Venezuela alerta para um problema ainda maior. À crise da COVID-19 se junta a crise dos refugiados, em um efeito cascata. Há cerca de 1,5 milhões de migrantes venezuelanos na Colômbia. Em todo o mundo, segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), existem mais de 70 milhões de pessoas deslocadas, ou seja, pessoas forçadas a deixar suas regiões de origem por motivos de guerra, perseguição, violência e violação aos direitos humanos. Grande parte dessas pessoas vivendo em condições precárias, sem acesso a mínimas condições sanitárias. A incidência da COVID-19 nos campos de refugiados ao redor do mundo pode ter consequências terríveis.

A crise encontra o mundo em um momento em que o sistema internacional está assistindo ao acirramento da competição entre os EUA e a China. E, diferentemente de outras crises sanitárias ocorridas no passado, como a SARS, de 2003, ou a gripe aviária, de 2005, quando ocorreu uma grande cooperação internacional, no caso atual, ao contrário, a cooperação internacional, especialmente entre EUA e China, está bastante restrita. Na verdade, a crise está exacerbando as tensões geopolíticas já existentes entre as duas potências.

Na guerra pelo domínio da narrativa, a competição está acirrada. Na China, há uma campanha de propaganda nas redes sociais, em especial no WeChat (a versão chinesa do WhatsApp), culpando o ocidente e a CIA pela epidemia. No ocidente, ao contrário, ganham espaço as versões de que o vírus é uma estratégia chinesa para vencer a guerra econômica, deixando o ocidente de joelhos. Mas não se trata apenas de atribuir a um lado ou outro a culpa pela pandemia. Há que se demonstrar a superioridade gerencial na solução do problema. Nesse sentido, os chineses montaram uma campanha nos meios de comunicação, tentando provar que a resposta à crise demonstraria que a capacidade de governança chinesa seria superior àquela demonstrada pelo ocidente. Ao mesmo tempo, a China toma medidas práticas para demonstrar ser um país apto a auxiliar outros em dificuldade. A Itália, por exemplo, país ocidental mais severamente afetado pela epidemia até o momento, tem recebido suprimentos médicos e auxílio da China de forma muito mais eficiente do que aquele oferecido pela própria União Europeia ou por outros países do ocidente.

A ajuda chinesa à Itália, apesar de muito mais simbólica do que efetiva, contrasta com a postura isolacionista dos EUA. A decisão do país de suspender os voos da Europa para os EUA, tomada no meio da noite, de surpresa, causou um verdadeiro caos nos aeroportos europeus. Muitos países ficaram irritados, considerando que aliados não devem ser tratados dessa forma e que tal iniciativa deveria ter sido tomada em conjunto.

A pandemia da COVID-19 já é um daqueles eventos que impactam profundamente uma geração. Não apenas pela gravidade da crise sanitária, que afeta diretamente a vida de bilhões de pessoas em todo o mundo. Não apenas pelas consequências econômicas relevantes, que trarão repercussões ainda não precisamente estimadas. Também não exclusivamente por ser a primeira na era da comunicação instantânea, nem mesmo por somar-se às várias outras crises já existentes, em um terrível efeito cascata. Mas, também, pelo potencial efeito acelerador das mudanças geopolíticas em curso, especialmente aquelas que envolvem a competição entre China e EUA.

 




RUSSOS E TURCOS EM LADOS OPOSTOS NA SÍRIA

Os presidentes da Turquia, Recep Erdogan, e da Rússia, Vladimir Putin possuem boas relações pessoais. Essa aproximação ajudou os dois países a firmarem, em 2018, um acordo no qual se criava uma zona desmilitarizada em Idlib, noroeste da Síria. Mas a ofensiva do governo sírio, apoiada pelos russos, contra grupos rebeldes da região, transformaram aquele acordo em “letra-morta”, uma vez que os dois países estão em lados contrários na guerra civil que assola a Síria há 9 anos.

Esse antagonismo assumiu contornos mais graves recentemente, quando soldados turcos que estão na região foram mortos em combates contra tropas sírias diretamente apoiadas pela força aérea russa.

Para entender como os acontecimentos chegaram a este ponto, é importante retroceder a outubro do ano passado. Naquele mês, os norte-americanos declararam ter vencido o grupo terrorista Estado Islâmico na região e, por isso, iriam retirar o grosso de suas tropas da Síria. Essa retirada criou as condições necessárias para que a Turquia interviesse diretamente no conflito. Assim, foi desencadeada a Operação “Primavera da Paz”, uma ofensiva no território sírio. Os objetivos, segundo o governo turco, seriam: combater grupos paramilitares curdos – considerados terroristas por Ancara, mas aliados dos norte-americanos na luta contra o Estado Islâmico – e garantir uma “Zona de Segurança” no território sírio, para onde seriam levados grande parte dos 3,5 milhões de refugiados da guerra civil que estão hoje em território turco.

Os militares turcos que foram mortos pelos sírios são integrantes das forças participantes da Operação “Primavera da Paz”. Os combates têm se aproximado cada vez mais de regiões densamente povoadas, especialmente da cidade de Idlib e da região fronteiriça de Bab al-Hawa. Trata-se de um dos últimos territórios controlados pelas forças rebeldes (compostas, hoje, principalmente pelo grupo jihadista Hayat Tahrir al-Sham, integrado por antigos militantes da Al Qaeda), mas o governo do Presidente Bashar al-Assad, firmemente apoiado pela aviação e apoio logístico russos, pretende retomar o controle da área.

Teme-se que a ofensiva do governo provoque uma enorme leva de refugiados, além de uma tragédia humanitária. E isso está se comprovando. Somente de dezembro até hoje, estima-se em 900 mil o número de novos deslocados, na sua maioria mulheres e crianças, que fogem tentando, em vão, chegar à Turquia. Essas pessoas estão na faixa de fronteira entre os dois países, desabrigadas ou em abrigos improvisados, enfrentando as baixas temperaturas da região, agravando a crise dos refugiados.

A tragédia humanitária em Idlib não tem obtido quase nenhuma atenção no ocidente. Os EUA, que adotaram no governo Trump uma política externa mais isolacionista, estão concentrados nas eleições presidenciais que se aproximam. As potências europeias tampouco demonstram interesse ou força política para definir rumos no conflito. A ONU tem feito apelos vãos por um cessar fogo, que não é implementado porque não encontram eco nas potências do Conselho de Segurança, que efetivamente teriam poder para adotar ações práticas.

Assim, restam a Rússia e a Turquia, países sobre os quais parecem repousar os destinos da guerra na Síria e, em consequência, de milhões de refugiados. Os russos bancaram a permanência de Assad no poder. Com isso, fincaram o pé como uma potência extrarregional capaz de interferir nos destinos do Oriente Médio, ao mesmo tempo em que garantiram um governo amigo aos russos em um país estratégico aos seus interesses políticos, econômicos e militares. Nesse sentido, é importante destacar a relevância estratégica, para a Rússia, do porto de Tartus, base naval cedida aos russos pelos sírios, em seu território, que concede à marinha russa o acesso às águas do Mar Mediterrâneo.

A Turquia, por sua vez, possui desafios difíceis pela frente. Se decidir impulsionar sua ofensiva na região de Idlib, atacando as tropas sírias para evitar que estas retomem a cidade, arrisca-se a engajar-se decisivamente em uma guerra que não deseja, em um enfrentamento direto contra os russos. Se, por outro lado, contiver suas ações militares evitando o engajamento decisivo nos combates, certamente verá fracassar seus esforços de conter o fluxo de refugiados em razão de uma tragédia humanitária ainda maior em suas fronteiras.

Percebendo a situação difícil em que se encontra, o Presidente Erdogan decidiu atuar com mais intensidade no campo diplomático. Por um lado, fez questão de relembrar que seu país é membro da OTAN, solicitando aos EUA baterias de mísseis Patriot, para a defesa de seu espaço aéreo. De outro lado, marcou, para o dia 05 de março, uma reunião com os Presidentes Putin e Macron, além da chanceler Angela Merkel. Note-se uma ausência: a dos norte-americanos. Uma novidade para a geopolítica da região, que enfraquece a liderança que a superpotência sempre desempenhou na definição dos destinos do Oriente Médio




A CRISE HUMANITÁRIA NO NORTE DA SÍRIA

A Turquia e a Síria dividem uma fronteira de 822 Km, um pouco menor do que a fronteira entre o Brasil e o Uruguai. A linha foi criada em 1918 quando, derrotados na Primeira Guerra Mundial, os turcos do antigo Império Otomano perderam para a França o território que viria a se tornar a Síria. É por essa fronteira que a Turquia recebeu em seu território boa parte dos 3,5 milhões de refugiados da guerra civil na Síria, iniciada em 2011. Segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), mais de 60% de todos os refugiados da guerra civil na Síria estão na Turquia. As consequências políticas, militares e, principalmente, econômicas e sociais desse fluxo migratório são facilmente imagináveis.

Na confusão de interesses envolvidos no conflito sírio, nem sempre grupos armados e exércitos que combatem juntos possuem os mesmos objetivos. Mas, os turcos sempre se posicionaram contra o governo sírio de Bashar al-Assad, apoiando alguns grupos contrários ao governo. Até outubro do ano passado, esse era um apoio indireto. A partir daquele momento, entretanto, especialmente na região de Idlib, no noroeste da Síria, as tropas dos dois países passaram a se enfrentar diretamente. E as consequências têm sido uma tragédia humanitária ainda maior na região.

Outubro do ano passado marcou os acontecimentos na Síria porque os Estados Unidos, um ator fundamental no desenrolar dos acontecimentos, que até aquele momento atuava fortemente no enfrentamento de grupos terroristas, além de apoiar grupos insurgentes que enfrentavam o governo sírio, por decisão do Presidente Trump, reduziu significativamente a sua presença militar na Síria. A Rússia, por sua vez, outro ator fundamental no conflito, é responsável pela manutenção de Bashar Al-Assad no poder. Seu apoio econômico e militar ao regime garantiu a situação atual na qual o governo sírio recuperou o controle sobre a maior parte do país.

A retirada do grosso das tropas norte-americanas da Síria possibilitou um engajamento maior dos turcos no conflito. As forças militares do país tentam implementar a ideia de seu presidente, Recep Erdogan, de criação de uma zona de segurança, ao longo da fronteira turco-síria, de trinta quilômetros de profundidade, para onde planeja repatriar a maior parte dos milhões de refugiados sírios que estão em seu país. Na região nordeste da fronteira, a operação foi relativamente bem sucedida. Já na porção noroeste, na província de Idlib, as coisas se complicaram.

Presidente Erdogan mostra seu plano na ONU

Ocorre que os sírios, decisivamente apoiados pelos russos, decidiram recuperar o controle sobre todo o território do país, especialmente em Idlib. As forças sírias, apoiadas por bombardeiros russos, atacaram posições turcas no início deste mês de fevereiro. A ofensiva redundou em baixas de ambos os exércitos. Mas o resultado mais visível do recrudescimento do conflito foi o repentino e significativo aumento do do número de pessoas que fugiram da área. Cerca de 700 mil já saíram de Idlib desde dezembro. Este é o maior volume de deslocados em um período tão curto de tempo nos quase dez anos de conflito.

Ou seja, a ação militar turca havia sido planejada para tentar dar uma solução para os mais de 3,5 milhões de refugiados, mas, ao contrário, está piorando significativamente a situação, na medida em que, ao reverso do planejado, agravou-se a situação humanitária.

Para tentar reverter a situação, os turcos podem optar por uma escalada militar na região, aumentando a presença de tropas para garantir a criação da zona de segurança. Mas isto, além de significar um enorme custo econômico, esbarra no poderio militar russo que apoia os sírios na região.  Os russos controlam o espaço aéreo na área e, sem esse controle, uma grande ofensiva turca contra os sírios está praticamente descartada.

Assim, é fundamental o esforço diplomático. Russos e turcos sempre estiveram em lados opostos no conflito da Síria. Mas, apesar disso, os presidentes Erdogan e Putin desenvolveram um diálogo pessoal e próximo. A recente aquisição, pelos turcos, das baterias antiaéreas russas S400, além da declaração de que os dois países mantêm uma “parceria estratégica” são comprovações desse novo nível de relacionamento. No momento, ambos os lados voltam a negociar, cada um defendendo seus próprios interesses. Os russos, pregando o desarmamento dos grupos rebeldes que enfrentam o presidente sírio e os turcos, exigindo a criação de uma área segura na fronteira para onde possam ser enviados os milhões de sírios que estão na Turquia.

Há ainda, um aspecto a destacar em toda essa crise. Os EUA, que sempre foram um ator fundamental na região, retiraram-se e não mais são focados pelas luzes da ribalta. Esta distância é uma novidade na geopolítica da região. Trata-se de um vácuo que enfraquece a liderança norte-americana, pois fragiliza a confiança de aliados na perenidade do apoio da superpotência e dá margem para o surgimento de novos protagonistas, como a própria Turquia e a Rússia, que ganha destaque passando a ser a única potência extrarregional com liberdade para atuar influenciando os destinos do conflito.




O BREXIT E A SEGURANÇA DA EUROPA

A novela do BREXIT finalmente chegou ao seu final. Desde o dia 31 de janeiro, o Reino Unido não faz mais parte da União Europeia. Em uma análise superficial, o BREXIT não afetaria a segurança do continente. Porém, creio que ele é mais um fato que se soma ao crescente protagonismo russo, às ameaças terroristas, à crise imigratória, à ascensão chinesa e à presidência de Donald Trump nos EUA, conformando uma nova realidade para a segurança daquela região.

A arquitetura da segurança europeia baseia-se na Organização para o Tratado do Atlântico Norte (OTAN). O coração do tratado é o seu Art 5º: “Um ataque armado contra um ou mais países membros será considerado uma agressão contra todos”. Para os países europeus, desde a criação da Aliança, em 1949, a presença dos EUA serve como um seguro valioso. Afinal, é bastante reconfortante saber que uma agressão ao seu território equivale a uma agressão ao território norte-americano e, em razão disto, ensejará uma reação da maior potência militar do planeta. Essa situação confortável, aliada ao fim da guerra fria e à sensação de que as ameaças à Europa estavam bastante minimizadas, levou muitos países europeus a diminuírem drasticamente seus investimentos de defesa. A Alemanha, por exemplo, desde 1998 não gasta 2% do PIB com defesa. O mesmo ocorre com Itália, Espanha e outros 17 (de um total de 29) países da aliança.

Entretanto, a realidade atual é bastante diferente daquela do pós-guerra, que motivou a criação da Aliança, ou mesmo do “pós-guerra fria”, até a primeira década do século 21, antes das ações militares russas na Geórgia e na Ucrânia, com a anexação da Criméia, ou do crescimento exponencial da importância da Ásia na geopolítica mundial, ou da postura mais isolacionista, do “America First”, adotada pelo Presidente Donald Trump.

Uma série de acontecimentos alertam os estrategistas e líderes europeus, a ponto de o Presidente francês ter declarado, por ocasião da cúpula dos 70 anos da OTAN, que a Aliança vivia uma “morte cerebral”. Em primeiro lugar, o crescimento de forças centrífugas na Europa, à exemplo do BREXIT, dificultando a definição de objetivos, ações, estratégias e políticas comuns e em proveito de todo o continente. Em segundo lugar, o crescimento do protagonismo russo, demonstrado pela crescente desenvoltura em atuar, inclusive militarmente, de acordo com os seus interesses, no leste europeu, no norte da África e no Oriente Médio. Acrescente-se em terceiro lugar a desconfiança em relação à postura dos EUA, que age cada vez mais unilateralmente, como quando denunciou o tratado nuclear com o Irã, à revelia de França, Alemanha e Reino Unido, ou quando o país abandonou o tratado firmado com os russos, para eliminação de mísseis nucleares de curto e médio alcance, o que levou os russos a também denunciarem o acordo. Este fato é especialmente desfavorável aos Europeus, que se veem repentinamente obrigados a encarar a realidade de que a vizinha Rússia está novamente à vontade para produzir mísseis nucleares que alcancem a Europa. Uma quarta razão para o desconforto europeu é a pressão exercida pelos EUA para que os demais países da OTAN aumentem seus gastos em defesa, deixando implícita a mensagem de que eles devem caminhar com suas próprias pernas, dependendo menos dos norte-americanos.

Os EUA, percebendo a desconfiança aliada, age por intermédio de seu estamento militar procurando reafirmar seu compromisso com os Europeus. O país executa, a partir deste mês e até julho, o maior exercício de desdobramento de tropa em continente europeu, partindo dos EUA, dos últimos 25 anos. O terceiro maior em toda a história. É o “Defender Europe”. Cerca de 20 mil homens e equipamentos cruzarão o Atlântico para participar das manobras.  Outros 17 países europeus participarão do exercício, inclusive o Reino Unido, que enviará cerca de 2,5 mil homens. A presença britânica, com um efetivo significativo, também deve ser lida como uma mensagem de manutenção do compromisso do país com a OTAN, apesar da separação da União Europeia.

Governos tendem a se preocupar com defesa somente quando impelidos pela necessidade. Especialmente em sociedades democráticas, que tendem a priorizar necessidades mais prementes do que manter dispendiosas forças armadas. Ocorre que capacidades militares, quando perdidas, levam muito tempo para serem restabelecidas. Os europeus terão que decidir, em breve, se continuarão a basear grande parte de sua segurança nas capacidades militares norte-americanas, ou se partirão para o desenho de um modelo mais genuinamente europeu.

E se for essa a escolha, caberá ainda mais um enorme desafio. A segurança será baseada em um “exército da comunidade europeia”, de uma Europa politicamente integrada de fato, ou o BREXIT indicará uma tendência centrífuga de retorno à valorização das soberanias nacionais, onde cada Estado volte a gerar suas próprias capacidades de defesa? A resposta virá, inevitavelmente, nos próximos anos.




TENSÕES NO ESTREITO DE TAIWAN

“Analistas na China Continental afirmam que uma quantidade cada vez maior de chineses está perdendo a fé em uma reunificação pacífica… Eles acreditam que uma reunificação pela força poderia resolver a questão de uma forma mais efetiva e eficiente.”

Essas afirmações, tratando das relações entre China e Taiwan, constam de uma reportagem publicada pelo jornal chinês Global Times, na edição do dia 16 de janeiro (https://www.globaltimes.cn/content/1176998.shtml). O texto faz, ainda, comparações sobre o poderio militar da China e de Taiwan, demonstrando a grande superioridade chinesa, além de recomendar que o país intensifique os exercícios militares de desembarque anfíbio, o tipo de operação que seria realizada no caso de uma invasão a Taiwan. É importante destacar que o jornal Global Times é controlado pelo Partido Comunista Chinês. Seus textos, via de regra, enviam as mensagens que as autoridades chinesas desejam passar. Aliás, sobre esse mesmo assunto, o próprio presidente Xi Jinping já havia afirmado que não faria promessas de que abandonaria a possibilidade de uso da força; pelo contrário, manteria a opção de utilizar todas as medidas que se fizessem necessárias para a “completa reunificação da nação chinesa”.

O artigo do Global Times foi publicado na esteira da reeleição, em Taiwan, da presidente Tsai Ing-wen, que desagrada a Pequim por manter uma postura mais independente em relação à China, e da promulgação da chamada “Lei Anti-infiltração”, editada com a finalidade de tentar restringir a influência chinesa na política taiwanesa.

Taiwan, considerada pelo governo de Pequim como uma província rebelde, se mantém, de facto, independente. Essa situação surgiu com a vitória da revolução comunista, em 1949. O governo derrubado por Mao Tse-tung exilou-se na ilha e, desde então, nunca se submeteu à autoridade chinesa. Entretanto, apenas 14 dos 193 países-membros da ONU, além do Vaticano, reconhecem a soberania de Taiwan. Todos os demais membros da comunidade internacional reconhecem a China e comprometem-se com o princípio de “uma única China”, o que necessariamente implica em não apoiar a independência de Taiwan.

A postura dos EUA em relação a Taiwan é aquela que atende aos seus próprios interesses geopolíticos. No mesmo dia em que as relações entre EUA e China foram normalizadas, em 01 de janeiro de 1979, os norte-americanos promulgaram a Lei de Relações com Taiwan que, dentre outras coisas, estabelece que “para ajudar a manter a paz, a segurança e a estabilidade no Pacífico Ocidental”, mesmo não mantendo relações diplomáticas oficiais ou não  reconhecendo Taiwan como um país soberano, é política dos EUA fornecer armamentos para que Taiwan possa prover sua autodefesa. Além disso, a lei estabelece que qualquer tentativa de se determinar o futuro de Taiwan pelo uso da força, incluindo-se aí embargos e boicotes, será considerada pelos EUA uma “séria ameaça à paz e a segurança do Pacífico Ocidental” e, consequentemente, uma “grave preocupação” para os EUA. Em atenção à essa política, no ano passado, os EUA autorizaram uma venda de armamentos para Taiwan de cerca de US$ 2,2 bilhões, o que provocou protestos do governo chinês.

A elevação do tom da retórica chinesa demonstrada na matéria do Global Times certamente está relacionada, também, aos acontecimentos em Hong Kong. A política chamada “um país, dois sistemas”, adotada pela China em relação à antiga colônia inglesa era o chamariz com o qual Pequim pretendia convencer os taiwaneses de que a reunificação poderia ser vantajosa. Eles poderiam ser favorecidos pelo progresso econômico da China ao mesmo tempo em que manteriam seu modo de vida, mantendo as liberdades individuais que não existem na China continental. Entretanto, os protestos que persistem em Hong Kong escancaram a insatisfação, especialmente dos jovens, com a política “um país, dois sistemas”, acendendo um alerta para os taiwaneses, de que os “dois sistemas” talvez não fossem suficientemente diferentes entre si. Assim, a crise em Hong Kong acabou por colaborar para a reeleição, em Taiwan, da presidente Tsai.

A reunificação completa é, para os chineses, um objetivo nacional permanente. O governo chinês definiu, em diversos documentos oficiais, o ano de 2049, centenário da revolução comunista, como o marco para se alcançar o “sonho chinês”, que inclui a completa reunificação do país.

“Taiwan é um porta-aviões que não se pode afundar”. A frase, atribuída ao General MacArthur, mostra a importância geopolítica da ilha para os interesses norte-americanos no Pacífico. Chegará o momento, e este se dará entre um futuro próximo e o ano de 2049, em que a situação de Taiwan terá que se resolver. Ou a ilha passará integralmente à soberania chinesa, com grandes perdas geopolíticas para os EUA, ou se tornará independente, nesse caso com a China sendo a grande perdedora. Em qualquer dos cenários, as chances de fricção entre as duas potências mundiais serão grandes.