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A era dos carros de combate – como prova a guerra na Ucrânia – ainda não acabou

 

1. Introdução

As imagens da guerra atualmente em curso na Ucrânia, de carros de combate (CC) destruídos por armas anticarro e por “drones camicases”, divulgadas à exaustão na imprensa e nas mídias sociais, criaram no grande público, pouco afeito às táticas, técnicas e procedimentos do combate blindado, a impressão de que os CC tinham se tornado alvos fáceis, e por isso mesmo, obsoletos. Dessa forma, estavam dadas as condições para que analistas apressados e normalmente com pouco conhecimento de causa decretassem a “morte dos carros de combate”.

Não foi a primeira vez que isso aconteceu. Ao fim da Primeira Guerra Mundial, autoridades de defesa britânicas anunciaram que o carro de combate estaria morto ou morrendo, e que os CC nunca mais seriam usados. Os britânicos dissolveram suas unidades blindadas em 1928. O Ministério da Guerra, explicando a decisão, declarou que “tanques não eram mais uma ameaça[1]”.

Em 1936, as instruções de blindados do Exército francês afirmavam: “Na ofensiva, deve-se enfatizar que hoje a arma antitanque é, para o tanque, o que a metralhadora foi para a infantaria durante a Guerra Mundial”. Três anos depois, um livro best-seller de um general da reserva do exército francês argumentou que o CC havia falhado como uma arma inovadora, já que “uma arma anticarro de 75 ou 77 milímetros, que custava 150 francos, poderia destruir um CC que custava um milhão de francos.” (HENKIL, 2022). Um ano se passou e, em maio de 1940, os CC alemães lideraram com enorme êxito a invasão da França.

Em 1960, ao perceber que o anuncio do fim dos CC era uma afirmação recorrente, Sir Basil Liddell Hart escreveu que, “de tempos em tempos, durante os últimos 40 anos, autoridades anunciaram que o CC estava morto ou morrendo. Mas, a cada uma dessas vezes, ele ressurgiu da sepultura que lhe haviam consignado”[2].

Esse não é um fenômeno exclusivo dos blindados. Algo semelhante ocorreu com aeronaves de combate após o primeiro míssil superfície-ar se fazer presente no campo de batalha. O general da Força Aérea de Israel Ezer Weizman, famoso piloto de combate que foi comandante durante a Guerra dos Seis Dias de 1967, disse em 1975 que “o míssil havia dobrado a asa do avião.” Sete anos depois, com o auxílio de contramedidas eletrônicas e armamento apropriado, a força aérea israelense destruiu 19 baterias de mísseis superfície-ar sírias no Líbano sem sofrer uma única baixa. (HENKIL, 2022)

Isso deveria servir como uma advertência contra declarações prematuras de que sistemas de armas estão finalmente desatualizados.

Este texto tentará demonstrar que, mais uma vez, erraram aqueles que, ao testemunharem os acontecimentos atualmente em curso na Ucrânia, anunciaram a morte dos CC. Ainda não será dessa vez.

2. As ameaças aos carros de combate

A história dos CC tem sido uma constante disputa entre sua blindagem e sua capacidade de engajar alvos a grande distância, com rapidez e precisão, de um lado, e as armas anticarro que lhes contrapõem, de outro. Quando os carros surgiram, no Somme, em 1916, suas blindagens resistiam às metralhadoras alemãs, mas não às granadas de artilharia. Rapidamente, os alemães desenvolveram um fuzil antitanque, com um projetil maior e mais pesado, que tinha a capacidade de perfurar a blindagem. Trata-se da mesma disputa de sempre, como a existente entre a espada e o escudo, entre a catapulta e a fortificação, entre o projetil e o colete balístico.

Essa competição continua desde então. À medida que as ameaças foram se aprimorando, as blindagens também se aperfeiçoaram, desde as simples chapas de aço, passando pelas blindagens compostas, chegando às reativas, até as mais modernas, as chamadas blindagens ativas.

Atualmente, o leque de ameaças ao carro de combate é enorme: helicópteros armados com armas anticarro, CC e outros blindados inimigos, mísseis, “drones camicases” (loitering munitions), projéteis de orientação terminal dispersos por bombas de aeronaves, foguetes, projéteis de artilharia, munições cluster, minas anticarro, aí se incluindo as modernas minas de efeito direcionado, e armas leves, como granadas anticarro lançadas por fuzil ou por lançadores de granadas.

Em contrapartida às ameaças, surgiram os equipamentos de defesa ativa, que são aqueles que dispõem de munições ou módulos explosivos que reagem para interferir ou destruir os projéteis que são direcionados contra o carro ou veículo blindado no qual estão instalados. (MATEOS, 2018). Um exemplo desse tipo de equipamento é o sistema Rafael Trophy Active Protection System, que foi instalado em diversos CC, tais como o Merkava israelense, a família Abrams norte-americana, o Leopard 2A8 alemão e, especula-se, também estará na próxima versão do Challenger III britânico.

De acordo com a informação do fabricante, o sistema cria “uma bolha de neutralização” ao redor do veículo. Ele detecta, classifica e engaja rapidamente todas as ameaças conhecidas, incluindo mísseis, foguetes e granadas alto-explosivas. O sistema ainda tem a capacidade de localizar a origem da ameaça, permitindo que a tripulação responda ao fogo de forma eficaz[3].

Figura 1 – Funcionamento do Sistema – Fonte Reddit, adaptado pelo autor

Vê-se, portanto, que não há nenhuma razão para se acreditar que as novas ameaças, representadas por veículos aéreos não tripulados, por exemplo, não possam ser sobrepujadas por novas e modernas alternativas de blindagens e outros tipos de defesa ativa.

3. A relevância do Carro de Combate no campo de batalha

A invasão russa à Ucrânia, desencadeada em 24 de fevereiro de 2022, demonstrou com clareza e sem qualquer margem para outra interpretação, que a guerra de alta intensidade, o confronto cinético entre massas de exércitos regulares, ainda é uma realidade inescapável. No ambiente caótico do combate, as características de poder de fogo, ação de choque e proteção blindada, além da velocidade, conferidas aos exércitos por suas tropas blindadas, ainda são essenciais.

A essência do emprego do CC está na penetração das linhas defensivas inimigas, permitindo o aprofundamento do avanço das tropas atacantes e a abertura e exploração de brechas que redundarão no desequilíbrio de seu dispositivo. O uso de uma massa de blindados se mostrou essencial nas principais batalhas de alta intensidade do século 20. E não é diferente agora, no momento em que escrevo este artigo, quando as forças ucranianas iniciam uma operação ofensiva com o objetivo de tentar expulsar o invasor russo de seu território.

Lançar-se contra uma posição fortificada, como é o caso da posição defensiva russa, com trabalhos de organização do terreno realizados durante meses, na presença de obstáculos, campo de minas, setores de tiro delimitados, tiros de artilharia amarrados, itinerários de contra-ataques definidos e ações dinâmicas de defesa treinadas, em um ambiente em que o defensor possui meios de inteligência de sinais e de imagens que lhe permitem ampla consciência situacional, não é, por óbvio, uma tarefa simples.

Os comandantes ucranianos conhecem perfeitamente essa dificuldade. E por isso sabem que não podem prescindir dos blindados. Essa é a razão pela qual o presidente da Ucrânia, Volodimyr Zelenski, tanto insistiu – e continua insistindo – junto a seus parceiros ocidentais, pelo envio de caros de combate e demais veículos blindados à Ucrânia.

Em atendimento a essas demandas, diversos países se mobilizaram. Os EUA prometeram o envio de seus carros M1 Abrams. Os britânicos enviaram seus Challenger II. Alemães, poloneses, noruegueses, finlandeses, espanhóis e portugueses enviaram seus Leopard, nas versões I e II. Além de diversos outros países europeus que ainda detinham equipamentos de origem soviética, e os estão também enviando aos ucranianos. Trata-se de um enorme esforço, visto que os próprios países europeus da OTAN, via de regra, não dispõem de grandes quantidades de CC. Isso os está obrigando a acelerar seus programas de aquisição desse tipo de equipamento, para repor seus próprios inventários e manter – e até mesmo ampliar – suas capacidades operacionais.

Assim, a Polônia firmou um acordo para comprar centenas de VBC M1A2 Abrams SEPv3, além de outros blindados da mesma família, dos Estados Unidos [5]. Na mesma direção, a Romênia divulgou a intenção de comprar 54 unidades do mesmo CC norte-americano [6].  Os alemães, por sua vez, anunciaram a compra de novos Leopard [7]. Os britânicos estão estudando a ampliação de sua frota. Os franceses, também encomendaram novos carros Leclerc para seu exército[8].

Como demonstram os exemplos acima, as potências europeias, alarmadas pela guerra no velho continente, estão investindo na ampliação e modernização de suas frotas de carros de combate. Isso sem falar nos diversos projetos de CC autônomos e semiautônomos, que já estão em fase de desenvolvimento nas principais potências militares do planeta.

4. Conclusão

A guerra, para Clausewitz, nada mais é do que “um ato de força para obrigar o inimigo a submeter-se a nossa vontade”. E, como a guerra em curso no território ucraniano nos lembra, suas características totais permanecem, pois ela é travada em alta intensidade, com toda a “violência, ódio e animosidade” que a compõe.

Travar e vencer essas guerras de alta intensidade, em nome de seus povos, é a missão primordial dos exércitos nacionais. Para isso, desde o tempo de paz, devem manter um poder de combate crível, composto das capacidades militares necessárias para, em um primeiro momento, dissuadir eventuais adversários de agirem contra suas nações. Caso tal dissuasão falhe, deverão atuar decisivamente para garantir a integridade e os interesses nacionais. Para tanto, deverão, obviamente, ter construído, desde o tempo de paz, as capacidades militares necessárias.

É nesse contexto que a manutenção de forças blindadas e mecanizadas potentes, adestradas e compostas por um núcleo de soldados profissionais adestrados e motivados, é essencial. Elas serão a espinha dorsal da Força Terrestre em operações.

Afinal, sempre que os exércitos entrarem em combate eles deverão possuir uma tropa capaz de manobrar para obter vantagem sobre o inimigo, vencê-lo e sobreviver ao encontro. Para isso sempre serão necessários meios de proteção, poder de fogo e mobilidade adequados. O principal material de emprego militar para se alcançar isso ainda é – e continuará sendo em um futuro previsível – o carro de combate.

 

ESTE ARTIGO FOI ORIGINALMENTE PUBLICADO NA REVISTA AÇÃO DE CHOQUE, EDIÇÃO 21. LEIA A REVISTA COMPLETA, COM MUITO BONS ARTIGOS SOBRE O COMBATE DE BLINDADOS: https://www.calameo.com/read/007489941ce703935a1c5 

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[1] JP Harris, Men, Ideas and Tanks, British Military Thought and Armoured Forces, 1903-1939.

[2] Stuart Crawford, “Quality or Quantity? The Tank Conundrum”, UK Defence Journal, July 27, 2022, Quality or Quantity? The Tank Conundrum (ukdefencejournal.org.uk).

[3] https://www.rafael.co.il/worlds/land/trophy-aps/ Veja o vídeo do funcionamento do sistema em https://www.youtube.com/watch?v=KVma76ZQ2dQ&ab_channel=RAFAELAdvancedDefenseSystemsLtd

[4] https://apnews.com/article/technology-poland-district-of-columbia-business-5f1681545d1bbe41ea4fb40fe719b21e

[5] https://www.romania-insider.com/romania-abrams-tanks-purchase-2023

[6] https://www.reuters.com/world/europe/germany-aims-buy-18-leopard-2-tanks-545-mln-euros-source-2023-05-12/

[7] https://ukdefencejournal.org.uk/britain-considering-expanding-tank-fleet/

[8] https://www.thedefensepost.com/2023/01/16/france-leclerc-battle-tanks/ 

REFERÊNCIAS

CLAUSEWITZ, Carl Von. Da guerra. Disponível em https://www.amigosdamarinha.com.br/wp-content/uploads/2018/04/Da-Guerra-Carl-Von-Clausewitz.pdf Acesso em 27 Jun 2023

CRAWFORD, Stuart. The age of the tank is not yet over. Disponível em https://ukdefencejournal.org.uk/the-age-of-the-tank-is-not-yet-over/ Acesso em 27 Jun 2023

GUTIERREZ, Roberto. O futuro dos Tanques. Revista Ejercitos. Disponível em https://www.revistaejercitos.com/2018/11/11/el-porvenir-de-los-carros-de-combate/ Acesso em 27 Jun 2023

HENKIN, Yagil. The “Big Three” Revisited. Initial Lessons from 200 Days of War in Ukraine. Disponível em https://www.usmcu.edu/Portals/218/EXP_Henkin_BigThreeRevisited__PDF.pdf Acesso em 27 Jun 2023

MATEOS, Francisco. Sistemas de proteção ativa. Revista Ejercitos. Disponível em https://www.revistaejercitos.com/2018/09/16/sistemas-de-proteccion-activa/ Acesso em 27 Jun 2023

 

 




Seiscentos dias de guerra na Ucrânia

Hoje, segunda-feira, 16 de outubro de 2023, completam-se seiscentos dias da invasão russa à Ucrânia. Os combates entre ucranianos e russos continuam a acontecer de forma feroz na planície sul da Ucrânia e no leste do país. Os bombardeios russos se mantêm impiedosos, atingindo alvos de forma indiscriminada em todo o território ucraniano. Mas, a opinião pública mundial está concentrada em outra tragédia: a guerra entre Israel e o grupo terrorista Hamas.

Para os ucranianos, que veem sua contraofensiva obter resultados muito mais modestos do que o esperado pelos políticos e pela opinião pública ocidental, que apoia o esforço de guerra ucraniano e está ávida por boas notícias do campo de batalha, a explosão da violência na Terra Santa foi mais uma má notícia. O esforço de guerra ucraniano, totalmente dependente do apoio financeiro e material dos EUA e de seus aliados europeus, agora tem um competidor a dividir as atenções e recursos: o esforço de guerra israelense.

Muitas coisas surpreendentes aconteceram nos últimos seiscentos dias. A primeira delas, é termos chegado a esta data com a Ucrânia ainda combatendo. Quando, em 24 de fevereiro do ano passado, os russos invadiram o território internacionalmente reconhecido da Ucrânia, poucos poderiam prever que a resiliência das forças armadas e do povo ucraniano pudesse nos trazer à situação atual, de seiscentos dias de resistência. Afinal, tratava-se de um ataque em quatro direções estratégicas, duas delas tendo a capital, Kiev, como objetivo, feito por aquele que é considerado o segundo mais poderoso exército do mundo. A Ucrânia era presidida por um político inexperiente, em primeiro mandato, mal avaliado nas pesquisas, que, nos cálculos russos, não tinha condições de fazer face ao desafio e provavelmente fugiria do país. Para o presidente Putin e seu entorno, em duas ou três semanas, no máximo, o exército ucraniano seria batido e seria instalado no palácio presidencial de Kiev um novo governo, chefiado por um líder amigável aos russos, no estilo da vizinha Belarus e do seu eterno presidente Lukashenko.

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Como se sabe, nada disso aconteceu. O exército russo apresentou falhas de planejamento, liderança e execução das operações militares que eram inesperadas em razão de sua fama. O exército ucraniano, por sua vez, bem liderado, bem treinado e usando uma estratégia inteligente, além de táticas, técnicas e procedimentos de combate muito eficientes, conseguiu resistir ao ataque inicial russo, ganhando o tempo necessário para que o indispensável apoio internacional e financeiro começasse a chegar. A liderança política ucraniana, por sua vez, surpreendeu. O presidente Zelensky não fugiu, como esperavam os russos. Pelo contrário: fez o que se espera de um líder político de um país em guerra: galvanizou a vontade de lutar de seu povo, reunindo os apoios internos necessários ao esforço de guerra, ao mesmo tempo em que iniciou uma incessante e bem-sucedida campanha internacional, angariando apoios materiais e financeiros que já somam cifras da ordem de dezenas de bilhões de dólares.

A segunda surpresa foi o fortalecimento da OTAN. Há seiscentos dias, ninguém poderia prever que hoje a Finlândia seria o 31º membro da aliança atlântica, ou que a Suécia estaria às portas de se tornar o 32º. Os dois países renunciaram a políticas de neutralidade longevas e decidiram buscar abrigo no guarda-chuvas dissuasório da OTAN, em uma reação ao expansionismo da Rússia, país contra o qual os dois Estados nórdicos já guerrearam no passado. A resposta praticamente uníssona da Aliança é a antítese do que foi expresso há menos de quatro anos pelo presidente da França, Emmanuel Macron, que afirmou literalmente que a OTAN estava em morte cerebral, no dia 07 de novembro de 2019. O reavivamento da ameaça da guerra contra um inimigo comum foi responsável pela saída da Aliança do estado vegetativo em que se encontrava, de acordo com diagnóstico feito pelo líder francês.

A terceira constatação surpreendente foi a da maior liberdade de ação e autonomia do grupo de países que passou a receber a genérica denominação de “Sul Global”. Países africanos, latino-americanos, do grande Oriente Médio, do Sul e do sudeste asiático, com especial destaque para China e Índia, foram diretamente responsáveis por evitar que as sanções econômicas sem precedentes impostas pelos Estados Unidos, pela Europa e seus principais aliados levassem a Rússia ao colapso econômico. Afinal, se quarenta países sancionam a Rússia, cerca de 2/3 da população do mundo vivem em Estados que não o fazem.

Isso não significa que esses países apoiem a invasão russa. Em março do ano passado, em sessão de emergência da Assembleia Geral das Nações Unidas, 141 nações votaram a favor de uma resolução condenando a agressão da Rússia contra a Ucrânia, 35 abstiveram-se e apenas cinco votaram contra. No entanto, para muitos, esta é uma “guerra europeia”, que não lhes diz respeito, embora sofram as consequências, especialmente nos campos da segurança alimentar e energética. Isso foi expresso de maneira enfática pelo Ministro das Relações Exteriores da Índia, Subrahmanyam Jaishankar, ao afirmar que a Europa “pensa que os problemas da Europa são os problemas do mundo, mas que os problemas do mundo não são os problemas da Europa”. A conclusão mais evidente é a de que, se os Estados Unidos e a Europa não conseguiram levar tantos países a concordarem com suas políticas retaliatórias em relação à Rússia, é porque sua influência e poder globais estão a enfraquecer. Isso reflete um momento de mudanças na arquitetura global de poder, com profundas implicações nas relações entre os Estados.

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As três constatações acima são apenas algumas das que podem ser destacadas dentre tantas surpresas e reviravoltas da política internacional nesses seiscentos dias. Outras devem continuar a surgir, uma vez que, infelizmente, o flagelo da guerra parece não estar próximo do fim nos campos de batalha da Ucrânia.

Os russos e os ucranianos estão atualmente se enfrentando em uma feroz guerra de atrito, com a presente ofensiva ucraniana já chegando a seu ponto culminante e com o período chuvoso e de inverno a transformar o campo de batalha em um imenso lamaçal, que estabilizará as operações nos próximos meses. A guerra, portanto, continuará a cobrar seu enorme preço em vidas humanas e destruição.

A essa situação se some a deflagração da guerra entre Israel e Hamas, apenas no início, mas que, se vislumbra, também se estenderá por um longo período, com todo seu potencial de gerar ainda mais instabilidade no sistema internacional.

Os dois conflitos, separados geograficamente, estão interligados. Como dito no início deste texto, a guerra na Terra Santa tende a beneficiar a Rússia, embora os EUA e seus aliados digam que o apoio a Israel não afetará o apoio à Ucrânia. Mas, repercussões como uma possível crise no abastecimento de petróleo, em uma eventual escalada do conflito, podem ter consequências importantes no Teatro de Operações ucraniano. Isso sem falar nas surpresas e repercussões imprevistas, que assim como no conflito europeu, podem surgir da guerra na Faixa de Gaza.

As guerras em curso afetam terrível e profundamente as pessoas das áreas conflagradas, mas não deixarão ilesos os habitantes dos demais países do globo. Todos já estão sendo indiretamente afetados. E as coisas, infelizmente, não parecem estar destinadas a melhorar no curto prazo.

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Cáucaso em Transformação: Nagorno-Karabakh e suas Implicações Regionais

Em apenas dois dias, com rápidos movimentos de tropas apoiadas por fogos de artilharia, o exército do Azerbaijão retomou o controle sobre toda a região de Nagorno-Karabakh, forçando as lideranças da minoria armênia que controlavam aquele enclave montanhoso, localizado entre os territórios da Armênia e do Azerbaijão, a se renderem. Os azerbaijanos reconquistaram, assim, uma grande porção de territórios, que embora internacionalmente fossem reconhecidos como pertencentes ao Azerbaijão, na prática eram uma região autônoma mantida pelos separatistas, com apoio militar armênio, há cerca de três décadas, desde as guerras que se seguiram ao esfacelamento da antiga União Soviética.

Em 2020, foi travada uma guerra de seis semanas em que o Azerbaijão, fortemente apoiado pela Turquia, derrotou uma Armênia que reclamou não ter recebido o apoio que esperava de seus aliados russos. Como resultado, os azeris reconquistaram porções importantes do enclave, derrotando as forças separatistas e armênias, o que lhes permitiu cercar completamente a região.

As posições operacionalmente vantajosas conquistadas em 2020 permitiram que o Azerbaijão estrangulasse o fluxo logístico para Nagorno-Karabakh, em um cerco que se intensificou no final do ano passado e causou uma grave crise humanitária. O chamado “corredor Lachin”, por onde passa a principal via de transporte que liga o enclave à Armênia, e por intermédio dessa, ao resto do mundo, passou a ser rigorosamente controlado pelas tropas azerbaijanas, causando uma grave escassez de alimentos, medicamentos, produtos de higiene e combustível, o que redundou em uma grave crise humanitária na região.

Figura 1 – Corredor Lachin

Fonte – BBC

É importante destacar que o cessar-fogo de 2020, mediado pela Rússia, e cujo acordo estabeleceu a permanência de forças russas na região, como uma espécie de “tropas de paz”, estabelecia que era das forças russas a responsabilidade pelo controle do tráfego no corredor Lachin. Entretanto, os russos foram incapazes de impedir que o exército do Azerbaijão assumisse esse controle.

Esse é também um indício de que, para fazer valer sua vontade e reconquistar Nagorno-Karabakh em uma operação de apenas 48 horas, os azerbaijanos souberam escolher um momento que lhes favorecia. A guerra na Ucrânia atrai todos os esforços e atenções da Rússia. Assim, a “tropa de manutenção da paz” daquele país, que tinha por finalidade garantir o cessar-fogo acordado sob sua liderança após a guerra de 2020, foi incapaz de qualquer ação que impedisse a ofensiva do Azerbaijão. Houve, inclusive, baixas fatais dentre os militares russos que foram surpreendidos pelo fogo cruzado durante a ofensiva.

A incapacidade da Rússia de impedir a ofensiva do Azerbaijão também pode ser considerada um indicador do declínio da influência russa no sul do Cáucaso. Afinal, a mediação da questão entre a Armênia e o Azerbaijão concedia aos russos uma posição de relevância geopolítica, que eles perdem com o desenlace da crise.

As consequências políticas dos acontecimentos também estão sendo fortemente sentidas em Yerevan, capital da Armênia. Centenas de manifestantes saíram às ruas, furiosos com o governo, em especial com o primeiro-ministro Nikol Pashinyan, acusado de trair os habitantes de etnia armênia de Arstakh, o nome pelo qual Nagorno-Karabakh é conhecido naquele país. Embora o presidente do Azerbaijão, Ilham Aliyev, tenha afirmado que os direitos dos habitantes da etnia armênia seriam garantidos, dadas as circunstâncias históricas, muitas dessas pessoas se opõem veementemente a ficar sob governo azerbaijano, o que cria mais um problema humanitário com os deslocados pela guerra. A solução mais óbvia para essas pessoas deverá ser fugir para a Armênia. Não se descarta o agravamento da crise política naquele país, inclusive com a queda do governo de Pashinyan.

Outros dois países da região têm interesse nos acontecimentos de Nagorno-Karabakh: Turquia e Irã. Os turcos comemoram o resultado do Azerbaijão, um aliado histórico. O lema “dois países, uma nação”, enfatizado pelo presidente da Turquia, Recep Erdogan, é anterior ao seu mandato, e relembra a origem étnica comum das duas nações. Além de acordos na área militar, também são importantes as relações econômicas entre os dois parceiros. Um aspecto muito relevante dessa relação é o energético. O Azerbaijão é o maior fornecedor de gás natural para a Turquia. Os dois países operam em conjunto o gasoduto Transanatólio, que leva gás do Azerbaijão para a Europa via Turquia. Há planos para expansão da rede de gasodutos, incluindo uma iniciativa de trazer gás do Turcomenistão, aproveitando a necessidade de gás europeia, que aumentou muito em razão da guerra na Ucrânia e dos consequentes embargos europeus ao gás russo.

Figura 2 – Gasodutos

Fonte JAM News

O Irã, por sua vez, que possui uma rivalidade histórica com o Azerbaijão, tem visto com grande desconfiança o estreitamento das relações entre aquele país e Israel. Por outro lado, a crescente influência turca no sul do Cáucaso também preocupa os iranianos. É provável que o país tente salvaguardar seus interesses geopolíticos na região com uma postura ainda mais assertiva.

Como se vê, o sul do Cáucaso vive um momento de mudanças geopolíticas. E, como a história ensina, muitas vezes esses momentos são acompanhados por enorme turbulência.

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Estados Unidos, Japão e Coreia do Sul estabelecem os Princípios de Camp David

A reunião de cúpula que reuniu os líderes de EUA, Coreia do Sul e do Japão no último dia 18 de agosto, em Camp David, nos Estados Unidos, merece atenção. O mundo vive tempos de evidente acirramento das tensões geopolíticas e os três líderes tentam, ao aproximar ainda mais seus países, ganhar algumas vantagens estratégicas para os desafios que sabem que estão por vir, especialmente no contexto da disputa em curso entre EUA e China, que tem na região do Indo-Pacífico seu principal palco.

Inicialmente, é interessante destacar que os acordos trilaterais, divulgados ao término da reunião, só puderam acontecer porque Japão e Coreia do Sul têm conseguido uma maior aproximação e alinhamento sob os atuais governos de Fumio Kishida e Yoon Suk-yeol. As desconfianças nas relações entre os dois países são históricas, remontando as feridas da ocupação japonesa da península da Coreia, entre 1910 e 1945. Mas, as tensões geopolíticas do momento atual parecem ser de tal ordem desafiadoras que os problemas do passado estão sendo deixados de lado em nome de um maior entendimento.

Afinal, não faltam desafios geopolíticos comuns a japoneses, sul-coreanos e norte-americanos no Indo-Pacífico. A Coreia do Norte é o primeiro deles. Ainda formalmente em guerra com a Coreia do Sul, detentora de armas nucleares, com uma retórica agressiva e desencadeando frequentes testes balísticos e exercícios de tiro, a ditadura de Kim Jong-un volta e meia a causa tensões, inclusive no Japão, onde populações já foram orientadas a procurar abrigo em razão de mísseis norte-coreanos voando em trajetórias potencialmente perigosas.

Os desafios impostos pela China evidentemente também estão no centro das preocupações geopolíticas dos três países. A questão de Taiwan, a maior assertividade chinesa nas disputas no Mar do Sul da China, a reação da China à implementação dos sistemas de defesa antimísseis THAAD pela Coreia, que resultou em retaliações econômicas chinesas contra os coreanos, e a disputa torno das ilhas Senkaku, que os chineses consideram suas e são hoje controladas pelo Japão são alguns exemplos questões sensíveis.

Neste cenário é que foram divulgados os “Princípios de Camp David” (íntegra aqui), que nortearão a ação trilateral. Do texto, destaco os seguintes pontos:

  1. Os três países se comprometem a promover um Indo-Pacífico livre e aberto com base no respeito ao direito internacional, normas compartilhadas e valores comuns. Declaram se opor fortemente “a qualquer tentativa unilateral de mudar o status quo pela força ou coerção”. Nesse trecho há um recado implícito à China em relação a Taiwan, na oposição à mudança do status quo, ou seja, independência de facto de Taiwan, pela força.
  2. Afirmam o compromisso de desnuclearizar a Coreia do Norte. Apoiam uma Península coreana “unificada e livre”. Trata-se de um desafio complexo, uma vez que a Coreia do Norte não renunciará a seu arsenal nuclear enquanto for governada pela dinastia dos Kim.
  3. Fazem referência ao compromisso com boas práticas econômicas, à cooperação na área tecnológica e a compromissos com a busca de soluções para os problemas relacionados às mudanças climáticas.
  4. Em outra mensagem implícita, dessa vez à Rússia e à guerra na Ucrânia, reafirmam o compromisso com a Carta da ONU, especialmente no que se refere à manutenção da soberania e da integridade territorial dos Estados, bem como com a solução pacífica de controvérsias.
  5. Afirmam que o encontro inaugura um novo capítulo no relacionamento entre os três Estados, que passarão a atuar no Indo-Pacífico “como se fossem um só”.

Fora da declaração oficial, mas em entrevistas, foram reveladas as intenções realizar reuniões de cúpula e exercícios militares anualmente, impulsionar mecanismos de comunicação entre os três países e estabelecer uma linha direta para resolução de crises regionais.

Não se trata, portanto, da criação formal de uma aliança militar, fato que certamente geraria enorme oposição de chineses, russos e norte-coreanos. Mas é, sem dúvida, mais uma iniciativa, que se soma ao QUAD e à AUKUS na clara estratégia norte-americana de construção de uma arquitetura de contenção da China no Indo-Pacífico.

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Instabilidades no Sahel africano

No último dia 26 de julho, o presidente do Níger, Mohamed Bazoum, foi derrubado do poder em um golpe militar liderado pelo chefe de sua guarda pessoal, General Abdourahmane Tchiani. Foi o sexto país a sofrer um golpe de Estado na região do Sahel, e seu entorno, nos últimos três anos. Com isso, um viajante que saia da Costa Atlântica da África, na Guiné, poderá chegar à costa oposta do continente, no Mar Vermelho da costa sudanesa, viajando apenas pelos países que passaram por uma mudança recente de governo, pela força: Guiné, Mali, Burkina Faso, Níger, Chade, chegando finalmente ao Sudão.

Figura 1 – Países do Sahel africano

Fonte The New York Times

A região do Sahel vive grandes instabilidades. De um lado, o terrorismo jihadista ligado especialmente à rede Al Qaeda e ao Estado Islâmico permanece muito atuante, com ataques terroristas recorrentes, especialmente em Burkina Faso, Mali e Níger, onde as mortes causadas por ataques terroristas cresceram cerca de 50%[1] em 2022. De outro lado, há uma crescente competição local entre atores geopolíticos extra regionais, como Rússia e países europeus, em especial a França, em uma disputa por influência que complica ainda mais a dinâmica regional. Somem-se a isso a guerra em curso na Europa, com reflexos econômicos e políticos que extrapolam o Teatro de Operações e afetam todo o mundo, as mudanças climáticas e uma crise humanitária sem precedentes, tudo isso contribuindo para as fraturas institucionais que se se acirram com a exaustão popular provocada por tantas dificuldades, redundando nos recorrentes golpes de estado.

Até a semana passada, as potências ocidentais viam no Níger uma exceção nesse ambiente conturbado. Os EUA, por exemplo, mantêm 1.100 soldados americanos estacionados no país, onde também construíram bases de sistemas e aeronaves remotamente pilotadas em Niamey, a capital do país, e Agadez, no norte, a um custo de US$ 110 milhões. O Secretário de Estado do país, Antony Blinken, ameaçou retirar seu apoio financeiro e cooperação de segurança ao Níger se o presidente Bazoum não for reconduzido ao poder.

Os franceses, por sua vez, que se viram obrigados a retirar suas tropas do Mali no ano passado, por ordem do novo governo militar daquele país, tinha transferido seus efetivos justamente para o Níger. Agora, caso o novo regime se estabilize no poder, é grande a chance dos franceses serem forçados a uma nova retirada. Há ainda a questão do urânio. O Níger é o sétimo maior produtor mundial do metal, que é vital para a produção de energia nuclear. Um quarto das exportações do Níger destina-se à Europa, especialmente à França, onde cerca de 70% da matriz energética é dependente da produção termonuclear. A reação francesa ao golpe militar foi enfática: o presidente Emmanuel Macron, disse que o governo francês “não tolerará nenhum ataque à França e seus interesses” no Níger.

Na mesma direção, a Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO), uma organização multinacional constituída por quinze Estados, dentre eles a maior economia da África, a Nigéria, ameaçou inclusive usar a força militar contra o Níger caso o presidente Bazoum não volte ao poder no prazo de uma semana. A ameaça redundou em uma resposta firme do Níger que respondeu, destacando a firme “determinação em defender a pátria”.

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Entretanto, os militares que assumiram o poder no Níger também receberam apoios externos. Destaca-se o anúncio conjunto dos governos do Mali e de Burkina Faso, dois países liderados por governos militares, que em reposta à CEDEAO emitiu uma nota afirmando que qualquer agressão externa ao Níger seria considerada uma declaração de guerra também aos seus países, e que suas forças armadas estariam prontas para defender o país vizinho.

Destaque-se que esses dois países do Sahel (igualmente ex-colônias francesas com forte presença política e econômica da ex-metrópole) estão em um movimento de afastamento da França e de aproximação da Rússia. O governo do Mali, por exemplo, após solicitar aos franceses a retirada de seus soldados, contratou o grupo paramilitar russo Wagner, que enviou cerca de 1500 mercenários ao país. Já o presidente de Burkina Faso, o capitão Ibrahim Traoré, declarou que a prioridade das relações militares com a Rússia deriva da situação do país, que se encontra lutando contra o terrorismo e necessita de armas e equipamentos militares, fornecidos pela Rússia “sem restrições e a um bom preço”. Também no Níger, após o golpe, surgiram manifestações antifrancesas e declarações favoráveis à Rússia em manifestações populares.

Não por acaso, Mali e Burkina Faso estão incluídos no grupo de nações africanas que receberá a doação de dezenas de milhares de toneladas de grãos russos, sendo também beneficiários de contratos de cooperação técnico-militar, anunciados pelo presidente Putin na cúpula Rússia-África, que aconteceu na cidade russa de São Petesburgo na semana passada.

Assim, é interessante notar que o momento de forte tensão geopolítica que o sistema internacional atravessa, com uma guerra de alta intensidade sendo travada em plena Europa, e o acirramento da competição entre os EUA e seus aliados, de um lado, e China, Rússia, e aliados, de outro, testemunha também mudanças regionais, claramente influenciadas por todos esses acontecimentos. É o que se assiste neste momento no Sahel africano.

[1] Fonte Armed Location and Event Data Project – https://acleddata.com/conflict-watchlist-2023/sahel/ 

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500 dias de guerra na Ucrânia

Hoje, se completam 500 dias desde que as tropas russas ultrapassaram as fronteiras ucranianas, em 24 de fevereiro do ano passado, no que previam ser uma ação militar fulminante, com a qual esperavam derrotar o exército ucraniano, retirando o presidente Zelensky do poder e substituindo-o por um governante “amigável” ao regime russo.

A invasão russa é flagrantemente ilegal. Contraria, no mínimo, três instrumentos do Direito Internacional dos quais o país é signatário. O primeiro é a Carta da ONU, especificamente o previsto no nº 4 do artigo 2º, que prevê que “os Membros (da ONU) deverão evitar em suas relações internacionais a ameaça ou o uso da força contra a integridade territorial ou a dependência política de qualquer Estado”. O segundo é o Memorando de Budapeste, de 1994, no qual Grã-Bretanha, Rússia e Estados Unidos se comprometeram a “abster-se de recorrer à ameaça ou uso da força contra a integridade territorial ou a independência política da Ucrânia”, em troca da adesão desta ao Tratado de Não Proliferação Nuclear e da entrega à Rússia de todas as suas ogivas nucleares, herdadas da União Soviética. O terceiro é o Acordo de Helsinki, de 1975, quando representantes dos blocos capitalista (ocidental) e comunista (oriental) encontraram-se em Helsinque, para negociações sobre um futuro pacífico para a Europa. Naquela oportunidade, todos os trinta e cinco países signatários, dentre eles a União Soviética, comprometeram-se com “a cooperação econômica, a inviolabilidade das fronteiras, a solução pacífica de conflitos e a não intromissão em assuntos de ordem interna”.

A despeito de tudo isso, os russos, e em especial o presidente Vladimir Putin, apresentam razões históricas e securitárias para justificar a invasão. Tentar compreendê-las não significa concordar com elas. Mas é fundamental para se entender como chegamos a esses quinhentos dias de guerra.

As razões históricas se amparam na narrativa da origem comum de russos e ucranianos, herdeiros do mesmo ente político seminal, a Rus Kievana, proto-estado que há pouco mais de mil anos existiu na porção oriental da Europa. Sob a justificativa da ancestralidade compartilhada, se constrói a retórica de que a própria existência da Ucrânia como um Estado independente é absurda, portanto, a invasão seria justificável na medida em que desfaz uma separação que, a priori, nunca deveria ter acontecido.

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As razões securitárias são relacionadas à sensação de insegurança entranhada na cultura estratégica russa. Terra das planícies intermináveis, que facilitam os movimentos dos exércitos, a Rússia teve seu território invadido inúmeras vezes ao longo de sua história. A começar pelos mongóis no século XIII, mas também em tempos mais recentes. Desde o século XVII até o atual, não houve nenhum em que a Rússia não fosse invadida, a começar pelos poloneses, do rei Sigismundo III, em 1609​, pela Suécia do rei Carlos XII, em 1708​, pela França, de Napoleão, em 1812​ e pela Alemanha, nas duas grandes guerras, no século XX​. Em levantamento feito por Tim Marshall, no livro Prisioneiros da Geografia, se acrescentarmos a guerra na Crimeia, os russos terão combatido na planície norte europeia, ou no entorno dela, em média, uma vez a cada 33 anos, desde as invasões napoleônicas até os dias atuais. Isso significa que todas as gerações de militares russos dos últimos dois séculos participaram de combates na Europa.

É claro que isso tem profundas implicações nas preocupações de segurança e na cultura estratégica russa. É nesse contexto que a paulatina adesão de países cada vez mais a leste da Europa, consequentemente cada vez mais próximos à fronteira da Rússia, à Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), e a perspectiva da entrada da Ucrânia à Aliança, passou a ser vista pelo presidente Putin e seu entorno como uma ameaça insuportável à segurança do país.

Todas essas justificativas possuem contrapontos válidos. Os ucranianos alegam, baseados em boas razões históricas e culturais, possuir uma identidade política, cultural e histórica própria. Europeus e norte-americanos, por sua vez, alegam que a expansão da OTAN não possui caráter ofensivo e que a Rússia não teria nenhuma razão objetiva para se sentir ameaçada.

O fato é que, independentemente da sua ilegalidade, ou de suas justificativas, a guerra de alta intensidade voltou ao coração da Europa e já se prolonga há 500 dias. Cenas que se julgava tivessem ficado na história do Velho Continente, como combates em trincheiras, avanços de colunas de blindados, barragens de artilharia e bombardeios indiscriminados de cidades, voltaram a fazer parte do cotidiano, com toda a sorte de sofrimento humano, prejuízos econômicos e desequilíbrios políticos e geopolíticos que uma guerra dessa natureza produz.

A longa duração do conflito – que no momento atual não permite antever um desfecho em curto prazo – pode ser creditada a dois fatores principais. Em um primeiro momento, à decidida mobilização da sociedade ucraniana, que se reuniu em torno de sua liderança política e de suas forças armadas com o firme propósito de se defender. Isso surpreendeu os russos, que não esperavam encontrar uma resistência tão forte ao seu avanço inicial. Em um segundo momento, ao decidido apoio de norte-americanos, europeus e seus aliados que, por um lado, enviaram aos ucranianos recursos financeiros, treinamento e sistemas e materiais de emprego militar que proporcionaram à Ucrânia as condições mínimas para equilibrar as ações no Teatro de Operações, e por outro, impuseram embargos comerciais à Rússia, que se não a debilitaram decisivamente, como talvez se pudesse esperar, causaram certamente muitos percalços econômicos, com reflexos para seu esforço de guerra.

As operações militares em curso na Ucrânia comprovam mais uma vez o caráter total das guerras, como ensinava Clausewitz, ainda no século XIX. Infelizmente, a violência da guerra vem sendo reiterada a cada um dos últimos 500 dias. Nada mais significativo dessa realidade que a constatação do colossal consumo de munição de artilharia, em especial da de maior calibre. Os Estados Unidos já enviaram à Ucrânia, desde o início da guerra, mais de 1,5 milhões de granadas de 155mm, que são consumidas aos milhares pelos obuseiros ucranianos, todos os dias. Pelo lado russo, estima-se o consumo desse tipo de munição na casa das dezenas de milhares, diariamente. Esses números somente encontram paralelo histórico nas grandes guerras mundiais. A guerra de alta intensidade em curso na Ucrânia usa também outros sistemas e materiais de emprego militar, além de técnicas, táticas e procedimentos de combate típicos das grandes guerras do século 20: vasta utilização de campos de minas, emprego de carros de combate, linhas de trincheiras, baterias antiaéreas, para citar apenas alguns exemplos.

Mas a guerra também aponta para novas tecnologias, como o extensivo uso de sistemas de aeronaves remotamente pilotadas, os chamados drones, mísseis hipersônicos, vasta utilização de sistemas satelitais e guerra cibernética. No campo da informação, as mídias sociais fazem a guerra parecer ser narrada em primeira pessoa, com vídeos de combates onipresentes nas redes, ajudando a conformar narrativas, que os dois lados em disputa tentam fazer prevalecer.

Essa guerra também trouxe de volta – e de forma surpreendentemente preocupante – o espectro do conflito nuclear. O uso da arma nuclear é um tabu, uma vez que, após os terríveis efeitos de sua única utilização, pelos norte-americanos, em Hiroshima e Nagasaki, nunca mais qualquer país ousou sequer ameaçar empregá-la. De lá para cá, potências nucleares perderam guerras, sem jamais recorrer à ameaça de sua utilização. Foi o caso dos EUA, no Vietnã e da União Soviética, no Afeganistão. Mas, na guerra em curso na Ucrânia, isso mudou. A ameaça da escalada nuclear já foi feita diversas vezes ao longo desses 500 dias, por diferentes autoridades russas, sendo verbalizada com especial ênfase – e de forma reiterada – pelo ex-presidente da Rússia, Dmitry Medvedev.

Para além dessas condições táticas e operacionais, é importante também compreender que o conflito gerou crises múltiplas, em diferentes níveis.

A guerra, somada a ascensão chinesa, caracterizam a emergência de um mundo multipolar, onde a hegemonia norte-americana é desafiada. Esse mundo multipolar confere mais liberdade de ação aos países do chamado “Sul Global”, que se sentem mais confortáveis para adotar uma postura independente, descolada, por exemplo, do que norte-americanos e europeus desejariam. Assim, Índia e diversos países africanos, do Oriente Médio e da América do Sul, deixaram de aderir às sanções econômicas impostas pelas potências ocidentais à Rússia. A guerra também mostra a necessidade de reformulação da ONU, em especial de seu Conselho de Segurança, uma vez que o mais importante organismo multilateral se mostra completamente incapaz de mediar um processo de paz.

No campo econômico, a guerra traz consequências desfavoráveis em um ambiente já estressado pela pandemia da Covid 19, especialmente para a Europa. A Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) projeta um crescimento dos países da zona do Euro, em 2023, de apenas 0,9%, muito menor do que se previa antes da invasão russa.

As consequências humanitárias da guerra são graves. As vítimas da guerra, nos dois lados do conflito, já podem ser contadas na casa das centenas de milhar. As pessoas forçadas a migrar para outros países, ou a se deslocarem no interior da própria Ucrânia já são contadas na casa dos milhões, com todas as inúmeras consequências pessoais para os afetados, além das consequências sociais e políticas para as comunidades que recebem os refugiados. Na Ucrânia, a destruição das cidades vai exigir investimentos na casa das centenas de bilhões de dólares para a reconstrução. Isso sem falar dos transtornos causados por munições falhadas, que permanecerão por anos sendo encontradas na Ucrânia e das minas terrestres, espalhadas por milhares de quilômetros quadrados no que exigirão um esforço de anos para serem completamente desativadas.

A essa altura o leitor pode estar se perguntando sobre as perspectivas para o fim da guerra. Confrontos militares dessa natureza só terminam quando um dos contendores – ou os dois – desistem ou são forçados a desistir de lutar. Isso pode acontecer pela derrota militar, como no caso da rendição da Alemanha, que encerrou a Segunda Guerra Mundial. Ou, pela completa exaustão, como aconteceu no conflito Irã x Iraque, em que os dois lados se exauriram completamente, após quase uma década de guerra, chegando a um acordo. Ou, como na Guerra da Coreia, onde a guerra não foi oficialmente encerrada, mas “congelada” por um armistício acertado pelos dois lados após uma estabilização do campo de batalha por cerca de dois anos.

Infelizmente, no caso da Ucrânia, é forçoso se reconhecer que não há, no momento, nenhuma perspectiva realista para o fim da guerra. O presidente ucraniano, Volodymir Zelensky já declarou reiteradas vezes que não aceita negociar enquanto houver tropas russas no território internacionalmente reconhecido como ucraniano. Os seus aliados ocidentais, notadamente os EUA, também já reiteraram a disposição de continuar apoiando decisivamente a Ucrânia, pelo tempo que se fizer necessário. Os russos, por outro lado, estão firmemente aferrados ao terreno conquistado em solo ucraniano, o que tornará a ofensiva que a Ucrânia acabou de iniciar para tentar retomar território uma operação muitíssimo difícil e de resultado bastante incerto. Ademais, do ponto de vista do presidente da Rússia, Vladimir Putin, é impensável recuar suas tropas de volta para a casa sem uma vitória, ainda mais em uma guerra que ele mesmo iniciou. Isso muito provavelmente significaria o fim de sua carreira política como presidente da Rússia.

A guerra pode, dessa forma, perdurar por muito tempo ainda. Do lado ucraniano, tudo depende da disposição de seus parceiros em manter o apoio militar. Do lado russo, é provável que sejam capazes de manter a atual operação defensiva por muito tempo, mantida por suas ainda amplas capacidades militares, na esperança de que os governos do ocidente, em especial dos EUA, encerrem seu apoio à Ucrânia, talvez pressionados por suas populações, quando essas se cansarem da guerra, ou talvez por uma mudança de postura em uma eventual nova administração que possa assumir o governo após as eleições presidenciais do ano que vem.

Finalmente, no triste aniversário de 500 dias da guerra na Ucrânia, não se vislumbra o encerramento do conflito, que infelizmente continuará causando muito sofrimento às populações envolvidas e graves consequências para o restante da humanidade.

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Por uma verdadeira integração sul-americana

Os líderes dos países sul-americanos estiveram em Brasília para uma reunião convocada pelo governo brasileiro. A cooperação e a integração regionais foram os assuntos discutidos. O documento divulgado após o encontro, de nove parágrafos, anuncia apenas uma decisão: a de estabelecer um grupo de contato, liderado pelos chanceleres, para avaliação das experiências dos mecanismos sul-americanos de integração e a elaboração de um “mapa do caminho” para a integração da América do Sul.

A necessidade de integração sul-americana está muito longe de ser uma questão nova. Aliás, o próprio nome dessa porção da Terra, “América do Sul”, já advém de uma tentativa de superar conceitos impostos de fora para dentro da região, como os norte-americanos “Hemisfério Ocidental”, ou “pan-americanismo”, inspiradores da Organização dos Estados Americanos (OEA), da Doutrina Monroe ou do Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (Tiar); ou como o conceito francês de “América Latina”, criado para tentar estabelecer um vínculo que integrasse a França às suas possessões e colônias nas Américas.

Geopolíticos brasileiros do século 20 dedicaram grande parte de suas obras ao estudo da integração sul-americana, considerada por eles uma necessidade imperativa para os interesses brasileiros. Os generais Mário Travassos e Carlos de Meira Mattos são dois importantes exemplos.

Mário Travassos, no livro Projeção Continental do Brasil, de 1935, identifica de início dois fatores geradores de antagonismos, logo, de afastamento ou de desunião dos países da América do Sul. O primeiro é a oposição das duas vertentes continentais, separadas pela Cordilheira dos Andes, que afasta os Estados voltados para o Atlântico dos Estados voltados para o Pacífico, “de costas”, portanto, uns para os outros. O segundo é o representado pelas duas principais bacias hidrográficas da vertente do Atlântico, a separar os Estados amazônicos dos platinos. A superação dos efeitos dissociadores desses antagonismos geográficos exigiria, na visão de Travassos, ainda na década de 1930, a construção de uma adequada infraestrutura de transportes e comunicações que integrasse o continente sul-americano. Somente assim, nas palavras de Travassos, o Brasil exprimiria sua “imensa projeção coordenadora” no cenário político e econômico sul-americano.

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Meira Mattos, já na segunda metade do século 20, desenvolveu seu pensamento geopolítico a partir dos fundamentos de Travassos, de quem se considerava discípulo. Embora ele ampliasse o foco sul-americano de Travassos, almejando uma projeção global para o Brasil, as preocupações com a integração do subcontinente permearam toda a sua obra. Em artigo publicado em 2004, já aos 91 anos, ele escreveu que uma geopolítica de integração dos países da região “não se consolidará apenas com os empenhos de uma vigorosa vontade política e de uma diplomacia esclarecida e dinâmica. É mister estruturar essa integração”. Para isso, Meira Mattos já indicava a necessidade de integrar os três acordos de integração regionais então existentes: Mercosul, Pacto Andino (hoje Comunidade Andina de Nações) e Pacto Pan-Amazônico (hoje Organização do Tratado de Cooperação Amazônica – Otca). O general concluía com uma crítica: “Está faltando um impulso diplomático unificador que os reveja, amplie seus objetivos, articulando-os e os dotando de mecanismos de incentivo econômico de interesse comum”.

No ano 2000 ocorreu a 1.ª Reunião de Presidentes da América do Sul, oportunidade em que se inaugurou a chamada Integração da Infraestrutura Regional da América do Sul (Iirsa), que, entretanto, pouco conseguiu avançar na resolução efetiva dos problemas de infraestrutura da região. É incrível – e sintomático das dificuldades de integração – que somente no alvorecer do século 21 tenha ocorrido uma primeira reunião de mandatários sul-americanos.

A União das Nações Sul-americanas (Unasul), criada em 2008, foi mais uma tentativa de integração. Ela chegou a contar com os 12 países do subcontinente, tendo, inclusive, absorvido a Iirsa. Mas a falta de consenso e as disputas ideológicas decorrentes da natural alternância de diferentes partidos no poder nos vários países sul-americanos, além da falta de pragmatismo na busca de uma verdadeira integração, infelizmente, levaram à desintegração da organização.

Ressuscitar a Unasul é, hoje, um objetivo da política externa brasileira. A integração foi tratada na reunião do dia 30 de maio passado. A ideia, entretanto, ainda não convenceu os demais parceiros, tanto que o tema não figurou na declaração final do encontro. Seria importante que a ideia vingasse. Mas, mais importante ainda, que os erros do passado fossem superados, de forma que a integração se desse em torno de objetivos estratégicos bem definidos, com foco no benefício mútuo, e não em torno de posições políticas que mudam com as trocas de governo, solapando a integração sonhada já há muitos anos, mas, infelizmente, nunca efetivada de forma adequada.

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A nova (e inédita) Estratégia de Segurança da Alemanha

A Alemanha divulgou sua Estratégia de Segurança. Trata-se de um documento inédito no pós-guerra, no qual o governo alemão divulga as bases de uma segurança que se quer integrada e voltada para o cidadão alemão, para que este possa “continuar vivendo em paz, com liberdade e segurança”.

O documento é assinado pelo chanceler Olaf Scholz e pela ministra das Relações Exteriores, Annalena Baerbock e afirma que o ambiente de segurança no qual a Alemanha está inserida vive um momento de virada, de “divisão de águas”: na expressão em alemão, um Zeitenwende. É uma obvia referência à situação internacional, de guerra na Europa e de acirramento da competição sistêmica entre EUA e China.

Porém, trata-se também de um Zeitenwende no que se refere ao pensamento estratégico alemão. O fato desse documento ser o primeiro do gênero é sintomático do trauma que a sociedade alemã carrega desde o fim da 2ª guerra mundial, que se refletiu na dificuldade de desenvolvimento de um pensamento estratégico voltado para o fortalecimento de seu aparato de defesa. Agora, os alemães correm atrás do prejuízo, anunciando que “o governo federal fará da Bundeswehr uma das forças armadas convencionais mais eficazes da Europa nos próximos anos, capaz de responder e agir rapidamente em todos os momentos”.

Esse anúncio é feito com muito cuidado, quase se desculpando. O texto esclarece que a Alemanha tem consciência de sua história e por isso é grata pela reconciliação com os países vizinhos, em especial com a França, e que continua a assumir responsabilidade pelo direito de Israel de existir.

O documento aponta a Rússia como a mais significativa ameaça para a segurança Euro-Atlântica. Os estrategistas alemães apontam para um mundo crescentemente multipolar, em que alguns países estariam tentando mudar a ordem internacional, motivados por suas percepções acerca de uma rivalidade sistêmica. Nesse contexto, a China é apresentada como um parceiro, um competidor e um rival.

Ainda na apresentação da conjuntura mundial, o texto identifica que guerras, crises e conflitos nas vizinhanças da Europa têm um efeito adverso na segurança da Alemanha e da própria Europa. Estados frágeis nesse entorno estariam se tornando paraísos para grupos terroristas, enquanto conflitos internacionais se ampliariam para Estados vizinhos. Em acréscimo a essa realidade, os estrategistas alemães apontam para outras ameaças complexas: terrorismo, extremismo, crime organizado, ataques cibernéticos, todos com capacidade de causar graves danos à segurança alemã.

A crise climática também é definida como uma grave ameaça à própria subsistência das pessoas e aos fundamentos da economia. Ela ameaça milhões de pessoas no mundo, pela destruição do meio-ambiente e consequentes fome, pobreza e doenças.

Para fazer face a tudo isso, a estratégia tem seu foco no conceito de Segurança Integrada. Esta é definida como sendo aquela que reúne todos os instrumentos à disposição do Estado que, sendo afetos às questões de segurança, sirvam para proteger o cidadão alemão de ameaças externas. Essa abordagem parte da premissa de que a segurança é parte e objetivo de todas as políticas, de forma que, se ela se deteriorar, cada política, em todos os setores governamentais, será afetada.

O foco da segurança, de acordo com a Estratégia, seria o indivíduo, a garantia de seus direitos democráticos e de suas liberdades. Na medida que isso tudo seja garantido, a estabilidade do Estado e da sociedade estariam garantidas. Essa ênfase no indivíduo é ainda mais salientada quando a Estratégia se afirma alinhada com uma política externa feminista, que defende os direitos e a representatividade de mulheres e de grupos marginalizados.

 

Os alemães desejam que sua segurança integrada seja defensiva, resiliente e sustentável. Ao ser defensiva, ela deverá possuir uma capacidade dissuasória crível, no âmbito da OTAN, que garanta que eventuais inimigos se abstenham de agir contra a Aliança. Para isso, o governo alemão informa que vai fortalecer suas forças armadas, consideradas “o pilar da dissuasão convencional na Europa”. Assim, se informa que a Alemanha perseguirá o objetivo de garantir investimentos de 2% do PIB em defesa, aumentará seus investimentos em proteção a infraestruturas críticas, diplomacia efetiva, prevenção e atuação em desastres e engajamentos em assistência humanitária. Tudo isso com o objetivo de tornar as forças armadas alemãs “uma das mais efetivas forças convencionais da Europa”.

A resiliência é o segundo aspecto destacado. Trata-se de uma qualidade necessária em caso de conflito. Ela depende do Estado, da sociedade civil e do setor privado, que deverão assegurar que, na crise, o governo continue funcionando, que a população tenha suas necessidades básicas atendidas e que as forças armadas sejam supridas com toda a logística necessária. Defender a sociedade alemã da espionagem, sabotagem, e interferência estrangeira ilegítima, bem como da desinformação, também é uma forma de se fortalecer a resiliência, e por essa razão ações nesse sentido também são destacadas na Estratégia.

Quando destaca o aspecto da sustentabilidade, a Estratégia aponta para o combate à crise climática, apontada como uma ameaça à própria subsistência da humanidade, com impactos para a estabilidade entre países e regiões. Assim, os alemães se impõem o objetivo de “reduzir drasticamente as emissões, que atualmente ainda estão em ascensão e alcançar resultados urgentemente. Ao mesmo tempo, perseguir estratégias de adaptação que limitem os impactos da crise climática, de modo a proteger tanto pessoas quanto espaços naturais”. Nesse sentido é interessante destacar que os alemães afirmam no documento que “onde os governos minem a segurança e o estado de direito, iremos centrar a nossa cooperação em maior medida em atores não estatais, no nível local e em abordagens multilaterais.” Interessante notar que essa afirmação reforça temores recorrentes em países em desenvolvimento, de que a pauta ambiental possa ser instrumentalizada para o atingimento de interesses geopolíticos inconfessáveis, uma vez que quem julgaria que os governos estariam “minando a segurança climática” seria o próprio Estado alemão.

O documento alemão, de 73 páginas, cujo espírito tentei captar na análise acima, é bastante abrangente ao tratar de ameaças não-tradicionais à segurança. Mas, se comparado aos documentos congêneres das grandes potências, falha ao tratar das ameaças mais tradicionais, de cunho geopolítico, que saltam aos olhos no atual momento da história. Mas, é um primeiro passo, que mostra uma Alemanha que volta ao jogo geopolítico, praticamente empurrada pela invasão russa à Ucrânia. Os alemães ainda estão cruzando seu Zeitenwende. E todo mundo certamente vai prestar muita atenção.

Leia a Estratégia de Segurança aqui:

Estrategia nacional de segurança Alemanha

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O início da contraofensiva ucraniana

Finalmente, a tão anunciada contraofensiva ucraniana teve início. Junto com ela, a intensificação da disputa de versões e de narrativas, naturais em tempos de guerra, em que cada uma das partes em conflito tenta fazer parecer, à opinião pública local e estrangeira, que a balança da guerra está a pender para o seu lado. Enxergar por entre a bruma da guerra, na magistral imagem clausewitzniana que ilustra a incerteza e a confusão inerentes ao conflito, não é tarefa fácil. Para isso, entretanto, pode-se recorrer à algumas ferramentas, como o conhecimento histórico e doutrinário acerca das operações ofensivas.

Vamos começar por uma definição. Operações ofensivas são operações agressivas, onde predominam o movimento, a manobra e a iniciativa, para lançar-se contra o inimigo, no local e momentos decisivos, destruindo-o ou neutralizando-o. Para ter sucesso, o atacante precisa ter uma superioridade de meios em relação ao seu adversário. Por isso, deve evitar as partes mais fortes do inimigo, procurando forçá-lo a atuar em uma direção inesperada, preferencialmente onde o terreno não esteja preparado para a defesa.

Dito assim, pode parecer simples, mas realmente não é. Por isso, não espere resultados rápidos da ofensiva ucraniana.

No caso, é importante notar que os russos dispõem de uma maior quantidade de soldados; tiveram bastante tempo para preparar suas defesas, construindo centenas de quilômetros de linhas de trincheiras, tanto em largura quanto em profundidade; lançaram muitos campos de minas, ao logo de toda a frente; prepararam os tiros de artilharia, que certamente já estão regulados nas direções de ataque mais prováveis; pré-posicionaram suprimentos logísticos, especialmente munições e treinaram contra-ataques em suas linhas defensivas.

Os ucranianos sabem disso tudo. Por isso, não se espera que os primeiros movimentos – justamente os que estão em curso atualmente – sejam decisivos. Esses devem ser, de acordo com a doutrina e à luz do que a história militar nos ensina, ataques limitados ou secundários, para “testar” as defesas russas, iludi-las quanto à localização do ataque principal, descobrir fragilidades em seus dispositivos e atrair a movimentação das reservas inimigas para determinadas partes da frente de combate. Provavelmente os objetivos ucranianos nesse primeiro momento são curtos, sobre as primeiras linhas de defesa. Conquistando esses pontos na primeira linha, os ucranianos abrem “buracos” na defesa russa, que se sentirá obrigada a deslocar novas tropas para posições mais em profundidade, tamponando as brechas que foram abertas na defesa.

Seguindo-se essa linha de raciocínio, espera-se que os planejadores ucranianos tenham imaginado que, quando essa primeira fase do ataque estiver concluída a figura do campo de batalha vai mostrar pequenos avanços ucranianos em diferentes partes da frente. Prestem atenção a isso quando virem os mapas que serão divulgados pela imprensa.

Quando isso acontecer, os atacantes ucranianos estarão combatendo tropas russas em uma segunda ou terceira linha de defesa, ou seja, mais em profundidade. Lembrem-se que esses defensores mais em profundidade são aquelas reservas, a que me referi antes. Este será o momento para o desencadeamento de uma segunda onda de ataques, em outras partes da frente, essa sim, destinada a alcançar os objetivos decisivos mais em profundidade.

Como as reservas russas não poderão estar em dois lugares ao mesmo tempo, os ucranianos não precisarão enfrentar tantas linhas de defesa. Pelo menos é isso que os planejadores ucranianos provavelmente esperam que aconteça.

Tudo isso levará, no mínimo, algumas semanas para acontecer. A menos que aconteça um desastre nas defesas russas, o que não parece provável neste momento.

Mas prossigamos na tentativa de antever os movimentos do exército da Ucrânia, sempre à luz dos ensinamentos históricos e doutrinários. Se os planos da ofensiva derem certo, os ucranianos controlarão, ao final dessa fase, objetivos operacionais relevantes. Os locais escolhidos para a definição desses objetivos são aqueles que proporcionam aos ucranianos uma vantagem operacional marcante, como a cidade de Melitopol, por exemplo, que interrompe a ligação terrestre entre a Crimeia e a Rússia. De posse desses objetivos, a Ucrânia poderá tentar passar para a próxima fase de seu plano de campanha: o cerco e a destruição. Com as defesas desorganizadas pelo avanço da ofensiva, restarão bolsões russos. Estes passarão a ser cercados e destruídos.

É claro que a visão descrita acima é aquela em que tudo dá certo para os ucranianos. Os russos conhecem a doutrina e a história. Aprenderam com os erros da primeira fase da guerra e farão o que estiver a seu alcance para impedir que isso aconteça.

As próximas semanas e meses serão de combates muito duros na Ucrânia.

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O G7, a guerra na Ucrânia e a China

O Grupo dos Sete (G7), formado por Estados Unidos, Reino Unido, Japão, França, Canadá, Alemanha e Itália, reuniu-se para sua cúpula anual, na cidade de Hiroshima, no Japão, entre os dias 19 e 21 de maio. Além dos países que compõem o grupo, alguns outros foram convidados: Brasil, Índia, Austrália, Coreia do Sul, Vietnã, Indonésia, Ilhas Cook e Comores. Além desses, um chefe de Estado foi recebido, com especial deferência: Volodymyr Zelensky, presidente da Ucrânia, país invadido pela Rússia em 24 de fevereiro do ano passado. Dois assuntos ganharam destaque no encontro: a guerra na Ucrânia e as relações dos países do G7 com a China.

O espectro da guerra em curso no território ucraniano acompanhou toda a reunião. A crise ganhou tal destaque nas conversas que é citada no comunicado final[1] do encontro como primeiro item das medidas concretas que estão sendo tomadas pelo G7: “Estamos tomando medidas concretas para apoiar a Ucrânia pelo tempo que for necessário diante da guerra de agressão ilegal da Rússia”.

A invasão da Ucrânia pela Rússia foi citada como uma séria violação do Direito Internacional, especialmente da Carta da ONU. Em face disso, o G7 se compromete a “intensificar seu apoio diplomático, financeiro, humanitário e militar à Ucrânia, aumentando os custos para a Rússia e aqueles que apoiam seu esforço de guerra e continuar a combater os impactos negativos da guerra sobre o resto do mundo”.

A região do Indo-Pacífico também recebeu destaque na declaração final do encontro. Os países do G7 se disseram comprometidos com um “Indo-Pacífico livre e aberto, que seja inclusivo, próspero, seguro, baseado no estado de direito e que proteja os princípios compartilhados, incluindo soberania, integridade territorial, resolução pacífica de disputas, liberdades fundamentais e direitos humanos”.

As relações dos países do grupo com a China também mereceram uma atenção especial. Eles afirmam que suas políticas não são projetadas para prejudicar a China ou impedir o seu progresso e o desenvolvimento econômico. Pelo contrário, o G7 afirma que uma China em crescimento, que obedeça às regras internacionais, seria de interesse global. Em seguida, entretanto, o grupo afirma que a China praticaria políticas não comerciais, que distorceriam a economia global. O país transferiria ilegalmente tecnologia e divulgaria dados descumprindo as normas internacionais. Outro foco de preocupação do G7 em relação à China é a situação no Mar do Sul da China e em Taiwan. O grupo declarou que se oporia fortemente a qualquer tentativa unilateral de mudança do status quo da região pela força ou pela coerção, em clara referência à situação taiwanesa. Também afirmou ser contrário à militarização do Mar do Sul da China, afirmando que as pretensões territoriais chinesas não encontram amparo na Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Uso do Mar. O grupo ainda se disse preocupado com a situação dos direitos humanos em Xinjiang, no Tibete e em Hong Kong.

Os chineses imediatamente reagiram, se dizendo gravemente preocupados com a declaração. Afirmaram que os países do G7 vêm, ao longo dos últimos anos, interferindo grosseiramente nos assuntos internos da China referentes à Taiwan, Hong Kong, Xijiang e Tibete. Além disso, o grupo semearia a discórdia entre os países no Mar do Sul da China. Em alerta ao Ocidente, os chineses disseram que para a manutenção da paz no Estreito de Taiwan é imperativo que os países do G7 se oponham a qualquer ato que estimule a independência do arquipélago. Os chineses, por fim, pediram ao G7 que “descarte a mentalidade da Guerra Fria e o preconceito ideológico, pare de interferir grosseiramente nos assuntos internos de outros países, pare com a prática de formar pequenos círculos para o confronto em bloco e pare de criar deliberadamente antagonismo e divisão na comunidade internacional”.

As posições apresentadas pelos países que compõem o G7 em sua reunião, que acaba de se encerrar, explicita o momento de intensa disputa geopolítica em curso. A guerra na Ucrânia é um sintoma dessa confrontação, e a troca de acusações entre os países do grupo e a China, é outro. Espera-se que as tensões no Indo-Pacífico não ultrapassem o nível da retórica e evitem a confrontação armada porque, diferentemente da guerra entre russos e ucranianos, onde a participação direta da OTAN no conflito vem sendo evitada, no Mar do Sul da China ou no Estreito de Taiwan essa contenção dificilmente seria possível, o que transformaria tais conflitos em crises muito maiores do que a atualmente em curso na Ucrânia.

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[1] https://www.whitehouse.gov/briefing-room/statements-releases/2023/05/20/g7-hiroshima-leaders-communique/