A CRISE IRÃ X EUA

“A guerra não é meramente um ato de política, mas um verdadeiro instrumento político, uma continuação das relações políticas realizada com outros meios”

Clausewitz

Nem bem tínhamos terminado de desejar aos amigos um feliz 2020 quando, no terceiro dia do ano, tomamos conhecimento da ação militar dos EUA no Iraque, que causou a morte do General Qassim Suleimani, poderoso comandante da Guarda Revolucionária Iraniana. Parecia um mau presságio. O ano mal tinha começado e o mundo já estava por acabar, afinal, a 3.ª Guerra Mundial estaria por começar…

O futuro é, por definição, imprevisível. Mas a história das relações internacionais já nos ofereceu um enorme número de crises que, mal ou bem solucionadas, indicam que vamos sobreviver também a essa.

A ação militar norte-americana em que uma aeronave remotamente pilotada lançou mísseis sobre o comboio de viaturas onde estava o general Suleimani é o ponto até aqui culminante de uma série de acontecimentos na longa crise que caracteriza as relações entre Irã e EUA, desde a revolução islâmica que levou os aiatolás xiitas ao poder, em 1979.

O capítulo mais recente dessa crise foi iniciado em maio de 2018, quando os EUA se retiraram do acordo nuclear assinado em 2015 entre os dois países, Rússia, China, Reino Unido, França e Alemanha. Esse acordo relaxava as sanções econômicas impostas ao Irã em troca do compromisso do país de não desenvolver armamentos nucleares. A saída dos EUA do acordo redundou na imposição de uma nova série de sanções econômicas ao Irã, além da classificação, pelos norte-americanos, da Guarda Revolucionária Islâmica, a força militar que era comandada pelo general Suleimani, como “organização terrorista internacional”.

Os embargos afetaram seriamente a economia do Irã e o país resolveu, em 2019, adotar uma estratégia de escalada das tensões. Foi assim que, em maio desse ano, além de anunciar que retornaria a enriquecer urânio acima dos níveis permitidos pelo tratado de 2015, o Irã implementou – ou patrocinou – uma série de ações ofensivas: navios petroleiros em trânsito pelo Estreito de Ormuz foram sabotados, drones foram lançados contra oleodutos e instalações petrolíferas sauditas e, em 20 de junho, uma aeronave remotamente pilotada norte-americana foi abatida. As tensões entre os dois países se elevaram, mas os EUA evitaram uma retaliação militar.

Em julho, o Irã apreendeu um petroleiro do Reino Unido enquanto passava pelo Estreito de Ormuz. Em setembro, novamente drones atingiram instalações petrolíferas sauditas, dessa vez com grande impacto sobre a produção de petróleo do país. Ao mesmo tempo, ao longo de todo o ano de 2019 os EUA foram impondo ainda mais sanções sobre atividades econômicas específicas e também sobre pessoas físicas, no caso, os principais líderes iranianos e seus familiares.

Finalmente, no mês de dezembro se deram os fatos que seriam o estopim dos últimos acontecimentos. No dia 27, uma ação do grupo terrorista Kataib Hezbollah contra uma base militar iraquiana em Kirkuk resultou na morte de um cidadão americano, além de ferir militares e civis iraquianos. Os EUA acusaram o Irã de apoiar os terroristas. Em retaliação, os EUA atacaram posições do grupo no próprio Iraque e na Síria. Cerca de 25 terroristas foram mortos e algumas dezenas, feridos. Em 31 de dezembro a embaixada dos EUA em Bagdá foi atacada e invadida por grupos paramilitares iraquianos pró-Irã. No dia 3 os EUA desencadearam o ataque que matou o general Suleimani.

A descrição da série de acontecimentos acima serve para tentarmos desenhar a manobra de crise visualizada por cada uma das partes em conflito.

De um lado, os EUA, ao imporem os embargos, tentam em primeiro lugar dobrar o regime iraniano, obrigando-o a aceitar termos mais duros do que os que eram previstos no acordo assinado em 2015, considerados insuficientes pelo governo Trump para manter a estabilidade regional. Em segundo lugar, pela pressão econômica, busca enfraquecer um governo que é francamente contrário aos seus interesses no Oriente Médio, rival de árabes e israelenses e que busca se impor como uma potência regional. Ao eliminarem o general Suleimani, os EUA demonstram claramente o limite para as ações iranianas: a morte de norte-americanos ou o ataque a instalações do país terão como resposta uma ação militar.

De outro lado, os iranianos mostram que podem, por si próprios ou por intermédio de grupos que agem “por procuração”, causar grandes transtornos econômicos, especialmente por ações no Golfo Pérsico, no Estreito de Ormuz e no Golfo de Omã, por onde transita grande parte do petróleo mundial. Ou mesmo em ataques à Arábia Saudita, aos países do Golfo Pérsico ou a Israel. Assim esperam convencer a comunidade internacional a pressionar os EUA a abrandarem os embargos comerciais, ao mesmo tempo que ampliam sua influência no Oriente Médio.

Volto à citação de Clausewitz. A guerra só é travada quando um governo se convence de que ela é um meio eficaz para que se alcance algum objetivo político. E embora a História mostre casos em que guerras se iniciaram quase por acaso, não creio que nem EUA nem Irã tenham algum objetivo político importante a ser conquistado com um conflito de alta intensidade, ainda mais levando em consideração as graves consequências que certamente sofreriam suas populações e seus governos. Já ações pontuais e restritas, como as que vêm sendo desencadeadas até aqui, atenderiam a cada uma das partes na busca de seus objetivos estratégicos.

Assim, não creio que haja mudança significativa no panorama da crise. O Irã deve retaliar, vingando a morte de seu general, com alguma ação semelhante às até aqui praticadas. Os EUA também devem manter sua estratégia, acreditando que as sanções econômicas e a ameaça do emprego da força impeçam o Irã de prejudicar seus interesses na região.




A LIDERANÇA DO GENERAL JIM MATTIS

O General Fuzileiro Naval norte-americano Jim Mattis publicou recentemente um livro, em coautoria com Bing West: Call Sign Chaos – Learning to lead[1]. A obra ainda não foi traduzida para o português. Espero que alguma editora se interesse, porque a leitura realmente vale a pena.

James Mattis nasceu em 1950. Em 1971, formou-se em História na Universidade Central de Washington. Ao mesmo tempo em que cursava a Universidade, alistou-se nos Fuzileiros Navais, frequentando o ROTC, um programa que forma oficiais para as Forças Armadas norte-americanas.

Assim, ao formar-se, Mattis foi declarado oficial Fuzileiro Naval e, em 1972, iniciou sua carreira, comandando pelotões de fuzileiros. É por essa fase de sua vida que o autor inicia o livro, narrando a experiência de sua vida militar.

A obra é dividida em três partes. A primeira, que trata da liderança direta, é o relato das experiências mais importantes de sua carreira até o posto de Brigadier General[2]. Essa fase inclui o comando de um Batalhão na Guerra do Golfo, em 1991 e de uma Brigada na campanha do Afeganistão, em 2001.

A segunda parte do livro trata da liderança organizacional[3]. Nela, Mattis descreve o período que vai de sua promoção a Major General[4], em 2002, passando por seu retorno ao Iraque, na 2ª Guerra do Golfo, no comando da 1ª Divisão dos Fuzileiros Navais[5], até o período em que esteve à frente do Comando Conjunto Norte-americano (JFCOM), já como General de 4 estrelas, o mais alto posto da hierarquia militar.

Na última parte do livro, tratando da liderança estratégica, o autor descreve sua experiência à frente do Comando Central (CENTCOM), comando conjunto norte-americano que é responsável, na organização daquele país, por uma área que vai do Egito ao Paquistão, Afeganistão e repúblicas centro-asiáticas, englobando 20 países. Essa é a parte do livro na qual o autor se debruça sobre o terceiro nível de liderança: o nível estratégico.

Os primeiros anos no Corpo de Fuzileiros ensinaram a Mattis que a liderança está baseada em três fundamentos. Três “C”: competência, cuidado e convicção.[6] Ao tratar da competência, o general recomenda ao líder que seja brilhante no básico. Analise seu próprio desempenho. Identifique suas deficiências e trabalhe para melhorar. Não corre 3 milhas em 18 minutos? Treine mais. Não é um bom ouvinte? Discipline-se. Não consegue solicitar um tiro de artilharia com facilidade? Adestre-se. Seus homens contam com a sua competência. O segundo fundamento é: cuide de seus subordinados. Conheça-os individualmente. Eles são jovens e cada um tem seus próprios objetivos. Quando seus subordinados souberem que você verdadeiramente se importa com eles, então você poderá falar francamente quando eles te desapontarem. Acerca desse “cuidado”, no livro há uma citação do Marechal Slim, feita durante a Segunda Guerra Mundial, que Mattis assinaria: “Como oficiais, vocês não vão comer, nem beber, nem dormir ou tampouco se sentar até que vocês tenham pessoalmente se assegurado de que seus homens tenham feito tais coisas. Se vocês fizerem isso, eles os seguirão até o fim do mundo. E se vocês não fizerem, terão que se explicar para mim.” O Terceiro fundamento é a convicção. Seus pares e subordinados perceberão rápido quais são suas convicções. Crie suas regras e – mais importante – cumpra-as. Lembre-se que como oficial você deve vencer apenas uma batalha: pelos corações de seus subordinados. Ganhe seus corações e eles irão vencer as batalhas.

O livro está recheado de citações que vão de Homero ao General Grant, passando por Napoleão e inúmeros outros. Mattis é um leitor voraz e em diversas passagens reforça a importância de uma sólida e vasta cultura militar. “Se você não leu centenas de livros, é funcionalmente analfabeto e será incompetente, porque apenas suas experiências pessoais não são amplas o suficiente para sustentá-lo”. Ele afirma ainda que o homem luta há dez mil anos e seria uma tolice não tirar proveito dessa experiência acumulada.

Mattis ressalta ainda a importância de se evitar um estilo de liderança demasiadamente centralizador, que defina as ações dos subordinados até os detalhes. O ideal seria que o líder em combate estabelecesse com clareza a sua intenção e o “estado final desejado”, o seja, quais os objetivos devem ser atingidos e com qual finalidade. Já o “como fazer”, deve ser deixado a cargo dos comandos subordinados. Caso contrário, a iniciativa será tolhida e os subordinados hesitarão, solicitando orientações a cada percalço ou mudança de situação. Mas, para que isso funcione, comandantes e subordinados devem possuir um entendimento comum de como deverá se cumprir a missão. E isso só se obtém com o compartilhamento das informações relevantes. O líder deve constantemente se perguntar: O que eu sei? Quem precisa saber? Eu já lhes disse?

A experiência internacional de várias campanhas no Oriente Médio, depois na OTAN e no CENTCOM deram ao General Mattis uma visão clara da grande importância do trabalho harmonioso entre as diferentes Forças e entre diferentes aliados. Ele cita Churchill a esse respeito: “Só há uma coisa pior do que combater com aliados, que é lutar sem aliados.” Nesse sentido, há outra passagem interessante: “Eu não me importo em quão brilhante operacionalmente você é. Se você não cria um ambiente harmonioso, baseado na confiança entre as diferentes Forças Armadas, entre aliados estrangeiros e corpos diplomáticos, você precisa ir para casa, porque seu estilo de liderança é obsoleto.”

Muitas passagens, experiências e citações tornam a leitura do livro muito agradável, indispensável mesmo, na minha opinião, para o profissional da carreira das armas. Mas o livro termina com a despedida do General Mattis do serviço ativo, em 2013. Nada fala acerca de sua experiência como Secretário de Defesa, no Governo Trump, entre novembro de 2016 e janeiro de 2019, quando pediu demissão após a decisão do presidente norte-americano de retirar as tropas do Afeganistão. Ainda assim, quem ler o livro entenderá perfeitamente seus motivos.

[1] Indicativo CHAOS – Aprendendo a Liderar. (Indicativo é o codinome usado por alguém para ser identificado quando fala ao rádio, em uma rede militar de comunicações.

[2] Nos EUA, Brigadier General, é o Oficial General de uma estrela. Não há equivalência nas Forças Armadas Brasileiras.

[3] Executive leadership, em inglês. Escolhi a tradução “organizacional” por ser o termo equivalente na doutrina do Exército Brasileiro.

[4] General de duas estrelas. General de Brigada, no Brasil.

[5] 1st Marine Division

[6] Competence, caring, conviction.




OS SETENTA ANOS DA OTAN

Chefes de Estado e de Governo dos 29 países que compõem a Organização para o Tratado do Atlântico Norte reuniram-se recentemente em Londres para comemorar os 70 anos da Organização. Na cobertura da imprensa, ganhou destaque o desconforto causado pelas divergências nas visões de alguns dos presidentes dos países da Aliança, especialmente as dos Presidentes Trump, dos EUA, e Macron, da França. O francês reafirmou uma declaração anterior que havia causado desconforto no presidente americano, de que a Aliança estava em “morte-cerebral” em razão da falta de coordenação estratégica e liderança.

A OTAN foi criada em 1949, inicialmente composta por doze países, dentre os quais EUA, Reino Unido, França, Itália e Canadá. Na década de 1950, mais 3 países se juntaram ao grupo: Alemanha, Grécia e Turquia. Nenhum outro país se juntou à Aliança até a década de 1980, quando a Espanha foi incorporada.

Assim, quando a União Soviética se dissolveu, em 1991, a OTAN era composta por 16 membros. A partir de 1999, vários países do leste europeu, região que era tradicional área de influência dos soviéticos, foram sendo incorporados à Aliança. Em 2004, apenas 15 anos depois de 1989, todos os países do antigo Pacto de Varsóvia, com exceção da própria Rússia e da maioria dos Estados que compunham a antiga URSS, estavam na OTAN ou na União Europeia.

A Rússia considerou que essa expansão da OTAN em direção ao Leste caracterizava claramente uma estratégia de contenção e cerco. Na visão dos russos, a OTAN já havia se expandido além do aceitável quando incorporou os países bálticos – Estônia, Letônia e Lituânia – à Aliança. E definiu um limite: a Ucrânia. Esse país, que em 2008 havia solicitado à OTAN sua incorporação ao grupo, é a própria origem da “mãe Rússia”, a antiga Rus Kievana. Além disso, o porto de Sebastopol e as riquezas minerais do país são de grande importância para os russos. A intervenção militar, de um ponto de vista puramente geopolítico, passou a ser praticamente inevitável.

As ações militares russas na Geórgia, em 2008 e na Ucrânia, em 2014, acenderam uma luz vermelha nas salas de planejamento da OTAN.  A Aliança, que na primeira década do século 21 considerava a guerra ao terror a sua principal hipótese de emprego, retirou das gavetas os antigos planejamentos de um enfrentamento militar de alta intensidade contra a Rússia. E ao verificar seus planos, descobriu que não estava preparada para tal tipo de conflito. A razão para isso é simples de se explicar. Sem dinheiro, não se preparam Forças Armadas.

Os gastos dos europeus com defesa caíram substancialmente a partir do desmantelamento da União Soviética. A Alemanha, por exemplo, desde 1998 não gasta 2% do PIB com defesa. O mesmo ocorre com Itália, Espanha e outros 17 países da aliança.

Desde que assumiu a presidência dos EUA, o presidente Trump tem insistido na necessidade de os países-membros da OTAN investirem ao menos 2% de seus PIB em defesa. Os EUA investiram cerca de 3,2% em 2018. A mensagem implícita na exigência é a de que os europeus, maiores interessados na própria segurança, deveriam gastar mais e depender menos dos EUA.

Ao mesmo tempo em que a geopolítica alerta os países europeus, especialmente os do Leste e do Centro da Europa, para o ressurgimento da ameaça russa, a França e os EUA concentram suas atenções em outras partes do mundo. Os EUA passaram a considerar sua principal hipótese de emprego uma confrontação com a China, no Oceano Pacífico. Os franceses estão envolvidos nas crises de suas antigas colônias na África. O país mantém mais de dez mil militares desdobrados entre Senegal, Costa do Marfim, Gabão e Djibuti, além dos 5 países do chamado Sahel: Burkina Faso, Chade, Mali, Mauritânia e Níger. Além disso, os franceses mantêm tropas na Síria e no Iraque.

Assim, fica claro que a Aliança se defronta com 3 situações distintas, cada uma delas atraindo a atenção dos países membros em diferentes graus de intensidade: a ameaça russa, a ameaça chinesa e a ameaça do terrorismo. Não bastasse isso, há ainda uma inédita fonte de tensão interna. Um dos países membros enfrenta militarmente um grupo que atua como aliado de outros países membros. Estou tratando da Turquia, país de vital importância geoestratégica, que está combatendo os curdos na Síria, curdos esses que são aliados de norte-americanos e franceses no enfrentamento do governo de Bashar al-Assad. Além disso, a Turquia se aproxima da Rússia, inclusive com a aquisição de material de defesa.

Dessa forma, a OTAN passa por um momento desafiador na definição de seus destinos. Seu principal integrante, os EUA, está mudando seu foco para priorizar o Teatro de Operações do Pacífico, no Leste Asiático. A postura do atual governo, anunciada pelo slogan “America first” (América em 1º lugar), gera desconfiança dentre os aliados sobre se os norte-americanos realmente estariam dispostos a cumprir o pacto de defesa mútua em caso de agressão a um dos países membros da OTAN. Os franceses, por sua vez, continuam concentrados na contra-insurgência e no contraterrorismo na África e Oriente Médio. Em razão disso, reclamam que o foco estratégico voltado para a Rússia e para a guerra de alta intensidade está errado, daí a afirmação de Macron da “morte cerebral” da organização.

A OTAN não é apenas uma aliança militar. É sobretudo uma aliança política, que usa seu enorme poderio militar para dissuadir adversários e consubstanciar a máxima de Clausewitz, de que a “guerra é a continuação da política por outros meios”. Nesse sentido, é exitosa pois conseguiu, ao longo de seus 70 anos de história, atingir os interesses políticos de seus integrantes, inclusive o mais importante deles: vencer a Guerra Fria. Foi justamente essa vitória que levou à sua expansão e, paradoxalmente, torna cada vez mais difícil a definição de objetivos comuns.




PROTESTOS VIOLENTOS POR TODO O MUNDO

“Nas guerras civis do presente, esvaiu-se a legitimidade. A violência libertou-se completamente da fundamentação ideológica”

Hans Magnus Enzensberger

Recentemente, as páginas dos jornais passaram a relatar grandes manifestações populares, em diferentes partes do mundo que, via de regra, descambam para a violência, inclusive com mortes de manifestantes, agentes de segurança ou civis. Cenas de enfrentamento entre populares e policiais equipados com equipamentos anti-distúrbios, nuvens de gases lacrimogêneos, carros, prédios e barricadas em chamas tornaram-se comuns em lugares tão díspares quanto distantes entre si, governados por comunistas ou liberais, progressistas ou conservadores, religiosos ou ateus, banhados pelo Pacífico ou pelo Atlântico, no Ocidente ou no Oriente. Chile, Hong Kong, Bolívia, Equador, Haiti, França, Espanha, Líbano, Iraque e Indonésia foram palco de cenas muito parecidas.

Não há uma causa comum determinável para esses acontecimentos. No Chile, os protestos se iniciaram em razão de um aumento nos preços dos transportes urbanos. Em Hong Kong, a causa foi uma nova lei de extradições. Na Espanha, os catalães protestaram em razão da prisão de líderes do movimento separatista. No Líbano, o motivo foi exigir a queda do governo incapaz de resolver os problemas econômicos. Os haitianos foram às ruas por não suportar mais o completo caos político, econômico e social. Em Paris, as causas iniciais dos protestos dos “coletes amarelos” foram os aumentos de impostos e do custo de vida.

Protestos são a forma de que as pessoas dispõem para se fazerem ouvir quando os canais oferecidos pela organização política dos Estados não estão disponíveis, ou se mostram ineficientes. Martin Luther King dizia que são “a linguagem dos que não são ouvidos”. Todos os exemplos acima comprovam que as causas iniciais dos protestos, mesmo diversas, têm em comum o fato de serem reivindicações legítimas e bem definidas. Entretanto, há outro ponto que os une: muito rapidamente as manifestações ganham novos e variados objetivos e são tomadas por episódios de violência crescente e incontrolada.

Essa violência cobra um preço alto em vítimas civis e agentes de segurança pública. Em patrimônio público e privado. Em deterioração econômica e institucional. E é o fato de ser a violência o ponto comum que assemelha eventos tão distantes entre si que provoca a pergunta: há uma causa comum, um estopim, para deflagrar a cenas de vandalismo, de enfrentamento, tão parecidas entre si que tornam impossível se distinguir à distância se ocorreram em Santiago do Chile ou em Hong Kong?

Alguns articulistas na imprensa nacional e internacional respondem identificando uma espécie de mal-estar social, causado por uma série de fatores. Crescimento econômico frustrante, desigualdade social, corrupção, falta de liberdade política, todos esses fatores apresentados como geradores de uma grande frustração, que permanece encubada até o momento em que há uma explosão. A partir de um pretexto inicial, os eventos se aceleram em uma espiral de violência incontrolável.

O intelectual alemão Hans Magnus Enzensberger, também tem sido lembrado na busca por explicações. Em ensaio publicado em 1995, ele tratou do tema, sob a perspectiva da época, cunhando um novo conceito, o da chamada “guerra civil molecular”. Segundo a visão pessimista do intelectual alemão, que escreveu impactado pelo fim da bipolaridade e pela guerra na Iugoslávia, as guerras não seriam mais entre estados nacionais, passando a ser travadas no coração das sociedades. Seria um fenômeno urbano, de vandalismo e violência nas cidades. As ações seriam caracterizadas pelo “autismo e pela falta de convicção. Seriam lideradas por vanguardas de jovens movidas pelo simples desejo de agressão, sem nenhum conteúdo ideológico”.

Ao caldo de “mal-estar social”, frustração ou simples agressividade, há que se acrescentar os fenômenos da instantaneidade das comunicações, das redes sociais, das fake news e da chamada “guerra de narrativas”. Correntes de opinião influentes se formam e se sobrepõem, umas às outras, em um ritmo frenético, ao sabor de comentários nas redes sociais. Quando uma dessas ondas coincide com os gritos das multidões nas ruas, os protestos virtuais impulsionam os reais, que realimentam o mundo virtual com imagens transmitidas por milhões de celulares ao vivo, em um ciclo difícil de ser quebrado.

Em meio a tudo isso, é importante considerar ainda que há grupos, nacionais e estrangeiros, interessados em fomentar e tentar conduzir os protestos na direção de seus próprios interesses. Esses grupos atuam com profissionalismo e objetivos bem definidos, muitas vezes produzindo e disseminando informações falsas ou fora de contexto.

Face a tantas variáveis, governos de todo o mundo têm se mostrado incapazes de oferecer respostas e de lidar com essas situações. Estão presos a estratégias de comunicação ultrapassadas, que não reagem com a rapidez necessárias às demandas sociais. São incapazes de detectar as “ondas” em seu início ou de proteger suas sociedades de manipulações ou orquestrações.

Hannah Arendt escreveu, em 1951, que “provavelmente, jamais faltou ódio ao mundo, no entanto ele evoluiu ao ponto de tornar-se um assunto político decisivo em todos os assuntos públicos… (o ódio) penetrou em cada poro da vida cotidiana e pôde disseminar-se em todas as direções e assumir as formas mais fantásticas e imprevisíveis… Cada um passou a ser contra cada um e, sobretudo, contra os vizinhos.” Os acontecimentos recentes nas mais diferentes partes do mundo parecem afirmar que suas palavras permanecem atuais. Espera-se que as sociedades encontrem as melhores maneiras para mediar os conflitos e serenar os ânimos.

 




A TURQUIA E OS CURDOS. OS RUSSOS, OS IRANIANOS E A SIRIA. E OS EUA COM ISSO

O Presidente Trump ordenou a retirada das tropas norte-americanas que estavam na Síria. Talvez esta tenha sido a decisão de política externa mais criticada de seu período como presidente, tanto por integrantes da oposição quanto por membros do seu próprio partido, por vários motivos. O mais evidente foi o fato de a retirada das tropas servir como senha para a invasão do norte da Síria pela Turquia, em uma ofensiva contra os Curdos, que dominam a região desde 2012. Curdos esses que, aliados aos próprios norte-americanos, foram os grandes responsáveis por combater com êxito o grupo terrorista Estado Islâmico, na Síria.

Para entender a confusa situação da Síria, é preciso consultar a história da formação das fronteiras dos países do Oriente Médio. Essas fronteiras inexistiam até as potências vencedoras da 1ª Guerra Mundial dividirem o território que antes fora o Império Otomano. Pelo acordo Sykes-Picot, celebrado entre Reino Unido e França, confirmado pela Conferência de San Remo, em 1920, os europeus traçaram linhas em mapas, linhas que não existiam na realidade e que criaram algumas das fronteiras mais artificiais da história. Antes, não havia nenhuma Síria, nem Líbano. Tampouco Israel, ou Palestina, Iraque, Kuait, Arábia Saudita, Jordânia. Esses e outros países foram criados, de um lado, unindo pessoas e povos que não estavam habituados a conviver e, de outro, separando etnias e povos de origens e costumes comuns.

Assim, a área onde hoje é a Síria, logo após a I Guerra Mundial, tornou-se um protetorado francês. Essa condição só foi modificada com a independência, em 1946. Em 2011, na esteira da chamada Primavera Árabe, teve início a Guerra Civil que se prolonga até hoje.

Bashar al-Assad, ditador sírio, esteve a ponto de ser derrubado, mas graças ao apoio de russos e iranianos, o regime se manteve. O apoio russo tem forte motivação geopolítica. Após a queda de Kadafi, na Líbia, na Primavera Árabe, os russos viram sua influência na região ser ameaçada. E o risco de perder um governo amigo também na Síria era intolerável. É neste país que, desde 1971, os russos mantêm a base naval de Tartus, um porto de águas profundas. A base é fundamental para garantir a presença naval russa no Mediterrâneo.

O Irã é outro forte ponto de apoio do regime de Assad. Isso se deve a alguns fatores, políticos e religiosos. O principal é que os sunitas, principais opositores de Bashar al-Assad, são também rivais dos xiitas iranianos. A eventual troca de governo na Síria, e a consequente ascensão sunita, aproximaria a Síria da esfera de influência da Arábia Saudita, significando um forte revés para a influência iraniana na área.

A Turquia aproveitou a retirada das tropas norte americanas da Síria para lançar uma ofensiva contra os curdos, que detêm o controle da posição nordeste do país, mantendo-se em uma situação de semiautonomia. O motivo alegado é o de criar uma “faixa de segurança” na fronteira, do lado sírio, para onde seriam enviados de volta parte dos 3,6 milhões de refugiados que estão no país, em fuga da guerra civil síria. Para um país de economia frágil e de 80 milhões de habitantes, esse é um problema de dificílima resolução. O presidente turco Recep Erdogan acusa as autoridades europeias e norte-americanas de não cumprirem acordos, deixando de enviar ao país 3 bilhões de euros que foram prometidos pela União Europeia em 2016. Ameaça também, caso não consiga enviar os sírios de volta ao seu país, “abrir as portas” para que os refugiados entrem Europa adentro.

Os curdos são um povo originário da região que hoje engloba a parte sudeste da Turquia, norte do Iraque, noroeste do Irã e sudoeste da Armênia. Estima-se que hoje sejam entre 25 e 35 milhões de pessoas.

Curdistão

Na Turquia, os curdos são vistos como uma ameaça. Desde a década de 1980, o grupo PKK, ou Partido dos Trabalhadores do Curdistão, fez uma opção pela luta armada, em busca da independência do Curdistão. Mais de 40 mil pessoas já morreram em atentados terroristas e em enfrentamentos com o Exército Turco desde então. Para os turcos, os curdos que estão na Síria nada mais são do que um dos braços de apoio ao PKK.

E, em meio a esse cenário conturbado, a decisão do presidente Trump afeta fortemente o equilíbrio das forças, redundando em um reequilíbrio que dificilmente será favorável aos interesses dos proprios norte-americanos na região. Em primeiro lugar, os curdos se sentiram traídos e abandonados, imediatamente entrando em acordo com o Presidente Bashar al-Assad. A fama de “parceiro não confiável” dos norte-americanos será espalhada pela máquina de propaganda dos seus inimigos no Oriente Médio, e exigirá um grande esforço futuro para que essa narrativa seja revertida. Em segundo lugar, o aforismo “o poder não deixa vácuo” foi comprovado pela enésima vez. Quase imediatamente, o presidente russo Vladimir Putin intermediou o acordo entre o presidente sírio e os curdos, e iniciou contatos com o presidente turco. Posicionou tropas em locais estratégicos no norte da Síria e tenta mediar o conflito. A Rússia assume o papel que até então era desempenhado pelos EUA na região.

O presidente norte-americano talvez ampare a decisão de retirar as tropas da Síria na premissa de que os cidadãos do seu país desejem uma política exterior mais isolacionista. Uma em que os EUA não se metam em “problema dos outros”. Afinal, o país tem enviado tropas para combater em lugares distantes já há um bom tempo. O que talvez essa postura não considere, é que os EUA só chegaram a ocupar o lugar de única superpotência do planeta porque, a partir da 2ª Guerra Mundial, souberam defender seus próprios interesses no xadrez geopolítico global. Decisões implicam em consequências. Somente o tempo indicará quais as repercussões geopolíticas das decisões do Presidente Trump.




OS SETENTA ANOS DA REPÚBLICA POPULAR DA CHINA

Em 1.º de outubro de 2019 a República Popular da China completou 70 anos. Nessa data, em 1949, Mao Tsé-tung discursava na Praça Tiananmen, proclamando a vitória do movimento revolucionário que comandava. Iniciava-se a fase em que o povo chinês, de História milenar, passaria a ser governado pelo Partido Comunista Chinês.

O desfile militar em comemoração da data, cuidadosamente preparado, procurou mostrar uma China militarmente poderosa e unida sob a liderança do presidente Xi Jinping. O ardor patriótico e o orgulho nacional são as mensagens que o desfile quis transmitir ao público interno do país e ao mundo.

Mas a verdade é que o aniversário de 70 anos da vitória comunista chegou com a China num cenário geopolítico desafiador para as suas lideranças. O desafio mais evidente é a questão de Hong Kong.

Antiga colônia inglesa, Hong Kong tem o status de “região administrativa especial” desde o acordo que, em 1997, devolveu a cidade à soberania da China. No acordo, a potência asiática comprometeu-se a manter a política de “um país, dois sistemas”, garantindo uma série de liberdades sociais, políticas e econômicas que inexistem na China continental.

Acontece que a população de Hong Kong percebe uma crescente ingerência do governo central. Esse sentimento desencadeou, em 2014, uma série de manifestações que ficaram conhecidas como “revolução dos guarda-chuvas”. As manifestações prolongaram-se por quase três meses. Este ano, a partir do início de julho, milhões de manifestantes saíram novamente às ruas para protestar. A causa inicial das manifestações, pressionar o governo local a retirar a lei que autorizava extradições para a China continental, serviu de estopim para uma série de outras reivindicações, que retomam a pauta de defesa da democracia dos protestos de 2014.

Para analisar o dilema que o governo chinês enfrenta ao responder aos protestos em Hong Kong vou me socorrer do general francês André Beaufre. O militar ensinou em seu livro Introdução à Estratégia, de 1963, que o “impulso estratégico”, ou seja, a capacidade que um Estado tem de atuar com maior ou menor intensidade em face de um desafio, depende diretamente de quatro fatores: liberdade de ação, forças materiais, forças morais e tempo disponível. Forças materiais, forças morais e tempo disponível não faltam ao governo chinês. O que lhe é escassa, em relação a Hong Kong, é a liberdade de ação. A imprensa repercute todos os acontecimentos na cidade praticamente em tempo real. O trauma do massacre da Praça Tiananmen, em 1989, está ainda presente na sociedade internacional. A repercussão dos acontecimentos em Taiwan também preocupa. Assim, o governo chinês “pisa em ovos” e tenta fazer prevalecer uma narrativa que confere aos manifestantes uma postura impatriótica, violenta e subordinada a interesses internacionais.

Já em outro desafio enfrentado neste aniversário de 70 anos, o separatismo da província de Xinjiang, terra da minoria étnica islâmica uigur, o fator “liberdade de ação” é muito mais favorável aos chineses. Isolada no oeste chinês, na Ásia Central, essa região recebe pouquíssima atenção do restante do mundo quando comparada com Hong Kong. Apenas informações dispersas, sobre “campos de reeducação” onde milhares, se não milhões, de uigures estariam internados, além de acusações da criação de um avançado sistema de vigilância social, chegam ao Ocidente.

A questão de Taiwan é bem mais complexa, por colocar a China e os EUA em lados opostos. A ilha, que a imensa maioria dos países do mundo, incluídos os EUA, reconhece ser, de direito, parte do território chinês, mantém-se, de facto, soberana, com governo próprio. Para a China, essa é uma situação inadmissível, que só perdura em razão da política norte-americana de relações com a ilha. Apesar de não reconhecer seu governo e de não manter relações diplomáticas oficiais, os EUA continuam a vender armas e a proteger a ilha contra “qualquer tentativa de se determinar o futuro de Taiwan pelo uso da força, incluindo-se aí embargos e boicotes”.

Ao tratar de Taiwan, e relembrando a importância dos mares para o comércio internacional, convido o leitor a consultar um mapa da China. Observe sua costa para o Oceano Pacífico. Compare com a costa brasileira para o Atlântico. Notou a diferença? A saída brasileira para o mar é completamente livre. A saída da China para o Pacífico é bloqueada por inúmeros pontos controlados por países adversários. Ao Norte, a saída pelo Mar Amarelo é bloqueada pela Península Coreana e, em seguida, pelo Japão. Mais ao sul, na altura de Xangai, pelo Mar do Leste da China, a saída é bloqueada por uma cadeia de ilhas, também japonesas, chamadas Ryukyu, onde se destaca Okinawa, sede de parte das tropas norte-americanas estacionadas no Japão. Prosseguindo para o sul, a saída é bloqueada por Taiwan, definida pelo general MacArthur como “um porta-aviões que não se pode afundar”. A frase é autoexplicativa da importância geoestratégica da ilha para os norte-americanos. Finalmente, no Mar do Sul da China, a saída é atravancada pelos países vizinhos, Filipinas, Brunei, Malásia e Vietnã, com os quais a China disputa a soberania de várias ilhotas, bem como a soberania do mar e a exclusividade da exploração econômica.

A incômoda situação da China em relação ao Oceano Pacífico é a causa da grande ênfase que o país tem dedicado ao desenvolvimento de sua Marinha. Já são cerca de 300 navios e o país está produzindo seu terceiro porta-aviões, o primeiro de fabricação própria.

Como se vê, são muitos os desafios neste 70.º aniversário. Também poderiam ser listados a manutenção do crescimento econômico, os problemas do acentuado envelhecimento da população, a guerra comercial com os EUA e a ascensão da Coreia do Norte ao status de potência nuclear. Mas isso fica para uma próxima conversa.




GEOPOLÍTICA E AMAZÔNIA

“Geopolítica é a arte de aplicar o poder aos Espaços Geográficos”

Carlos de Meira Mattos

A frase do General Meira Mattos sintetiza o objeto da Geopolítica: a arte de aplicar o poder aos espaços geográficos. De saída, peço ao leitor que tenha a Amazônia em mente ao considerar o “espaço geográfico”, na leitura deste artigo. Já quando pensar sobre o “poder” constante na definição de Meira Mattos, considere que este pode ser aplicado aos espaços geográficos de várias formas: ser exercido por intermédio da política; ser imposto pela força das armas; ser demonstrado pela força das imposições econômicas, ou mesmo, pela força da cultura, da propaganda, das correntes majoritárias de pensamento.

A Amazônia é uma imensidão. Possui uma biodiversidade incrível, com espécies de plantas e animais contadas nas casas dos milhares ou, até mesmo, dos milhões. Sua influência sobre o clima do continente é grande e suas reservas de água potável, enormes. Sua área gigantesca, de 5,5 milhões de Km2 (4,2 milhões dos quais em território brasileiro), atravessa quase completamente a América do Sul em sua porção centro-norte, do Oceano Atlântico à Cordilheira dos Andes, ocupando áreas em 9 países.

Oito desses países, Brasil, Bolívia, Equador, Peru, Colômbia, Venezuela, Guiana e Suriname formam o que poderia ser chamado de Pan-Amazônia. A eles se une a França (não podemos nos esquecer que a Guiana Francesa é um território francês na América do Sul) no grupo de governos que detém a legitimidade para aplicar o poder político na área delimitada por suas fronteiras.

Mas, quando se trata da aplicação do poder econômico, essas fronteiras têm seu papel relativizado. A globalização da economia, com a consequente integração e interdependência causada pelos fluxos de capitais, bens e serviços, tecnologias e pessoas, cria tensões e interesses também em escala global. Questões que antes poderiam ser resolvidas de forma local, agora podem influenciar, economicamente, diversos outros países e empresas transnacionais que distribuem sua operação por diferentes países do mundo, na chamada cadeia global de valor. Países e empresas que se sentirão impelidos a aplicar seu poder econômico na defesa de seus interesses, mesmo que isto signifique ignorar fronteiras políticas. Por mais que a legitimidade deste tipo de imposição seja discutível, certamente o leitor poderá se lembrar de vários exemplos da aplicação do poder econômico por parte de empresas ou países nas condições mencionadas.

A aplicação do poder militar é muito mais facilmente caracterizada. No caso da guerra, na clássica definição de Clausewitz, trata-se da continuação da política com a utilização de outros meios. Ou seja, pela coerção militar um Estado impõe a outro a sua vontade, de forma que seus objetivos políticos sejam atingidos. Mas é importante lembrar que a força das armas pode também ser imposta por entidades não estatais, como grupos terroristas. As FARC, na Colômbia; o denominado Estado Islâmico, em várias partes do mundo; e o Boko Haram, na África, são alguns exemplos famosos.

Contudo, a mais sutil e, atualmente, mais frequente forma de aplicação – ou tentativa de aplicação – de poder sobre um espaço geográfico é aquela que ocorre no chamado campo psicossocial, ou seja, pela força da cultura, da propaganda e das correntes majoritárias de pensamento. Não há dúvida, por exemplo, que existem hoje algumas “megatendências”, que são os movimentos das massas populacionais em direção a uma nova maneira de pensar ou agir, mais ou menos uniforme, em relação a determinado assunto ou aspecto da vida em sociedade. As mudanças climáticas e a escassez de recursos naturais indispensáveis à vida humana são dois exemplos desses tipos de assuntos que mobilizam as massas a agir. E essa mobilização toma vulto antes inimaginável por intermédio da repercussão que obtém por meio da internet e, mais especificamente, das mídias sociais. Estes movimentos, espontâneos ou provocados – não importa –, pressionam governos, pautam meios de comunicação, impulsionam Organizações Não Governamentais que, por sua vez, passam a impor que as ações dos governos e das sociedades daquele espaço geográfico sejam coerentes com aquela determinada pela megatendência em voga.

As quatro formas de aplicação de poder aos espaços geográficos descritas acima podem ser vistas todos os dias, em diferentes partes do mundo. Basta folhear as páginas dos jornais ou consultar a internet: da ação da Rússia na Ucrânia às disputas que ocorrem no Mar do Sul da China; da guerra civil no Iêmen às tensões na Caxemira; da guerra comercial entre a China e os EUA ao embargo imposto sobre o Irã e sobre a Coreia do Norte; do terrorismo do Boko Haram na Nigéria ao retorno das FARC à luta armada na Colômbia; e das acusações de interferência russa nas eleições norte-americanas às acusações que a China faz de que há interferência externa insuflando os protestos em Hong Kong. Em maior ou menor grau, diretamente ou por interpostos grupos, cada um destes conflitos pode ser explicado sob o prisma da geopolítica.

Finalmente, retorno à Amazônia. Não para responder, mas para perguntar. Nós, brasileiros, achamos que ela está imune às disputas geopolíticas? Mesmo ela ocupando um papel de destaque quando se fala em ecologia, recursos naturais, biodiversidade, mudanças climáticas? Devemos crer que não há motivações políticas, econômicas ou psicossociais suficientes para que outros Estados ou entidades não estatais se sintam compelidos a atuar sobre ela?

As respostas a essas perguntas são vitais para a defesa dos interesses de todos os brasileiros. Isso porque, se em uma disputa geopolítica um lado sabe o que está fazendo e o porquê, enquanto do outro lado a população nem ao menos sabe o que está em jogo, o resultado dificilmente será favorável ao lado que ignora.




TAIWAN E A VINGANÇA DA GEOPOLÍTICA


“Taiwan é um porta-aviões que não se pode afundar”. Atribui-se esta frase ao General Douglas McArthur, comandante das tropas norte-americanas no Teatro de Operações do Pacífico durante a II Guerra Mundial. Os navios-aeródromo (porta-aviões) capitaneiam as forças navais utilizadas para o controle de áreas marítimas. Assim, a metáfora de McArthur resume a importância geopolítica atribuída àquela ilha: sua posse garante o controle dos mares ao seu redor, os mares da China Oriental, do Sul da China e das Filipinas.

As tensões na região voltaram a se elevar em razão da decisão do Departamento de Estado dos EUA de aprovar uma venda de material de emprego militar para Taiwan, no valor de 2,2 bilhões de dólares. A venda ainda tem que ser aprovada pelo congresso norte-americano, mas parece improvável que venha a ser desautorizada. A transação incluiria 150 carros de combate (tanques) Abrams M1A2T, 250 unidades de tiro do míssil antiaéreo Stinger, além de diferentes tipos de metralhadoras e veículos de manutenção, dentre outros equipamentos. Trata-se de material moderno, capaz de aumentar substancialmente a capacidade militar de Taiwan.

O governo chinês reagiu imediatamente. A agência de notícias oficial Xinhua transcreveu um comunicado do governo informando que as vendas de armas dos EUA para Taiwan são uma “grave violação do direito internacional, de normas básicas das relações internacionais, do princípio de uma única China e de três comunicados conjuntos entre os dois países…”. O comunicado ainda informou que a China considera que sua soberania e sua segurança nacional seriam afetadas pela venda e que o governo chinês imporia sanções às empresas que negociassem material de emprego militar com Taiwan.

Em 1949, depois de quase vinte anos de combates, Mao Tse Tung tomou o poder na China, saindo vitorioso em sua revolução comunista. O governante derrubado, Chiang Kai-Shek, fugiu com seu governo para a ilha de Taiwan. Desde então estabeleceram-se, de facto, dois governos. A República Popular da China, comunista, e a República da China (Taiwan), capitalista. O reconhecimento internacional de Taiwan foi escasseando na medida em que o tempo passava e o regime comunista chinês se consolidava. Em 1971, a ONU passou a reconhecer a China, ao invés de Taiwan. Em 1974, foi a vez do Brasil. Os EUA reconheceram a China em 1979. Todos esses atos formais de reconhecimento significaram que, para estes países e organismos internacionais, a China é única e Taiwan não constitui um país independente. Atualmente, apenas dezessete países no mundo, além do Vaticano, reconhecem Taiwan como um estado soberano. Na América do Sul, o Paraguai é o único dentre esses países.

Assim, para os chineses, como os EUA não reconhecem e não mantêm relações formais com o governo de Taiwan, o fato de eles fornecerem armamentos para a ilha é inadmissível. Tal apoio é considerado uma grave afronta e a China julga estar amparada pelo direito internacional ao condenar veementemente a atitude norte-americana.

Mas, na disputa de interesses entre as potências, as coisas não são tão simples. No mesmo dia em que as relações entre EUA e China foram normalizadas, em 01 de janeiro de 1979, os EUA promulgaram a Lei de Relações com Taiwan que, dentre outras coisas, estabelece que “para ajudar a manter a paz, a segurança e a estabilidade no Pacífico Ocidental”, mesmo não mantendo relações diplomáticas oficiais ou não reconhecendo Taiwan como um país soberano, é política dos EUA fornecer armamentos para que Taiwan possa prover sua autodefesa. Além disso, a lei estabelece que qualquer tentativa de se determinar o futuro de Taiwan pelo uso da força, incluindo-se aí embargos e boicotes, será considerada pelos EUA uma “séria ameaça à paz e a segurança do Pacífico Ocidental” e, consequentemente, uma “grave preocupação” para os EUA.

“Geopolítica é destino”, alguém poderia dizer, brincando com o título de um dos livros do General Meira Mattos (Brasil: Geopolítica e Destino) para iniciar uma explicação sobre porque a questão de Taiwan permanece tão complexa e sem solução




TENSÕES NO GOLFO PÉRSICO

O Irã é um país governado, desde a Revolução de 1979, por religiosos da corrente islâmica xiita. E, especialmente após a chamada Primavera Árabe de 2011, posiciona-se em defesa dos grupos xiitas de todo o Oriente Médio, normalmente contrapondo-se à outra corrente do islamismo: os sunitas. Assim, o país apoia os Houtis no Iêmen, país que enfrenta uma guerra civil, considerada pela ONU “a maior crise humana da atualidade”. Também se posiciona em favor de reformas políticas no Bahrein, onde uma maioria xiita é governada por uma monarquia sunita. A Guarda Revolucionária iraniana apoiou decisivamente o regime de Bashar Assad na Síria, contra a oposição armada sunita, além de sustentar grupos xiitas no interior do Iraque, país que está completamente fragmentado desde a queda de Saddam Hussein.

A Arábia Saudita, país governado por uma monarquia wahabista, uma corrente sunita, disputa com o Irã a liderança regional. A relação entre os dois países se deteriorou significativamente nos últimos anos, especialmente após a execução do clérigo xiita Nimr al-Nimr, na Arábia Saudita, e em razão da guerra civil que vem sendo travada no Iêmen, uma verdadeira “guerra por procuração”, com cada um dos países apoiando um dos lados no conflito.

O governo de Israel considera que o Irã representa uma constante ameaça ao país, especialmente em razão do apoio dos iranianos ao grupo Hezbollah. O Primeiro Ministro Netanyahu já afirmou que Israel não aceitará que o Irã se torne uma potência nuclear.

Os interesses geopolíticos que cercam a região do Golfo Pérsico são enormes. Por ali, transitam as riquezas do Iraque, Kuwait e Emirados Árabes, além do Bahrein e do Catar. O território do Irã constitui-se em verdadeira ponte a unir o Mar Cáspio ao Oceano Índico.

É nesse contexto complexo e conturbado que as tensões no Golfo Pérsico mais uma vez se elevam, e o espectro da guerra volta a rondar a região. No dia 13 de maio, a Arábia Saudita denunciou a sabotagem de dois de seus navios petroleiros no Estreito de Ormuz. Apenas dois dias depois, Aeronaves Remotamente Pilotadas, carregadas com explosivos, atingiram poços de petróleo perto de Riad, a capital da Arábia Saudita. Os atos terroristas foram assumidos pelos Houtis, grupo Iemenita apoiado pelo Irã.

Reagindo aos acontecimentos, o Secretário de Estado dos EUA, Mike Pompeo, declarou que milícias xiitas no Iraque, patrocinadas pelo Irã, estariam ameaçando tropas americanas estacionadas naquele país. Disse ainda que, caso os militares fossem atacados, os EUA se sentiriam obrigados a reagir, sem necessidade de coordenar as ações com o governo iraquiano. Ao mesmo tempo, a Força-Tarefa liderada pelo porta-aviões USS Abraham Lincoln, reforçada por bombardeiros B-52, foi enviada ao Golfo Pérsico. Mesmo assim, exatamente um mês depois, no dia 13 de junho, dois navios petroleiros voltaram a ser atacados no Golfo de Omã, desta vez atingidos por minas. Mais uma vez, os EUA responsabilizaram o Irã pelo ataque.

Na última quinta-feira, ocorreu um incidente ainda mais grave do ponto de vista militar: o Irã abateu uma Aeronave Remotamente Pilotada RQ-4 Global Hawk, da Força Aérea norte-americana. Os iranianos alegam que a aeronave de reconhecimento estava no espaço aéreo do país. Os EUA negam, alegando que voava em espaço aéreo internacional.

Este fato agrava as tensões, que atingem um ponto culminante de uma escalada que já vem desde o ano passado, quando os EUA se retiraram do acordo multilateral, estabelecido em 2015, em Viena, que impunha limites ao programa nuclear iraniano em troca do alívio das sanções econômicas. Desde então, os EUA reimpuseram uma série de sanções unilaterais que afetaram transações financeiras, importações de matérias primas, inclusive petróleo, o setor automotivo e a aviação comercial. Apesar dos outros países integrantes do acordo, Reino Unido, França, Alemanha, China e Rússia, terem se negado a acompanhar as sanções norte-americanas, mantendo o respaldo ao tratado em 2015, o fato é que os embargos acabam por afetar inclusive os negócios feitos por eles, já que as empresas e países podem sofrer retaliações norte-americanas caso comerciem com Teerã.

Depois de aguardar por um ano por uma solução que contornasse os embargos americanos, no início de maio, ou seja, coincidentemente com o início dos diversos incidentes envolvendo os navios petroleiros, o Irã resolveu dar um ultimato aos europeus e chineses. Anunciou que suspenderia imediatamente o trato de limitar os estoques de água pesada e urânio enriquecido e que, se em sessenta dias os demais países signatários do acordo não encontrassem soluções para driblar as sanções norte-americanas, renunciaria a outros compromissos limitantes de suas capacidades nucleares, acordados em 2015.

Vê-se que a estratégia iraniana parece ser, por um lado, pressionar os países europeus e a China, para que estes, por sua vez, atuem no sentido de fazer os EUA voltarem ao acordo multilateral. Por outro lado, as ações contra os petroleiros também parecem ser uma tentativa de forçar os norte-americanos a se sentarem à mesa de negociações.

Mas se há um ensinamento que o estudo da história militar apresenta recorrentemente é o de que quando as tensões escalam, as coisas podem muito facilmente sair do controle. É o que parece ser o caso do ataque iraniano à ARP Global Hawk.

Imediatamente após o ataque, o Presidente Trump foi ao Twitter e escreveu que o Irã tinha cometido um “erro muito grande”. Em seguida, talvez percebendo que o cheiro de pólvora já estava perigosamente forte, atenuou a retórica afirmando que não acreditava que o ataque tivesse sido proposital.

Os próximos acontecimentos dependerão da habilidade dos envolvidos na condução da crise. O ataque à aeronave norte-americana complicou muito uma situação que já era extremamente complexa. Qualquer fagulha pode acender a fogueira da guerra.

 




A LIDERANÇA NO C2-50

O C2-50 é uma referência para os cavalarianos. Desde a entrada na Arma, na Academia Militar das Agulhas Negras, os cadetes ouvem falar do velho manual – já não mais em vigor – que tratava da Instrução Tática Individual e das Unidades Elementares da Cavalaria.

O exemplar que tenho aqui comigo, uma edição de 1959, é do meu pai, Aspirante da Turma de 1965, formado na Cavalaria Hipomóvel. Foi emprestado com a recomendação expressa de que eu o devolva em perfeito estado. Era seu manual de cabeceira nos tempos de Tenente, no 3º Regimento de Cavalaria, em São Luiz Gonzaga, RS.

A frase mais famosa do manual, repetida inúmeras vezes nas Unidades de Cavalaria, é a constante no parágrafo 18, que trata de “certas regras que o Soldado deve conhecer”. Lá se encontra, na letra “c”: “se não existirem mais oficiais ou graduados, o mais bravo assume o comando.”

A frase soa aos jovens cavalarianos como o paradigma do espírito da Arma. O estímulo à audácia, o amor aos lances perigosos, à bravura. E é exatamente isto que ela é. Mas não só isto. A frase está inserida em um contexto em que conceitos de liderança são apresentados aos leitores. A perenidade da admiração de sucessivas gerações de militares aos ensinamentos do C2-50 está justamente na rara felicidade com que seus autores tratam desses conceitos de liderança, que permanecem atuais até os dias de hoje.

Abaixo, serão apresentados alguns trechos que exemplificam a incrível atualidade do manual.

 “6. O primeiro objetivo que a si próprio deve impor um instrutor é o desenvolvimento do moral de seus cavaleiros.

 … É a confiança do cavaleiro em suas forças, na sua coragem no valor de suas armas na justeza do seu tiro e no valor de seu chefe, que constituem o alicerce de seu moral.”

Logo no 6º parágrafo do manual, fica clara a importância da liderança. Atribui-se ao instrutor, que no caso se confunde com o comandante das pequenas frações, a responsabilidade de desenvolver o moral do soldado, o que só se conseguirá pela “confiança no valor do seu chefe”.

“17. Em todos os postos da escala hierárquica, o chefe deve estar compenetrado de que a primeira e mais bela de suas missões é dar o exemplo.”

Vejamos o que “dar o exemplo” significa. Como se sabe, a liderança é um processo de influência interpessoal do líder sobre os liderados. Essa influência que o líder exerce se dá pelo estabelecimento de vínculos afetivos entre os indivíduos, de modo que os liderados passam a crer que o líder saberá conduzir os destinos do grupo nas mais variadas situações.

Essa confiança só se estabelece quando são identificados no líder três aspectos cruciais para a liderança. O primeiro é a proficiência profissional, ou seja, o líder sabe o que fazer. O segundo é o senso moral, que significa que é possível se identificar na personalidade do líder os valores morais caros ao grupo que lidera. O último aspecto são as atitudes adequadas, que evidenciam que o líder efetivamente emprega seus conhecimentos e valores em ações que conduzem o grupo ao objetivo perseguido pela Instituição a que pertencem.

“Dar o exemplo” significa encarnar os três aspectos citados. Significa “ser”, “saber” e “fazer”. Isto era válido em 1959 e continua válido até hoje.

“18.a. a falta de ordens em nenhum caso justifica a inação.

b. a iniciativa consiste em atuar, na falta de ordens, segundo a vontade do chefe.”

 

Aqui está a se falar da iniciativa e do conceito de “intenção do comandante”, ambos em vigor na doutrina atual. Ou, para citar a moderna doutrina norte-americana, do Mission Command [1]. Os comandantes em todos os níveis, assim como seus subordinados, devem atuar sempre no sentido de se fazer cumprir a intenção de seu comandante. Assim, no caso de uma situação em que se encontre atuando isolado, ou em que falhem os meios de comando e controle, deverá atuar com iniciativa e por conta própria, sempre objetivando o cumprimento da missão. Está se falando de planejamento centralizado e execução descentralizada e se estimulando a iniciativa, outorgando aos subordinados a liberdade de ação para se decidir a melhor forma de cumprir a missão.

Muitos outros trechos do C2-50 poderiam ter sido selecionados, mas creio que os destacados acima são suficientes para mostrar o porquê da importância do velho manual. Que este texto sirva de estímulo aos cavalarianos mais jovens. Folheiem o C2-50 [2], leiam com calma alguns trechos. Vocês estarão mergulhando nas origens da Arma Ligeira, entenderão melhor a formação do espírito militar que nos une e nos torna diferentes.

[1] Mission Command pode ser definido, em rápidas palavras, como um estilo de liderança militar adotado pelo Exército dos EUA. Oriundo da antiga escola Prussiana, o conceito prevê planejamento centralizado e execução descentralizada. Atribui grande importância à compreensão da intenção dos comandantes para que se possa conceder liberdade de ação aos subordinados para que atuem conforme seus próprios planejamentos.

[2] Disponível na Biblioteca Digital do Exército – http://bdex.eb.mil.br/jspui/handle/1/520?mode=full