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O FUTURO DA BIELORRÚSSIA

A Bielorrússia está sendo sacudida por uma onda de protestos contra o presidente Alexander Lukashenko. Os milhares de manifestantes exigem a renúncia do presidente, que se mantém no poder há 26 anos, acusando-o de fraudar o pleito eleitoral do último dia 9 de agosto. O resultado oficial, que não foi reconhecido por seus vizinhos na União Europeia, apontou uma vitória de Lukashenko com 80% dos votos.

O presidente bielorrusso, por sua vez, reprime violentamente os protestos, coloca suas forças armadas em prontidão e acusa a União Europeia de fomentar uma “revolução colorida” para derrubá-lo e a OTAN de aproximar suas tropas das fronteiras de seu país. Não há nenhum indício de que a OTAN tenha feito tal movimento, mas a intenção de Lukashenko é clara: lembrar Putin de que a Bielorrússia é a porta de entrada da Rússia para a aliança militar ocidental.

Nesse ponto, para se tentar antever os próximos acontecimentos políticos na Bielorrússia, é interessante se consultar um mapa da Europa Oriental. Com ele nas mãos, uma primeira informação salta aos olhos: se você estivesse em Varsóvia, Berlim ou Paris e quisesse ir de carro a Moscou, certamente o caminho mais curto seria pela Bielorrússia, mais especificamente por sua capital, Minsk.

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Fonte – http://www.asrie.org/2020/01/why-belarus-matters-now-minsk-moscow-crisis-and-the-opportunities-for-eu-and-china/

E a história já ensinou aos russos, em várias oportunidades, que exércitos podem marchar por esse caminho. Como já escreveu Tim Marshall, no excelente livro Prisioneiros da Geografia, você pode pensar que ninguém pretende invadir a Rússia, mas não é isso que os russos acham, e com razão. Nos últimos quinhentos anos eles foram invadidos várias vezes a partir do Oeste. Quase todas as vezes, o caminho utilizado foi a Bielorrússia.

Desse modo, fica fácil entender por que aos governantes russos ao longo da história, incluindo Vladimir Putin, interessa saber quem estará sentado no gabinete presidencial em Minsk. Lukashenko tenta convencer Putin de que ele é o sujeito ideal, acusando os manifestantes de estarem a serviço de uma trama do ocidente e denunciando que a OTAN estaria às suas fronteiras.

A atuação militar russa na Ucrânia, com a anexação da Crimeia, em 2014, serve de alerta para a comunidade internacional de que os russos poderiam atuar militarmente também na Bielorrússia. Mas há algumas diferenças importantes. Se na Ucrânia, russos e ocidentais disputavam – e ainda disputam – esferas de influência, uma vez que naquele país a população está dividida entre pró-ocidentais e pró-russos, o mesmo não ocorre na Bielorrússia, onde a grande maioria da população, inclusive os manifestantes, são muito mais próximos, por laços históricos, culturais e linguísticos de russos do que ocidentais. Russos e bielorrussos são todos integrantes da mesma “civilização ortodoxa”, em conflito permanente com a “civilização ocidental”, de acordo com a teoria proposta por Samuel Huntington em “O Choque das Civilizações”. Desse ponto de vista, arriscar uma ação militar na Bielorrússia não faria sentido, uma vez que um novo governo provavelmente não afastaria o país da esfera de influência russa.

A hipótese da solução pela via política, desconsiderando qualquer ação militar, é reforçada por outro exemplo recente: o caso da Armênia, onde, em 2018, irromperam diversos protestos. Os manifestantes, a exemplo do que acontece agora na Bielorrússia, acusavam o então primeiro-ministro e por duas vezes consecutivas presidente, Serge Sarkissian, de tentar perpetuar-se no poder. Onze dias depois do início dos protestos, Sarkissian renunciou, abrindo caminho para uma solução política para a crise.

Mas, também em relação ao caso da Armênia, há uma diferença marcante. Lukashenko não dá nenhuma demonstração de que estaria disposto a deixar o poder. Pelo contrário, no último domingo, se deixou filmar a bordo de um helicóptero, sobrevoando o local da concentração dos manifestantes, vestindo um colete tático/balístico e portando a tiracolo um fuzil Kalashnikov. Estava acompanhado de seu filho, um adolescente de 16 anos, que a exemplo do pai, portava colete e fuzil, além de estar usando capacete balístico. A mensagem transmitida pelas imagens não poderia ser mais clara: demonstrar a indisposição de Lukashenko em deixar o poder.

Além de todos os aspectos elencados, há ainda que se destacar a sempre crucial questão econômica. A Rússia é o destino de 46% das exportações bielorrussas e origem de mais da metade das importações do país. Além disso, a Bielorrússia é altamente dependente do petróleo e do gás natural russos, importado a preços subsidiados. A dependência econômica é mais um fator a indicar que qualquer novo governo que porventura substitua o atual não poderá se afastar da esfera de influência russa em direção ao ocidente.

Parece evidente que a Rússia vai desempenhar um papel central no destino de Lukashenko. Um cenário otimista seria algo que se assemelhasse ao ocorrido na Armênia, onde a alternância de poder exigida pela população foi alcançada e a Rússia não foi acusada pelo ocidente de intervir nos assuntos internos de outro país. Talvez seja isso que Putin tenha em mente.




TRAGÉDIA NO LÍBANO

A violentíssima explosão ocorrida no porto de Beirute causou mais de duzentas mortes e milhares de feridos. A região do entorno do porto ficou completamente destruída, mas os efeitos da onda de choque causaram estragos mesmo a dezenas de quilômetros do epicentro. Após um momento de perplexidade pela gravidade do ocorrido, a cidade foi tomada por protestos nos quais a população, enfurecida com as autoridades, acusadas de negligência, exigia a renúncia do Primeiro Ministro Hassan Diab, o que acabou ocorrendo no último dia 10 de agosto, apenas 6 dias após a tragédia.

 

A fúria da população se explica. Afinal, tudo indica que a causa da explosão tenha sido a combustão de 2.750 ton de nitrato de amônio, armazenadas desde 2014 no porto, de maneira inadequada, após terem sido confiscadas de um navio mercante.

O porto de Beirute é um dos mais importantes do Mediterrâneo oriental, unindo mercados da Europa, Ásia e África, estando conectado a mais de 300 portos em todo o mundo. Além disso, é de vital importância para o próprio Líbano, uma vez que 82% das importações e exportações e 98% dos contêineres destinados ao país passam por ele. Antes da explosão, seus silos tinham uma capacidade de armazenamento de 120 mil ton. Após a explosão, essa capacidade terá que ser reconstruída, a um alto custo, ainda mais para um país que vive tamanha crise econômica. De imediato, parte das cargas poderá ser redirecionada para o porto de Trípoli, mais ao norte e, em menor escala, para o porto de Sidon, ao Sul da capital.

Com a explosão, o Líbano vive a chamada “tempestade perfeita”: uma grave crise política e econômica, acompanhada da pandemia da Covid-19 e, agora, de uma nova onda de revolta popular em Beirute.

Na verdade, os protestos já ocorriam desde o ano passado, motivados pela deterioração econômica, pela ineficiência do governo em prover serviços básicos, como o fornecimento de água e energia elétrica, além dos muitos casos de corrupção, e foram o estopim para a renúncia do Primeiro-Ministro Saad Hariri, em 29 de outubro de 2019. Quem o sucedeu, em janeiro deste ano, foi o Primeiro-Ministro Hassan Diab, que acaba de renunciar.

O Líbano moderno é um pequeno e montanhoso país, espremido contra o Mar Mediterrâneo, que faz fronteira ao Norte e a Leste com a Síria e, ao Sul, com Israel. Sua população é bastante heterogênea, composta por numerosos grupos étnicos, religiosos e culturais. Em razão dessa característica, após obter a independência em 1943, os dirigentes do Líbano estabeleceram um regime de governança política de maneira a tentar garantir uma divisão de poder que oferecesse representatividade política a três grupos étnico/religiosos: os cristãos maronitas (presidência da república), os muçulmanos xiitas (presidente do parlamento) e os muçulmanos sunitas (primeiro-ministro). O parlamento e os cargos públicos também são divididos entre cristãos e muçulmanos.

Além disso, a geografia impôs ao Líbano estar no centro da questão árabe-israelense e, mais recentemente, da disputa árabe-iraniana. Assim, quando disputas sectárias levaram o país a uma guerra civil que durou de 1975 a 1990, tanto sírios quanto israelenses enviaram tropas para o país.

A longa guerra civil trouxe graves consequências para a economia libanesa. No entanto, após a guerra, o país iniciou um ambicioso programa de reconstrução econômica e social, liderada pelo então Primeiro-Ministro  Rafiq al-Hariri. O programa teve considerável êxito; entretanto, teve como efeito colateral um substancial aumento do endividamento do país, tanto externo quanto interno.

Esses efeitos econômicos negativos se agravaram muito com a guerra civil na Síria. Estima-se que o país já tenha recebido cerca de 1,5 milhão de refugiados sírios, o que corresponde a aproximadamente um quarto da população do país. O turismo e os investimentos externos reduziram drasticamente. O sectarismo religioso entre sunitas e xiitas recrudesceu, com libaneses sunitas apoiando os revoltosos sírios, enquanto os xiitas apoiavam o presidente sírio Bashar al-Assad.

O conflito entre a milícia xiita Hezbollah e Israel, que afeta especialmente a região sul do país, também está longe de uma solução. Iniciada durante a guerra civil, na década de 1980, seu ápice foi em 2006, quando o conflito escalou para uma ação do exército israelense em território libanês, para destruir alvos do Hezbollah, mas os enfrentamentos de baixa intensidade entre ambos permanecem.

É neste ambiente de altíssima complexidade e inúmeras dificuldades que o Líbano enfrenta mais essa crise. A destruição do porto de Beirute, de fundamental importância econômica, serviu de estopim para a explosão de protestos que resultaram em mais uma mudança de governo. Os vários grupos político/religiosos do país vão tentar se reposicionar buscando aumentar seu poder político, sempre sob o olhar atento e interessado de iranianos, árabes, israelenses, sírios, turcos, franceses, russos e norte-americanos. E assim o Líbano vai recomeçar. Pela enésima vez.




AS RELAÇÕES CADA VEZ MAIS TENSAS ENTRE EUA E CHINA

China anunciou, no último dia 24 de julho, a ordem para que os Estados Unidos fechassem o consulado do país em Chengdu, importante cidade com cerca de 4,6 milhões de habitantes. Foi uma retaliação ao fechamento, pelos EUA, do consulado chinês em Houston. Na véspera, o Secretário de Estado norte-americano Mike Pompeo, em visita Yorba Linda, California, havia discursado[1] usando uma dura retórica contra o partido comunista chinês o os governantes daquele país. Ironicamente, o local do discurso foi a cidade natal de Richard Nixon, o presidente norte-americano responsável pela reaproximação dos EUA com a China na década de 1970.

Assim, os dois países sobem mais um degrau na escalada de tensões que tem caracterizado as relações entre Washington e Beijing, especialmente nos últimos dois anos.

São vários os pontos de atrito, desde a chamada “guerra comercial”, passando por questões que envolvem os direitos humanos, acusações de espionagem e de guerra cibernética, a crise da pandemia da Covid-19, a tecnologia 5G de comunicação móvel, a nova lei de segurança nacional promulgada na China em relação a Hong Kong, a maior assertividade chinesa em relação a  Taiwan e sua crescente presença militar no Mar do Sul da China, para citar apenas as mais relevantes.

Já se tornou lugar comum falar em uma “nova Guerra Fria”, com a China tomando o lugar da antiga União Soviética no polo que antagoniza os EUA. Por imprecisa que seja tal comparação, é certo que a escalada da rivalidade entre os dois países atingiu níveis inéditos no sistema internacional desde o esfacelamento da antiga União Soviética.

Entretanto, há uma diferença marcante. Se na Guerra Fria as esferas de influência de cada uma das superpotências estava praticamente delimitada pelos espectros ideológicos que se antagonizavam, com capitalistas de um lado e comunistas de outro, na disputa atual essas esferas não estão claramente definidas.

E esse é mais um importante campo de disputa, onde cada um dos contendores apresenta suas armas. De um lado, a China se apresenta como poderoso parceiro comercial e econômico, disposto a celebrar acordos, firmar negócios e financiar projetos de infraestrutura e de desenvolvimento econômico por todo o mundo, especialmente nos países de seu entorno, pela Iniciativa Belt and Road, mas também na África, na Europa e nas Américas. Com isso, ao mesmo tempo em que oferece oportunidades valiosas de desenvolvimento, amarra governos a dívidas e compromissos que garantem, se não apoio político explícito, pelo menos a postura de neutralidade. Isso ficou claríssimo na crise da Covid-19. Governos de todo o mundo, inclusive dos EUA(!), ficaram amarrados a fornecedores chineses, em uma dependência constrangedora, que em muitos casos impediu governos de se manifestarem mais duramente contra o fato de o vírus, de acordo com todas as evidências, ter se expandido para todo o mundo em razão de diversos equívocos das autoridades sanitárias chinesas, especialmente nos primeiros momentos da pandemia. Ao mesmo tempo, a China se projeta com uma política externa proativa, com maciça divulgação da cultura do país, tentando projetar uma imagem mais simpática ao ocidente.

Por outro lado, os EUA se amparam em seu até aqui incomparável poderio militar para constranger os chineses a refrear seu ímpeto expansionista no Mar do Sul da China, garantir a relativa soberania de Taiwan, e apoiar seus principais aliados na Ásia e Oceania, em especial o Japão, a Coreia do Sul e a Austrália, além da Índia, que embora não possa ser considerado exatamente um país aliado, é a grande rival da China na Ásia. Além disso, os EUA busca liderar os países ocidentais, mantendo sua atuação no campo psicossocial, reforçando a narrativa de defesa de valores democráticos e liberais, denunciando o autoritarismo do governo chinês e posicionando-se em defesa dos uigures e dos moradores de Hong Kong.

Além da busca por aliados, cada um dos dois países se prepara em ritmo acelerado no campo militar. As forças armadas chinesas sofreram uma grande reforma em 2015, buscando maior interoperabilidade e modernização. A Marinha de Guerra se destaca, modernizando-se em um ritmo impressionante. Já os EUA reformularam sua estratégia militar em 2018, definindo claramente que o país deveria se preparar para uma nova fase de competição entre grandes potências, com um foco especial para a China e a Rússia, citadas nominalmente. Ao mesmo tempo, criaram uma nova Força Armada, a Força Espacial, para se preparar para combater também nesse domínio.

Escaladas e distensões, acusações e acomodações, disputas e acordos se alternam no manejo das relações entre duas potências globais. Há inúmeros e enormes interesses envolvidos e uma escalada de antagonismos que saia do controle não é do interesse de nenhuma das duas. Mas aqui, o Realismo se impõe mais uma vez: a espiral conflituosa é ascendente e a chance de algo escapar ao controle, cada vez maior.


[1] Saiba mais aqui



PUTIN 2036

Vladimir Putin já se referiu à desintegração da antiga União Soviética (URSS), ocorrida em 1991, como o “grande desastre geopolítico do século”. Em 2004, ele já estava no poder quando todos os países membros do antigo Pacto de Varsóvia [1], com exceção da própria Rússia, já estavam integrados à inimiga OTAN ou à União Europeia. Ou seja, às portas da Rússia. E, do ponto de vista do presidente russo – e de grande parte da opinião pública daquele país – essa sempre foi uma situação difícil de aceitar.

Desde 1999 no poder, o presidente Vladimir Putin acaba de obter mais uma importante vitória política. Em referendo realizado para a aprovação de mudanças constitucionais, os russos votaram para concordar com a alteração das regras eleitorais. Dessa forma, Putin poderá se candidatar novamente nas duas próximas eleições. Caso seja vitorioso, o presidente, que já está no poder há 20 anos, permanecerá despachando do Kremlin até 2036, tornando-se o mais longevo líder russo em tempos modernos, ultrapassando o ditador Stálin e, em toda a história, ficando atrás apenas do Tzar Pedro, o Grande, que governou o império russo por 43 anos entre 1682 e 1725.

Às vésperas do referendo, no último dia 22 de junho, em plena pandemia da Covid-19, Putin determinou que fossem realizados os desfiles militares em comemoração aos 75 anos da vitória na 2ª Guerra Mundial. Ao mesmo tempo, fez divulgar um artigo[2] de sua autoria, de 18 páginas, no qual celebra a atuação soviética na guerra, ao mesmo tempo em que defende a ordem geopolítica inaugurada no pós-guerra, especialmente o Conselho de Segurança da ONU e seus cinco membros permanentes, Rússia, China, Estados Unidos, França e Reino Unido, que possuem poder de veto. Putin atribui ao Conselho de Segurança e, muito especialmente, ao poder de veto que cada um desses cinco países possui naquele fórum, o fato de o mundo não ter enfrentado uma nova guerra mundial nos últimos 75 anos.

No mesmo documento, Putin reforçou sua intenção, expressa no início do ano, de promover uma reunião de cúpula com os líderes desses cinco países para “encontrar respostas para os modernos desafios e ameaças, demonstrando um comprometimento comum e espírito de aliança”. A ênfase no fórum formado pelos 5 membros permanentes do Conselho de Segurança em detrimento de outros grupos mais representativos, como por exemplo o G20, demonstra sem disfarces o esforço de Putin de manter seu país relevante geopoliticamente, como legítimo herdeiro da União Soviética, em um momento em que o crescimento da China mostra que a bipolaridade mundial teve o seu polo oriental transferido de Moscou para Beijing. Em resumo, Putin quer garantir um lugar de decisão e influência no palco das decisões globais.

Mas o esforço russo não é apenas retórico. Nos 20 anos em que está no poder, Putin adotou políticas no sentido de que a Rússia recuperasse a grandeza e prestígio geopolítico da antiga União Soviética e recuperasse sua esfera de influência sobre os países vizinhos, em especial no leste europeu, no centro da Ásia e, ainda, no Oriente Médio, além de trabalhar para reconstruir seu poderio militar.

Assim, o país ampliou suas aspirações globais, atuando militarmente na Chechênia, na Geórgia e no norte do Cáucaso. Putin interveio na Ucrânia, retomando a Criméia e controlando boa parte da região de Donbass. Além disso, a Rússia interfere decisivamente nas guerras civis da Síria e da Líbia, apoia financeira e militarmente o governo de Nicolás Maduro, envia mercenários do Wagner Group para atuar na República Centro Africana e atua no chamado “amplo espectro dos conflitos” por meio da internet, em ciberataques contra instituições privadas e públicas em vários países estrangeiros, além de desencadear campanhas de propaganda e desinformação inflamando tensões sociais e tentando interferir em campanhas eleitorais estrangeiras, sendo as últimas eleições presidenciais norte-americanas o caso mais relevante.

No campo militar, a Rússia tem obtido avanços tecnológicos importantes em seu arsenal, como a nova classe de mísseis hipersônicos, novos drones submarinos, além de um novo carro de combate principal.

A “ordem global”, anárquica por natureza, apresenta vários sinais de estar em crise. A absoluta ausência de uma resposta internacionalmente coordenada para a crise da Covid-19 é apenas o sinal mais recente e nítido. O sistema internacional se apresenta menos colaborativo e mais frágil. As instâncias internacionais de coordenação e resolução de controvérsias demonstram baixos níveis de representatividade ou credibilidade. É nesse ambiente que o Presidente Putin encontra espaço para projetar sua atuação, uma vez que, para ele, as relações internacionais são encaradas como um jogo de soma-zero, nos quais os interesses russos são considerados sempre em primeiro lugar.

O primeiro ministro inglês Winston Churchill afirmou, em 1946: “Estou convencido de que não há nada que [os russos] admirem tanto quanto a força, e que não há nada por que tenham menor respeito do que a fraqueza, especialmente a fraqueza militar”. Talvez esse espírito explique a longevidade de Vladimir Putin no poder.

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[1] aliança militar liderada pela URSS nos tempos de Guerra Fria
[2] Artigo



O CONFLITO ENTRE A CHINA E A INDIA

China e Índia disputam uma extensa região fronteiriça nas alturas do Himalaia desde a década de 1950. Já foram à guerra em razão disso. E agora, um conflito de fronteira volta a causar dezenas de mortos, elevando as tensões entre os dois gigantes asiáticos, ambos detentores de armamento nuclear.

A história do conflito remonta aos acontecimentos decorrentes do término da 2ª Guerra Mundial, quando a Índia conquistava a sua independência do Reino Unido, em 1947. No mesmo período histórico, apenas 2 anos depois, na China, a Revolução Comunista obtinha sua vitória. Em seguida, de forma quase simultânea, a Índia travaria a sua primeira guerra contra o Paquistão, pela posse da Caxemira, enquanto a China anexaria o Tibete. Para a China, as alturas do Tibete eram importantes do ponto de vista estratégico, justamente para impedir que a Índia se expandisse em direção ao planalto tibetano, obstáculo natural que sempre protegeu a civilização chinesa.

Assim, chineses e indianos, herdeiros de civilizações que por milhares de anos praticamente se ignoraram, em razão da gigantesca barreira natural que os separava, o Himalaia, passaram a dividir cerca de 3,5 mil Km de fronteiras.

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Em 1959, um levante no Tibete foi esmagado pelos chineses e o Dalai Lama, líder tibetano, se exilou na Índia. Este fato foi causa do primeiro atrito entre os dois países que, apenas 3 anos depois, em 1962, travaram uma guerra pela posse de regiões fronteiriças. A China venceu e passou a controlar a área de Aksai Chin, um corredor estratégico que liga o Tibete ao ocidente chinês. A Índia nunca aceitou esse fato, reclamando essa e outras regiões atualmente sob a soberania chinesa. Entretanto, ao término da guerra, estabeleceu-se uma linha de controle na área contestada (Line Of Actual Control – LAC), que se tornou, na prática, a fronteira entre os dois países.

Ao longo dos anos, diversos incidentes aconteceram em vários pontos da LAC, até que, a partir de maio deste ano, novos enfrentamentos ocorreram, e a China fez um movimento mais assertivo, deslocando cerca de 3,5 mil soldados para a região. A Índia também cerrou mais meios militares para a fronteira.

O ápice da crise atual ocorreu no último dia 15, quando um confronto resultou na morte de 20 militares indianos, dentre eles o Coronel Santosh Babu. A China não divulgou suas baixas, mas estima-se que também sejam contadas às dezenas. Um aspecto a ser destacado é que os soldados de ambos os exércitos são orientados, em suas regras de engajamento, a evitar o emprego de armas de fogo, justamente para que um eventual confronto não saia do controle nem escale até provocar uma guerra. Por incrível que pareça, o entreveiro entre militares de duas potências nucleares do século 21 foi travado utilizando-se de barras de ferro e pedras como armas.

O confronto se deu na região do Ponto 14, um local que ambos os países consideram estar do seu lado da LAC. Entretanto, desde 1978 a Índia estabeleceu o local como um ponto de patrulhamento, em razão de ser uma posição taticamente vantajosa, numa cordilheira com vista para o vale do Rio Galwan, no Ladakh oriental, que possibilita o controle de uma estrada que está sendo construída pela Índia, por onde ela considera ser seu território. De acordo com a versão dos indianos, os chineses estavam construindo um posto de observação na região do mesmo Ponto 14 quando a tropa comandada pelo Coronel Babu se deslocou para lá e exigiu que os chineses se retirassem. A discussão resultou em briga corporal, com a morte do coronel e de dezenas de soldados de ambos os exércitos.

A Índia acusa a China de tentar redefinir a LAC, ganhando ainda mais territórios, especialmente em pontos da cordilheira que ofereçam vantagens táticas importantes, como é o caso do ponto 14. Isso porque a China estaria especialmente descontente com as recentes obras de infraestrutura que a Índia vem construindo na região, que na visão chinesa constituem uma ameaça, especialmente em razão do separatismo tibetano.

O incidente foi grave. Foi a primeira vez que ocorreram mortes na fronteira em mais de 4 décadas. A opinião pública e a imprensa, na Índia, reforçam que é impensável que o país ceda qualquer centímetro a mais de território. O primeiro ministro Narendra Modi fez um pronunciamento à nação no qual declarou que o sacrifício dos soldados indianos não seria em vão e que o país deseja a paz, mas daria uma resposta adequada caso fosse provocado. Pelo lado chinês, o jornal estatal Global Times, conhecido por expressar as opiniões do governo, escreveu, em editorial, que os indianos deveriam “acordar de sua fantasia geopolítica” e encarar as disputas fronteiriças de “forma pragmática”.

A China, que já acumulava focos de tensão em Taiwan, no Mar do Sul da China e em Hong Kong, soma a fronteira com a Índia à essa relação. Equilibrar tantas crises e manejá-las de modo a impedir escaladas que resultem em conflitos de maior intensidade é um enorme desafio para seus estrategistas.

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Charge de KAL – The Economist

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A RÚSSIA E O ÁRTICO

A maneira como cada um de nós entende a geografia do mundo é condicionada pela imagem que conhecemos do planeta. Assim, aqui no Brasil e no restante do ocidente, a ideia que temos do planeta é a da projeção cilíndrica de Mercator. As Américas estão “à esquerda”, Europa e África “ao centro” e Ásia e Oceania “à direita”. “Abaixo”, a Antártida e “acima”, o Oceano Glacial Ártico.

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Projeção Cilíndrica de Mercator

Acostumados a ver o mundo desse ponto de vista, os ocidentais se habituaram a tratar o Oceano Glacial Ártico e a Antártida como grandes áreas passivas, completamente fora dos interesses da imensa maioria das pessoas. Entretanto, para os russos, o Ártico tem uma importância geoestratégica vital. E fica bem mais fácil entender isto se, ao invés da projeção cilíndrica de Mercator, utilizarmos uma projeção plana, também chamada azimutal, para observar aquela parte do mundo.

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Projeção Polar plana do Hemisfério Norte

Como se vê, a imagem do hemisfério norte agora mostra, “à esquerda”, a América do Norte, com destaque para o Canadá, o Alasca e a Groelândia. “Ao centro”, o Ártico, e “à direita”, a Eurásia, com destaque para a Rússia. É possível se observar com mais clareza o gigantesco litoral ártico russo, de mais de 24 mil quilômetros de extensão, mais de três vezes o tamanho do litoral atlântico brasileiro. Salta aos olhos que o Oceano Glacial Ártico é uma ligação entre os oceanos Pacífico e Atlântico, além de ser inescapável a proximidade da Ásia e da América no Estreito de Bering, que separa a Sibéria russa do Alasca[1] norte-americano.

Em 1935, os russos conseguiram, pela primeira vez, estabelecer com regularidade o trânsito de navios mercantes pela Rota Norte, ou passagem do Noroeste[2], ligando os Oceanos Pacífico e Atlântico, navegando ao longo da costa russa. A navegação, durante décadas, ficou restrita ao período de agosto a outubro, mas sempre com o constante risco representado pelos icebergs e pela instabilidade climática da região.

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Rota Norte

A Rota Norte encurta consideravelmente distâncias de transporte. Uma viagem do Porto de Roterdã, na Holanda, à cidade japonesa de Yokohama é reduzida em 3.840 milhas náuticas, cerca de 9 dias de navegação. Do mesmo porto até Xangai, o encurtamento é de 2.361 milhas náuticas, ou cerca de 5,5 dias, se comparadas com a rota alternativa, que circunda a Eurásia pelo Sul, utilizando o Canal de Suez e o Oceano Índico até chegar ao Pacífico.

Com o esfacelamento da antiga União Soviética, esta rota praticamente fechou. Entretanto, a partir da segunda década deste século, a Rússia voltou a investir na viabilidade comercial da rota. Para isto, alguns fatores contribuíram, como uma nova classe de navios quebra-gelo, inclusive de propulsão nuclear, modernas tecnologias de auxílio à navegação e o próprio aquecimento do clima global, fatores que, somados, permitiram a ampliação do prazo navegável de três meses, em 1935, para seis ou sete meses por ano, nos dias atuais. Outro estímulo importante foi o incremento da produção de gás natural siberiano que, liquefeito, encontra na Rota Norte o seu melhor caminho até os países importadores. Assim, de 2015 a 2019 o volume de cargas transportado pelos navios mercantes ao longo da costa ártica da Rússia saiu de 5,4 milhões para 29 milhões de toneladas/ano. Isto mostra um esforço logístico de melhoria das condições de transporte, que superam dificuldades como os altos preços dos seguros e os riscos de atrasos causados pelas condições climáticas muitas vezes desfavoráveis na região.

Apesar de sua importância, o estabelecimento da Rota Norte não é o único motivo pelo qual a Rússia está atenta ao Ártico. A importância econômica da região não é nada desprezível. Segundo estimativas do Observatório Geográfico dos EUA, cerca de 13% do petróleo e 30% do gás natural por ser descoberto está no interior do Círculo Polar Ártico. Isto sem falar da comprovada existência de outras riquezas minerais de grande valor, como ouro, magnésio, níquel, cobalto e prata.

Há ainda o aspecto militar. O país criou, em 2014, um comando conjunto voltado para o Ártico, que, não custa lembrar, é a região em que Ásia e América mais se aproximam geograficamente. Trata-se do Comando Estratégico Conjunto da Frota do Norte. Esta criação permitiu a retomada, ampliação e modernização de várias bases militares do país na região. A realocação e readequação das forças permitiu a ampliação da instalação de radares, baterias antiaéreas, baterias de mísseis e equipamentos de guerra eletrônica, dentre outras inúmeras possibilidades. Além disso, o Ártico é a região mais adequada para testes de novos armamentos, por sua vastidão, vazio demográfico e dificuldade de acesso.

Dessa forma, a Rússia, uma nação tradicionalmente voltada ao poder terrestre, vai conquistando espaço e larga na frente na competição pela exploração da região ártica, seguindo os preceitos do Almirante Alfred Thayer Mahan, teórico da importância estratégica do domínio de rotas marítimas – o chamado “poder marítimo”. Além disso, na medida em que avança em direção ao Norte, estabelece no Ártico a mesma estratégia de projeção de poder que tem executado em outras regiões de seu interesse, notadamente o leste europeu e o norte da África. Nesse sentido, foi emblemático o gesto ocorrido em 02 de março de 2007, quando uma expedição submarina do país instalou a bandeira da Federação Russa no leito do oceano, a mais de 4 mil metros de profundidade, no ponto que define o “polo norte real”. Para os russos, não há dúvidas sobre qual nação deve ter a primazia da exploração das riquezas árticas.

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Bandeira russa, instalada no leito do oceano, a mais de 4 mil metros de profundidade, no Pólo Norte


[1] O Alasca, no que hoje parece uma ironia do destino, foi território russo e foi vendido por 7,2 milhões de dólares, pelo Tzar Alexandre II, aos EUA, em 1867, pelas dificuldades do Império Russo em manter o distante território.
[2] A passagem noroeste tinha sido feita pela primeira vez, a duras penas, pelo explorador norueguês Ronald Amundsen, em seu pequeno navio Gjøa, que está exposto à visitação na cidade de Oslo, capital da Norega, ao lado do Fram, o navio usado pelo mesmo explorador na conquista do Polo Sul, em 1911.



PARA ONDE VAI A CHINA?

A China não sai das manchetes dos jornais. Se o gigante asiático já estava presente em todas as conversas sobre relações internacionais, comércio ou geopolítica, a Covid-19 multiplicou o interesse de todos sobre aquele país. Afinal, quem decifrar as intenções do dragão chinês, percebendo também suas fortalezas e debilidades, certamente estará em melhores condições de compreender o atual momento do tabuleiro geopolítico global.

Semana passada, no artigo “O impulso Estratégico Chinês”, procurei mostrar que a China passou a atuar com mais intensidade na busca dos seus objetivos estratégicos. Neste texto, o foco será um personagem fundamental nessa jornada: o presidente Xi Jinping.

Para entender para onde vai a China é necessário prestar atenção no seu presidente. Xi Jinping se apresenta à população como aquele que deseja levar o país a alcançar o chamado “sonho chinês”: “transformar a China em país socialista moderno, próspero, forte, democrático, culturalmente avançado e harmonioso, em 2049, ano do centenário da República Popular da China”.

Aparentemente, Xi planeja estar no poder em boa parte desse caminho. Em 2018, ele conseguiu que a Constituição fosse modificada, ficando abolida a restrição à permanência do presidente por mais de 2 mandatos. Essa modificação é importante também em razão do estilo de liderança de Jinping. Até a presidência de Hu Jintao, seu antecessor, havia uma espécie de presidência colegiada, representada pelos 9 membros do Comitê Permanente do Partido Comunista Chinês. Uma certa dose de consenso e alguma visão discordante era admitida. Isso mudou sob Xi Jinping. Adversários políticos foram retirados de cena, muitos acusados de corrupção. A censura se intensificou, na imprensa, nas mídias sociais e nas manifestações culturais. Um crescente nacionalismo é estimulado, misturado a uma retórica de valorização dos ideais do Partido Comunista.

No governo de Xi Jinping, o controle social se intensificou, especialmente nas 2 regiões atualmente consideradas críticas pelo regime: A primeira é Xinjiang, a província da minoria islâmica uigur, em que movimentos separatistas são acusados de terrorismo e onde se ergueram os chamados “campos de reeducação”, nos quais milhares estão presos.

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A segunda é Hong Kong, onde, nos últimos anos, o governo tem enfrentado uma série de protestos pela manutenção das liberdades democráticas que existem na antiga colônia britânica. E, agora, justamente quando protestos nas ruas são proibitivos em razão da distância social imposta pela pandemia, o governo adota de uma “Lei de Segurança Nacional” que efetiva a restrição às liberdades dos habitantes de Hong Kong.  Na prática, é o fim da política chamada “Um país, dois sistemas”, que garantia liberdades individuais em Hong Kong que inexistem na China continental. Pode-se esperar uma grande insatisfação social em Hong Kong. A ação governamental em resposta mostrará para todo o país e para o exterior qual é a disposição do governo para lidar com o dissenso.

Mas a insatisfação popular na China poderá ter outras origens, que não somente os habitantes de Hong Kong. A pandemia da Covid-19 mostrou – até de forma surpreendente para um país acostumado a lidar com epidemias – a ineficiência do governo. As autoridades de Wuhan bateram cabeça no início da crise, escondendo os fatos, retardando o início do enfrentamento e perdendo um tempo precioso. A morte pela Covid-19 do médico Li Wenliang, que em dezembro do ano passado havia alertado os governantes sobre a epidemia, tendo sido em seguida obrigado pelas autoridades a assinar um documento reconhecendo que suas informações eram “falsas e ilegais”, repercutiu muito negativamente entre os chineses.

A economia também causa preocupações ao governo de Xi Jinping. A desaceleração econômica que já vinha ocorrendo por razões estruturais, se intensificou em razão da pandemia. O desemprego aumentou e uma massa de jovens com boa formação poderá ter dificuldades em manter os níveis de vida conquistados nos últimos anos por seus pais. A isso se some o rápido envelhecimento da população, que aumenta sensivelmente a pressão sobre os sistemas previdenciário e de saúde.

Há ainda a questão de Taiwan. A crescente assertividade chinesa, com a presença militar cada vez mais frequente de seus navios de guerra e aeronaves no Estreito de Taiwan é um recado para os taiwaneses e para a comunidade internacional de que a China não desiste de recuperar a soberania sobre a ilha. Por outro lado, mostrar-se altivo em relação a Taiwan acendra o espírito nacionalista, unindo a vontade popular em torno de um objetivo facilmente entendido como legítimo: o da reunificação nacional.

Ainda no campo internacional, começam a surgir dúvidas se o país terá condições econômicas de manter sua expansão geoestratégica em direção aos vizinhos no sudeste e centro asiáticos, além da África e Europa, especialmente pelo programa “One Belt, One Road”, de investimentos em infraestrutura, no valor de cerca de US$ 1 trilhão.

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Como se vê, a China tem imensos desafios a enfrentar, tanto no campo interno quanto no campo externo. E Xi Jinping desempenha papel preponderante. Sua personalidade, suas crenças, sua capacidade de liderar o país na superação dos crescentes desafios e sua habilidade em se manter no poder definirão os rumos, o ritmo e a agressividade que a China imprimirá na perseguição de seus objetivos estratégicos.




O IMPULSO ESTRATÉGICO CHINÊS

O “Congresso Nacional do Povo”, na China, reúne-se normalmente por duas semanas, a cada primavera. A reunião de 2020 está se encerrando, e as notícias relativas ao encontro da mais alta esfera parlamentar chinesa, somadas a outras sobre os últimos acontecimentos que envolvem o país e alguns de seus vizinhos, chamaram a atenção.

A primeira notícia foi a aprovação, com apenas um voto contrário, da Lei de Segurança Nacional para Hong Kong, feita sob medida para tentar controlar as manifestações populares que vêm ocorrendo ao longo dos últimos anos, em favor da manutenção das liberdades individuais e contra a crescente interferência da China continental na antiga colônia britânica.

A segunda foi o tom e o teor do discurso feito pelo presidente Xi Jinping no encontro do Comitê Central Militar, mais alta esfera de comando do Exército de Libertação Popular, como são denominadas as forças armadas chinesas. Em seu discurso, o presidente alertou as forças armadas de que elas devem fortalecer o seu preparo e estar prontas para a guerra. Isto em um momento em que os políticos e diplomatas chineses falam com cada vez mais frequência em “reunificar Taiwan, se preciso pela força”.

A terceira notícia foi a inesperada escalada militar de tensões com a Índia, na região do Himalaia.

Assim, a China abre, simultaneamente, de forma assertiva, três frentes de atuação justamente no momento em que os países do mundo todo estão concentrados em enfrentar a pandemia da Covid-19. Talvez não seja coincidência. Pequim sente-se confiante. Acredita que possui liberdade de ação e meios, tanto militares quanto econômicos, para atuar de acordo com seus interesses, independentemente de pressões internacionais.

A lei promulgada em relação a Hong Kong criminaliza o que for considerado separatismo, terrorismo e “interferência estrangeira”, além de protestos, aí incluídos aqueles realizados nas redes sociais. Na prática, é o fim da política “um país dois sistemas”, que garantia à chamada “Região Administrativa Especial” liberdades individuais inexistentes no restante do país.

A questão de Taiwan é a que mais afeta os sentimentos nacionalistas chineses. A ilha é considerada uma província rebelde pelo governo chinês desde 1949. Sua reunificação é um ponto de honra para Pequim. Um dos argumentos utilizados para convencer os taiwaneses era a política “um país, dois sistemas”, com a qual os chineses tentavam mostrar a Taiwan que uma reunificação seria benéfica, pois eles passariam a usufruir as vantagens de se integrar a uma China em acelerado crescimento econômico ao mesmo tempo em que manteriam seu estilo de vida com liberdades políticas e individuais. Entretanto, a recente reeleição de Tsai Ing-wen como presidente de Taiwan, de postura mais independentista, desagradou a Pequim, que pode estar perdendo a esperança de convencer os habitantes da ilha a se reunificarem pacificamente. Um indício disto é a própria legislação de segurança nacional em relação a Hong Kong. Os chineses sabiam que esta lei serviria de exemplo para os taiwaneses, demonstrando que a reunificação muito provavelmente selaria o fim de suas liberdades individuais e de seu regime multipartidário e democrático. E, mesmo pesando essa reação, que poderia comprometer um objetivo tão importante quanto a reintegração de Taiwan, Pequim insistiu na lei. Parece que considerou que a reação dos taiwaneses em relação à lei de Hong Kong já não faria diferença. O que se vê em relação à ilha é a presença militar chinesa cada vez maior, com navios de guerra e aeronaves militares atuando cada vez mais próximos a Taiwan.

Finalmente, a questão fronteiriça com a Índia. Os dois países possuem, juntos, um terço da população mundial. Ambos são potências nucleares. Os dois são responsáveis, respectivamente, pelo 2º e 3º maiores volumes de gastos militares do mundo. E possuem uma área disputada na região do Himalaia, ao longo de uma linha de controle de cerca de 3,5 mil Km de extensão. Já foram à guerra em razão disso, em 1962. Desde então, esporadicamente, se enfrentam em escaramuças militares sem, até hoje, resolverem a questão. Evidentemente, qualquer acirramento de tensões entre os dois gigantes asiáticos pode provocar repercussões graves e imprevisíveis. E é exatamente o que está acontecendo no momento. Ao mesmo tempo em que o presidente Xi Jinping discursa belicosamente, a China cerra o efetivo de uma Brigada, cerca de 3,5 mil militares, para a região contestada. Além disso, os indianos acusam os chineses de violarem a linha de controle, penetrando cerca de 3 quilômetros em direção ao território do lado indiano.

O estrategista francês General André Beaufre postulou que “impulso estratégico” é a capacidade que um Estado tem de atuar com maior ou menor intensidade em face de um desafio. Este impulso dependeria diretamente de quatro fatores: liberdade de ação, forças materiais, forças morais e tempo disponível. A intensidade com que a China tem atuado, tanto nos três episódios abordados neste artigo, quanto no tratamento que dispensou ao restante da comunidade internacional na pandemia da Covid-19, mostra que eles acreditam contar com cada um dos quatro fatores em sua plenitude.




CINCO LIÇÕES DE PANDEMIAS PASSADAS

Pandemias não são novidades para a humanidade. E o estudo das que já foram enfrentadas pode indicar perspectivas sobre o que está por vir. Iain King, em artigo para o Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais (CSIS) lista ensinamentos que as pandemias já enfrentadas legaram ao presente. Da leitura das reflexões de King, selecionei cinco lições que a história nos apresenta para o momento atual.

A primeira, no campo militar, aponta para uma tendência de paralização, ou redução, do impulso das campanhas militares em curso. Ele apresenta, como exemplo, a Guerra do Peloponeso, em 430 a.C., quando os atenienses foram infectados por uma peste. “Pessoas com boa saúde eram subitamente acometidas por fortes dores de cabeça, vermelhidão e inflamação nos olhos. Garganta e língua sangravam e exalavam um hálito artificial e fétido”. A descrição de Tucídides na magistral “História da Guerra do Peloponeso” mostra que a doença refreou o impulso ateniense, prolongando a guerra, que finalmente terminou vencida por Esparta. Outros exemplos seriam a epidemia que assolou a Rússia em 1771, obrigando a Imperatriz Catarina a diminuir a conscrição e negociar um acordo com a Prússia, com quem a Rússia disputava a posse da Polônia, e as epidemias que assolaram o Império Romano, refreando suas campanhas expansionistas.

Atualmente, a COVID-19 já provocou um cessar-fogo na guerra civil do Iêmen e uma sensível redução nas atividades russas e turcas na guerra civil da Síria. As grandes restrições orçamentárias que certamente virão após a crise farão com que as sociedades rediscutam a atuação de suas forças armadas em campanhas longínquas, nas quais os cidadãos médios veem pouca vantagem na relação custo x benefício. Por outro lado, também servirão de estímulo para se acentuarem as ações menos dispendiosas nos chamados “múltiplos domínios” do campo de batalha, como a atuação no campo informacional, com a intensificação de campanhas psicológicas e de desinformação, coisa que, aliás, já se vê nos dias atuais.

A segunda lição é o enfraquecimento da autoridade governamental. As revoltas na Inglaterra contra as medidas econômicas adotadas pelo Rei Ricardo II para responder aos efeitos da Peste Negra, no século 14, e o questionamento pela população de Atenas sobre a liderança de  Péricles para o enfrentamento de uma epidemia letal de tifo na cidade, que afinal acabaria matando o próprio Péricles, são dois exemplos históricos.

É fácil perceber que tais questionamentos ocorrerão daqui para frente, ainda mais se considerando que a atual instantaneidade das comunicações facilita tremendamente a comparação dos desempenhos das diversas lideranças no enfrentamento da pandemia. Governantes e líderes, em todas as esferas de atuação e de todos os níveis, sobre os quais pesarem a responsabilidade de respostas inadequadas ou insuficientes, tanto no enfrentamento da crise propriamente dita quanto de suas repercussões econômicas, sofrerão com o descontentamento popular.

Uma terceira lição é o crescimento da superstição e das fake news. No século 19, espalhou-se a crença de que cintos de lã protegiam do cólera e que a tuberculose era transmitida por parentes falecidos, que retornavam dos túmulos. Diversos registros, de várias épocas diferentes, retratam desespero, fatalismo, fervor e psicose durante os tempos de pandemia.

Em 2020, a COVID-19 se mostra uma oportunidade para a disseminação de desinformação e notícias falsas, intencionalmente, ou de forma desavisada. Remédios caseiros ou industrializados são alçados à condição de cura milagrosa todos os dias. Teorias da conspiração, das mais diversas, emergem e são aceitas por importantes estratos da sociedade.

Uma quarta lição é o aumento da xenofobia e da busca por culpados. Durante a Peste Negra, houve um aumento do antissemitismo e da hostilidade contra peregrinos, mendigos e leprosos. Praticamente todas as pandemias da história resultaram em suspeitas e hostilidades contra estrangeiros. Não é diferente na crise atual, quando casos de xenofobia já foram registrados em várias partes do mundo, bem como a busca de bodes-expiatórios, muitas vezes, como no caso da China e dos EUA, de forma recíproca.

A quinta lição é a de que as pandemias apontam novos vencedores e novos perdedores no campo econômico. Os trabalhadores que conseguiram sobreviver à Peste Negra puderam exigir salários mais altos, em razão da súbita carência de mão de obra. Governos tiveram que se ajustar a orçamentos bastante reduzidos nos anos seguintes às pandemias, elaborando novas políticas econômicas que favoreceram alguns grupos em detrimento de outros.

A COVID-19 obrigará a mudanças semelhantes. Cadeias logísticas baseadas no sistema “just in time” e esquemas produtivos globalizados certamente sofrerão modificações. Setores inteiros, como o do entretenimento e turismo, por exemplo, certamente levarão mais tempo para se recuperar, enquanto outros, como os ligados à indústria farmacêutica e de saúde acabarão sendo beneficiados no cenário pós pandemia.




AS RELAÇÕES SINO-AMERICANAS DEPOIS DA PANDEMIA

Crises mundiais normalmente induzem mudanças significativas no sistema internacional ou, pelo menos, agem como catalisadores que aceleram as que já estavam em andamento. Não há nenhuma razão para acreditar que desta vez será diferente. Nenhum país do mundo sairá incólume da pandemia e as relações diplomáticas, comerciais e políticas entre as nações certamente sofrerão consequências.

Ao tentar antecipar o cenário geopolítico com o qual o mundo se defrontará, a maior parte dos analistas concentra-se nas consequências da pandemia para as relações entre EUA e China.

Os dois países já travam a chamada “guerra comercial” que, dentre outras coisas, evidencia a tentativa dos EUA de reduziram os laços comerciais que foram criados nos últimos 40 anos e tornaram os norte-americanos, em muitos aspectos, dependentes da produção industrial chinesa.

A pandemia evidenciou esta dependência com a chamada “guerra das máscaras”, na qual o mundo assistiu a uma disputa entre diferentes países pela compra de equipamentos para o enfrentamento da COVID-19. Nesse sentido, é emblemática a fila com dezenas de aeronaves de carga norte-americanas indo buscar, na China, máscaras e equipamentos hospitalares.

É evidente que essa dependência externa de equipamentos estratégicos para o enfrentamento do vírus é inadmissível para qualquer país desenvolvido. Muito mais em se tratando dos EUA, maior potência mundial. É certo que os norte-americanos não admitirão mais passar por esse tipo de vulnerabilidade no futuro. Assim, pode-se esperar que a superpotência atue para modificar as atuais cadeias produtivas globais, buscando nacionalizar a produção de diversos itens considerados estratégicos. Este movimento certamente extrapolará a área da saúde e acontecerá também em outros setores, especialmente na área da tecnologia da informação e das comunicações.

Essa substituição das importações poderá ser acompanhada por parte da comunidade internacional. Isso intensificará a guerra comercial em um momento em que os impactos econômicos da pandemia afetam o gigante asiático. O PIB chinês, no 1º trimestre deste ano, caiu 6,8% em relação ao mesmo período do ano passado. Em relação ao trimestre anterior, a queda foi de 9,8%. É a primeira vez que ocorre uma queda do PIB desde 1992, ano em que essas informações passaram a ser divulgadas. A última vez em que o PIB anual da China teve retração foi em 1976, no fim da malfadada “Revolução Cultural”. Isso significa que uma ou duas gerações de chineses não sabem o que é viver em tempos de contração da economia.

Como se sabe, crises econômicas têm o condão de impulsionar insatisfações na população. A emergente classe média chinesa até aqui suporta as restrições à liberdade impostas pelo regime porque, afinal de contas, está progredindo economicamente. Entretanto, talvez essa mesma classe média não seja tão paciente com esse mesmo regime se entender que a reação governamental, tanto do ponto de vista da saúde pública quanto da economia, foi ineficiente. Pressionado no campo interno, o governo chinês poderá responder com mais veemência na guerra comercial contra os norte-americanos. Essa postura por um lado se prestará ao seu objetivo ostensivo, que é o de proteger os interesses econômicos do país. Por outro lado, também servirá para a propaganda interna do regime, que transmitirá aos seus cidadãos uma mensagem de um país altivo no cenário internacional, o que sempre serve ao fervor nacionalista e aumenta a coesão interna da população.

Aliás, já se nota uma maior assertividade chinesa nas relações internacionais. As respostas “alguns tons acima” de sua diplomacia a manifestações por eles consideradas “antichinesas”, no contexto da pandemia, surpreenderam diversos diplomatas e demonstram que o país quer ocupar uma posição de força no cenário internacional.

A estratégia chinesa de resposta à pandemia, com o envio de equipes médicas e de equipamentos para diversas partes do mundo, além da tentativa de mostrar que o regime pode oferecer a melhor governança no tratamento da crise, procura contrastar com a postura mais isolacionista dos norte-americanos, que no enfrentamento da COVID-19 claramente abdicaram do papel de liderança global que desempenharam em outras crises do século 20 e do início do século 21.

E este será um novo foco de possível enfrentamento entre as duas potências. Até que ponto os EUA admitirão maior presença e liderança chinesas em continentes onde até há pouco tempo a influência norte-americana era incontestável?

Como se vê, há várias razões para acreditar que haverá deterioração nas relações entre EUA e China no futuro imediato, pós-pandemia. Outras mais poderiam ser levantadas, como o enfraquecimento dos organismos multinacionais e as eleições norte-americanas. A solução das controvérsias entre os dois gigantes é de interesse de toda a comunidade internacional. Por isso, espera-se que as duas potências saibam encontrar os melhores caminhos para solucionar seus dissensos.