A liderança política na guerra da Ucrânia

Uma boa definição de liderança é a adotada pelo Exército Brasileiro: “A liderança militar consiste em um processo de influência interpessoal do líder militar sobre seus liderados, na medida em que implica o estabelecimento de vínculos afetivos entre os indivíduos, de modo a favorecer o logro dos objetivos da organização militar em dada situação”[1].

Ou seja, o líder deve se esforçar em construir engajamento, deve levar as pessoas a quererem fazer o que deve ser feito para o atingimento dos objetivos da organização a que todos pertencem.

A guerra da Ucrânia contrapõe dois líderes políticos, os presidentes Volodymyr Zelensky e Vladimir Putin. Putin está no poder há mais de 22 anos, sendo um líder experiente e experimentado na cena internacional. Já conduziu seu país por crises e guerras. Lidera de forma autocrática, cercado por um grupo fiel de assessores que estão ao seu lado há vários anos e que, por isso mesmo, dificilmente divergem de suas decisões. Coerentemente com esse estilo de liderança, permanece afastado, cultivando uma imagem quase venerável. A foto de uma reunião, no início da guerra, com seus mais importantes generais, Shoigu e Gerasimov, sentados em uma extremidade de uma enorme mesa, à uma grande distância do líder, bem representa essa postura.

Para conduzir os russos na direção dos objetivos que ele traçou, Putin se apoia em uma narrativa que tenta transmitir aos seus concidadãos uma situação de relativa normalidade. Nesse sentido proibiu que a guerra seja chamada pelo que é – efetivamente uma guerra – determinando que ela fosse apresentada aos russos apenas como uma “Operação Militar Especial”. Coerentemente com essa narrativa, até o momento, não decretou uma mobilização geral, evitando assim reconhecer que o país necessite adotar medidas extraordinárias em razão do conflito.

Putin apela ao nacionalismo e ao orgulho russos, alegando que o país estava sendo ameaçado pela expansão da OTAN em direção às fronteiras russas e que as minorias étnicas russas na Ucrânia estavam sendo maltratadas pelo governo ucraniano. Ele recorre constantemente às imagens de grandeza do império russo e desdenha da legitimidade da própria existência da Ucrânia como nação independente. Esse discurso encontra eco na sociedade russa e as taxas de aprovação de Putin, que estavam em torno de 60% antes da guerra, passaram a ser de mais de 80%[2] depois do início do conflito.

Zelensky, por sua vez, é um outsider, novato na política, o que torna seu caso interessante de ser analisado sob o prisma dos estudos de liderança. Comediante famoso em seu país, foi guindado à presidência sem antes ter passado por qualquer cargo político. Eleito em 2019 com mais de 70% dos votos, sua aprovação pelos ucranianos, no início de 2022, estava em torno de 30%. Após o início do conflito, sua popularidade triplicou, passando de 90% de aprovação[3].

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Tal fato demonstra que, quando testado pelo conflito, Zelensky surpreendeu a todos fazendo basicamente o que se espera de um líder político nessas situações: galvanizar a vontade de lutar do povo ucraniano e angariar apoios internacionais fundamentais ao esforço de guerra de seu país.

Para efetivamente exercer a liderança, a pessoa deve reunir três qualidades fundamentais: proficiência profissional, ou seja, saber fazer o que deve ser feito no cargo que desempenha; senso moral, servindo de exemplo das virtudes morais esperadas dos liderados; e atitude, tomando as medidas adequadas, no tempo correto, em prol do atingimento dos objetivos almejados por toda a coletividade.

Zelensky soube exercer a presidência em tempos de guerra, até o momento, atendendo a esses requisitos. Mantendo-se no nível de decisão político/estratégico, delegou as decisões de nível operacional e tático aos generais ucranianos. Manteve-se na capital do país, Kiev, durante todo o tempo, mesmo na fase inicial da guerra, com a cidade sob ataque e quando se acreditava que as tropas russas conquistariam a capital rapidamente, demonstrando com isso coragem pessoal e empatia com a população.

Utilizando com maestria sua capacidade de comunicação, cultivada certamente pela profissão de ator, Zelensky passou a se dirigir diariamente à população, sempre com uma mensagem de otimismo e de união do povo ucraniano. Ao mesmo tempo, se dirigiu à comunidade das nações, falando em inúmeros fóruns por videoconferência, conversando com os mais importantes chefes de Estado, inclusive recebendo muitos deles em Kiev. Soube assim aproveitar-se da boa vontade já existente em favor da Ucrânia no Ocidente para angariar apoios importantíssimos para o esforço de guerra ucraniano.

Zelensky é visto visitando as tropas e condecorando soldados, inspecionando hospitais, indo à frente de combate. Ele se comunica diretamente ao mundo pelas redes sociais. Sua mensagem é de colaboração, objetivos compartilhados e formação de equipe.

Tal estilo de liderança, entretanto, não o constrange de tomar medidas duras, se julgar necessário. Um exemplo foi o recente afastamento de seu chefe do serviço de inteligência, um amigo de infância, além da procuradora geral, em razão de centenas de casos de servidores acusados de traição e colaboracionismo com os russos.

Ao se comparar os estilos de liderança de Zelensky e Putin, vemos as enormes diferenças entre os dois. É inegável que Zelensky se comunica muito melhor e com mais facilidade, e comunicação é uma capacidade fundamental aos líderes. Seu estilo é mais adequado aos parâmetros ocidentais modernos, de uma liderança participativa, que conta com o engajamento e as ideias dos liderados.

Putin prefere o estilo autocrático, que chama para si a responsabilidade das decisões, estabelecendo objetivos, fixando normas e avaliando resultados. Ele é o único a encontrar as soluções e espera que sua equipe cumpra seus planos e ordens sem qualquer tipo de ponderação.

É inegável que ambos os estilos apresentam resultados. Pessoalmente, prefiro o estilo participativo, mas sei que haverá momentos em que cabe somente ao comandante supremo a decisão, sendo necessária uma ação imediata, sem espaço para ponderações.

Das guerras sempre emergiram, ao longo da história, líderes que souberam conduzir povos e exércitos em face a enormes desafios. Não será diferente agora. Caso a Ucrânia venha a ser exitosa, conseguindo, se não a vitória completa, que parece ser muito distante nesse momento, pelo menos um acordo de paz digno, que mantenha o país independente e viável, não tenho dúvidas, Zelensky, um ator ucraniano desconhecido, será alçado a condição de um dos mais importantes líderes do século 21, um século até aqui bastante carente de figuras políticas inspiradoras.

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[1] Manual de Liderança Militar do Exército Brasileiro. Leia em https://bdex.eb.mil.br/jspui/bitstream/123456789/302/1/C-20-10.pdf

[2] Veja em https://www.statista.com/statistics/896181/putin-approval-rating-russia/

[3] Veja em https://www.newstatesman.com/chart-of-the-day/2022/03/how-president-zelenskys-approval-ratings-have-surged




A viagem de Joe Biden ao Oriente Médio

O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, acaba de encerrar uma viagem a Israel, Cisjordânia, e Arábia Saudita. As visitas ocorreram em um momento conturbado, em que a guerra na Ucrânia desorganiza o mercado mundial de gás natural, petróleo e derivados; o Irã caminha a passos largos para a fabricação da arma nuclear e Israel está sendo governado por um gabinete interino, após a renúncia do Primeiro-Ministro Naftali Bennett. A região também vive um momento de acirramento da disputa geopolítica, em que o Irã, a Turquia e a Arábia Saudita disputam primazias e esferas de influência; o Afeganistão está mergulhado no caos econômico após o retorno do Talibã ao poder; e o Líbano passa por grave crise econômica, assim como a Síria, país que enfrenta uma guerra civil há mais de 11 anos. No Iêmen, a guerra civil, que na verdade é travada por procuração entre iranianos e árabes desde 2014, com os primeiros financiando os rebeldes Houthis e os últimos apoiando o governo, está assistindo a um momento de trégua, negociado pela ONU.

Biden iniciou sua viagem por Israel, país que vive mais um momento político conturbado, com a renúncia do Primeiro-Ministro Naftali Bennett, em junho. Com isso, Biden se reuniu com Yair Lapid, que acabou de assumir um governo interino, até que sejam realizadas novas eleições, no final do ano. O presidente norte-americano também se reuniu com Mahmoud Abbas, líder da Autoridade Palestina. As relações entre israelenses, palestinos e norte-americanos encontra-se ainda mais tensionada do que de costume, em razão do assassinato, por tropas israelenses, da jornalista palestino-americana Shireen Abu Akleh, em maio.

Em Israel, um dos principais focos das conversas de Biden foi o programa nuclear iraniano, que tem alcançado significativos avanços. O país acaba de anunciar que enriqueceu Urânio a 20% utilizando as novas e avançadas centrífugas IR-6 da instalação nuclear de Fordo, construída por razões de segurança no subterrâneo das montanhas da cidade de Qom, ao Sul de Teerã. A Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) informou no mês passado que o Irã já teria 43 quilos de urânio enriquecido com 60% de pureza – um importante passo para chegar aos 90% necessários para a produção da arma nuclear. Especialistas em não proliferação alertam que se trata de uma quantidade de material físsil suficiente para a fabricação da bomba.

É grande a preocupação israelense com o fato de o Irã estar cada vez mais próximo de alcançar o status de potência nuclear. Existe no país a percepção de que sua própria existência pode ser ameaçada, uma vez que os iranianos não reconhecem a legalidade ou a legitimidade do Estado israelense.

Essa preocupação ficou muito clara na declaração conjunta, divulgada pelos governos dos EUA e de Israel, denominada “Declaração de Jerusalém” ¹. Nela, os EUA reafirmam sua parceria estratégica com os israelenses e seu compromisso com a segurança de Israel, declarando que ela é, também, de interesse da própria segurança dos EUA. Em um trecho especialmente importante da declaração, os EUA enfatizam o compromisso de nunca permitir que o Irã adquira armas nucleares, dizendo-se, inclusive, preparado para usar todos os elementos de seu poder nacional para garantir esse resultado. Tal afirmação refere-se, evidentemente, ao poder militar, em uma clara delimitação de uma “linha vermelha” que não pode ser ultrapassada pelo Irã: tornar-se detentor de armamentos nucleares.

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Joe Biden também esteve na Cisjordânia, onde se encontrou com Mahmoud Abbas, presidente da Autoridade Palestina. No encontro, reiterou o compromisso norte-americano com uma solução para a questão palestina que contemple a existência de dois Estados, o israelense e o palestino, embora tenha dito que este encaminhamento não está maduro “no momento”. Abbas, por sua vez, disse que a chave da paz para a região seria a saída dos israelenses dos territórios ocupados.

A chegada de Biden à Arabia Saudita foi marcada por um gesto simbólico: a viagem do avião presidencial diretamente de Israel à Arábia Saudita, rota até então interditada pelos árabes. Significativamente, em medida simultânea à presença de Biden no país, os sauditas informaram que tal proibição seria retirada, abrindo seu espaço aéreo à chegada de voos comerciais vindos de Israel.

A presença de Biden na Arábia Saudita causou reações desfavoráveis em sua própria base de apoio, os integrantes do Partido Democrata. Ainda durante a campanha eleitoral, Biden declarou que aquele seria um “país pária”. E expressão foi usada em razão do assassinato, em território turco, do jornalista árabe Jamal Khashoggi. A inteligência norte-americana responsabilizou diretamente o príncipe herdeiro, e homem-forte do regime saudita, Mohammed bin Salman, pelo assassinato. Assim, o encontro entre MBS, como Salman é conhecido, e Biden causou constrangimentos a ambas as partes.

Mas o pragmatismo falou mais alto porque, neste momento, a Arábia Saudita é um parceiro ainda mais importante para os EUA. E isso ficou caracterizado pela declaração conjunta ²emitida após o encontro. Nela, se destacam a questão energética, na qual a Arábia Saudita tem um papel fundamental na estabilização do mercado profundamente afetado pela guerra na Ucrânia, uma vez que é o segundo maior produtor de petróleo do mundo, e a questão de segurança, com ambos os países afirmando que é importante impedir que o Irã “interfira em assuntos internos de outros países, patrocine o terrorismo e atue para desestabilizar a região”.

Ainda em território saudita, Biden aproveitou uma reunião do Conselho de Cooperação do Golfo para se encontrar com os demais líderes dos países do Golfo Pérsico: Omã, Kuwait, Bahrein, Catar e Emirados Árabes Unidos (EAU). Além dos países do Golfo, também compareceram à reunião os líderes do Egito, Iraque e Jordânia. Nesse encontro, Biden disse que os EUA não abandonariam o Oriente Médio à China ou à Rússia, em referência à disputa que essas potências travam por influência na região.

A viagem de Biden ao Oriente Médio foi cheia de significados. Mostrou que dois antagonistas históricos, israelenses e árabes, possivelmente deixarão suas diferenças de lado para enfrentar um adversário comum, cada vez mais poderoso: o Irã. Deixou claro também que o Oriente Médio, quer por sua produção petrolífera, quer por sua posição geográfica privilegiada, ainda é uma área de fundamental importância para o jogo geopolítico das grandes potências, razão pela qual os norte-americanos continuarão a tentar fazer valer sua influência na região.

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¹ https://www.whitehouse.gov/briefing-room/statements-releases/2022/07/14/the-jerusalem-u-s-israel-strategic-partnership-joint-declaration/?utm_source=twitter

² https://www.whitehouse.gov/briefing-room/statements-releases/2022/07/15/the-jeddah-communique-a-joint-statement-betweeen-the-united-states-of-america-and-the-kingdom-of-saudi-arabia/




O assassinato de Shinzo Abe e o contexto geopolítico japonês



O assassinato do ex Primeiro-Ministro japonês Shinzo Abe, baleado pelas costas enquanto participava de um evento de campanha eleitoral de um aliado, na cidade de Nara, próxima a Osaka, no Japão, em 07 de julho, chocou os japoneses e surpreendeu o mundo. Não é o tipo de acontecimento que se espere ocorrer no Japão, um país onde assassinatos por armas de fogo são eventos raríssimos.

Abe renunciou ao cargo de Primeiro-Ministro, após ter sido o político que por mais tempo exerceu aquela função de forma ininterrupta na história do Japão, em 2020, alegando problemas de saúde, oportunidade em que a sua popularidade disparou. Seu desempenho no cargo, entre 2012 e 2020, se caracterizou, na economia, por uma série de medidas liberais apelidadas de “abenomics”, com aposta no livre mercado, estímulo à produção e equilíbrio fiscal. Manteve uma política externa de aproximação com os Estados Unidos e uma postura nacionalista que muitas vezes causou tensão com seus vizinhos, em especial, quando homenageou ex-combatentes da 2ª Guerra Mundial, reavivando feridas ainda abertas pelas atrocidades cometidas por soldados japoneses contra coreanos e chineses, naquele conflito. Suas tentativas de rever aspectos da constituição pacifista japonesa, promulgada ao término da guerra, com a finalidade de fortalecer as capacidades militares do Japão, também foi motivo de forte desconfiança, especialmente na China.

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Recorde-se que, pelo artigo 9º da constituição japonesa, de 1947, o país renuncia ao uso da força para a resolução de disputas internacionais. Tradicionalmente, o país não gasta mais do que 1% do PIB em Defesa. Abe tentou implementar políticas que mudassem essa realidade e revogassem o artigo 9º, sem sucesso.

Entretanto, o acirramento das tensões geopolíticas no entorno japonês nesses últimos anos reforçou, dentre os atuais líderes japoneses, a necessidade de se aumentar os investimentos em Defesa. Nesse sentido, durante a última reunião do Quad[1], realizada em maio, o Primeiro-Ministro Kishida Fumio afirmou a intenção de seu governo de levar o Japão a atingir, em 5 anos, o patamar de 2% do PIB em investimentos de Defesa, o nível mantido como parâmetro nos países integrantes da OTAN.

O Japão tem questões territoriais não resolvidas com seus vizinhos, Rússia e China. Com os russos, a principal questão é a posse das Ilhas Curilas do Sul, que estão sob a soberania da Rússia desde a 2ª Guerra Mundial e é reivindicada pelos japoneses desde então.

Ilhas Curilas / Fonte Economist.com

Com a China, a principal questão territorial envolve a posse das Ilhas Senkaku, chamadas pelos chineses de ilhas Diaoyu Dao e ocupada pelos japoneses desde o século 19. Além da questão territorial, na China – e também na Coreia do Sul – ainda são grandes os ressentimentos em relação aos japoneses, fruto do trauma causado pela invasão de seus territórios pelas tropas daquele país na 2ª Guerra Mundial, oportunidade em que os soldados nipônicos cometeram uma série de atrocidades contra as populações civis dos Estados invadidos.

Ilhas Senkaku – Fonte Wikipedia

Todas essas questões são agravadas pelo contexto geopolítico atual, de transição hegemônica, com a China incrementando exponencialmente seu poderio militar, especialmente suas capacidades aeronavais, e a Rússia travando uma guerra de alta intensidade em plena Europa.

A aceleração do desenvolvimento do poderio militar chinês e a guerra na Europa agravam a sensação de insegurança internacional, servindo de gatilho para um fenômeno amplamente conhecido nas relações internacionais: o dilema de segurança. Trata-se de uma situação na qual um Estado, notando a degradação da sua segurança por perceber como ameaçadoras atitudes de um país vizinho, resolve aprimorar sua própria segurança, investindo ainda mais em Defesa. Tal decisão tem efeito similar nos outros países, que também percebem tais medidas como ameaçadoras, o que estimula ainda mais sua própria escalada militar. Isso resulta em uma espiral de difícil controle, onde ambos os lados acabam por travar uma corrida armamentista.

A morte de Shinzo Abe, neste momento, e de forma tão traumática para uma sociedade pouco acostumada a assassinatos, ainda mais de seus líderes políticos, servirá de gatilho para uma reflexão sobre suas ideias, especialmente sua defesa de uma mudança constitucional que conceda mais espaço para que as forças armadas japonesas possam incrementar suas capacidades.

Desconfio que Shinzo Abe possa assistir, depois da morte, as mudanças que ele tentou implementar no Japão, sem sucesso.

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[1] Diálogo de Segurança Quadrilateral, também conhecido como Quad (em inglês: Quadrilateral Security Dialogue), é um fórum estratégico informal entre Estados Unidos da América, Japão, Austrália e Índia que é mantido por meio de cúpulas semirregulares, trocas de informações e exercícios militares entre os países membros. Saiba mais em https://www.theguardian.com/world/2022/may/24/what-is-the-quad-and-how-did-it-come-about




Os blindados das pequenas frações no Combate Urbano

Em 2010, eu era um jovem Tenente-Coronel instrutor da Seção de Operações Ofensivas na Escola de Comado e Estado-Maior do Exército. Fui convidado e escrevi meu primeiro artigo para uma revista do EB. A Sangue Novo, da AMAN, voltada para jovens oficiais e cadetes.

O tema do artigo era o os blindados no combate urbano. Relendo, acho que o artigo envelheceu bem, com vários conceitos valendo para a guerra da Ucrânia.

Deem uma olhada!

Os blindados das pequenas frações no combate urbano




Disputa geopolítica no Pacífico



As Ilhas Salomão, um arquipélago localizado no sudoeste do Oceano Pacífico, normalmente não recebe destaque nos noticiários internacionais. Isso mudou recentemente, no último mês de abril, quando os governos de Pequim e de Honiara assinaram um acordo bilateral de segurança.

Ilhas Salomão

O acordo prevê o incremento das capacidades de segurança do arquipélago. Inclui ainda cooperação em assistência humanitária, resposta a desastres e esforços para manter a ordem social, entre outros aspectos. O acordo ainda autoriza que navios chineses utilizem os portos do arquipélago para fazer reabastecimentos, manutenção e escalas.

Os EUA e seus aliados no Pacífico Sul – Austrália e Nova Zelândia – viram com preocupação o acordo. A posição estratégica das ilhas – que na Segunda Guerra Mundial marcaram o início da contraofensiva norte-americana contra os japoneses no Pacífico – permite que a China amplie significativamente seu alcance militar no Pacífico Sul. Essas preocupações ocorrem a despeito das afirmações de autoridades, tanto chinesas quanto das Ilhas Salomão, negando a intenção de se instalar uma base militar chinesa nas Ilhas.

A presença chinesa em um arquipélago próximo acionou os alertas de segurança na Austrália. O assunto se tornou importante tema de debates bem na época em que ocorreram as eleições. O novo primeiro-ministro, Anthony Albanese, imediatamente após tomar posse, enviou sua chanceler para as Ilhas Fiji. “Está muito claro que a China está buscando estender sua influência ao que tem sido desde a Segunda Guerra Mundial… a região do mundo onde a Austrália tem sido o parceiro de segurança preferido“, Albanese declarou. Um exemplo do envolvimento da Austrália em questões de segurança na região foi a Missão de Assistência Regional às Ilhas Salomão (RAMSI). Entre 2003 e 2017, a Austrália liderou uma missão militar de assistência integrada por 15 países do Pacífico, com a finalidade de controlar a violência étnica que explodira nas Ilhas Salomão.

Não é de agora que os chineses tratam com mais atenção as nações insulares do Pacífico. O investimento chinês naquela região subiu de US$ 900 milhões, em 2013, para US$ 4,5 bi, em 2018. Um aumento de 400% em 5 anos. De 2010 a 2020, o comércio total de produtos da pesca entre a China e as ilhas do Pacífico aumentou de US$ 35 milhões para US$ 112 milhões.

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Os EUA, por sua vez, fecharam sua embaixada nas Ilhas Salomão em 1993, em um exemplo da negligência norte-americana para com os países insulares do Pacífico. Esse descuido não combina com a visão geopolítica daquele país para com a região. Em 1954, o presidente Dwight D. Eisenhower declarou que os EUA deveriam manter o Pacífico como um “lago americano”. Os americanos têm uma forte presença militar na região por meio do Comando do Indo-Pacífico, com cerca de 375 mil militares e civis, 2.460 aeronaves e 200 embarcações, incluindo 5 Grupos tarefas de ataque, liderados por navios aeródromos. Recentemente, o país divulgou sua Estratégia para o Indo-Pacífico[1], reiterando sua prioridade para a região. Mas, talvez, os norte-americanos tenham concentrado demais suas atenções no Sudeste e Sul asiáticos, deixando de lado os países insulares da Polinésia e da Micronésia. Entretanto, após a divulgação do acordo entre chineses e salomonenses, os EUA anunciaram a reabertura de sua embaixada no país.

O Presidente Biden recentemente retornou de sua visita à Coreia do Norte e ao Japão, onde se reuniu com os chefes de governo dos países do “Quad”, composto, além dos EUA, por Japão, Índia e Austrália. O “Quad” é o “Diálogo Quadrilateral de Segurança”, criado em 2004, em razão do Tsunami, foi revitalizado nos últimos anos como um instrumento de contenção da China. Além disso, na mesma viagem, os EUA lançaram o “Indo-Pacific Economic Framework for Prosperity (IPEF)” com doze parceiros iniciais: os outros três integrantes do Quad, Austrália, Índia, e Japão, mais Brunei, Indonésia, Coreia do Sul, Malásia, Nova Zelândia, Filipinas, Cingapura, Tailândia e Vietnã. Juntos, estes países representam 40% do PIB mundial.

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Os chineses, por sua vez, não restringiram suas ações ao acordo com as Ilhas Salomão. O chanceler chinês Wang Yi, acabou de encerrar uma viagem de dez dias por oito países insulares: as próprias Ilhas Salomão, Kiribati, Samoa, Fiji, Tonga, Vanuatu, Papua Nova Guiné e Timor Leste. Em Fiji, houve um encontro entre os ministros das relações exteriores da China e dos demais países da região. Nesta reunião, os chineses tentaram estabelecer um acordo amplo, envolvendo dez países, que abrangeria vários aspectos, de segurança à pesca. Mas o acordo não foi assinado porque os países não conseguiram chegar a um consenso. Apesar de ter falhado no objetivo de conseguir um acordo amplo, a China assinou, durante a viagem, uma série de acordos bilaterais com vários países.

Como se vê, China e EUA encontram-se em meio a uma acirrada disputa por influência geopolítica na Ásia. Os EUA, a potência até aqui hegemônica no sistema internacional, não quer perder espaço para a China, potência emergente. Nessa dinâmica, cada vez mais, seus interesses ficarão justapostos, causando tensão e atrito. Espera-se que ambos consigam escapar da chamada Armadilha de Tucídides, expressão criada por Graham Alisson para explicar por que, ao longo da história, potências emergentes muitas vezes acabaram por ir à guerra contra as potências até então líderes do sistema internacional.

Este texto foi originalmente publicado no site Hoje no Mundo Militar

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[1] Ver artigo publicado aqui




A Finlândia e a Suécia na OTAN



O presidente da Rússia, Vladimir Putin, sempre deixou bastante claro que a principal razão para a invasão da Ucrânia era a ameaça que a possível adesão daquele país à OTAN representava para a segurança da Rússia.

A forte objeção não se deve, apenas, ao fato de ser a Ucrânia um país intimamente ligado à Rússia, com raízes históricas comuns, que estaria se afastando da órbita de influência russa em direção à Aliança Ocidental e à União Europeia. Mas, principalmente, sempre segundo a linha de raciocínio do presidente Putin, tratar-se-ia de mais um passo da contínua expansão da OTAN em direção às fronteiras russas. Afinal, as antigas ex-repúblicas soviéticas, Letônia, Estônia e Lituânia, além dos antigos aliados do Pacto de Varsóvia, Polônia, Bulgária, Romênia, Hungria, República Tcheca e Eslováquia, já integram a OTAN. Ver a Ucrânia se juntar a esse grupo não é aceitável para presidente russo.

Expansão da OTAN
Fonte – BBC

Dessa forma, se entende a contrariedade que o presidente Putin certamente está experimentando ao ver que a Suécia e a Finlândia, países historicamente neutros, manifestarem o firme propósito de aderir à OTAN.

A Suécia não faz parte de nenhuma aliança militar há mais de 200 anos, desde as guerras napoleônicas, e também manteve a neutralidade durante a Segunda Guerra Mundial. A Finlândia, por outro lado, tornou-se neutra após perder cerca de 10% de seus territórios para a então União Soviética, na Segunda Guerra Mundial.

A mudança de postura dos dois países nórdicos é surpreendente e reflete as grandes alterações no ambiente de segurança da Europa após a invasão russa à Ucrânia, em 24 de fevereiro. A percepção da ameaça se tornou palpável e a guerra de conquista de território, uma possibilidade impensável até pouco tempo, ainda mais na Europa, mostra-se real. E essa sensação de insegurança se refletiu na opinião pública finlandesa e sueca. Pesquisas de opinião feitas em fevereiro indicavam que apenas 53% dos finlandeses eram favoráveis à adesão à OTAN. Hoje, os índices mudaram bastante, informando que 76% da população passou a ser favorável à adesão.

A entrada na OTAN depende de um rito que, se depender das declarações do Secretário-geral da organização, Jens Stoltemberg, um Norueguês, será acelerado ao máximo. Entretanto, pode haver algumas dificuldades. Segundo as normas da organização, a aceitação de um novo integrante depende da concordância unânime de todos os seus membros.

O presidente da Turquia, Recep Erdogan, deu a entender que seu país seria contrário à entrada ao declarar que Estamos acompanhando o desenvolvimento da situação com a Finlândia e a Suécia, mas não temos certeza [sobre esse assunto]. Os países nórdicos são uma hospedaria para organizações terroristas”. Erdogan está se referindo a cidadãos turcos que o regime considera ligados a atividades terroristas curdas que são recebidos como refugiados em ambos os países nórdicos. O presidente turco ainda se referiu à Grécia, ao afirmar que foi um erro da OTAN aceitar aquele país como membro, no passado.

Apesar dessas manifestações do presidente turco, é pouco provável que a Turquia, quando chamada formalmente a se manifestar no âmbito da OTAN, realmente vete a entrada de suecos e finlandeses. Seria politicamente muito difícil sustentar tal posição na Aliança, colocando-se em posição antagônica a praticamente todos os parceiros justamente em um momento de crise. A Finlândia formalmente integrada à OTAN agregará 1.340 km de fronteira direta entre a Rússia e os aliados, praticamente dobrando a extensão atual, que é de 1.215 Km. Por sua vez, suecos na OTAN representam um grande aumento na segurança e na dissuasão da Aliança no Mar Báltico, uma região de capital importância para os interesses estratégicos russos.

Quase três meses depois do início da invasão à Ucrânia, os russos sofrem um duro revés político-estratégico. O fortalecimento da OTAN resultante da ação militar russa se constitui em um desfecho absolutamente contrário aos objetivos de Putin. Resta saber quais serão as respostas russas a esses acontecimentos.

Este texto foi originalmente publicado no site Hoje no Mundo Militar

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Chineses e taiwaneses prestam atenção à Ucrânia

Estrategistas de todo o mundo estão atentos aos acontecimentos em curso na invasão russa à Ucrânia. Por dever de ofício, são obrigados a analisar os acontecimentos não só no campo militar, mas também em seus aspectos políticos, econômicos, sociais, culturais e tecnológicos.

Mas há dois grupos de analistas especialmente interessados nos desdobramentos do conflito: os chineses e os taiwaneses. A razão para isso está no paralelismo que pode ser encontrado nas aspirações russas de absorver parte do território ucraniano com a possibilidade de os chineses também conduzirem uma operação militar para reintegrar Taiwan à soberania da China continental.

É importante, de início, deixar claras as diferenças existentes entre os dois casos. Em primeiro lugar, relembre-se que a Ucrânia é um país soberano, reconhecido por todos os países do mundo, inclusive pela Rússia. Já Taiwan, embora na prática seja um ente político independente, não é reconhecido desta forma pela comunidade internacional. A ampla maioria dos países reconhece a República Popular da China e, por consequência, formalmente concorda com princípio de “uma só China”, que aquele país advoga como exigência fundamental para o estabelecimento de relações com qualquer nação.

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A política externa da Rússia e da China em relação ao uso de suas forças armadas como instrumento de projeção de poder também apresenta diferenças. Os russos enviam tropas ao exterior para operações militares com frequência, como na própria Ucrânia, em 2014, além de Geórgia, Síria, Belarus e Casaquistão, sem falar no grupo mercenário Wagner, que trabalha em perfeito alinhamento com os interesses russos em dezenas de países. Já os chineses, embora tenham adotado um comportamento mais assertivo nos últimos anos, especialmente por intermédio de sua marinha no Mar do Sul da China, excetuando-se os contingentes que compõem as missões de paz da ONU, desdobrou tropas para uma ação militar no estrangeiro pela última vez na campanha contra o Vietnã, no já longínquo ano de 1979.

Para os russos, que negaram até o último instante a intenção de invadir a Ucrânia, a causa da guerra está ancorada nas preocupações com uma Ucrânia cada vez mais sob a influência do Ocidente, caminhando para uma adesão à Otan que, desde o ponto de vista da Rússia, representaria uma ameaça à sua segurança. Já para os chineses, que nunca negaram a possibilidade de agir militarmente, a reunificação de Taiwan é um objetivo permanente a ser perseguido, reiterado em várias oportunidades pelo presidente Xi Jinping e presente em diversos documentos do Estado chinês.

Mas, se as diferenças são marcantes, são as semelhanças que atraem os estrategistas de ambos os lados do Estreito de Taiwan a se debruçarem sobre algumas questões: a comunidade internacional reagiria no caso de uma invasão chinesa a Taiwan de forma semelhante à adotada no caso ucraniano? A surpreendente resiliência ucraniana na defesa de sua pátria seria reproduzida também pelos defensores da ilha de Taiwan? O Exército de Libertação Popular da China, muito menos experimentado em combate que o poderoso exército russo, enfrentaria as mesmas dificuldades operacionais e logísticas que são observadas pelos invasores da Ucrânia?

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A reação da comunidade internacional a uma invasão a Taiwan seria modulada principalmente pela provável aceitação, por muitos países, da narrativa chinesa de que se trataria de uma questão interna, e não de uma agressão a um país estrangeiro, uma vez que Taiwan não é um Estado soberano. Este seria um pretexto ideal para todos os países que, em razão dos enormes interesses econômicos envolvidos, dependem da manutenção de boas relações com a China. Mas, certamente, essa não seria a posição dos EUA e seus principais aliados: Canadá, cerca de três dezenas de países da Europa Ocidental, Austrália, Japão e Coreia do Sul. A este conjunto restariam a alternativa pouquíssimo provável de atuar militarmente em apoio a Taiwan ou a replicação das sanções econômicas – como impostas à Rússia –, com a enorme diferença de que sancionar a China, maior parceira econômica da maior parte das nações do mundo, é tarefa muitíssimo mais complicada do que embargar economicamente a Rússia.

Taiwan, ao que parece, já percebeu, observando a invasão da Ucrânia, que estará sozinha no campo militar, caso seja invadida. Várias recentes notícias dão mostras de que a ilha se prepara para a hipótese de ter de se defender sozinha. O anúncio da possível ampliação do tempo do serviço militar obrigatório, a aquisição de sistemas antiaéreos Patriot, dos EUA, e o desenvolvimento próprio de um míssil com alcance de 1.200 km, assim capaz de atingir importantes cidades chinesas, são exemplos claros dessa atitude.

As diferenças e semelhanças da guerra na Ucrânia com uma possível crise no Estreito de Taiwan, como se vê, merecem ampla reflexão. Esperemos que as conclusões sejam as que levem à solução pacífica das controvérsias e à paz mundial.

Este artigo foi originalmente publicado no jornal O Estado de S. Paulo, em 03/05/2022

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O fantasma do emprego de uma bomba nuclear volta a assombrar

A possibilidade de emprego de uma arma nuclear tática pelos russos, na guerra da Ucrânia, embora remota, não pode ser descartada. Antes de tratar desta possibilidade assustadora, vejamos como tudo começou.

A Era nuclear, ou atômica, teve início com o teste do primeiro artefato dessa natureza, no deserto do Novo México, nos EUA, em 16 de julho de 1945. Cerca de mês depois, os EUA lançariam as duas únicas bombas nucleares lançadas até hoje em uma situação de conflito, sobre as cidades japonesas de Hiroshima (06 de agosto 1945) e Nagasaki (09 de agosto 1945).

Em Hiroshima, apenas uma fração de segundo após a detonação, a temperatura ao nível do solo ultrapassou 7.000o C e uma poderosa onda de choque varreu a paisagem. De uma população de 343.000 habitantes, cerca de 70.000 pessoas morreram instantaneamente, e até o final do ano, o número de mortos ultrapassou 100.000. Dois terços da área da cidade foram destruídos. “Sombras nucleares” eram tudo o que restava das pessoas que haviam sido submetidas à intensa radiação térmica. Uma enorme nuvem em forma de cogumelo subiu a uma altura de mais de 12 km.

Na manhã de 09 de agosto, os soviéticos, que acabavam de declarar guerra ao Japão, já haviam invadido a Manchúria e as ilhas Sakalinas. Os japoneses, mesmo atacados em Hiroshima, não falavam em rendição. Então aconteceu o ataque a Nagasaki, com 40 mil vítimas instantâneas. No dia 14, os japoneses aceitavam os termos aliados. Era o fim da 2ª Guerra Mundial. O impacto do ataque norte-americano causou profundas transformações na forma como os estrategistas da época passaram a encarar as possibilidades de conflitos entre potências nucleares.

A estratégia atômica, ou melhor, a aplicação pela estratégia das consequências da arma atômica, produziu importantes reviravoltas na concepção do emprego das forças, sob o ponto de vista da guerra ou da manutenção da paz.

A arma atômica não é uma arma como as outras, apenas mais poderosa. Por sua potência, ela está fora de proporção com tudo que a humanidade havia conhecido até o seu desenvolvimento. Além disso, os vetores que transportam as armas nucleares podem atingir qualquer local do Globo terrestre, com precisão notável, com uma rapidez que, na maior parte das vezes, inviabiliza uma resposta defensiva. Esses vetores compõem a capacidade de lançamento de um arsenal nuclear, comumente conhecida por “tríade nuclear”. Os componentes dessa tríade são os mísseis balísticos intercontinentais terrestres, os bombardeiros estratégicos e os mísseis balísticos lançados por submarinos.

Essa característica de incomparável poder destrutivo, os terríveis efeitos da radiação nuclear, aliada ao fato de poder ser lançada sobre qualquer ponto da Terra pelos modernos meios de lançamento, criou uma situação inteiramente nova: uma única bomba passou a ser capaz de produzir os efeitos que antes só poderiam ser alcançados com enormes quantidades de bombas, granadas, aviões, canhões e obuseiros.

As bombas nucleares liberam sua energia pelos processos de fissão ou fusão nuclear, ou pela combinação dos dois processos. As bombas de fissão são comumente chamadas de bombas atômicas. As bombas de fusão são as termonucleares, ou de hidrogênio. Seu poder destrutivo é de tal magnitude, que duas unidades de medidas tiveram que ser criadas: o quiloton, que corresponde 1.000 Ton de TNT, e o megaton, que corresponde a 1.000.000 Ton do mesmo explosivo. A bomba de Hiroshima, por exemplo, era de cerca de 15 quilotons. A maior bomba já testada, a russa “Tsar”, chegou à inacreditáveis 57 megatons, potência suficiente para destruir uma grande cidade, do porte das maiores capitais do mundo.

As armas nucleares tiveram um imenso e rápido desenvolvimento durante a Guerra Fria, o enfrentamento entre os EUA e seus aliados, de um lado, e União Soviética e seus satélites, de outro, entre 1945 e 1991. Para se ter uma ideia, em 1966, o arsenal nuclear norte-americano alcançava cerca de 32 mil armas, de 30 diferentes tipos. Os soviéticos, por sua vez, em 1988 chegaram a possuir um arsenal de 33 mil bombas. Após a desintegração da URSS, seu arsenal foi herdado pela Rússia.

Mas EUA e Rússia não são os únicos países possuidores de armamento nuclear. Reino Unido, França, China, Índia, Paquistão, Coreia do Norte e Israel, embora este último país não reconheça, também possuem tais armas em seus arsenais.

Na Guerra Fria, cada um dos lados se deparou com a realidade de que a única maneira de evitar um ataque nuclear por parte do adversário, que certamente resultaria na destruição completa do Estado, seria impor ao oponente o medo de represálias. Para isso, era preciso possuir uma força de ataque de potência suficiente para desviar o adversário do propósito de empregar a sua força. É a chamada Estratégia da Dissuasão.

dissuasão repousa antes de tudo sobre o fator material: é preciso ter um grande poder de destruição, um alcance adequado e uma boa precisão. Outro fator a se considerar é, qual dos dois partidos será o primeiro a atirar. Este cálculo não tinha grande importância na época dos aviões relativamente lentos, porque os prazos de execução decorrentes do alerta eram tais que o ataque e a resposta se cruzavam no ar.

Com os mísseis, entretanto, não há mais dissuasão se a primeira rajada do atacante possuir capacidade de destruição tal que a resposta do defensor seja consideravelmente enfraquecida. Assim, o valor da dissuasão encontra-se ligado não à potência de fogo da força de ataque, mas à sua potência de fogo restante, após ter sofrido os efeitos da primeira rajada do defensor.

Assim, é importante o fator psicológico. O que se quer é impressionar o adversário até o ponto de impedi-lo de usar sua força de ataque. Então é preciso, antes de mais nada, ter uma capacidade de destruição tal que ele a tema suficientemente. Em seguida, é imperioso levá-lo a crer que se é capaz de desencadear uma represália em resposta, ou numa primeira rajada, qualquer que seja a hipótese.

Todos os cálculos levados em consideração para o desenvolvimento da Estratégia da Dissuasão Nuclear levavam em consideração as armas nucleares estratégicas. É sobre elas que estamos a falar até este ponto. São as armas de grande poder destrutivo que podem ser levadas pelos vetores da tríade nuclear a qualquer parte do Globo Terrestre.

Mas, e aqui começamos a nos aproximar da questão referente ao temor que envolve o atual conflito na Ucrânia, existem também as chamadas armas nucleares táticas. Elas são armas de muito menor poder explosivo, desenvolvidas para serem utilizadas no campo de batalha, mesmo na proximidade de tropas amigas ou em territórios em disputa ou contestados.

Podem ser bombas de gravidade, lançadas por bombardeiros, ou podem ser mísseis de curto alcance, granadas de artilharia, minas terrestres, cargas de profundidade, ou torpedos que estejam equipados com cabeças de guerra nucleares. Não há uma definição universalmente aceita para a potência de tais armas, mas elas podem ser bastante limitadas, de 0,5 a 5Kt, por exemplo.

Estima-se que, hoje em dia, a Rússia possua cerca de 2 mil armas nucleares táticas em seus arsenais. Dois sistemas de armas que podem conduzir em seus mísseis cabeças de guerra deste tipo são o “Kalibr”, míssil lançado a partir de submarinos e o “Iskander”, lançado de plataformas terrestres móveis.

Os russos utilizam em seus planejamentos militares uma estratégia chamada de “Escalar para Desescalar”. Tal ideia pressupõe uma ação de alto impacto — como o lançamento de uma arma nuclear tática no campo de batalha — de modo a causar tamanha repercussão no adversário, e na sua opinião pública, que ele será forçado a recuar.

A preocupação, cada vez maior, é a de que o presidente Putin, caso sinta-se encurralado, ou perceba que seus planos na Ucrânia estão falhando e pressinta que o insucesso pode ameaçar até mesmo sua permanência no poder, determine o uso de uma bomba nuclear tática como um “divisor de águas”, para reverter a situação e evitar a derrota.

Tal cálculo leva em consideração a premissa, provavelmente verdadeira, de que o uso de uma bomba atômica de pequeno porte não provocaria uma reação no Ocidente que causasse uma confrontação nuclear. Para isso, o alvo seria cuidadosamente escolhido para, mesmo provando a determinação russa de usar tal arma, causar uma destruição limitada, não muito diferente da que está atualmente em curso na guerra.

É claro que esta não é uma decisão simples e fácil de ser tomada. Putin quebraria um tabu e seria o primeiro líder a usar tal armamento desde Hiroshima e Nagasaki. Outro aspecto a ser considerado é o de que ele afirma que os povos russo e ucraniano são na verdade um só povo, o que o colocaria na absurda posição de lançar uma arma atômica contra aqueles que seriam, nas suas próprias palavras — seus compatriotas. Há ainda o fortíssimo impacto que tal atitude teria na opinião pública internacional e nos governos de todo o mundo, inclusive naqueles que lhe são favoráveis. A China e a Índia, por exemplo, teriam muita dificuldade em apoiar a Rússia em uma atitude como essa. O emprego da arma nuclear certamente significaria, portanto, o completo isolamento da Rússia no cenário internacional.

Mas, como a própria invasão da Ucrânia comprovou, Putin nem sempre toma as decisões consideradas mais racionais. Assim, é bom recordar dos conselhos dados por Sun Tzu, o autor da magistral obra Arte da Guerra, escrita há 2.500 anos. O general chinês aconselhava, no capítulo VII do livro, a quando cercar um exército, deixar uma saída, pois um inimigo aflito e sem escapatória poderá tomar medidas desesperadas para tentar sobreviver.

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As Ilhas Salomão são novo palco de disputa geopolítica no Pacífico



O recente anúncio de um de acordo entre a China e as Ilhas Salomão, um arquipélago formado por centenas de ilhas localizado a cerca de 2 mil quilômetros da Austrália causou apreensão na própria Austrália, na Nova Zelândia e nos Estados Unidos.

O acordo possibilitará que a China utilize os portos da capital Honiara para reabastecimento e ressuprimento dos navios da sua marinha. O texto ainda prevê a possibilidade de a China manter efetivos militares na ilha, com a finalidade de proteger empresas e cidadãos chineses, além de um acordo que forneceria “imunidade legal e judicial” para todo o pessoal chinês.

O aumento da influência chinesa na área acende a disputa geopolítica em curso na região do Indo-pacífico. Para se compreender melhor esse fenômeno, é necessário entender as condicionantes históricas e geopolíticas das Ilhas Salomão.

O arquipélago, constituído por seis ilhas principais e centenas de ilhas menores, localiza-se a leste de Papua Nova Guiné, a cerca de 2.000 Km da Austrália.

Figura 1 – Ilhas Salomão / Fonte – Google Maps

No ano de 1900, alemães e britânicos entraram em acordo, com os ingleses efetivando seu domínio colonial sobre o arquipélago. Durante a Segunda Guerra Mundial, as ilhas foram palco de várias batalhas entre japoneses e aliados. A vitória aliada na batalha de Guadacanal, em agosto de 1942, marcou o ponto de virada do conflito naquele Teatro de Operações, com os norte-americanos freando o avanço japonês e iniciando a contraofensiva.

Somente em 1978 as ilhas se tornaram independentes do Reino Unido, passando a integrar a Comunidade Britânica. A partir do final dos anos 1990, a violência étnica tomou grandes proporções no país, com o surgimento de movimentos nacionalistas nas ilhas de Guadacanal e Malaita. Em 2001, a crise econômica tomou graves proporções e o Estado faliu, incapaz de arcar com suas obrigações.

Em 2003, a Austrália liderou uma missão de pacificação nas ilhas, denominada Missão de Assistência Regional às Ilhas Salomão (RAMSI), que contou também com tropas da Nova Zelândia e Papua Nova Guiné, além de outras nações insulares do Pacífico. Essa missão se estendeu até 2013, quando foi encerrada, com o retraimento da maior parte das tropas. Entretanto, pequenos efetivos ainda foram mantidos em missão de “assistência policial”.

Em 2019, Manasseh Sogavare, político influente desde 2000, é eleito primeiro-ministro e Salomões muda sua política em relação à China. O país, que tinha um antigo relacionamento com Taiwan, corta relações com os taiwaneses e celebra relações com os chineses. A decisão não encontra unanimidade no país. O líder político da ilha de Malaita critica com veemência a mudança e sugere que a ilha deveria buscar independência.

Visto o contexto histórico que emoldura a atual aproximação da China com o arquipélago, passemos a algumas observações de caráter geopolítico.

A China tem sua saída para o Oceano Pacífico contida por duas cadeias de ilhas.

Figura 2 – Duas cadeias de ilhas / Fonte wikipedia

As duas cadeias de ilhas foram definidas pelos EUA e seus aliados, na década de 1940, como uma forma de conter a então União Soviética e a China Comunista. Assim, tais ilhas, se mantidas dentro da esfera de influência norte-americana, serviriam de obstáculo ao avanço dos interesses dos adversários dos EUA na região do Pacífico. A primeira cadeia de ilhas compreende as Curilas, as principais ilhas do Japão, Okinawa, Taiwan, a parte norte dos arquipélagos das Filipinas, e a Península Malaia. A segunda cadeia consiste nas ilhas do Japão que se estendem até Guam e as ilhas da Micronésia.

Os chineses sabem que para se tornar um poder dominante na Ásia precisam controlar as rotas marítimas do Oceano Pacífico. Por isso, eles têm dado prioridade à sua marinha, que tem se desenvolvido de forma impressionante nos últimos anos. Ela é, atualmente, em número de navios, a maior marinha do mundo, com cerca de 350 plataformas, dentre navios de superfície, submarinos, navios de assalto anfíbio, navios-aeródromo (porta-aviões), navios anti-minas, dentre outros.

O Livro Branco de Defesa da China, de 2019, ressalta que a marinha do país está deixando o patamar de ser uma marinha que faz a “defesa dos mares próximos” para passar a ser uma marinha que cumpre “missões de proteção em mares distantes”.

A marinha é composta por seus meios navais, sua aviação e pelo corpo de Fuzileiros Navais. Dispõe de três frotas, subordinadas aos Teatros Norte, Leste e Sul. Conta com dez submarinos nucleares, sendo quatro lançadores de mísseis intercontinentais e seis de ataque, além de outros 50 submarinos convencionais. Conta, ainda, com dois porta-aviões, um deles construído localmente.

O Corpo de Fuzileiros Navais, com 8 Brigadas, tem aumentado sua capacidade anfíbia, com foco no Mar do Sul da China e em Taiwan. Além disso, eles mobíliam a base que a China mantém no Djibuti.

Apoiada nesse poderio militar, a China vem estabelecendo instalações de comunicações, campos de pouso e portos, posições fixas de armas e guarnições militares nas Ilhas Spratly, no Mar do sul da China, desde 2018.

Figura 3 – Mar do Sul da China / Fonte wikipedia

A Guarda Costeira Chinesa, por sua vez, frequentemente assedia embarcações de pesca e pesquisa de outros Estados com os quais o país disputa a posse e a exploração econômica no Mar do Sul da China. São recorrentes episódios como aquele em que um navio de guerra chinês marcou a laser um navio da Marinha das Filipinas, ou outro, em que um navio de pesquisa chinês entrou ilegalmente na zona econômica exclusiva marítima da Malásia e perseguiu um navio contratado de uma empresa estatal de petróleo daquele país. Há também casos em que navios da Guarda Costeira chinesa assediaram navios de pesca japoneses nas Ilhas Diaoyu/Senkaku, disputadas entre os dois países (e também pelos taiwaneses, que as denominam Tiaoyutai).

Figura 4 – Ilhas Senkaku/Dyaoyu / Fonte wikipedia

O assédio de navios estrangeiros de Diaoyu/Senkaku até a Península Malaia, e a militarização das ilhas contestadas, no sul, expõe a intenção e a estratégia da China de controlar a primeira cadeia de ilhas, aspiração que somente poderá ser alcançada, de fato, com o retorno de Taiwan à soberania chinesa.

O desenvolvimento de uma presença militar forte e permanente na primeira cadeia de ilhas daria à China o controle das principais rotas marítimas na Ásia e a ajudaria a se estabelecer como uma potência global dominante. Mas não seria suficiente. Projetar poder em áreas mais distantes, e além, inclusive, da segunda cadeia de ilhas, seria um passo decisivo.

A aproximação chinesa das Ilhas Salomão, quando observada em conjunto com outras ações estratégicas recentes, como a aproximação de Vanuatu, onde já se especulou a possibilidade de o país estar preparando a construção de uma base naval[1], de Papua Nova Guiné, transformada em parceira estratégica da China em 2018[2], das obras chinesas na Base Naval de Ream, no Camboja[3], além das atividades no Oceano Índico, como a aquisição do Porto de Hambantota no Sri Lanka[4], além do Porto de Gwadar, no Paquistão[5], demonstra claramente que as ambições do país vão muito além da primeira cadeia de ilhas.

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[1] Saiba mais em  https://www.smh.com.au/politics/federal/china-eyes-vanuatu-military-base-in-plan-with-global-ramifications-20180409-p4z8j9.html

[2] Saiba mais em https://www.scmp.com/news/china/diplomacy/article/2173654/china-agrees-upgrade-relations-strategically-important-papua

[3] Saiba mais em https://amti.csis.org/changes-underway-at-cambodias-ream-naval-base/

[4] Saiba mais em https://revistacargo.pt/hambantota-sri-lanka-china/

[5] Saiba mais em https://www.revistamilitar.pt/artigo/217




Um mês de guerra na Ucrânia



A invasão russa à Ucrânia, iniciada em 24 de fevereiro, completa seu primeiro mês. É hora de um balanço dos eventos em curso nos campos de batalha da Ucrânia, ressaltando-se que se trata de uma análise parcial, uma vez que a guerra está em andamento, e incompleta, em razão de só possuirmos os dados que nos chegam pela imprensa ou pelas mídias sociais.

Comecemos pelas razões políticas da guerra, afinal Clausewitz já ensinava que “A guerra é a continuação da política por outros meios”. Parece claro que Putin, ao decidir travar a guerra, tinha como seu principal objetivo político impedir a Ucrânia de entrar para a OTAN. Tal adesão, mesmo que informal, seria inaceitável para o presidente russo, que inclusive tem dificuldades em aceitar a própria existência da Ucrânia como nação soberana, como declarou reiteradas vezes[1].

No trigésimo dia de guerra, apesar de uma série de problemas no desenvolvimento tático da campanha, parece que a Rússia conseguirá, no mínimo, garantir que as províncias de Luhansk e Donetsk se separem de facto da Ucrânia. Também parece provável que o litoral sul do país, especialmente a leste da foz do Rio Dnieper, também seja separado da Ucrânia. A conquista da capital Kiev ainda não está garantida, mas se for conseguida, é provável que o atual governo se mude para alguma cidade ocidental do país, como Lviv, por exemplo. Na hipótese da Ucrânia resultar dividida da guerra, Putin talvez consiga o controle do território a leste do rio Dnieper. A pergunta que se impõe, a partir dessa hipótese, é a seguinte: terá valido a pena?

Para responder essa pergunta é necessário se analisar o que Putin esperava alcançar em relação à OTAN. A aliança militar Ocidental, criada para se antepor à União Soviética e – por extensão – à Rússia, vivia nos últimos anos um período de indefinição, para dizer o mínimo. Diversos países não cumpriam a meta acordada de investir 2% de seus PIB em defesa[2]. Os EUA, líderes da aliança, se voltavam com clareza para a região do Indo-Pacífico, criando novos arranjos como o “Quad[3]” – sua aliança com Japão, Índia e Austrália para conter a China – e a “Aukus”[4], o pacto militar entre EUA, Reino Unido e Austrália para a construção de um submarino nuclear pela Austrália, deixando aos poucos de priorizar a Europa. Não se pode esquecer, ainda, que há menos de três anos, em novembro de 2019, o presidente Macron declarava que a OTAN estava em “morte cerebral”[5].

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Pois bem, a invasão russa à Ucrânia teve o condão de reunir novamente os países da Aliança contra um inimigo comum. Países que vinham investindo pouco em defesa, sendo a Alemanha[6] o exemplo paradigmático, decidiram incrementar em muito seus investimentos na área. A Aliança reposicionou suas tropas e equipamentos, aumentando seus efetivos nos países do leste. Haverá, a partir de agora, na Europa e nos EUA, um novo e forte estímulo para se reforçar a OTAN em todos os seus aspectos. Se a Aliança Atlântica estava em morte cerebral, parece que a guerra a ressuscitou.

Apesar dos reiterados pedidos do presidente Zelenski, da Ucrânia, para que a OTAN intercedesse militarmente na guerra, especialmente pela garantia de uma zona de exclusão aérea sobre os céus da Ucrânia que impedisse as aeronaves russas de sobrevoar e, consequentemente, atacar com mais proximidade, alvos no país, a Aliança evitou se envolver diretamente, restringindo-se ao fornecimento de sistemas e material de emprego militar. Afinal, isso significaria um enorme risco de confronto direto entre aeronaves da OTAN e da Rússia. E, como afirmou o presidente dos EUA, Joe Biden, quando russos e norte-americanos trocarem tiros, isso significará a 3ª guerra mundial.

Aqui se vê com clareza que a estratégia da dissuasão[7] funcionou muito bem para o lado russo, evitando que a OTAN interviesse diretamente no conflito, claramente contida pela ameaça da escalada nuclear da guerra pelo lado russo. Por outro lado, os ucranianos não se mostraram suficientemente fortes para impedir os russos de atacarem, bem como os EUA e seus aliados que também foram incapazes de dissuadir os russos e evitar a invasão, apenas com as ameaças de “sanções econômicas nunca vistas”.

Mas, apesar de não evitarem a guerra, as sanções econômicas foram utilizadas com uma intensidade até aqui inédita, infligindo pesados custos econômicos à Rússia, mas também aos países e corporações que mantinham negócios como os russos. Foram impostas sanções a bancos e membros do governo e da elite econômica, incluindo o congelamento de ativos, restrições de viagens e exclusão de grandes bancos russos do sistema financeiro e do sistema de comunicação usado para transações internacionais (Sistema SWIFT). Outras medidas incluíram restrição de importações de petróleo, gás e carvão da Rússia, proibição da exportação de diversos produtos para o país, incluindo artigos de luxo, taxação sobre importação de produtos e restrições a aeronaves russas no espaço aéreo de diversos países.

As sanções atingiram diretamente também os cidadãos russos comuns, que de uma hora para a outra não puderam mais usar seus cartões de crédito e deixaram de contar com os serviços e a presença de diversas empresas ocidentais, de lojas de departamentos a lanchonetes, bancos, empresas de streaming, etc. Grandes empresas do setor privado, como Coca-Cola, McDonald’s, Starbucks e várias outras, suspenderam operações na Rússia. Certamente essa situação gera inúmeros transtornos aos cidadãos russos comuns, o que pode criar uma crescente insatisfação com as consequências práticas da operação militar em curso.

Aliás, na guerra, a percepção que a população tem da realidade é de suma importância. Dessa percepção advém o apoio ou não às operações, consequentemente, a legitimidade que cada um dos lados recebe, tanto de sua população quanto da comunidade internacional, para travar o combate.  Neste sentido, ocorre a disputa no campo informacional, com ambos os lados tentando impor sua narrativa. De um lado, os russos falam em “desnazificar” e “desmilitarizar” a Ucrânia, além de acusarem o governo de promover um “genocídio” contra as minorias russas do leste do país. Por outro lado, os ucranianos adotam a narrativa de “Davi x Golias”, do país injustamente agredido que luta pela própria sobrevivência, acusando os russos de atacarem civis e destruírem as cidades. A Ucrânia vem vencendo essa guerra, tanto pelo apelo da narrativa, muito mais facilmente compreensível pela opinião pública, que inclusive se mostra empática com o sofrimento da população atacada, quanto pela falta de verossimilhança da narrativa russa.

Nesse sentido, o sofrimento dos milhões de refugiados e deslocados pela guerra é muito palpável para os europeus, especialmente para os países mais de leste, como Polônia, Romênia e Moldávia. Em trinta dias de guerra já são cerca de 3,6 milhões de refugiados, um grande problema, com efeitos de longo prazo.

Finalmente, passemos a uma breve análise dos combates propriamente ditos. Os russos optaram por atacar a Ucrânia em quatro frentes. Uma que vem de Norte, de Belarus, em direção a Kiev. Outra que vem de Nordeste, em direção a Kharkiv. Há ainda a direção leste, na região de Donbas e a Sul, que vem da Criméia e dos mares de Azov e Negro.

Após um avanço inicial em todas as frentes, o movimento russo foi interrompido há cerca de dez dias, aproximadamente aonde se encontram as manchas vermelhas, no mapa.

As causas para a interrupção do movimento podem apenas ser especuladas, uma vez que não se dispõe de informações fidedignas a este respeito. Entretanto, é bastante provável que tenha ocorrido uma conjunção de fatores.

Em primeiro lugar o fator logístico. A tarefa de apoiar logisticamente uma invasão em território estrangeiro, de uma tropa de cerca de 190 mil homens, é gigantesca. Especialmente em se tratando, como é o caso, de tropas mecanizadas e blindadas. Os volumes de combustíveis e lubrificantes são contados nas casas dos milhões de litro por dia. Isso sem falar em rações e água, munição, material de intendência, como equipamentos, capacetes, barracas, coletes balísticos, dentre inúmeros outros itens, munições e explosivos, peças e conjuntos de reparação, armamento, etc. Aparentemente, pelos relatos vindos do front, muitos desses itens escassearam, especialmente combustível, o que exigiu um intervalo operacional para reorganização dos atacantes.

Um segundo aspecto a considerar é a obstinada defesa ucraniana, talvez em um nível inesperado pelas tropas russas. Apoiados pelo armamento fornecido pelos países ocidentais, em especial os mísseis anticarro e antiaéreos, os ucranianos vem utilizando muito bem o terreno, que conhecem profundamente, afinal lutam em seu próprio país, para vender caro cada palmo conquistado pelos russos. Os ucranianos estão adotando uma “defesa elástica”, uma técnica defensiva que permite avanços do inimigo para coloca-los em posição de serem emboscados. Ao mesmo tempo, realizam com muita frequência contra-ataques e ações ofensivas de pequena profundidade, fustigando e impondo elevadas baixas ao inimigo.

A interrupção do avanço caracteriza o que Clausewitz chamava de atingimento do “ponto culminante da ofensiva”, um momento nas operações em que o atacante é detido. Quando isso acontece, segundo o grande general prussiano do século 19, autor do clássico “Da Guerra”, algumas coisas podem acontecer: negociações de paz que ponham fim às hostilidades, mudança da atitude do atacante, que passa à defensiva, ou uma reorganização para retomar a iniciativa da ofensiva. No caso, vemos as três coisas acontecendo, embora a construção de posições defensivas pelos russos não seja generalizada e apenas ocorra em alguns locais aonde os ucranianos fazem pequenos contra-ataques, e as negociações de paz, até o momento, tenham se mostrado inconclusivas. O mais provável é que os russos retomem a ofensiva, após uma reorganização.

Ao mesmo tempo em que os russos perderam a impulsão do ataque, eles passaram a atuar mais fortemente com os fogos, aumentando a intensidade e a frequência dos ataques aéreos, de artilharia de campanha, de mísseis e de foguetes, sobre as posições ucranianas. Esses ataques, muitas vezes feitos a alvos nas cidades, têm causado grande destruição suscitando críticas da comunidade internacional pelo sofrimento causado aos civis e dúvidas quanto a legalidade das ações segundo o Direito da Guerra

A este respeito, é importante que se separem os dois corpos jurídicos que tratam da guerra. O primeiro é o “Jus ad bellum”, ou o direito à guerra, que trata da legitimidade para se travar a guerra. A Carta das Nações Unidas[8], assinada tanto por Rússia como por Ucrânia, obriga as nações a buscarem a resolução de disputas por meios pacíficos e requer autorização das Nações Unidas antes que uma nação possa iniciar qualquer uso da força contra outra. Entretanto, a própria carta resguarda o direito do país soberano de se defender em caso de agressão. Sob esse ponto de vista, a invasão da Ucrânia pela Rússia é claramente ilegal, uma vez que não foi autorizada pela ONU. Um exemplo histórico de outra invasão não autorizada a um país soberano – portanto ilegal – foi a do Iraque, pelos EUA, em 2003. Já a defensiva ucraniana, em seu próprio território, em face de uma invasão estrangeira, é perfeitamente justificada legalmente.

O segundo é o “Jus in bello”, ou o direito na guerra. Este parte da premissa de que, uma vez que a guerra existe e está sendo travada, os dois lados combatentes devem respeitar certas normas, acordadas em convenções como as de Genebra e outras, que limitem as ações no sentido de limitar o sofrimento causado pelo conflito. Esse corpo jurídico, que conforma o Direito Internacional dos conflitos Armados[9] (DICA), também chamado de Direito Internacional humanitário (DIH) é regido por princípios e é focalizado sob sua luz que as ações de ambos os contendores estão sendo observadas, e que os comandantes poderão ser responsabilizados ao fim das hostilidades.

Com trinta dias de guerra, não é possível, evidentemente, se afirmar com certeza o rumo dos acontecimentos. Como tentei demonstrar, a guerra é uma atividade muitíssimo complexa, submetida a uma infinidade de variáveis, que podem em determinado momento interagir de uma forma inesperada e descortinar novos e imprevisíveis cenários.

O panorama apresentado dos acontecimentos decorridos até o momento visa apenas mostrar, muito sumariamente, alguns dos diversos aspectos envolvidos, com o objetivo de auxiliar o leitor a compreender melhor os acontecimentos, contribuindo para a formação de suas próprias conclusões.

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[1] “George, você precisa entender que a Ucrânia não é um país.” Estas foram as palavras de Vladimir Putin ao presidente George W. Bush em Bucareste, na cúpula da Otan, em 2008. Disponível em https://internacional.estadao.com.br/noticias/geral,putin-conseguiu-colocar-os-eua-exatamente-onde-ele-queria-leia-artigo,70003959787

[2] Os 70 anos da OTAN. Disponível em https://paulofilho.net.br/2019/12/09/os-setenta-anos-da-otan/

[3] Estados Unidos fortalecem aliança com Japão, Índia e Austrália para conter avanço da China no Indo-Pacífico. Disponível em https://brasil.elpais.com/internacional/2021-09-25/estados-unidos-fortalecem-alianca-com-japao-india-e-australia-para-conter-avanco-da-china-no-indo-pacifico.html

[4] Aukus: o que é o pacto militar anunciado por EUA, Reino Unido e Austrália para conter a China. Disponível em https://www.bbc.com/portuguese/internacional-58582195

[5] Macron afirma que OTAN está em “morte cerebral’ Disponível em https://www.dw.com/pt-br/macron-afirma-que-otan-est%C3%A1-em-estado-de-morte-cerebral/a-51159104

[6] Alemanha investirá 100 bilhões de euros nas Forças Armadas. Disponível em  https://www.dw.com/pt-br/alemanha-investir%C3%A1-100-bilh%C3%B5es-de-euros-nas-for%C3%A7as-armadas/a-60937933

[7] A Estratégia da Dissuasão caracteriza-se pela manutenção de forças militares suficientemente poderosas e prontas para o emprego imediato, capazes de desencorajar qualquer agressão militar. Esta é a definição do Manual de Estratégia do Exército Brasileiro. Disponível em  http://www.coter.eb.mil.br/images/noticias/2020/294/Painel_de_Manuais.pdf

[8] Leia o Capítulo VII da carta, que trata das ações relativas a ameaças à paz, rupturas da paz e atos de agressão – http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1930-1949/d19841.htm

[9] Saiba mais consultando o manual do Ministério da Defesa sobre DICA – https://www.gov.br/defesa/pt-br/arquivos/File/legislacao/emcfa/publicacoes/md34a_ma_03a_dicaa_1aed2011.pdf