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Mil dias de guerra na Ucrânia

Na noite de 24 de fevereiro de 2022, a expectativa dos comandantes russos, do presidente Vladimir Putin e da maioria dos analistas militares era de que a invasão à Ucrânia seria resolvida em poucos dias. A previsão incluía a rápida capitulação das forças ucranianas e de sua liderança política, culminando em uma vitória acachapante da Rússia. Parecia impossível, ante ao desequilíbrio das forças militares, imaginar que a guerra se estendesse por muito tempo.

Hoje, mil dias depois, graças a uma surpreendente resistência inicial ucraniana, e a uma não menos surpreendente incompetência inicial das forças russas, bem como do socorro material prestado pelo Ocidente, que se organizou rapidamente após os primeiros dias do conflito, os combates prosseguem. Não sem ter cobrado um preço altíssimo, tanto das forças armadas e da sociedade ucraniana, quanto das forças invasoras.

A data de hoje marca, portanto, uma longa jornada de destruição e resistência, no maior conflito europeu desde a Segunda Guerra Mundial. A chegada do milésimo dia, entretanto apresenta um cenário preocupante, com novos episódios que ampliam os riscos de escalada do conflito.

O primeiro desses acontecimentos foi a chegada de milhares de soldados norte-coreanos, enviados para reforçar as tropas russas. Essa movimentação marca uma perigosa internacionalização das forças em conflito, no que parece ser uma intensificação do esforço da Rússia de expulsar as tropas ucranianas que invadiram a região de Kursk.

O segundo episódio é a utilização, até aqui inédita, pela Ucrânia, dos mísseis americanos ATACAM (Army Tactical Missile Systems) para bombardear um depósito de munições na cidade de Bryansk, a cerca de 100 quilômetros da fronteira. O ataque ocorreu apenas dois dias após o presidente dos EUA, Joe Biden, modificar sua posição inicial e autorizar o uso de armas fabricadas nos EUA – como os mísseis ATACMS – contra alvos em território russo. Essa autorização era uma aspiração antiga dos ucranianos, negada por cerca de dois anos – justamente pelo temor das autoridades americanas de que levasse o conflito a uma escalada que pudesse envolver diretamente a OTAN na guerra.

O terceiro é a resposta russa, que consistiu na mudança de sua doutrina nuclear. A nova versão, publicada hoje, prevê que ataques convencionais à Rússia, provenientes de países apoiados por potências nucleares, poderiam ser interpretados como ataques conjuntos e, portanto, poderiam ser respondidos com um contra-ataque nuclear. A nova orientação do documento foi delineada exatamente para o que acaba de acontecer: um ataque convencional ucraniano apoiado por uma potência nuclear, os EUA. Essa atualização aumenta o risco de uma escalada nuclear em resposta a ações que antes seriam tratadas apenas no âmbito dos conflitos convencionais

Isso não significa que seja plausível se imaginar que a Rússia vá usar uma bomba atômica contra um país da OTAN. Afinal, os russos sabem que estariam abrindo a Caixa de Pandora que poderia levar a um conflito nuclear de grandes proporções, o que implicaria na mútua destruição dos adversários.

Entretanto, abre uma janela para uma possibilidade muito preocupante: o uso de uma arma nuclear tática contra um alvo em território ucraniano. Os estrategistas russos poderiam partir da premissa de que o uso de uma bomba atômica contra um alvo em território ucraniano não provocaria uma reação nuclear da OTAN contra a Rússia, uma vez que não consistiria em um ataque direto a um país da Aliança. Essa premissa, bastante lógica, permitiria a conclusão de que o risco de uma “mútua destruição assegurada” resultante de um confronto entre potências nucleares estaria afastada. Tal ataque estaria alinhado com a estratégia de escalar o conflito ao máximo para conseguir a imediata rendição do adversário, estratégia conhecida na doutrina russa como “escalar para desescalar”. Seria, entretanto, uma medida gravíssima e sem precedentes desde 1945, que causaria uma enorme instabilidade no Sistema Internacional.

Como se vê, mil dias após o início do conflito, não há sinais de resolução. Mas, um fato novo terá uma enorme repercussão para os acontecimentos que estão por vir na Ucrânia: a eleição de Donald Trump.

O próximo presidente dos EUA assumirá daqui a 8 semanas, no dia 20 de janeiro, e parece disposto a cumprir sua promessa de impor a paz na Ucrânia. Entretanto, sua única ferramenta para isso parece ser a completa retirada do apoio americano à Ucrânia, o que obrigaria Kiev, por absoluta falta de meios para manter um conflito de alta intensidade, a sentar-se à mesa para negociar sob condições bastante desvantajosas. Isso provavelmente implicaria em grande perda territorial e a uma mitigação de sua soberania, pois provavelmente o país teria que concordar com termos que impedissem sua entrada para a OTAN e que, no mínimo, atrasassem uma eventual adesão à União Europeia.

Tal decisão, se concretizada, colocaria a comunidade internacional diante do dilema de chancelar os resultados de uma guerra de conquista – um ato ilegal segundo o Direito Internacional. Seria a constatação da vigência, em pleno século 21, do descrito por Tucídides, há 2,5 mil anos, no famoso Diálogo Meliano: “Os fortes fazem o que podem, e os fracos sofrem o que devem”.

O efeito colateral de um acordo nesses termos será uma exacerbação das tensões e uma corrida dos fracos para se tornarem fortes. Assim, o eventual cessar dos canhões na Ucrânia por imposição de Trump pode não anunciar um novo período de paz, mas apenas um breve interregno antes do surgimento de um novo conflito.

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Primeiras impressões sobre o ataque israelense ao Irã

Esperada há quase um mês, a resposta israelense ao ataque iraniano do dia 1º de outubro finalmente ocorreu. Abaixo, compartilho o que sei até agora, com algumas reflexões sobre o que pode estar por vir:
1. A força aérea de #Israel conduziu, na noite de ontem (horário de Brasília, madrugada em Teerã), um ataque ao Irã. Utilizando cerca de 100 aeronaves de combate, entre caças e drones armados, os ataques se concentraram em aproximadamente 20 alvos de natureza militar. Divididos em três levas, os ataques tinham o claro objetivo de degradar as capacidades de defesa antiaérea do Irã, incluindo radares e baterias de mísseis e foguetes, além de locais de produção e estocagem de mísseis. A operação durou cerca de quatro horas, com as aeronaves percorrendo aproximadamente 2 mil quilômetros, o que certamente exigiu reabastecimento em voo. Segundo fontes israelenses, todas as aeronaves retornaram às suas bases sem baixas.
2. Levará alguns dias para que se possa avaliar com mais precisão os efeitos dos ataques sobre os alvos. Nas próximas semanas, análises de imagens de satélite trarão essa resposta. Embora as autoridades iranianas estejam minimizando os impactos – uma estratégia que lhes permite evitar uma retaliação imediata – é possível que o ataque israelense tenha realmente comprometido capacidades críticas de defesa antiaérea do Irã, facilitando possíveis novos ataques no futuro.
3. As aeronaves israelenses utilizaram o espaço aéreo da #Siria e do #Iraque, também bombardeando sistemas de defesa antiaérea nesses países. No #Irã, os ataques atingiram bases militares em Teerã, bem como locais nas províncias de Ilam e Khuzistão. Foi um ataque limitado, aparentemente calibrado para permitir que o Irã encerre as rodadas de ataques mútuos.
4. O Irã, que informou que os ataques causaram duas baixas entre seus militares, enfrenta um dilema: se retaliar, sabe que o próximo ataque israelense poderá ser ainda mais intenso; se não o fizer, corre o risco de parecer fraco perante sua própria população e seus aliados, especialmente o Hezbollah, o Hamas e os Houthis.
5. Até agora, a resposta oficial do Irã veio por meio do Ministério das Relações Exteriores, que acusou Israel de aumentar as tensões na região, afirmando que Teerã tem “o direito e a obrigação de se defender contra atos de agressão estrangeira”.
6. A decisão sobre os próximos rumos dos acontecimentos está nas mãos dos iranianos. Suas lideranças não desejam uma escalada maior com Israel, mas certamente há vozes influentes no país clamando por uma resposta mais enérgica, o que facilmente poderia desencadear um conflito regional. O Oriente Médio caminha na corda bamba.



A ação militar israelense contra o Irã à luz do pensamento de um velho general francês

André Beaufre (1902–1975) foi um general e teórico militar francês, cujas formulações tiveram grande impacto sobre os estudos estratégicos do século XX, com grande influência, inclusive, sobre o pensamento estratégico do Exército Brasileiro. Formado na Escola Militar de Saint-Cyr, Beaufre participou de vários conflitos importantes, incluindo a Segunda Guerra Mundial, a Guerra da Indochina e a Guerra da Argélia. Sua carreira militar foi marcada por uma combinação de experiência prática no campo de batalha e reflexões teóricas profundas sobre o uso da força e a natureza da guerra.

Sua obra mais influente foi “Introdução à Estratégia”, de 1963. Nessa obra, Beaufre ultrapassa simples considerações acerca de forças militares ou sobre táticas de combate, para tratar do que ele considerava a finalidade da Estratégia, qual seja, atingir os objetivos fixados pela política, utilizando da melhor maneira os meios à disposição do Estado.

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Para Beaufre, o modelo estratégico a ser escolhido para o atingimento dos objetivos políticos dependia de alguns fatores essenciais: a liberdade de ação, as forças materiais, as forças morais, e o tempo disponível.

A Liberdade de Ação (K) diz respeito à capacidade do Estado de agir com independência estratégica, sem ser bloqueado ou limitado por fatores políticos, diplomáticos ou operacionais. Isso está ligado à capacidade de manobra, tanto militar, quanto política e diplomática.

As forças materiais (F) referem-se aos recursos tangíveis disponíveis para a execução da estratégia, como armamentos, infraestrutura militar, logística, mão de obra, entre outros.

Por sua vez, as Forças Morais (Y) são os fatores intangíveis que incluem a vontade, a motivação e a capacidade de uma nação ou de uma força militar em manter o esforço de guerra, mesmo em face de adversidades. Esses podem incluir a coesão nacional, a moral das tropas, a legitimidade de uma causa e a resiliência psicológica da população.

Finalmente, o tempo disponível (T) para a execução da estratégia deve ser confrontado com o necessário para o atingimento dos objetivos. O passar dos dias, das semanas, dos meses e dos anos pode causar mudanças significativas no cenário estratégico, criando urgências que interferem na escolha do modelo estratégico.

Os fatores acima podem ser, portanto, delineados em uma “Fórmula Geral da Estratégia”, na qual o impulso estratégico (S) é diretamente proporcional aos fatores liberdade de ação, forças materiais, forças morais e tempo disponível.

S = K.F.Y.T

Um impulso estratégico elevado favorece a adoção de um modelo estratégico que privilegie ações diretas, como o conflito violento. Um impulso estratégico menor, indica a adoção de estratégias indiretas, na qual o essencial da decisão é obtido por outros meios à disposição do Estado, que não o meio militar, como os econômicos ou diplomáticos.

As ferramentas oferecidas por Beaufre ajudam a compreender as opções estratégicas adotadas pelo Estado de Israel na crise em andamento entre aquele país e o Irã. Vejamos cada um dos fatores.

A liberdade de ação do governo israelense para atuar contra o Irã é alta. Ao se analisar o sistema internacional, observa-se que os países ou organismos internacionais que poderiam exercer alguma pressão que diminuísse tal liberdade de ação, por diferentes razões, não estão em condições de exercê-la. Os EUA, envoltos na acirrada campanha eleitoral do próximo mês e a Rússia, em guerra, não têm, no momento, o poder de influência/coerção que já tiveram no passado. A ONU, que está com seu Conselho de Segurança completamente paralisado, é incapaz de chegar a qualquer consenso que pudesse limitar as ações israelenses. Do ponto de vista interno, apesar de enfrentar uma oposição forte, no que concerne ao Irã, o governo tem total liberdade de executar suas estratégias conforme planejadas.

As forças de defesa de Israel possuem forças materiais, ou seja, capacidades militares, suficientes para fazer face ao desafio imposto pelo Irã, contando com equipamentos modernos, uma força bem treinada e com larga experiencia de combate. Além disso, sempre pode contar com o apoio norte-americano, especialmente para complementar sua defesa antiaérea e com preciosas informações de inteligência.

As forças morais, representadas pela coesão nacional em torno das decisões tomadas pelo governo israelense em relação à crise com o Irã talvez seja o aspecto mais controverso da análise. Sabidamente, o governo dirigido pelo Primeiro-ministro Benjamim Netanyahu enfrenta uma forte oposição interna, que antecede à presente crise e se agrava em relação ao confronto com o Hamas, na Faixa de Gaza, em razão da incapacidade em resgatar os reféns que, um ano depois de terem sido sequestrados, continuam nas mãos dos terroristas. Entretanto, as espetaculares e muito exitosas ações contra a liderança do grupo Hezbollah, bem como o desejo de reagir ao ataque iraniano, que lançou cerca de 200 mísseis balísticos contra o território israelense, acabam por criar um quase consenso entre os israelenses de que chegou a hora de uma ação mais contundente contra o Irã. Além disso é sempre bom lembrar que, apesar das divisões, Israel historicamente é capaz de unir-se quando confrontado com ameaças externas, como é o caso atualmente.

O tempo disponível, último aspecto levantado por Beaufre, não é, atualmente, limitante para as ações israelenses contra o Irã. Entretanto, caso a crise se prolongue no tempo, certamente a pressão internacional pelo fim das hostilidades aumentará. Isso certamente poderá criar um sentimento de urgência que tende a aumentar o impulso estratégico israelense.

Assim, pode-se concluir que todos os aspectos levantados pelo general francês indicam que Israel tem um alto impulso estratégico para a resposta ao ataque iraniano. Isso pressupõe, conforme indica Beaufre, uma tendência pela opção de um modelo de ação que privilegie uma ação direta, com a utilização das ferramentas militares disponíveis, em um conflito de alta intensidade e, se possível, de curta duração.

À luz da teoria de Beaufre, Israel parece reunir todos os elementos para justificar uma ação direta e decisiva contra o Irã, uma vez que sua liberdade de ação, forças materiais, e tempo disponível estão claramente a seu favor. Embora existam tensões internas que possam impactar as forças morais, o desejo de responder aos recentes ataques pode gerar o consenso necessário para uma estratégia militar de curto prazo. Contudo, os desdobramentos diplomáticos e as pressões internacionais também terão um papel crucial na manutenção desse impulso estratégico caso o conflito perdure longo do tempo.

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Comunidade Global de Futuro Compartilhado: a Grande Estratégia da China para a conformação de uma nova Ordem Internacional

Este artigo foi originalmente publicado na página eletrônica do Centro de Estudos Estratégicos do Exército

 1. Introdução

A presente análise destina-se a apresentar três documentos oficiais que, dentre outros, conformam a Grande Estratégia da República Popular da China. Foram escolhidos aqueles que mais diretamente se relacionam à área de Segurança e Defesa e que impactam a Política Externa Brasileira, consequentemente sendo de interesse para o planejamento e a execução das atividades internacionais do Exército Brasileiro. Trata-se dos documentos “Comunidade Global de Futuro Compartilhado”, “Inciativa Cinturão e Rota” e “Iniciativa de Segurança Global”.

O presidente Xi Jinping, da China, possui uma ideia muito clara da direção para onde quer levar o país sob sua liderança. Ele já sintetizou seu desejo por intermédio da formulação do “sonho chinês” representado pela “grande revitalização da nação chinesa” [1]. Trata-se de uma visão nacionalista, originada no movimento republicano que derrubou a Dinastia Qing, no início do século XX, e que tem por objetivo fortalecer o país, restaurando seu status de grande potência, uma verdadeira busca da reconquista de uma grandeza perdida. Segundo este entendimento, os cerca de cem anos que transcorreram entre a Primeira Guerra do Ópio (1839), ainda na Dinastia Qing, e a vitória da Revolução Comunista (1949) constituem o “século da vergonha” no qual a China perdeu sua grandeza em virtude da espoliação de suas riquezas pelas potências colonialistas e pelo Japão. A grande revitalização da nação chinesa é um conceito que inclui dimensões políticas, econômicas, militares, científico-tecnológicas, sociais e ambientais, todas elas voltadas para uma “reconstrução nacional”.

Trata-se de um conceito diretamente relacionado ao de “Grande Estratégia”. De acordo com Rushi Doshi (2021), Grande Estratégia é uma teoria de como o Estado atinge seus grandes objetivos relacionados à segurança de uma forma que é ao mesmo tempo intencional, coordenada, e implementada pelos múltiplos meios que o Estado dispõe: militares, econômicos e políticos. Ou seja, é uma responsabilidade do governo em todo o seu conjunto, extrapolando áreas ou setores específicos. Ainda segundo Doshi, o que faz uma estratégia “grande” não é simplesmente o tamanho dos objetivos estratégicos que estão sendo perseguidos, mas também o fato de que diferentes meios à disposição do Estado são empregados para seu atingimento. Esse tipo de capacidade de coordenação é rara, de forma que a grande maioria dos Estados não possui uma Grande Estratégia.

No peculiar sistema de governo chinês, onde o “Partido comanda tudo” (Friedberg, 2023), o Conselho de Estado da República Popular da China é o órgão máximo do poder executivo, estando este poder, tanto quanto o poder judiciário, subordinados ao legislativo liderado pelo Partido Comunista. Trata-se de uma estrutura que abarca todos os ministérios e é atualmente liderada pelo Primeiro-Ministro Li Qiang, que assumiu o cargo em março de 2023.

O Conselho de Estado possui uma página na rede mundial de computadores (english.www.gov.cn), onde se encontram publicados uma série de documentos oficiais do governo chinês. Dentre esses, estão listados noventa e sete White Papers, produzidos entre 31 de março de 2011 e 23 de janeiro de 2024. Dentre esses, destaca-se o documento A Global Community of Shared Future: China’s Proposals and Actions.[2]

É importante destacar, de início, que os documentos a seguir brevemente apresentados são declaratórios, expondo uma série de intenções que, evidentemente, devem ser cotejadas com a realidade empírica para que se possa estabelecer um juízo de valor sobre sua real aplicação em termos práticos.

2. A “Comunidade Global de Futuro Compartilhado”

Publicado em setembro de 2023, possui trinta e sete páginas, divididas em um prefácio, cinco seções e uma conclusão. Trata das propostas e ações que a República Popular da China considera serem as suas contribuições para os esforços globais para proteger a Terra – o lar compartilhado de toda humanidade – e “criar um futuro melhor e mais próspero para todos”. Em uma linguagem quase poética, o documento afirma que “para construir uma comunidade global de futuro compartilhado, todos os povos, todos os países e todos os indivíduos – nossos destinos estão interconectados – devem permanecer juntos na adversidade e não importa o quão difícil seja, navegar em direção a uma maior harmonia neste planeta que chamamos de lar”.

Segundo o texto, a ideia de uma comunidade global de futuro compartilhado, lançada pelo presidente Xi Jinping em 2013, vem ganhando apoio internacional. O documento afirma que desde a dimensão bilateral até a multilateral, e da regional à global, teriam sido alcançados resultados inovadores em todas as frentes. As quatro iniciativas que baseiam a proposta, a Iniciativa Cinturão e Rota, a Iniciativa de Desenvolvimento Global, a Iniciativa de Segurança Global e a Iniciativa Civilização Global, teriam criado raízes e frutificado, “trazendo prosperidade e estabilidade ao mundo e criando benefícios substantivos para as pessoas”.

Enfatiza-se a ideia de que a interdependência entre as nações é uma tendência predominante ao longo da história, que foi intensificada pelos avanços atuais da tecnologia da informação, levando os países a um ponto inédito de interconexão e interdependência. Mas, ao mesmo tempo que o mundo alcança tal nível de interdependência, a humanidade se depara com desafios globais que exigem uma resposta unificada de todas as nações. O documento aponta que os deficits de paz, desenvolvimento, segurança e governança somente podem ser enfrentados pelo trabalho conjunto da comunidade internacional.

Assim, reafirma-se que a China defende um novo tipo de relações internacionais, assentadas no “respeito mútuo, na equidade, na justiça e na cooperação vantajosa para todos”, com o objetivo de desenvolver parcerias globais e “construir uma comunidade com um futuro partilhado para a humanidade”.

Ao apontar os caminhos a serem seguidos para alcançar esse “futuro compartilhado”, o documento indica algumas soluções. A primeira seria a busca de um novo tipo de globalização, que superasse os problemas apontados no modelo atual das relações internacionais, no qual a globalização econômica não refletiria as demandas, nem representaria os interesses dos países em desenvolvimento. A “lei da selva, o jogo de soma zero e a mentalidade do ganhaou-perde ou de quem ganha-leva-tudo” exacerbariam a divisão entre ricos e pobres, como seria evidenciado pelo crescente fosso entre países desenvolvidos e em desenvolvimento, e dentro dos países desenvolvidos.

Ao invés disso, os países deveriam seguir uma política de abertura e se opor explicitamente ao protecionismo, à construção de cercas e barreiras e às sanções unilaterais, de modo a conectar as economias e construir conjuntamente uma economia mundial aberta.

O documento afirma que a China defende a paz, o desenvolvimento, a equidade, a justiça, a democracia e a liberdade, como sendo os valores comuns da humanidade. Entretanto – e isso é importante – destaca que diferentes civilizações têm entendimentos diferentes sobre a natureza desses valores. E faz uma comparação com a Coca-Cola, em evidente crítica aos Estados Unidos.

Democracy and freedom are the common goals of humanity. There is no single model of democracy that is universally applicable, far less a superior one. Democracy is not Coca-Cola, tasting the same across the world as the syrup is produced in one single country. Democracy is not an ornament, but a solution to real problems. Attempts to monopolize the “patent” of democracy, arbitrarily define the “standards” of democracy, and fabricate a false narrative of “democracy versus authoritarianism” to provoke confrontation between political systems and ideologies are practices of fake democracy. Promoting the common values of humanity is not about canonizing the values of any particular country, but about seeking common ground while reserving differences, harmony without uniformity, and fully respecting the diversity of civilizations and the right of all countries to independently choose their social systems and development paths. (China, 2023)

O trecho destacado acima, que usa a Coca-Cola como metáfora, expressa a visão chinesa sobre democracia e liberdade, enfatizando uma diversidade de modelos democráticos e a rejeição da imposição de um único padrão universal. Desse modo, a democracia e a liberdade são objetivos comuns para toda a humanidade. No entanto, o documento defende que não existe um modelo único de democracia que possa ser aplicado universalmente, muito menos um que seja superior aos outros. Essa afirmação sugere que cada país deve ter a liberdade de desenvolver sua própria forma de democracia, adaptada às suas condições e necessidades específicas. Essa visão está alinhada com a abordagem diplomática da China, que defende a não interferência nos assuntos internos de outros países – e, por conseguinte, a não interferência de potências estrangeiras em sua próprias questões, como Taiwan, Tibete e Xinjiang, por exemplo – e a promoção de um mundo multipolar onde diferentes sistemas políticos e modelos de desenvolvimento possam coexistir pacificamente. Através dessa declaração, a China está, ao mesmo tempo, respondendo às críticas ocidentais sobre seu sistema político e promovendo sua visão de uma ordem internacional que seria, segundo seu entendimento, mais inclusiva e diversa.

Na última seção do documento, o governo chinês lista o que considera serem as principais contribuições do país no caminho da construção de uma humanidade de futuro compartilhado.

Em seguida, passa a tratar das três iniciativas globais que foram lançadas de forma concomitante à Iniciativa da Humanidade de Futuro Compartilhado: a Iniciativa de Desenvolvimento Global, a Iniciativa de Segurança Global, e a Iniciativa de Civilização Global.

Por meio da Iniciativa de Desenvolvimento Global, a China apresenta o que diz ser seu compromisso com o desenvolvimento global. O objetivo fundamental da iniciativa seria acelerar a implementação da Agenda 2030 da ONU para o Desenvolvimento Sustentável. Dessa forma, o documento passa a apresentar iniciativas práticas, como a criação de um fundo destinado ao desenvolvimento global e à cooperação Sul-Sul, no valor de US$ 4 bilhões, além de muitas outras iniciativas bilaterais e multilaterais de cooperação.

Por meio da Iniciativa de Segurança Global, a China afirma que procura trabalhar com a comunidade internacional na defesa do espírito da Carta das Nações Unidas, abordando os riscos e desafios de segurança tradicionais e nãotradicionais com uma “mentalidade de ganha-ganha e criando um novo caminho para a segurança que caracterize o diálogo sobre o confronto, parceria sobre aliança, e resultados ganha-ganha sobre jogo de soma zero”. Nesse sentido, o documento lista uma série de iniciativas nas quais a China desempenharia um papel relevante na busca de soluções para graves questões de segurança internacional, destacando sua efetiva atuação militar nas missões de paz da ONU. Esta iniciativa será melhor detalhada mais à frente, neste documento.

Por meio da Iniciativa Civilização Global, a China defende o respeito pela diversidade das civilizações, seus valores comuns e o intercâmbio e a cooperação internacionais mais estreitos. A Iniciativa Civilização Global faz “um apelo sincero para que o mundo melhore os intercâmbios e o diálogo entre civilizações e promova o progresso humano com inclusão e aprendizado mútuo, inspirando a construção de uma comunidade global de futuro compartilhado”.

As três iniciativas acima ressoam aspectos do Realismo Moral, uma teoria de Relações Internacionais desenvolvida pelo professor chinês Yan Xuetong. Yan (2019) acredita que a China somente ultrapassará os EUA na liderança do Sistema Internacional se adotar as políticas certas, sendo um Estado “grande e responsável”. Isso não acontecerá apenas pelas ações chinesas, mas sim a partir da percepção que os outros Estados tiverem das atitudes da potência oriental. Dito de outra forma, a China somente será “grande e responsável” se assim for vista pelos outros países. Para que isso seja alcançado, o Realismo Moral enfatiza os valores morais de “retidão e benevolência” sobrepujando os valores ocidentais de “igualdade e democracia”. A teoria apela a uma política de liderança pelo exemplo, que evitaria os “padrões duplos”, que Yan identifica nas práticas ocidentais, especialmente nas dos EUA.

É também inevitável relacionar o texto ao que Amitav Acharya (2019) denomina “Idealismo Cultural” chinês. Segundo esse autor, há um modelo moral, comportamental, afetivo e cultural na identidade chinesa, oriundo de uma cultura milenar e tradicional, que seria propensa ao entendimento mútuo, e à cooperação entre as nações em busca da paz e de uma governança global.

Assim, fica claro que os estrategistas chineses buscam, por intermédio do documento, demonstrar que o futuro que imaginam para a humanidade está fortemente baseado na integração dos valores culturais e dos princípios diplomáticos chineses, promovendo uma visão que “reflete tanto a sua herança histórica como as suas aspirações globais modernas”. Trata-se, portanto, de um novo modelo de Ordem Internacional, que superaria a Ordem Liberal vigente, erigida no pós-guerra e liderada pelos Estados Unidos.

É claro que aquilo que é expresso no documento é o que o Estado chinês declara praticar. Nem sempre as políticas declaradas são as efetivamente praticadas, e a leitura sempre deve ser realizada de forma crítica e com este fato em mente.

Finalmente, o documento “A Global Community of Shared Future: China’s Proposals and Actions” apresenta vários elementos que indicam sua conexão com uma Grande Estratégia da China, conforme a definição de Rushi Doshi (2021) sobre a coordenação intencional de meios militares, econômicos e políticos para atingir objetivos estratégicos de longo prazo. Aqui estão algumas evidências nesse sentido:

  1. Coordenação de Políticas e Iniciativas Globais. O documento detalha várias iniciativas chinesas, como as já citadas Iniciativa Cinturão e Rota, Iniciativa de Desenvolvimento Global, Iniciativa de Segurança Global, e Iniciativa Civilização Global. Essas iniciativas conformam claramente esforços coordenados que integram meios econômicos, políticos e de segurança para fortalecer a influência global da China e moldar uma nova ordem internacional mais favorável aos interesses chineses.
  2. Proposição de uma Nova Ordem Internacional. O documento descreve a visão chinesa para um “futuro compartilhado”, que desafia a atual ordem internacional liderada pelo Ocidente e propõe uma nova abordagem para a governança global, a cooperação internacional e a segurança coletiva. Esta visão inclui a promoção de uma “nova abordagem para as relações internacionais”, que enfatiza o respeito mútuo, a justiça, a igualdade e a cooperação benéfica para todos.
  3. Integração de Valores Culturais e Diplomáticos. O documento também enfatiza a integração dos valores culturais chineses, as tradições diplomáticas e as lições históricas nas práticas e na estratégia exterior da China. Isso indica uma tentativa deliberada de moldar a percepção global sobre a China e posicionar suas tradições e valores como fundamentais para o futuro da governança global.
  4. Foco em Segurança e Desenvolvimento Sustentável. Há um esforço significativo para conectar as iniciativas de desenvolvimento com a segurança global e a estabilidade, refletindo uma abordagem holística que interliga o crescimento econômico com a segurança e a influência política. Isso é evidente no esforço para promover a segurança através do desenvolvimento e vice-versa, argumentando que a segurança e o desenvolvimento são indissociáveis e fundamentais para a estabilidade internacional.
  5. Resposta aos Desafios Globais com Iniciativas Chinesas. Através de várias propostas, como a Iniciativa de Segurança Global e a Iniciativa Civilização Global, a China pretende posicionar-se como uma força líder no enfrentamento de desafios globais, propondo soluções que alinham os interesses internacionais com sua visão e liderança, refletindo uma estratégia abrangente para aumentar sua influência e moldar a ordem internacional de acordo com seus interesses.

3. A Iniciativa Cinturão e Rota

O documento que trata da Iniciativa Cinturão e Rota (ICR) [3], tradução para o Português preferida pelos chineses para “Yīdài yīlù 一带一路” – “Belt and Road Initiative”, em inglês, ou, como também é conhecida no Brasil, a “Nova Rota da Seda”, foi publicado em outubro de 2023, embora a Iniciativa seja bastante anterior a isso. Trata-se de um arrazoado de vinte e três páginas, constituído por um preâmbulo, cinco capítulos e uma conclusão.

No texto, a ICR, proposta pelo presidente Xi Jinping em 2013, é apresentada como “uma plataforma para a construção de uma comunidade global de futuro compartilhado”. Nesse sentido se busca enfatizar um caráter mutuamente benéfico dos projetos da iniciativa, que seriam “propostos pela China, mas pertencentes a todo o mundo”.

 

O texto faz uma relação histórica entre o “Cinturão” e a rota da seda ancestral, que há mais de dois mil anos ligou o Oriente ao Ocidente por intermédio das caravanas que atravessavam os desertos para promover o comércio, impulsionando o desenvolvimento regional e a prosperidade e moldando o “espírito da Rota da Seda, caracterizado pela paz e cooperação, abertura e inclusão, aprendizado e benefício mútuos”. Segundo a narrativa do documento, o “Cinturão” não era apenas um empreendimento comercial, mas também uma experiência de grandes trocas culturais, que proporcionou um grande impulso para o progresso da humanidade.

A “Rota”, por sua vez, se correlaciona historicamente com as rotas marítimas singradas pelos navegadores do passado, com as mesmas finalidades e ganhos atribuídos ao “Cinturão”. Com isso, o documento busca fazer uma ligação histórica com um passado de cooperação e ganhos mútuos (uma relação “win-win”) na relação entre a China e diferentes povos.

Há um nítido esforço em se apresentar a iniciativa como sendo “aberta e inclusiva”, uma vez que os empreendimentos por ela promovidos seriam fruto de extensivas consultas, contribuições conjuntas, e benefícios compartilhados. O desenvolvimento resultante das iniciativas contribuiria para a construção de um mundo mais pacífico, mais próspero e mais aberto, com mais inovação e progresso social.

Nesse sentido, o documento afirma que, para promover uma maior conectividade através da cooperação da ICR, a China procurará “facilitar a coordenação política, a conectividade de infraestruturas, o comércio desimpedido, a integração financeira e os laços mais estreitos entre pessoas”.

Como se vê, a Iniciativa é apresentada como uma ferramenta para o desenvolvimento não só da China, mas para todo o mundo. Afirma que a globalização econômica continua a ser uma tendência irreversível, e que é impensável um mundo em que os países voltem a um estado de isolamento. Entretanto, segundo os chineses, a globalização econômica foi dominada por poucos países que não têm contribuído para um desenvolvimento comum que traga benefícios a todos. Em vez disso, sempre segundo o texto, teria aumentado a diferença entre ricos e pobres, entre países desenvolvidos e em desenvolvimento, e mesmo dentro dos próprios países desenvolvidos.

Dessa forma, os países em desenvolvimento pouco teriam se beneficiado da globalização econômica e até teriam perdido sua capacidade de desenvolvimento independente, o que dificultaria seu acesso ao caminho da modernização. Em uma crítica velada aos EUA, o texto assevera que “alguns países praticariam o unilateralismo, o protecionismo e o hegemonismo, dificultando a globalização econômica e, com essa postura, estariam ameaçando provocar a ocorrência de uma recessão econômica global”.

Atento ao espírito do tempo e às mudanças impostas pela crise climática, o documento apresenta a ICR como uma forma de a China compartilhar sua experiência em produção de energia renovável, proteção ambiental e produção limpa, empregando tecnologia, produtos e expertise na promoção do desenvolvimento verde.

O documento insiste que a Iniciativa se baseia em princípios de amplas consultas, contribuições conjuntas e benefícios compartilhados. Defende uma cooperação ganha-ganha na persecução de um bem maior e de interesses partilhados. Enfatiza que todos os países são participantes, contribuintes e beneficiários iguais, e incentiva a integração econômica, o desenvolvimento interligado e a partilha de conquistas.

Assim, um projeto que visa, na prática, ao financiamento e construção de obras de infraestrutura que beneficiarão as trocas comerciais entre diversos países e a China, é apresentado como uma verdadeira panaceia, um passaporte para um mundo muito melhor para todas as nações.

Da análise qualitativa do texto, percebem-se claramente vários indícios de que ele se alinha com uma Grande Estratégia chinesa, nos termos apresentados por Doshi (2021):

  1. Alinhamento com objetivos estratégicos chineses. O documento ressalta que a Iniciativa Cinturão e Rota é uma extensão moderna das antigas rotas da seda e visa a promover uma comunidade global de futuro compartilhado. Isso se alinha com os objetivos estratégicos chineses de estabelecer uma influência mais profunda em uma escala global, através da criação de conexões econômicas, políticas e culturais mais fortes, especialmente entre a Ásia, a Europa e a África.
  2. Promoção de uma conectividade multidimensional. A Iniciativa enfatiza o desenvolvimento de infraestrutura física e institucional para melhorar a conectividade entre os países participantes. Este esforço, apesar de proporcionar ganhos comerciais, não é apenas econômico, mas também um meio de fortalecer os laços políticos e culturais, essenciais para a expansão da influência e soft power chineses.
  3. Integração econômica e cooperação internacional. O projeto descreve a Iniciativa como uma plataforma para o desenvolvimento econômico compartilhado, promovendo investimentos e cooperação em infraestrutura, que é vista como uma forma de integrar economias de diferentes regiões mais profundamente na esfera econômica global liderada pela China.
  4. Sustentabilidade e desenvolvimento verde. A estratégia inclui um forte componente de desenvolvimento sustentável e verde, refletindo a coordenação de objetivos econômicos e ambientais com a agenda de política externa, posicionando a China como um líder em iniciativas globais de desenvolvimento sustentável.
  5. Envolvimento e benefícios compartilhados. A iniciativa é descrita como um esforço colaborativo que busca envolver múltiplos países e regiões, oferecendo benefícios mútuos, o que reforça o objetivo estratégico da China de se posicionar como uma potência benevolente e cooperativa no cenário mundial.

Pode-se perceber claramente aquilo que Doshi (2021) apresenta como aspectos constituintes de uma grande estratégia, quais sejam, a intencionalidade e a coordenação das ações, que são implementadas por múltiplos meios do Estado chinês, especialmente por intermédio de meios políticos e econômicos.

Embora no documento não sejam apresentadas ações implementadas por meios militares, aquelas diretamente relacionadas à segurança do Estado, é claro que, como mostra a teoria realista de John Mearsheimer (2014), se a China se transformar em uma potência econômica, é quase certo que vá transformar os ganhos econômicos em ganhos militares (Mearsheimer, 2014).

Dessa forma, pode-se concluir parcialmente que a presença de todos esses elementos indica que a Iniciativa Cinturão e Rota é uma valiosa ferramenta, inserida em uma estratégia chinesa muito mais ampla, para a expansão de sua influência global em persecução de objetivos que se enquadram no que pode ser compreendido como sendo uma Grande Estratégia chinesa.

4. A Iniciativa de Segurança Global

A “Iniciativa de Segurança Global” (ISG)4 foi lançada em fevereiro de 2023. Ela forma, juntamente com a Iniciativa Belt and Road, a Iniciativa de Desenvolvimento Global e a Iniciativa da Civilização Global, os quatro pilares da proposta chinesa de uma nova ordem internacional, consubstanciada na Comunidade Global de Futuro Compartilhado.

A ISG possui seis princípios fundamentais:

  1. Estar comprometido com uma visão “comum, abrangente, cooperativa e sustentável de segurança”.
  2. Respeitar a soberania e a integridade territorial de todos os países.
  3. Promover os propósitos e princípios da Carta da ONU.
  4. Levar em conta as legítimas preocupações de segurança de todos os países.
  5. Estar comprometido com a solução pacífica das controvérsias entre países.
  6. Promover a segurança, tanto contra ameaças tradicionais, quanto não tradicionais (citando explicitamente terrorismo, mudanças climáticas, cibersegurança e biossegurança).

Interessante notar que esses princípios, elaborados quando o conflito da Ucrânia já estava em curso, apresentam dois itens relacionados aos interesses, tanto chineses, quanto russos e ucranianos. Ao destacar o respeito à soberania e integridade territorial de todos os países, há um claro alinhamento com o interesse ucraniano, afinal sua soberania foi desrespeitada e seu território foi invadido. Entretanto, ao citar as “legítimas preocupações de segurança de todos os países”, se está a fazer uma ligação com a narrativa russa de que a expansão da OTAN configura um risco à segurança da Rússia.

Para atender a esses princípios, os chineses propõem 20 pontos de possível cooperação com outros países:

  1. Participar ativamente da agenda para a paz da ONU, apoiando-a e fortalecendo-a nas suas missões de paz;
  2. Promover a cooperação e a coordenação entre as grandes potências, favorecendo a estabilidade e a coexistência pacífica.
  3. Fortalecer a compreensão de que “uma guerra nuclear não pode ser vencida”.
  4. Implementar integralmente as resoluções e convenções da ONU sobre armas nucleares, químicas e biológicas.
  5. Promover a solução política de questões e diferenças regionais entre os países, destacando o respeito à não interferência em assuntos internos de outros países.
  6. Apoiar e aperfeiçoar o mecanismo de cooperação e segurança da ASEAN.
  7. Implementar a Proposta de 5 Pontos para a paz e a estabilidade no Oriente Médio.
  8. Apoiar as iniciativas dos países africanos, da União Africana e de Organismos sub-regionais em seus esforços para resolver conflitos regionais, combater o terrorismo e garantir a segurança das vias marítimas de comunicação.
  9. Apoiar os países latino americanos e do caribe no atingimento dos compromissos expressos na Proclamação da América Latina e do Caribe como uma Zona de Paz.
  10. Prestar a devida atenção às legítimas preocupações dos países insulares do Pacífico acerca das mudanças climáticas e dos desastres naturais.
  11. Fortalecer o diálogo e a cooperação para o combate aos ilícitos praticados no mar, como a pirataria.
  12. Fortalecer o papel central da ONU no combate ao terrorismo.
  13. Aprofundar a cooperação internacional no campo da segurança da informação.
  14. Fortalecer o gerenciamento de riscos na área de biossegurança.
  15. Fortalecer a governança internacional da Inteligência Artificial, regulando sua utilização com fins militares.
  16. Fortalecer a cooperação internacional acerca de questões espaciais, protegendo a ordem internacional naquele domínio de acordo com as leis internacionais.
  17. Apoiar a Organização Mundial da Saúde em seu papel de liderança global para o gerenciamento e coordenação dos esforços globais no enfrentamento de pandemias.
  18. Promover a segurança alimentar e energética no mundo.
  19. Implementar efetivamente a Convenção da ONU para o enfrentamento do Crime Organizado Transnacional.
  20. Apoiar a cooperação internacional para o enfrentamento dos efeitos das mudanças climáticas e a implementação da Agenda 2030 da ONU para o Desenvolvimento Sustentável.

Por fim, o documento propõe cinco “plataformas de engajamento e cooperação”.

  1. Trabalhar firmemente em todas as instâncias da ONU para firmar consensos para solucionar as questões de segurança existentes no mundo.
  2. Promover o papel de vários organismos regionais multilaterais – o BRICS é citado, dentre outros asiáticos – para a promoção da paz e da estabilidade regionais.
  3. Promover reuniões bilaterais e multilaterais para tratar dos assuntos tratados pela ISG.
  4. Promover fóruns para discussão de assuntos de segurança, reunindo governos, think tanks e academia para a discussão de temas de segurança. (o documento cita o fórum de Xiangshan, o equivalente chinês ao Shangri-la Dialogue).
  5. Encorajar mais trocas entre os países, para estimular a cooperação e a busca de solução para desafios de segurança. (o documento fala em abrir 5 mil vagas na China para treinamento na área de segurança).

5. Conclusão

A análise dos três documentos-chave da Grande Estratégia da China – “Comunidade Global de Futuro Compartilhado”, “Iniciativa Cinturão e Rota” e “Iniciativa de Segurança Global” – revela um esforço intencional e coordenado para moldar a ordem internacional de acordo com os interesses e valores chineses. Esses documentos refletem uma visão abrangente e ambiciosa, integrando dimensões econômicas, políticas e de segurança para promover a ascensão da China como uma potência global.

Primeiramente, a “Comunidade Global de Futuro Compartilhado” apresenta uma visão idealista e cooperativa, onde a China se posiciona como uma defensora de uma nova ordem internacional baseada na equidade, justiça e respeito mútuo. O documento enfatiza a interdependência entre as nações e propõe soluções globais para desafios comuns, promovendo uma globalização mais inclusiva e sustentável. A retórica utilizada busca atrair apoio internacional e legitimar a liderança chinesa no cenário global, propondo um novo modelo de globalização que supere as falhas do sistema atual.

A “Iniciativa Cinturão e Rota” (ICR) é uma manifestação prática dessa visão, focada na criação de infraestrutura e na promoção do comércio entre a China e outras nações. Através de investimentos massivos e cooperação internacional, a ICR busca fortalecer as conexões econômicas e políticas da China com diferentes regiões do mundo. A iniciativa é apresentada como uma plataforma para o desenvolvimento mútuo, promovendo uma narrativa de benefícios compartilhados e cooperação ganha-ganha. Contudo, é evidente que a ICR também serve como um instrumento estratégico para expandir a influência chinesa e consolidar seu poder econômico e político globalmente.

A “Iniciativa de Segurança Global” (ISG) complementa essas estratégias, abordando questões de segurança de forma abrangente e propondo um modelo de cooperação internacional que privilegia o diálogo e a resolução pacífica de conflitos. A ISG reforça os princípios da Carta da ONU e promove a segurança coletiva, enfatizando a importância de enfrentar ameaças tanto tradicionais quanto não tradicionais. Através de uma série de propostas práticas e plataformas de engajamento, a China busca posicionar-se como uma força estabilizadora e um líder responsável na arena internacional, promovendo uma visão de segurança que reflete seus próprios interesses e valores.

Em conjunto, esses documentos demonstram uma Grande Estratégia chinesa que busca moldar a ordem internacional de maneira que favoreça seus objetivos estratégicos de longo prazo. Através da coordenação intencional de meios econômicos, políticos e de segurança, a China está implementando uma estratégia abrangente para aumentar sua influência global e promover uma nova ordem internacional que reflita suas aspirações e valores. A retórica de cooperação e benefícios mútuos, embora atraente, deve ser analisada bastante criticamente, considerando as implicações estratégicas e os interesses subjacentes da China.

Especialmente para o Brasil, a adesão às propostas chinesas deve ser sopesada, uma vez que a movimentação chinesa não pode ser apartada da competição sistêmica em curso entre a China e os EUA. O Brasil, único país do hemisfério ocidental a compor os BRICS, e líder natural na América do Sul, já tem na China seu maior parceiro comercial. Caso caminhe em direção a uma maior aproximação estratégica com a China, estará sujeito a pressões diretas e indiretas e cada vez mais intensas por parte dos EUA.

A ascensão da China como uma potência global e suas tentativas de reconfigurar a ordem internacional são vistas com desconfiança por diversas nações, especialmente no Ocidente. A capacidade da China de efetivamente transformar sua visão em realidade dependerá de sua habilidade em navegar essas complexidades e construir alianças que sustentem suas iniciativas. Portanto, enquanto os documentos analisados revelam uma estratégia clara e bem articulada, a trajetória futura da China no cenário internacional permanece incerta e sujeita a múltiplas variáveis.

 

REFERÊNCIAS

ACHARYA, A. From Heaven to Earth: “Cultural Idealism and Moral Realism as Chinese Contributions to Global International Relations”. The Chinese Journal of International Politics. v. 12, ed. 4, p 467-497. 2019. Disponível em: https://academic. oup.com/cjip/article/12/4/467/5650487 Acesso em: 20 fev. 2024.

BROOKS, Stephen G., IKENBERRY G. John, WOHLFORTH, William C. (2013) Don’t Come Home, America: The Case against Retrenchment. International Security 2013; 37 (3): 7–51. doi: https://doi.org/10.1162/ISEC_a_00107

CHINA. State Council Information Office. A Global Community of Shared Future: China’s Proposals and Actions. 2023. Disponível em: https://english. www.gov.cn/news/202309/26/content_WS6512703dc6d0868f4e8dfc37.html Acesso em 23 maio 2024.

CHINA. State Council Information Office. The Belt and Road Initiative: A Key Pillar of the Global Community of Shared Future. 2023b. Disponível em https://english.www.gov.cn/archive/whitepaper/202310/10/content_ WS6524b55fc6d0868f4e8e014c.html Acesso em 23 maio 2024.

DOSHI, R. The Long Game: China’s Grand Strategy to displace American Order. Oxford University Press. 2021.

FRIEDBERG, A. Getting China Wrong. Polity Press. Cambridge. Reino Unido. 2023

LIDDEL HART, Basil. Fundamentos de Estratégia. Arzalia Ediciones. Madri. 2023

MEARSHEIMER, J. The tragedy of great powers politics. WW Norton. Nova York. 2014.

QIN, Y. A Relational Theory of World Politics. Cambridge: Cambridge University Press. 2018

RIBEIRO, Erik H. Grande Estratégia. Dicionário de Segurança e Defesa. São Paulo. Editora UNESP Digital. 2018.

YAN, X. Leadership and the Rise of Great Powers. Princenton: Princeton University Press. 2019

[1] 1“Zhōnghuá mínzú wěidà fùxīng” – 中华民族伟大复兴. Em inglês, a tradução mais encontrada é “The great rejuvenation of the Chinese nation”. Em portugês, a tradução indicada nos próprios documentos chineses usa a palavra “revitalização”.

[2] Disponível em https://www.mfa.gov.cn/eng/zxxx_662805/202309/t20230926_11150122.html 

[3] Disponível em https://english.www.gov.cn/archive/whitepaper/202310/10/content_ WS6524b55fc6d0868f4e8e014c.html

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Diálogos e divergências em Xangrilá: as Perspectivas de EUA e China sobre a Segurança no Indo-Pacífico

Xangrilá é um lugar paradisíaco isolado nos vales montanhosos do Tibete, descrito no livro Horizonte Perdido, de James Hilton, como um lugar onde o tempo parece deter-se, no qual as pessoas vivem vidas extremamente longas em paz e harmonia, distante das turbulências do mundo exterior. Entretanto, as personagens do livro, ante a escolha de permanecer ou não por lá, vivem dilemas morais e filosóficos, o que sugere que a utopia de Xangrilá tem um preço. Mesmo o paraíso oferece complexidades e desafios.

O Hotel Sangri-la, em Cingapura, embora luxuoso, está longe de ser o paraíso. Ele é a sede de uma conferência anual de Segurança da Ásia, conhecida como “Sangri-la Dialogue”, promovida pelo International Institute for Strategic Studies (IISS). A escolha do nome da conferência é evidentemente simbólica e intencional. Se a fictícia Xangrilá de Hilton é um lugar de paz e reflexão, a conferência busca ser um fórum de discussão para a busca de soluções pacíficas para os conflitos na região asiática do Indo-Pacífico.

A conferência deste ano, que acabou de acontecer, ecoou o aumento das tensões na região, consubstanciadas pelo grande exercício militar chinês no entorno da ilha de Taiwan e pelas frequentes escaramuças entre navios chineses e filipinos no Mar do Sul da China.

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Muita gente importante esteve presente no encontro, realizado entre os dias 31 de maio e 2 de junho. Os presidentes das Filipinas, Ferdinando Marcos Junior, do Timor Leste, José Ramos Horta e da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, além da Primeira-Ministra da Lituânia Ingrid Simonyte, e do presidente eleito da Indonésia, Prabowo Subianto, fizeram seus discursos e participaram dos debates. Dentre os vários ministros da defesa presentes, destaco a participação do norte-americano, General Lloyd Austin, e do chinês, Almirante Dong Jun, que se esforçaram para convencer a plateia da validade de seus argumentos, em um ambiente em que o assunto, ao fim e ao cabo, girava em torno das relações EUA-China e seus reflexos para os países da região.

O General Austin, que fez sua décima visita ao Indo-Pacífico desde que assumiu a função de Secretário de Defesa, em 2021, fez questão de destacar que aquela é uma região de fundamental importância para os EUA. Deixou isso muito claro, dizendo que seu país estava profundamente comprometido com os países da região, e que isso não iria mudar.

Ao destacar o período conturbado que o mundo atravessa, referiu-se aos riscos para a segurança global representados pelas mudanças climáticas, pelas pandemias e pelos perigos representados pelo terrorismo e pelas armas nucleares. Lembrou da guerra e da instabilidade no Oriente Médio e da invasão russa à Ucrânia. Mas, de forma significativa, se referiu a “ações na região (do Indo-Pacífico) que erodem o status quo e ameaçam a paz e a estabilidade”. Essa última lembrança foi uma referência nada sutil à China, tanto na questão de Taiwan, quanto nas disputas em curso no Mar do Sul da China.

Austin ressaltou a importância das parcerias estratégicas que, de acordo com sua perspectiva, seriam guiadas não pela imposição da vontade de um único país, mas por uma visão compartilhada pelos EUA e seus parceiros na região em torno de princípios comuns, uma espécie de senso de mútua responsabilidade, que fortaleceria a capacidade de defesa e a interoperabilidade entre os países da região.

O ministro reafirmou que a região do Indo-Pacífico está “no coração” da Estratégia norte-americana, mesmo em um mundo em que a guerra na Ucrânia e o conflito no Oriente Médio exigem atenção do país. Para ressaltar ainda mais a sua importância, ele afirmou que seu país só pode estar seguro se a Ásia estiver segura. Essa é a razão pela qual os EUA continuarão mantendo sua presença e investimentos na região. Como exemplos, Lloyd citou a realização de diversos exercícios militares, acordos de cooperação e iniciativas conjuntas na área de desenvolvimento de sistemas e materiais de emprego militar que os EUA mantêm com vários países da área, com especial destaque para o Japão, Coreia do Sul, Índia e Filipinas.

Encerrando suas palavras, sem citar nominalmente a China, mas claramente se referindo a ela, Lloyd disse que ainda haverá quem desrespeite as leis internacionais, tentando impor sua vontade pela coerção e pela agressão, mas que os EUA e seus parceiros continuarão a buscar novos pontos de convergência para a construção de um futuro melhor para todos.

Recentemente nomeado ministro da Defesa da China, o Almirante Dong Jun, primeiro oficial da marinha a ocupar o cargo, enfatizou o compromisso dos povos da Ásia-Pacífico com a harmonia e a paz. Entretanto, segundo Dong, esses mesmos povos teriam uma memória compartilhada do sofrimento e da opressão impostos pelo colonialismo e pelo imperialismo.

Por essa razão, os países da região concedem uma grande importância à sua independência, rejeitando relações de vassalagem ou de submissão a blocos de países que levem à confrontação. Dessa forma, segundo o almirante, os países asiáticos desejariam conviver com uma ordem internacional igualitária e multipolar.

A linha de raciocínio do ministro chinês prossegue no sentido de mostrar que os países da região têm plenas condições de resolver suas questões de forma autônoma, sem receber ordens de países hegemônicos, em clara referência ao que os chineses consideram ser uma intromissão indevida dos EUA nas questões regionais.

Dong apresenta as iniciativas chinesas de “Desenvolvimento Global”, em conjunto com as iniciativas de “Segurança Global” e de “Civilização Global” como propostas de visão de um futuro compartilhado para toda a humanidade, que pode levar a um mundo de paz e desenvolvimento.

Dizendo que uma guerra nuclear não pode ser vencida e nunca deve ser travada, o ministro reafirmou o compromisso da China de nunca utilizar seu armamento nuclear a não ser como resposta a um ataque, ou seja, de nunca ser o primeiro a utilizar esse tipo de arma contra um inimigo.

Referindo-se aos conflitos da Ucrânia e do Oriente Médio, o almirante afirmou que a China se coloca de forma imparcial, na busca de uma solução pelo diálogo. Em relação aos EUA, disse que as duas partes não deveriam buscar a confrontação e deveriam valorizar a paz, promover a estabilidade e agir de boa-fé, atitudes que aumentariam a confiança mútua.

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Dong reafirmou que a questão de Taiwan é central para a China e criticou as ações do partido no poder na ilha, acusando-o de tentativas de suprimir a identidade chinesa e de minar as conexões sociais, históricas e culturais entre taiwaneses e chineses. Referindo-se de forma velada aos EUA, acusou o país vender armas e de ter contatos ilegais com o governo de Taiwan, o que eleva as tensões no Estreito, criando uma situação perigosa. Lembrou que a questão é um problema exclusivamente chinês, em relação ao qual não se admite interferência estrangeira, e que, apesar da China buscar uma reunificação pacífica, que as forças armadas do país permaneceriam em condições de impedir que a ilha busque a independência.

Em relação às disputas no Mar do Sul da China, o ministro da defesa da China disse que “um determinado país”, em clara referência às Filipinas, “encorajado por potências externas, quebrou acordos bilaterais e as suas próprias promessas, fez provocações premeditadas e criou cenários falsos para enganar o público”. Além disso, ao autorizar os EUA a desdobrarem mísseis em seu território, teria violado a carta da ASEAN, prejudicando a paz e a estabilidade da região. Nesse sentido, Dong afirmou que “a China tem exercido grande contenção face a tais infrações e provocações”, mas que havia um limite à essa restrição, esperando que as Filipinas “retornassem ao caminho correto do diálogo”.

Como se pode inferir das participações dos ministros da defesa de EUA e China na Conferência do Hotel Shangri-lá, os dois países possuem visões estratégicas concorrentes no que se refere à estabilidade, segurança e cooperação na região do Indo-Pacífico.

Enquanto Austin propõe uma rede de parcerias estratégicas liderada pelos EUA com os países da região, com o objetivo de solidificar uma postura de força coletiva, Dong promove uma visão de segurança regionalizada e autônoma, ressaltando a capacidade dos países da região de resolverem suas questões sem interferência externa.

Ambas as autoridades atribuem importância ao multilateralismo, entretanto, atribuem a seus respectivos países uma posição de liderança, nem sempre expressa com clareza, mas claramente presente nas entrelinhas dos discursos, caracterizando a disputa hegemônica em curso entre os dois países.

Nas principais questões geopolíticas envolvendo a China na região, referentes à Taiwan e ao Mar do Sul da China, enquanto Austin se posiciona de maneira velada contra ações que ele vê como ameaçadoras à paz regional por parte da China, Dong refuta essas alegações, reiterando o direito da China à soberania e à integridade territorial.

Dessa forma, fica claro que Austin e Dong representam duas abordagens distintas que refletem os interesses e as políticas externas de seus respectivos países. Conclui-se que a busca por pontos de convergência, como sugerido por Austin, e a disposição para diálogo, enfatizada por Dong, são essenciais para o desenvolvimento de uma paisagem geopolítica mais estável e pacífica no Indo-Pacífico.

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A posse do novo presidente de Taiwan aumenta as tensões na Ásia

O discurso anual do primeiro-ministro da China ao Congresso Nacional do Povo, feito em março, durante as chamadas “Duas Sessões”, é acompanhado atentamente pelos analistas, pois constitui uma rara oportunidade para se identificar as prioridades e tendências políticas que nortearão as ações do governo chinês.

Não foi diferente neste ano, ainda mais em razão de ser o discurso inaugural do primeiro-ministro Li Qiang, que assumiu suas funções no ano passado. Dentre os diversos aspectos mencionados por Li, as relações da China com a ilha de Taiwan se destacaram.

A reunificação com Taiwan, ilha que possui governo autônomo mas é vista como província rebelde pela China, é um objetivo inegociável para o governo chinês. No entanto, o tema não é frequente nesses discursos. Em uma década, só foi mencionado em 2022, pelo então primeiro-ministro Li Keqiang.

Uma diferença crucial entre os dois discursos chamou atenção. Em 2022, Keqiang fez referência à “reunificação pacífica” de Taiwan à China continental. Neste ano, as palavras de Qiang foram praticamente as mesmas, no sentido de conclamar os presentes a “promoverem resolutamente a grande causa da reunificação do país e defenderem os interesses fundamentais da nação chinesa”. Entretanto, a expressão “reunificação pacífica”, diferentemente de 2022, não apareceu.

A omissão não passou despercebida pelos analistas e repercutiu na imprensa. Ainda mais dado o contexto atual das relações entre a ilha e o continente. Hoje, 20 de maio, “William” Lai Ching-te toma posse como novo presidente de Taiwan. Considerado separatista pelos chineses, sua eleição irritou as autoridades do país, que durante a campanha alertaram os taiwaneses para que não o escolhessem. Os chineses identificam indícios de uma postura separatista nos vários contatos internacionais feitos pelas lideranças do partido de Lai com autoridades estrangeiras.

A pressão chinesa sobre a ilha de Taiwan vem aumentando, tanto pela utilização de meios ostensivamente militares quanto pela adoção de táticas dissimuladas. Assim, ao mesmo tempo em que há o constante sobrevoo de aeronaves militares e a presença de navios de guerra ultrapassando a linha mediana do Estreito de Taiwan, que, historicamente, funcionava como um limite tácito entre ambos os lados, também há um exponencial aumento da presença de barcos civis chineses no entorno da ilha, ou de balões sobrevoando seu espaço aéreo. Essa escalada visa a sobrecarregar as defesas da ilha, normalizando o que seria extraordinário, para que, quando (e se) uma invasão vier, ela não seja facilmente distinguível dos acontecimentos do dia a dia.

A importância econômica e geopolítica de Taiwan vem aumentando no contexto das mudanças em curso no sistema internacional. A produção de semicondutores é uma questão a se destacar. Na ilha, são produzidos cerca de 50% do total global de chips, além de em torno de 90% dos chips mais avançados. Uma interrupção na produção de semicondutores, mesmo breve, devido a um conflito armado, provocaria uma crise econômica grave com impacto mundial, semelhante ao auge da pandemia de covid-19. Se a produção continuasse, mas sob controle chinês, tal cenário seria estrategicamente inaceitável para os Estados Unidos.

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O general Douglas MacArthur, comandante das forças aliadas no Teatro do Pacífico durante a 2.ª Guerra Mundial, afirmou que Taiwan era “um porta-aviões que não poderia ser afundado”. A intenção do general ao usar a metáfora foi a de destacar a enorme importância geoestratégica da ilha para a dinâmica da disputa geopolítica no leste da Ásia. A ilha serviu de trampolim ao império japonês para suas conquistas em direção ao Sudeste Asiático. Depois disso, a partir de 1949, Taiwan serviu à estratégia da contenção norte-americana, uma vez que, em conjunto com a península coreana, as ilhas do Japão e as Filipinas, todas áreas sob a influência dos EUA, conforma uma linha de contenção a dificultar a saída da China para o Pacífico.

A importância de Taiwan transcende os interesses estratégicos de EUA e China, sendo também vital para outros países, como por exemplo o Japão, que tem disputas territoriais com os chineses. O reflexo da percepção japonesa do agravamento do risco geopolítico fica claro com o aumento do orçamento de Defesa de 2023 para 2024 em 16,5%, além da previsão de contínuo crescimento até 2027.

As crises internacionais, como a invasão russa à Ucrânia e o conflito entre Hamas e Israel, juntamente com outros conflitos globais, podem desviar a atenção sobre o que ocorre em Taiwan. No entanto, os desafios enfrentados pela ilha, embora sejam de extrema importância para seus habitantes, transcendem uma mera questão local. Eles constituem um equilíbrio delicado com implicações globais. A situação geopolítica em Taiwan é de vital importância e tem o potencial de se agravar rapidamente, gerando consequências em escala mundial, inclusive afetando o Brasil.

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OITOCENTOS DIAS DE GUERRA NA UCRÂNIA

Ontem, dia 03 de maio de 2024, a guerra na Ucrânia completou oitocentos dias. Essas efemérides, embora não tenham nenhuma importância prática nos campos de batalha, convidam à reflexão sobre o desenrolar dos acontecimentos.

No campo tático/operacional, especialmente na frente Oriental, o momento é favorável aos russos, que pressionam a frente e obtêm ganhos territoriais de forma lenta, mas constante. Analistas do Black Bird Group, da Finlândia, a partir do estudo de fotografias de satélites, concluíram que, se entre 01 de junho e 01 de outubro do ano passado os russos perderam a posse de 414,26 Km2 de território ocupado na Ucrânia, a maré virou em 2024. De 01 de janeiro deste ano a 02 de maio, os russos recuperaram uma área equivalente à perdida em 2023, mas com alguma sobra: 432,3 Km2, a maior parte na região de Donetsk.

O esforço do povo ucraniano de se contrapor à invasão de seu território por um exército russo muito maior, e dotado de vastos recursos bélicos, está cobrando um preço muito alto. A carência de pessoal nas fileiras do exército ucraniano é grave. Embora o presidente Zelensky recentemente tenha anunciado em 31 mil o número de soldados mortos em combate, serviços de inteligência ocidentais acreditam que esse é um número muito subestimado, tendendo a ser, provavelmente, mais que o dobro dessa quantidade. Para tentar repor essas baixas em suas fileiras, o país mudou suas leis de recrutamento, reduzindo a idade elegível para o serviço militar de 27 para 25 anos. Zelensky também pediu aos governantes ocidentais que encorajassem os ucranianos em idade de prestação do serviço militar que estejam refugiados em seus países, a voltarem à Ucrânia.

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Ao problema da falta de pessoal se soma a carência de armas e munições. Os quase seis meses de interrupção de ajuda militar por parte dos EUA diminuíram de forma muito importante as capacidades militares do exército ucraniano, especialmente suas capacidades de defesa antiaérea e de realização de fogos com sua artilharia de campanha. A recente aprovação, pelo congresso americano, da ajuda de US$ 61 bilhões se deu em um momento verdadeiramente crítico para os ucranianos e, embora se tenha anunciado que essa ajuda já começa a se materializar com a chegada de armas e munições à Ucrânia, ainda levará um bom tempo para que todo esse dinheiro se materialize em poder de combate real, no terreno.

Os russos, por sua vez, embora também estejam sofrendo pesadas baixas, têm uma capacidade muito maior do que a Ucrânia de repor seus efetivos militares. Isso passa tanto por uma base populacional muito maior – a Rússia possui 144 milhões de habitantes, enquanto a Ucrânia possuía, antes da guerra, cerca de 42 milhões – quanto por uma maior aceitação de risco por parte dos seus planejadores militares, que não hesitam em seguir em frente e manter operações ofensivas mesmo em face de pesadas baixas.

No que concerne aos suprimentos de armas e munições, a Rússia conseguiu alcançar um equilíbrio logístico graças à imposição de um regime de economia de guerra, com sua base industrial de defesa trabalhando em um regime de três turnos, 24 horas por dia, e às importações da Coreia do Norte e do Irã.

Essas condições, no momento em que a primavera e a aproximação do verão melhoram a transitabilidade do Teatro de Operações, levam muitos analistas a prever o desencadeamento de uma nova ofensiva russa, cujos objetivos ainda não estão claros. Talvez se restrinjam a tentar conquistar a integralidade dos territórios das quatro províncias ucranianas anexadas formalmente pela Rússia: Lugansk, Donetsk, Kherson e Zaporizhzhya, ou talvez tenha objetivos mais ambiciosos, com a conquista de novos territórios ucranianos. Preparando-se para essa possibilidade, as forças ucranianas já estão há algum tempo a preparar novas posições defensivas em profundidade.

No campo diplomático, o fato da balança da guerra, em 2024, estar pendendo para o lado russo está por trás de uma importante mudança recente no discurso dos aliados europeus da Ucrânia: a possibilidade de utilização de equipamentos fornecidos pela OTAN para ataques em profundidade sobre alvos no interior do território russo. Esse uso vinha sendo vetado pela aliança ocidental desde o início da guerra, em razão do temor de causar uma escalada do conflito que levasse a um enfrentamento direto entre a Rússia e a OTAN. Entretanto, o ministro das relações exteriores do Reino Unido, David Cameron, deu essa permissão acerca dos sistemas de armas fornecidos pela Grã-Bretanha. Além de Cameron, outras lideranças europeias começam a se manifestar no mesmo sentido. O presidente francês Emmanuel Macron também tem subido o tom de sua retórica, afirmando que a França não descarta o envio de tropas em socorro à Ucrânia caso a manutenção da soberania ou a própria sobrevivência daquele país esteja e risco. Britânicos e franceses se comprometeram ainda a ajudar com bilhões de euros no esforço de guerra ucraniano.

Essa maior assertividade na retórica dos líderes europeus vem acompanhada de uma conscientização de que seus países devem confiar cada vez mais em si mesmos e nas alianças forjadas dentro da própria Europa, dependendo menos do guarda-chuvas dissuasório oferecido pelos Estados Unidos, principal membro da OTAN. Nesse sentido, o presidente Macron disse, em discurso na universidade de Sorbonne, que “a Europa pode morrer”. O presidente francês acrescentou, em entrevista à revista The Economist, que “se a Rússia vencer na Ucrânia não haverá segurança na Europa”. “Quem garante que a Rússia irá parar na Ucrânia? Que segurança poderiam ter países como Moldávia, Romênia, Polônia, Lituânia e outros países vizinhos?” foram as perguntas feitas por Macron.

Ainda no campo diplomático, Suíça e Ucrânia anunciaram a realização de uma conferência de paz, a se realizar na Suíça, nos dias 15 e 16 de junho. Mais de cem países já foram convidados. Entretanto, como a Rússia não deve participar do evento, uma vez que acusa a Suíça de ter abandonado sua histórica neutralidade em favor da Ucrânia, é muito provável que outros países – especialmente aqueles do chamado “Sul Global” – se recusem a participar.

Assim, neste momento em que a invasão russa à Ucrânia completa 800 dias, nada indica que a guerra esteja próxima de um término. Se, de um lado, a Ucrânia claramente não possui, nas condições atuais, poder de combate suficiente para expulsar o invasor de seu território, por outro lado, os russos dificilmente encontrarão facilidade em obter novos ganhos territoriais enquanto os ucranianos continuarem a receber apoio dos EUA e da Europa. O que se pode prever é a manutenção de uma guerra de atrito, acompanhada de uma intensificação nos bombardeios aeroestratégicos de ambos os lados, buscando alvos de valor estratégico, como fábricas, centrais elétricas, pontes importantes, entroncamentos ferroviários etc.

Essa previsão vale até as eleições nos EUA, em novembro. Caso Donald Trump vença, é provável que o apoio americano à Ucrânia mingue consideravelmente. Se isso acontecer, a Rússia estará em uma posição de força para impor uma paz nos seus termos. A menos que a Europa compre a briga ucraniana. Em qualquer das hipóteses, infelizmente para as populações direta e indiretamente flageladas pela guerra, a paz ainda está muito longe.

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The dispute between the United States and China and its implications for Brazil in the domains of security and defense

Este artigo foi publicado no Macau Journal of Brazilian Studies, e trata da disputa entre EUA e China, e suas implicações para a Segurança e Defesa do Brasil.

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Leia o artigo:

Gomes Filho_Paulo THE DISPUTE BETWEEN THE UNITED STATES AND CHINA




Seis meses de guerra entre Israel e o Hamas

Há exatamente seis meses o mundo era surpreendido pelos terríveis ataques terroristas perpetrados pelo Hamas em Israel. As imagens da violência gratuita, que atingiu crianças, mulheres, homens e idosos de maneira indistinta, matando cerca de 1,2 mil pessoas e fazendo mais de duas centenas de reféns, chocaram o mundo e criaram instantaneamente uma onda de indignação e apoio aos israelenses.

A partir de então, a Faixa de Gaza, em particular, e o Oriente Médio, como um todo, foram mergulhados em um conflito de gravíssimas repercussões humanitárias e que, no dia de hoje, pode estar à beira de uma escalada ainda maior.

A ação militar israelense, iniciada imediatamente após o ataque de 07 de outubro de 2023, foi desenhada para atingir o objetivo político fixado pelo governo: eliminar completamente o Hamas. A questão é que essa é uma tarefa extremamente complexa. A natureza irregular do grupo Hamas, cujos terroristas se misturam à população civil da Faixa de Gaza, em um ambiente densamente urbanizado, obrigam as tropas israelenses a efetivamente controlarem o ambiente, o que somente pode ser alcançado pela presença física dos soldados na área a ser controlada.

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Esse tipo de combate, em zona densamente urbanizada e em meio da população, coloca os militares constantemente sob o dilema de escolher os meios e métodos de combate que, de um lado, levem ao cumprimento do objetivo militar proposto mas, de outro lado, causem o menor sofrimento humanitário possível à população civil. Passados seis meses de ação militar em Gaza está claro que o exército israelense não conseguiu resolver essa equação da melhor forma. O sofrimento imposto à população civil de Gaza, mostrado diariamente pelos meios de comunicação e pela internet, foi degradando o apoio internacional a Israel, até o ponto em que o Conselho de Segurança da ONU determinou a interrupção das hostilidades e a devolução de todos os reféns capturados, o que foi até o presente momento ignorado, tanto por Israel, quanto pelo Hamas.

Em sua defesa, os israelenses afirmam que o Hamas coloca em risco sua própria população, ao propositalmente se misturar a ela e utilizar instalações civis, até mesmo hospitais, para fins militares. Isso é verdade. Nesse sentido há os casos emblemáticos do hospital de Khan Younes, transformado em quartel general do Hamas e o escândalo dos trabalhadores à serviço da ONU que foram demitidos em razão de sua participação direta nos atentados de 7 de outubro.

Entretanto, a dificuldade de se distinguir claramente entre combatentes e não-combatentes no campo de batalha, embora complique significativamente as operações militares, não isenta o exército israelense da responsabilidade de cumprir os princípios e leis de guerra. Esses princípios, que incluem a humanidade, a proporcionalidade, a distinção entre combatentes e não-combatentes, a limitação dos meios e métodos de combate, e a seleção de alvos em conformidade com uma análise minuciosa de sua necessidade militar, estão firmemente estabelecidos nas normas do Direito Internacional dos Conflitos Armados.

O conflito entre Israel e o Hamas envolve também outros atores, o que eleva o risco de uma escalada. Entre esses, o Irã se destaca por seu papel crítico, negando a Israel o direito de existência enquanto Estado e fornecendo suporte essencial para os ataques do Hamas. Além disso, o Irã fornece armas e apoio a diversos grupos militantes que se opõem a Israel, como o Hezbollah, no Líbano, milícias Xiitas, na Síria e no Iraque, e os Houthis, no Iêmen. Essa estratégia permite ao Irã evitar um envolvimento direto, minimizando os riscos desse tipo de confrontação. No entanto, essa dinâmica pode estar prestes a mudar. Em 1º de abril, um ataque israelense ao consulado iraniano na Síria resultou na morte do General Mohammad Reza Zahedi, da Guarda Revolucionária Iraniana, além de outros militares, levando a promessas de vingança por parte do Irã. Desde então, a defesa antiaérea de Israel permanece em alerta máximo, antecipando uma possível retaliação. Caso o Irã responda diretamente, isso marcará uma mudança significativa, já que suas ações contra Israel, como já foi dito, normalmente ocorrem por intermédio dos grupos militantes. Nesse caso, configurando-se um confronto direto entre Irã e Israel, a escalada do conflito pode tomar contornos gravíssimos e se alargar para todo o Oriente Médio.

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Os EUA são outro ator fundamental. Maior aliado de Israel, são os norte-americanos que exportam os sistemas e materiais de emprego militar fundamentais à manutenção do esforço de guerra israelense. Entretanto o apoio da população norte-americana às operações israelenses declinou rapidamente, e isso colocou o governo de Joe Biden sob forte constrangimento, especialmente em um ano eleitoral. Assim, o que se verifica no momento é uma forte pressão dos EUA sobre o governo israelense para que se encontre uma solução que ponha fim às hostilidades.

Além dos fatores externos, não se pode esquecer que o governo israelense do Primeiro-Ministro Benjamim Netanyahu está sob forte pressão interna. A oposição a seu governo, que era grande antes dos ataques de 7 de outubro e arrefeceu em razão da união nacional em torno da resposta militar, novamente se agrava, na medida em que se avolumam as críticas acerca da condução das operações e da incapacidade em se trazer de volta os reféns ainda mantidos em cativeiro pelo Hamas. Grandes manifestações populares pedindo a renúncia de Netanyahu tem acontecido nas principais cidades israelenses.

As pressões internas e externas sugerem a Netanyahu que a melhoria de sua popularidade, embora improvável, seja sua única chance de preservar sua carreira política. Essa melhoria, no entanto, depende de uma vitória decisiva sobre o Hamas, o que implicaria no controle total da Faixa de Gaza. Atualmente, isso se traduz na necessidade de dominar a cidade de Rafah, localizada no sul do enclave, na fronteira com o Egito. Rafah é o último bastião a ser controlado, mas a tarefa é complicada pela presença de aproximadamente 1,4 milhões de pessoas, muitas das quais se refugiaram ali vindas de outras partes do território, elevando dramaticamente o risco de um desastre humanitário ainda maior.

Dessa forma, o cenário que se apresenta hoje, no dia em que se completam seis meses de guerra, mostra muitas possibilidades de agravamento da situação. Por outro lado, as chances de desescalada se concentram nas tratativas intermediadas pelo Qatar, que embora por vezes pareçam avançar, têm sempre esbarrado em exigências inaceitáveis por um ou outro lado da disputa.

Assim, resta evidente a complexidade da situação. O cenário marcado pela grave questão humanitária e a possibilidade de escalada ressaltam a urgência de um esforço coordenado internacionalmente para se alcançar uma paz sustentável, que permita uma existência digna para todos os povos envolvidos. Isso não será conseguido sem a proposição de soluções inovadoras, visto que as tentadas nas últimas décadas não surtiram resultados. Resta saber se o mundo de hoje possui lideranças capazes de construir essas soluções.

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Vladimir Putin e o sonho de grandeza: Um quarto de século no poder

As eleições russas irão reeleger hoje o presidente Putin para mais um mandato. Com isso, Vladimir Vladimirovitch Putin, nascido em uma família de operários na cidade de Leningrado (atual São Petesburgo), em 07 de outubro de 1952, completará, já no próximo ano, um quarto de século como o líder supremo da Rússia.

Putin estudou Direito na sua cidade natal, ingressando depois na KGB, a conhecida agência de inteligência soviética. Dos quinze anos em que lá prestou seus serviços, seis foram passados em Dresden, na Alemanha Oriental. Em 1990 ele deixou a KGB, no posto de Tenente Coronel, para trabalhar na Universidade de Leningrado. Em seguida, passou a trabalhar na prefeitura de São Petesburgo, ascendendo ao posto de Vice-Prefeito em 1994. Em 1996, mudou-se para Moscou, onde passou a trabalhar no governo federal. Em 1998, o então presidente Boris Yeltsin o nomeou para comandar o FSB, herdeiro da KGB. Um ano depois, Yeltsin o escolhe para seu herdeiro como presidente, nomeando-o Primeiro Ministro.

Putin, então desconhecido, ganhou fama e a aprovação do público ao liderar uma operação bem-sucedida contra separatistas na Chechênia. Após a renúncia de Yeltsin, em 31 de dezembro de 1999, Putin venceu facilmente as eleições de março de 2000, com cerca de 53% dos votos. À época, não se podia imaginar que ele se perpetuaria no poder.

O objetivo geopolítico de Putin sempre foi o de afirmar a Rússia como uma grande potência, que deve estar sentada à mesa onde as principais decisões são tomadas. Essa postura reflete uma visão quase messiânica, em que Putin se vê como responsável por restaurar a grandeza perdida da Rússia após o fim do Império Russo e a dissolução da União Soviética. Isso fica claro em inúmeras manifestações de Putin, como por exemplo na que ele fez em junho de 2022, por ocasião do 350º aniversário de nascimento de Pedro, O Grande. Em discurso, ele comparou a guerra de vinte e um anos travada por Pedro contra a Suécia, da qual resultou a conquista da região onde foi fundada a cidade de São Petesburgo, à atual guerra na Ucrânia. Para Putin, essas campanhas militares não ocorreram em terras estrangeiras, mas foram guerras para retomar territórios historicamente russos.

Na visão de Putin, a Rússia trava uma guerra contra inimigos liderados pelos EUA, que manipulam a União Europeia e a OTAN com o objetivo de humilhar a Rússia. O governo da Ucrânia, nesse sentido, seria apenas mais um desses peões à serviço norte-americano.

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O atual processo eleitoral, claramente carente das condições para ser genuinamente democrático, ainda assim oferece a Putin um verniz de legalidade e democracia. Isso permite que ele se apresente, tanto aos cidadãos russos quanto à comunidade internacional como o legítimo líder político da Rússia. Transposta essa formalidade, Putin prosseguirá em sua cruzada para a transformação da ordem internacional, assumindo, como a invasão da Ucrânia demonstra, todos os riscos que julgar necessários.

Putin percebe o momento histórico como sendo favorável à consecução de seus objetivos de reconstrução de uma Rússia poderosa. Esse momento é favorecido pelo apoio da “amizade sem limites” da China liderada por Xi Jinping e pela acirrada tensão interna nos EUA, causada pela polarização política, que faz com que os eleitores norte-americanos prestem muito mais atenção aos problemas domésticos do que ao expansionismo russo. Além disso a incapacidade militar da Europa de enfrentar a Rússia sozinha e a posição pragmática de neutralidade adotada por países do “Sul Global” contribuem para essa situação.

Aos 71 anos, Putin garante sua permanência no poder até pelo menos até 2030. Se ele fosse um Romanov, já poderia ser listado como um dos czares mais longevos. Pedro, o Grande, reinou por 39 anos. No ritmo que vai, não se pode descartar a possibilidade de Putin chegar lá.

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