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GUERRA NA SÍRIA EM PLENA PANDEMIA

A crise mundial provocada pela pandemia da COVID-19 silenciou o noticiário sobre a guerra civil na Síria, que envolve, como protagonistas, além dos próprios sírios, a Turquia e a Rússia. Entretanto, o conflito permanece, e a pandemia se soma aos terríveis efeitos da guerra sobre as populações das áreas afetadas.

A Turquia e a Rússia estão em lados opostos na guerra civil da Síria. Os russos apoiam o governo de Bashar al-Assad, enquanto os turcos apoiam algumas das forças rebeldes que se insurgiram contra o governo. Apesar disso, os presidentes Erdogan e Putin possuem boas relações pessoais. Essa proximidade foi importante para que os dois países firmassem o Acordo de Sochi, em 2018, no qual se criou uma zona desmilitarizada em Idlib, noroeste da Síria, fronteira com a Turquia.

Esse acordo foi transformado em “letra morta” com a última ofensiva das tropas sírias, decisivamente apoiadas pela Força Aérea russa, sobre a região de Idlib. Na ofensiva, que destruiu a infraestrutura da cidade, vitimando e expulsando centenas de milhares de civis, dezenas de soldados turcos que estão na região foram mortos. Houve reação turca, e as tensões entre a Turquia e a Rússia atingiram altos níveis.

Os dois presidentes voltaram à mesa de negociações e, no último dia 5 de março, anunciaram um novo acordo de cessar-fogo. Foi anunciado também um corredor de segurança, ao longo da rodovia M4, que atravessa a província, ficando estabelecido que ela deverá ser patrulhada por tropas de ambos os exércitos.

Para entender como os acontecimentos chegaram a este ponto, é importante retroceder a outubro do ano passado, quando os EUA declararam ter vencido o grupo terrorista Estado Islâmico na Síria e, em razão disso, decidiram retirar o grosso de suas tropas da região. Essa retirada criou as condições necessárias para que a Turquia interviesse diretamente no conflito. Assim, foi desencadeada a Operação “Primavera da Paz”, uma ofensiva no território sírio. Os objetivos, segundo o governo turco, seriam: combater grupos paramilitares curdos – considerados terroristas por Ancara, mas aliados dos norte-americanos na luta contra o Estado Islâmico – e garantir uma “zona de segurança” no território sírio, para onde seriam levados grande parte dos 3,5 milhões de refugiados que estão hoje em território turco.

A retirada norte americana também proporcionou a liberdade de ação que faltava para que o presidente sírio, Bashar al-Assad, decidisse desencadear uma ofensiva final sobre uma das últimas porções do território sírio que não estão sob o controle de seu governo, justamente as regiões de Idlib e Bab al-Hawa, na fronteira com a Turquia.

Assim, a operação turca e a ofensiva síria, executadas ao mesmo tempo e na mesma zona de ação, resultaram nos confrontos que se viram. A ofensiva do exército sírio ocorreu em regiões densamente povoadas, agravando a tragédia humanitária. Somente de dezembro até hoje, estima-se que 950 mil pessoas fugiram, na sua maioria mulheres e crianças, tentando, em vão, chegar à Turquia. Essas pessoas estão na faixa de fronteira entre os dois países, desabrigadas ou em abrigos improvisados, enfrentando as baixas temperaturas da região.

Com a pandemia, os refugiados estão ainda mais vulneráveis. Quando a doença atingir Idlib ou os campos de refugiados, que sofrem com precárias condições sanitárias, as consequências poderão ser terríveis.

Mesmo antes da pandemia, a tragédia humanitária em Idlib não obtinha quase nenhuma atenção no ocidente. Os EUA, que adotam no governo Trump uma política externa mais isolacionista, estavam concentrados nas eleições presidenciais deste ano. Já as potências europeias, apesar de preocupadas com a possibilidade de a Turquia abrir as portas para que milhões de refugiados rumem em sua direção, não possuíam força política para influenciar os rumos no conflito. ONU e demais organismos internacionais não encontravam soluções viáveis. No momento, com todos os esforços voltados para a COVID-19, parece ainda mais distante a chance de adoção de alguma medida prática em direção à solução do problema.

Assim, repousam sobre a Rússia e a Turquia os destinos da guerra na Síria e, em consequência, de milhões de refugiados. Os russos bancaram a permanência de Assad no poder. Com isso, fincaram o pé como uma potência extrarregional capaz de interferir nos destinos do Oriente Médio, ao mesmo tempo em que garantiram um governo amigo aos russos em um país estratégico aos seus interesses políticos, econômicos e militares. Mas não parece disposta a comprometer-se firmemente no apoio ao combate ao coronavirus na região.

A Turquia, por sua vez, possui desafios difíceis pela frente. Vizinha da Síria, envolvida em uma ação militar colhida por uma pandemia inesperada e gravíssima, poderá ter que lidar com as consequências de uma tragédia humanitária de enormes proporções em sua fronteira. É muito pouco provável que o país, sozinho, tenha os meios necessários para este enorme desafio.




DESAFIO E RESPOSTA

Este artigo foi originalmente publicado no jornal O Estado de S, Paulo no dia 25 Março 2020

O acrônimo VUCA (Volatility/volatilidade, Uncertainty/incerteza, Complexity/complexidade, Ambiguity/ambiguidade), criado por T. Owen Jacobs, no livro Strategic Leadership: The Competitive Edge, popularizou-se entre os estudiosos do fenômeno da liderança a partir de sua adoção pelo War College, do Exército dos EUA, na década de 2000. Os termos servem para definir as principais características do ambiente na Era da Informação, que influenciam os líderes nos níveis político e estratégico na tomada de suas decisões.

A volatilidade se manifesta pela extrema velocidade dos acontecimentos, pela natureza efêmera e dinâmica das relações, que exigem constantes adaptações e realinhamento de planejamentos e estratégias. Lembra que, nos dias de hoje, mesmo a informação mais atual pode ser insuficiente para subsidiar uma adequada tomada de decisão. Reforça que líderes devem estar em condições de se antecipar aos acontecimentos, preparando-se para as mudanças que virão.

A incerteza, causada pela volatilidade, demonstra que é impossível deter todas as informações acerca de uma situação. Ela advém das múltiplas soluções e alternativas que competem entre si e, via de regra, causa atrasos no processo de tomada de decisões, uma vez que aumenta a quantidade de opiniões discordantes sobre o que vai acontecer no futuro.

A complexidade deriva da dificuldade de entendimento das múltiplas interações, entre os múltiplos fatores, que impedem que se identifique com clareza relações de causa e efeito. A complexidade, assim como a volatilidade, contribui para o aumento da incerteza.
Finalmente, a ambiguidade caracteriza-se por ser um tipo especial de incerteza. Ela decorre do fato de que diferentes grupos sociais podem ter distintas interpretações sobre um mesmo acontecimento. Isso em razão de diferenças de perspectivas, discordâncias ideológicas, discrepâncias culturais.

A crise causada pela pandemia da COVID-19 apresenta claramente todas essas características, obrigando os líderes das esferas governamentais e privadas, em todo o mundo, a decidirem sob estresse e pressão. Não é uma tarefa fácil, mas as ações de enfrentamento da crise definirão consequências sociais, econômicas, políticas, diplomáticas e militares.

Apesar do ambiente volátil, incerto, complexo e ambíguo, procurar antever os cenários pós-crise é fundamental para que os líderes criem uma visão de futuro e trabalhem no sentido de estabelecer prioridades e promover as mudanças necessárias à adaptação que a nova realidade exigirá.

No sistema internacional, as organizações multilaterais e intergovernamentais devem sair enfraquecidas, uma vez que foram incapazes de apresentar soluções. O fechamento das fronteiras entre a Alemanha e a França, principais líderes da União Europeia, é emblemático nesse sentido.

A COVID-19 chega em um momento em que os EUA estão se retraindo do cenário internacional. A reorganização das relações internacionais em um mundo com menor presença norte-americana, especialmente no Oriente Médio, abre espaço para uma reorganização que retorna a um modelo semelhante ao da guerra fria, de “esferas de influência”. A pandemia acirra a disputa entre EUA e China, uma vez que desorganiza relações comerciais e gera disputas por influência no campo psicossocial, com reflexos inclusive em terceiros países, que passam também a ser palco dessa disputa.

O agravamento de crises já em curso é outro efeito da pandemia: a violência crescente na região do Sahel, no norte da África; a emergência alimentar causada pelas nuvens de gafanhotos que destroem as plantações da região da Somália, e já migram para o Oriente Médio; a guerra civil no Iêmen e na Síria, com suas enormes quantidades de refugiados;  a crise do petróleo, motivada pela baixa intencional dos preços pela Arábia Saudita, que ameaça prejudicar ainda mais as já muito debilitadas economias do Irã e da Venezuela. Todos esses são exemplos de crises que, apesar de terem desaparecido dos noticiários, se intensificam a cada dia.

A desorganização da economia mundial talvez seja a mais grave consequência no plano das relações internacionais. A redução drástica do consumo e da produção industrial, além do desarranjo das cadeias globais de suprimentos, podem fazer as corporações transnacionais repensarem seus padrões produtivos, com profundas modificações no atual modelo de comércio internacional. Isso para mencionar apenas alguns aspectos do cenário que se aproxima.

Segundo a teoria geopolítica chamada “Desafio e Resposta”, desenvolvida pelo sociólogo inglês Arnold Toynbee, em 1934, as civilizações que aceitaram e venceram os desafios, representados por obstáculos e inferioridades, sobreviveram e se desenvolveram. Além disso, o autor afirmou que “o estímulo humano aumenta de força na razão direta da dificuldade”. Espera-se que, desafiadas, as lideranças de todo o mundo, em todos os níveis, nas esferas governamentais e privadas, saibam encontrar as melhores respostas.




O VIRUS E A GEOPOLÍTICA

A pandemia provocada pelo novo Coronavirus, causadora da COVID-19, talvez seja a primeira crise de proporções realmente mundiais a ocorrer na era da internet, da instantaneidade da comunicação, da desinformação, das fakenews. É também uma crise sem precedentes, por sua escala e repercussões sociais, econômicas, políticas e possivelmente, militares.

A instantaneidade e o volume das informações, muitas transmitidas por mídias sociais sem nenhum tipo de checagem quanto à veracidade, alarma as populações, que exigem de seus governantes repostas imediatas. Governos do mundo todo são desafiados a oferecer soluções, apresentando decisões e políticas públicas que protejam a saúde de seus cidadãos e minimizem os efeitos econômicos e sociais. Tais ações envolvem aspectos geopolíticos importantes, que devem ser considerados.

O aspecto do controle das fronteiras, por exemplo, mostra o enfraquecimento de organizações intergovernamentais, que se mostram incapazes de liderar iniciativas conjuntas para a solução da crise. Os países-membros da União Europeia, além de outros países europeus que não pertencem ao bloco, mas são signatários da Convenção de Schengen, deveriam garantir a livre circulação de pessoas por suas fronteiras. Assim, uma crise dessa natureza deveria implicar em uma solução concertada, que previsse soluções que não limitassem esse fluxo. Não é o que está acontecendo. Apesar do posicionamento contrário da Comissão Europeia, alguns países europeus, como Áustria, Dinamarca, Polônia, Eslováquia, República Tcheca e Malta, já decidiram restringir o fluxo de pessoas por suas fronteiras. Mas isso não acontece apenas entre os signatários do acordo de Schengen. A Rússia já fechou suas fronteiras com a Polônia (na Região de Kaliningrado), Noruega e China. O governo norte-americano proibiu voos internacionais da Europa continental para os EUA, por trinta dias. A Arábia Saudita proibiu todos os voos internacionais por duas semanas. Medidas semelhantes estão sendo anunciadas por outros países, a cada momento. Na América do Sul, a Colômbia acaba de anunciar o fechamento de sua fronteira com a Venezuela.

A questão do trânsito de pessoas pela fronteira da Colômbia com a Venezuela alerta para um problema ainda maior. À crise da COVID-19 se junta a crise dos refugiados, em um efeito cascata. Há cerca de 1,5 milhões de migrantes venezuelanos na Colômbia. Em todo o mundo, segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), existem mais de 70 milhões de pessoas deslocadas, ou seja, pessoas forçadas a deixar suas regiões de origem por motivos de guerra, perseguição, violência e violação aos direitos humanos. Grande parte dessas pessoas vivendo em condições precárias, sem acesso a mínimas condições sanitárias. A incidência da COVID-19 nos campos de refugiados ao redor do mundo pode ter consequências terríveis.

A crise encontra o mundo em um momento em que o sistema internacional está assistindo ao acirramento da competição entre os EUA e a China. E, diferentemente de outras crises sanitárias ocorridas no passado, como a SARS, de 2003, ou a gripe aviária, de 2005, quando ocorreu uma grande cooperação internacional, no caso atual, ao contrário, a cooperação internacional, especialmente entre EUA e China, está bastante restrita. Na verdade, a crise está exacerbando as tensões geopolíticas já existentes entre as duas potências.

Na guerra pelo domínio da narrativa, a competição está acirrada. Na China, há uma campanha de propaganda nas redes sociais, em especial no WeChat (a versão chinesa do WhatsApp), culpando o ocidente e a CIA pela epidemia. No ocidente, ao contrário, ganham espaço as versões de que o vírus é uma estratégia chinesa para vencer a guerra econômica, deixando o ocidente de joelhos. Mas não se trata apenas de atribuir a um lado ou outro a culpa pela pandemia. Há que se demonstrar a superioridade gerencial na solução do problema. Nesse sentido, os chineses montaram uma campanha nos meios de comunicação, tentando provar que a resposta à crise demonstraria que a capacidade de governança chinesa seria superior àquela demonstrada pelo ocidente. Ao mesmo tempo, a China toma medidas práticas para demonstrar ser um país apto a auxiliar outros em dificuldade. A Itália, por exemplo, país ocidental mais severamente afetado pela epidemia até o momento, tem recebido suprimentos médicos e auxílio da China de forma muito mais eficiente do que aquele oferecido pela própria União Europeia ou por outros países do ocidente.

A ajuda chinesa à Itália, apesar de muito mais simbólica do que efetiva, contrasta com a postura isolacionista dos EUA. A decisão do país de suspender os voos da Europa para os EUA, tomada no meio da noite, de surpresa, causou um verdadeiro caos nos aeroportos europeus. Muitos países ficaram irritados, considerando que aliados não devem ser tratados dessa forma e que tal iniciativa deveria ter sido tomada em conjunto.

A pandemia da COVID-19 já é um daqueles eventos que impactam profundamente uma geração. Não apenas pela gravidade da crise sanitária, que afeta diretamente a vida de bilhões de pessoas em todo o mundo. Não apenas pelas consequências econômicas relevantes, que trarão repercussões ainda não precisamente estimadas. Também não exclusivamente por ser a primeira na era da comunicação instantânea, nem mesmo por somar-se às várias outras crises já existentes, em um terrível efeito cascata. Mas, também, pelo potencial efeito acelerador das mudanças geopolíticas em curso, especialmente aquelas que envolvem a competição entre China e EUA.

 




RUSSOS E TURCOS EM LADOS OPOSTOS NA SÍRIA

Os presidentes da Turquia, Recep Erdogan, e da Rússia, Vladimir Putin possuem boas relações pessoais. Essa aproximação ajudou os dois países a firmarem, em 2018, um acordo no qual se criava uma zona desmilitarizada em Idlib, noroeste da Síria. Mas a ofensiva do governo sírio, apoiada pelos russos, contra grupos rebeldes da região, transformaram aquele acordo em “letra-morta”, uma vez que os dois países estão em lados contrários na guerra civil que assola a Síria há 9 anos.

Esse antagonismo assumiu contornos mais graves recentemente, quando soldados turcos que estão na região foram mortos em combates contra tropas sírias diretamente apoiadas pela força aérea russa.

Para entender como os acontecimentos chegaram a este ponto, é importante retroceder a outubro do ano passado. Naquele mês, os norte-americanos declararam ter vencido o grupo terrorista Estado Islâmico na região e, por isso, iriam retirar o grosso de suas tropas da Síria. Essa retirada criou as condições necessárias para que a Turquia interviesse diretamente no conflito. Assim, foi desencadeada a Operação “Primavera da Paz”, uma ofensiva no território sírio. Os objetivos, segundo o governo turco, seriam: combater grupos paramilitares curdos – considerados terroristas por Ancara, mas aliados dos norte-americanos na luta contra o Estado Islâmico – e garantir uma “Zona de Segurança” no território sírio, para onde seriam levados grande parte dos 3,5 milhões de refugiados da guerra civil que estão hoje em território turco.

Os militares turcos que foram mortos pelos sírios são integrantes das forças participantes da Operação “Primavera da Paz”. Os combates têm se aproximado cada vez mais de regiões densamente povoadas, especialmente da cidade de Idlib e da região fronteiriça de Bab al-Hawa. Trata-se de um dos últimos territórios controlados pelas forças rebeldes (compostas, hoje, principalmente pelo grupo jihadista Hayat Tahrir al-Sham, integrado por antigos militantes da Al Qaeda), mas o governo do Presidente Bashar al-Assad, firmemente apoiado pela aviação e apoio logístico russos, pretende retomar o controle da área.

Teme-se que a ofensiva do governo provoque uma enorme leva de refugiados, além de uma tragédia humanitária. E isso está se comprovando. Somente de dezembro até hoje, estima-se em 900 mil o número de novos deslocados, na sua maioria mulheres e crianças, que fogem tentando, em vão, chegar à Turquia. Essas pessoas estão na faixa de fronteira entre os dois países, desabrigadas ou em abrigos improvisados, enfrentando as baixas temperaturas da região, agravando a crise dos refugiados.

A tragédia humanitária em Idlib não tem obtido quase nenhuma atenção no ocidente. Os EUA, que adotaram no governo Trump uma política externa mais isolacionista, estão concentrados nas eleições presidenciais que se aproximam. As potências europeias tampouco demonstram interesse ou força política para definir rumos no conflito. A ONU tem feito apelos vãos por um cessar fogo, que não é implementado porque não encontram eco nas potências do Conselho de Segurança, que efetivamente teriam poder para adotar ações práticas.

Assim, restam a Rússia e a Turquia, países sobre os quais parecem repousar os destinos da guerra na Síria e, em consequência, de milhões de refugiados. Os russos bancaram a permanência de Assad no poder. Com isso, fincaram o pé como uma potência extrarregional capaz de interferir nos destinos do Oriente Médio, ao mesmo tempo em que garantiram um governo amigo aos russos em um país estratégico aos seus interesses políticos, econômicos e militares. Nesse sentido, é importante destacar a relevância estratégica, para a Rússia, do porto de Tartus, base naval cedida aos russos pelos sírios, em seu território, que concede à marinha russa o acesso às águas do Mar Mediterrâneo.

A Turquia, por sua vez, possui desafios difíceis pela frente. Se decidir impulsionar sua ofensiva na região de Idlib, atacando as tropas sírias para evitar que estas retomem a cidade, arrisca-se a engajar-se decisivamente em uma guerra que não deseja, em um enfrentamento direto contra os russos. Se, por outro lado, contiver suas ações militares evitando o engajamento decisivo nos combates, certamente verá fracassar seus esforços de conter o fluxo de refugiados em razão de uma tragédia humanitária ainda maior em suas fronteiras.

Percebendo a situação difícil em que se encontra, o Presidente Erdogan decidiu atuar com mais intensidade no campo diplomático. Por um lado, fez questão de relembrar que seu país é membro da OTAN, solicitando aos EUA baterias de mísseis Patriot, para a defesa de seu espaço aéreo. De outro lado, marcou, para o dia 05 de março, uma reunião com os Presidentes Putin e Macron, além da chanceler Angela Merkel. Note-se uma ausência: a dos norte-americanos. Uma novidade para a geopolítica da região, que enfraquece a liderança que a superpotência sempre desempenhou na definição dos destinos do Oriente Médio




A CRISE HUMANITÁRIA NO NORTE DA SÍRIA

A Turquia e a Síria dividem uma fronteira de 822 Km, um pouco menor do que a fronteira entre o Brasil e o Uruguai. A linha foi criada em 1918 quando, derrotados na Primeira Guerra Mundial, os turcos do antigo Império Otomano perderam para a França o território que viria a se tornar a Síria. É por essa fronteira que a Turquia recebeu em seu território boa parte dos 3,5 milhões de refugiados da guerra civil na Síria, iniciada em 2011. Segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), mais de 60% de todos os refugiados da guerra civil na Síria estão na Turquia. As consequências políticas, militares e, principalmente, econômicas e sociais desse fluxo migratório são facilmente imagináveis.

Na confusão de interesses envolvidos no conflito sírio, nem sempre grupos armados e exércitos que combatem juntos possuem os mesmos objetivos. Mas, os turcos sempre se posicionaram contra o governo sírio de Bashar al-Assad, apoiando alguns grupos contrários ao governo. Até outubro do ano passado, esse era um apoio indireto. A partir daquele momento, entretanto, especialmente na região de Idlib, no noroeste da Síria, as tropas dos dois países passaram a se enfrentar diretamente. E as consequências têm sido uma tragédia humanitária ainda maior na região.

Outubro do ano passado marcou os acontecimentos na Síria porque os Estados Unidos, um ator fundamental no desenrolar dos acontecimentos, que até aquele momento atuava fortemente no enfrentamento de grupos terroristas, além de apoiar grupos insurgentes que enfrentavam o governo sírio, por decisão do Presidente Trump, reduziu significativamente a sua presença militar na Síria. A Rússia, por sua vez, outro ator fundamental no conflito, é responsável pela manutenção de Bashar Al-Assad no poder. Seu apoio econômico e militar ao regime garantiu a situação atual na qual o governo sírio recuperou o controle sobre a maior parte do país.

A retirada do grosso das tropas norte-americanas da Síria possibilitou um engajamento maior dos turcos no conflito. As forças militares do país tentam implementar a ideia de seu presidente, Recep Erdogan, de criação de uma zona de segurança, ao longo da fronteira turco-síria, de trinta quilômetros de profundidade, para onde planeja repatriar a maior parte dos milhões de refugiados sírios que estão em seu país. Na região nordeste da fronteira, a operação foi relativamente bem sucedida. Já na porção noroeste, na província de Idlib, as coisas se complicaram.

Presidente Erdogan mostra seu plano na ONU

Ocorre que os sírios, decisivamente apoiados pelos russos, decidiram recuperar o controle sobre todo o território do país, especialmente em Idlib. As forças sírias, apoiadas por bombardeiros russos, atacaram posições turcas no início deste mês de fevereiro. A ofensiva redundou em baixas de ambos os exércitos. Mas o resultado mais visível do recrudescimento do conflito foi o repentino e significativo aumento do do número de pessoas que fugiram da área. Cerca de 700 mil já saíram de Idlib desde dezembro. Este é o maior volume de deslocados em um período tão curto de tempo nos quase dez anos de conflito.

Ou seja, a ação militar turca havia sido planejada para tentar dar uma solução para os mais de 3,5 milhões de refugiados, mas, ao contrário, está piorando significativamente a situação, na medida em que, ao reverso do planejado, agravou-se a situação humanitária.

Para tentar reverter a situação, os turcos podem optar por uma escalada militar na região, aumentando a presença de tropas para garantir a criação da zona de segurança. Mas isto, além de significar um enorme custo econômico, esbarra no poderio militar russo que apoia os sírios na região.  Os russos controlam o espaço aéreo na área e, sem esse controle, uma grande ofensiva turca contra os sírios está praticamente descartada.

Assim, é fundamental o esforço diplomático. Russos e turcos sempre estiveram em lados opostos no conflito da Síria. Mas, apesar disso, os presidentes Erdogan e Putin desenvolveram um diálogo pessoal e próximo. A recente aquisição, pelos turcos, das baterias antiaéreas russas S400, além da declaração de que os dois países mantêm uma “parceria estratégica” são comprovações desse novo nível de relacionamento. No momento, ambos os lados voltam a negociar, cada um defendendo seus próprios interesses. Os russos, pregando o desarmamento dos grupos rebeldes que enfrentam o presidente sírio e os turcos, exigindo a criação de uma área segura na fronteira para onde possam ser enviados os milhões de sírios que estão na Turquia.

Há ainda, um aspecto a destacar em toda essa crise. Os EUA, que sempre foram um ator fundamental na região, retiraram-se e não mais são focados pelas luzes da ribalta. Esta distância é uma novidade na geopolítica da região. Trata-se de um vácuo que enfraquece a liderança norte-americana, pois fragiliza a confiança de aliados na perenidade do apoio da superpotência e dá margem para o surgimento de novos protagonistas, como a própria Turquia e a Rússia, que ganha destaque passando a ser a única potência extrarregional com liberdade para atuar influenciando os destinos do conflito.




O BREXIT E A SEGURANÇA DA EUROPA

A novela do BREXIT finalmente chegou ao seu final. Desde o dia 31 de janeiro, o Reino Unido não faz mais parte da União Europeia. Em uma análise superficial, o BREXIT não afetaria a segurança do continente. Porém, creio que ele é mais um fato que se soma ao crescente protagonismo russo, às ameaças terroristas, à crise imigratória, à ascensão chinesa e à presidência de Donald Trump nos EUA, conformando uma nova realidade para a segurança daquela região.

A arquitetura da segurança europeia baseia-se na Organização para o Tratado do Atlântico Norte (OTAN). O coração do tratado é o seu Art 5º: “Um ataque armado contra um ou mais países membros será considerado uma agressão contra todos”. Para os países europeus, desde a criação da Aliança, em 1949, a presença dos EUA serve como um seguro valioso. Afinal, é bastante reconfortante saber que uma agressão ao seu território equivale a uma agressão ao território norte-americano e, em razão disto, ensejará uma reação da maior potência militar do planeta. Essa situação confortável, aliada ao fim da guerra fria e à sensação de que as ameaças à Europa estavam bastante minimizadas, levou muitos países europeus a diminuírem drasticamente seus investimentos de defesa. A Alemanha, por exemplo, desde 1998 não gasta 2% do PIB com defesa. O mesmo ocorre com Itália, Espanha e outros 17 (de um total de 29) países da aliança.

Entretanto, a realidade atual é bastante diferente daquela do pós-guerra, que motivou a criação da Aliança, ou mesmo do “pós-guerra fria”, até a primeira década do século 21, antes das ações militares russas na Geórgia e na Ucrânia, com a anexação da Criméia, ou do crescimento exponencial da importância da Ásia na geopolítica mundial, ou da postura mais isolacionista, do “America First”, adotada pelo Presidente Donald Trump.

Uma série de acontecimentos alertam os estrategistas e líderes europeus, a ponto de o Presidente francês ter declarado, por ocasião da cúpula dos 70 anos da OTAN, que a Aliança vivia uma “morte cerebral”. Em primeiro lugar, o crescimento de forças centrífugas na Europa, à exemplo do BREXIT, dificultando a definição de objetivos, ações, estratégias e políticas comuns e em proveito de todo o continente. Em segundo lugar, o crescimento do protagonismo russo, demonstrado pela crescente desenvoltura em atuar, inclusive militarmente, de acordo com os seus interesses, no leste europeu, no norte da África e no Oriente Médio. Acrescente-se em terceiro lugar a desconfiança em relação à postura dos EUA, que age cada vez mais unilateralmente, como quando denunciou o tratado nuclear com o Irã, à revelia de França, Alemanha e Reino Unido, ou quando o país abandonou o tratado firmado com os russos, para eliminação de mísseis nucleares de curto e médio alcance, o que levou os russos a também denunciarem o acordo. Este fato é especialmente desfavorável aos Europeus, que se veem repentinamente obrigados a encarar a realidade de que a vizinha Rússia está novamente à vontade para produzir mísseis nucleares que alcancem a Europa. Uma quarta razão para o desconforto europeu é a pressão exercida pelos EUA para que os demais países da OTAN aumentem seus gastos em defesa, deixando implícita a mensagem de que eles devem caminhar com suas próprias pernas, dependendo menos dos norte-americanos.

Os EUA, percebendo a desconfiança aliada, age por intermédio de seu estamento militar procurando reafirmar seu compromisso com os Europeus. O país executa, a partir deste mês e até julho, o maior exercício de desdobramento de tropa em continente europeu, partindo dos EUA, dos últimos 25 anos. O terceiro maior em toda a história. É o “Defender Europe”. Cerca de 20 mil homens e equipamentos cruzarão o Atlântico para participar das manobras.  Outros 17 países europeus participarão do exercício, inclusive o Reino Unido, que enviará cerca de 2,5 mil homens. A presença britânica, com um efetivo significativo, também deve ser lida como uma mensagem de manutenção do compromisso do país com a OTAN, apesar da separação da União Europeia.

Governos tendem a se preocupar com defesa somente quando impelidos pela necessidade. Especialmente em sociedades democráticas, que tendem a priorizar necessidades mais prementes do que manter dispendiosas forças armadas. Ocorre que capacidades militares, quando perdidas, levam muito tempo para serem restabelecidas. Os europeus terão que decidir, em breve, se continuarão a basear grande parte de sua segurança nas capacidades militares norte-americanas, ou se partirão para o desenho de um modelo mais genuinamente europeu.

E se for essa a escolha, caberá ainda mais um enorme desafio. A segurança será baseada em um “exército da comunidade europeia”, de uma Europa politicamente integrada de fato, ou o BREXIT indicará uma tendência centrífuga de retorno à valorização das soberanias nacionais, onde cada Estado volte a gerar suas próprias capacidades de defesa? A resposta virá, inevitavelmente, nos próximos anos.




TENSÕES NO ESTREITO DE TAIWAN

“Analistas na China Continental afirmam que uma quantidade cada vez maior de chineses está perdendo a fé em uma reunificação pacífica… Eles acreditam que uma reunificação pela força poderia resolver a questão de uma forma mais efetiva e eficiente.”

Essas afirmações, tratando das relações entre China e Taiwan, constam de uma reportagem publicada pelo jornal chinês Global Times, na edição do dia 16 de janeiro (https://www.globaltimes.cn/content/1176998.shtml). O texto faz, ainda, comparações sobre o poderio militar da China e de Taiwan, demonstrando a grande superioridade chinesa, além de recomendar que o país intensifique os exercícios militares de desembarque anfíbio, o tipo de operação que seria realizada no caso de uma invasão a Taiwan. É importante destacar que o jornal Global Times é controlado pelo Partido Comunista Chinês. Seus textos, via de regra, enviam as mensagens que as autoridades chinesas desejam passar. Aliás, sobre esse mesmo assunto, o próprio presidente Xi Jinping já havia afirmado que não faria promessas de que abandonaria a possibilidade de uso da força; pelo contrário, manteria a opção de utilizar todas as medidas que se fizessem necessárias para a “completa reunificação da nação chinesa”.

O artigo do Global Times foi publicado na esteira da reeleição, em Taiwan, da presidente Tsai Ing-wen, que desagrada a Pequim por manter uma postura mais independente em relação à China, e da promulgação da chamada “Lei Anti-infiltração”, editada com a finalidade de tentar restringir a influência chinesa na política taiwanesa.

Taiwan, considerada pelo governo de Pequim como uma província rebelde, se mantém, de facto, independente. Essa situação surgiu com a vitória da revolução comunista, em 1949. O governo derrubado por Mao Tse-tung exilou-se na ilha e, desde então, nunca se submeteu à autoridade chinesa. Entretanto, apenas 14 dos 193 países-membros da ONU, além do Vaticano, reconhecem a soberania de Taiwan. Todos os demais membros da comunidade internacional reconhecem a China e comprometem-se com o princípio de “uma única China”, o que necessariamente implica em não apoiar a independência de Taiwan.

A postura dos EUA em relação a Taiwan é aquela que atende aos seus próprios interesses geopolíticos. No mesmo dia em que as relações entre EUA e China foram normalizadas, em 01 de janeiro de 1979, os norte-americanos promulgaram a Lei de Relações com Taiwan que, dentre outras coisas, estabelece que “para ajudar a manter a paz, a segurança e a estabilidade no Pacífico Ocidental”, mesmo não mantendo relações diplomáticas oficiais ou não  reconhecendo Taiwan como um país soberano, é política dos EUA fornecer armamentos para que Taiwan possa prover sua autodefesa. Além disso, a lei estabelece que qualquer tentativa de se determinar o futuro de Taiwan pelo uso da força, incluindo-se aí embargos e boicotes, será considerada pelos EUA uma “séria ameaça à paz e a segurança do Pacífico Ocidental” e, consequentemente, uma “grave preocupação” para os EUA. Em atenção à essa política, no ano passado, os EUA autorizaram uma venda de armamentos para Taiwan de cerca de US$ 2,2 bilhões, o que provocou protestos do governo chinês.

A elevação do tom da retórica chinesa demonstrada na matéria do Global Times certamente está relacionada, também, aos acontecimentos em Hong Kong. A política chamada “um país, dois sistemas”, adotada pela China em relação à antiga colônia inglesa era o chamariz com o qual Pequim pretendia convencer os taiwaneses de que a reunificação poderia ser vantajosa. Eles poderiam ser favorecidos pelo progresso econômico da China ao mesmo tempo em que manteriam seu modo de vida, mantendo as liberdades individuais que não existem na China continental. Entretanto, os protestos que persistem em Hong Kong escancaram a insatisfação, especialmente dos jovens, com a política “um país, dois sistemas”, acendendo um alerta para os taiwaneses, de que os “dois sistemas” talvez não fossem suficientemente diferentes entre si. Assim, a crise em Hong Kong acabou por colaborar para a reeleição, em Taiwan, da presidente Tsai.

A reunificação completa é, para os chineses, um objetivo nacional permanente. O governo chinês definiu, em diversos documentos oficiais, o ano de 2049, centenário da revolução comunista, como o marco para se alcançar o “sonho chinês”, que inclui a completa reunificação do país.

“Taiwan é um porta-aviões que não se pode afundar”. A frase, atribuída ao General MacArthur, mostra a importância geopolítica da ilha para os interesses norte-americanos no Pacífico. Chegará o momento, e este se dará entre um futuro próximo e o ano de 2049, em que a situação de Taiwan terá que se resolver. Ou a ilha passará integralmente à soberania chinesa, com grandes perdas geopolíticas para os EUA, ou se tornará independente, nesse caso com a China sendo a grande perdedora. Em qualquer dos cenários, as chances de fricção entre as duas potências mundiais serão grandes.




A CRISE IRÃ X EUA

“A guerra não é meramente um ato de política, mas um verdadeiro instrumento político, uma continuação das relações políticas realizada com outros meios”

Clausewitz

Nem bem tínhamos terminado de desejar aos amigos um feliz 2020 quando, no terceiro dia do ano, tomamos conhecimento da ação militar dos EUA no Iraque, que causou a morte do General Qassim Suleimani, poderoso comandante da Guarda Revolucionária Iraniana. Parecia um mau presságio. O ano mal tinha começado e o mundo já estava por acabar, afinal, a 3.ª Guerra Mundial estaria por começar…

O futuro é, por definição, imprevisível. Mas a história das relações internacionais já nos ofereceu um enorme número de crises que, mal ou bem solucionadas, indicam que vamos sobreviver também a essa.

A ação militar norte-americana em que uma aeronave remotamente pilotada lançou mísseis sobre o comboio de viaturas onde estava o general Suleimani é o ponto até aqui culminante de uma série de acontecimentos na longa crise que caracteriza as relações entre Irã e EUA, desde a revolução islâmica que levou os aiatolás xiitas ao poder, em 1979.

O capítulo mais recente dessa crise foi iniciado em maio de 2018, quando os EUA se retiraram do acordo nuclear assinado em 2015 entre os dois países, Rússia, China, Reino Unido, França e Alemanha. Esse acordo relaxava as sanções econômicas impostas ao Irã em troca do compromisso do país de não desenvolver armamentos nucleares. A saída dos EUA do acordo redundou na imposição de uma nova série de sanções econômicas ao Irã, além da classificação, pelos norte-americanos, da Guarda Revolucionária Islâmica, a força militar que era comandada pelo general Suleimani, como “organização terrorista internacional”.

Os embargos afetaram seriamente a economia do Irã e o país resolveu, em 2019, adotar uma estratégia de escalada das tensões. Foi assim que, em maio desse ano, além de anunciar que retornaria a enriquecer urânio acima dos níveis permitidos pelo tratado de 2015, o Irã implementou – ou patrocinou – uma série de ações ofensivas: navios petroleiros em trânsito pelo Estreito de Ormuz foram sabotados, drones foram lançados contra oleodutos e instalações petrolíferas sauditas e, em 20 de junho, uma aeronave remotamente pilotada norte-americana foi abatida. As tensões entre os dois países se elevaram, mas os EUA evitaram uma retaliação militar.

Em julho, o Irã apreendeu um petroleiro do Reino Unido enquanto passava pelo Estreito de Ormuz. Em setembro, novamente drones atingiram instalações petrolíferas sauditas, dessa vez com grande impacto sobre a produção de petróleo do país. Ao mesmo tempo, ao longo de todo o ano de 2019 os EUA foram impondo ainda mais sanções sobre atividades econômicas específicas e também sobre pessoas físicas, no caso, os principais líderes iranianos e seus familiares.

Finalmente, no mês de dezembro se deram os fatos que seriam o estopim dos últimos acontecimentos. No dia 27, uma ação do grupo terrorista Kataib Hezbollah contra uma base militar iraquiana em Kirkuk resultou na morte de um cidadão americano, além de ferir militares e civis iraquianos. Os EUA acusaram o Irã de apoiar os terroristas. Em retaliação, os EUA atacaram posições do grupo no próprio Iraque e na Síria. Cerca de 25 terroristas foram mortos e algumas dezenas, feridos. Em 31 de dezembro a embaixada dos EUA em Bagdá foi atacada e invadida por grupos paramilitares iraquianos pró-Irã. No dia 3 os EUA desencadearam o ataque que matou o general Suleimani.

A descrição da série de acontecimentos acima serve para tentarmos desenhar a manobra de crise visualizada por cada uma das partes em conflito.

De um lado, os EUA, ao imporem os embargos, tentam em primeiro lugar dobrar o regime iraniano, obrigando-o a aceitar termos mais duros do que os que eram previstos no acordo assinado em 2015, considerados insuficientes pelo governo Trump para manter a estabilidade regional. Em segundo lugar, pela pressão econômica, busca enfraquecer um governo que é francamente contrário aos seus interesses no Oriente Médio, rival de árabes e israelenses e que busca se impor como uma potência regional. Ao eliminarem o general Suleimani, os EUA demonstram claramente o limite para as ações iranianas: a morte de norte-americanos ou o ataque a instalações do país terão como resposta uma ação militar.

De outro lado, os iranianos mostram que podem, por si próprios ou por intermédio de grupos que agem “por procuração”, causar grandes transtornos econômicos, especialmente por ações no Golfo Pérsico, no Estreito de Ormuz e no Golfo de Omã, por onde transita grande parte do petróleo mundial. Ou mesmo em ataques à Arábia Saudita, aos países do Golfo Pérsico ou a Israel. Assim esperam convencer a comunidade internacional a pressionar os EUA a abrandarem os embargos comerciais, ao mesmo tempo que ampliam sua influência no Oriente Médio.

Volto à citação de Clausewitz. A guerra só é travada quando um governo se convence de que ela é um meio eficaz para que se alcance algum objetivo político. E embora a História mostre casos em que guerras se iniciaram quase por acaso, não creio que nem EUA nem Irã tenham algum objetivo político importante a ser conquistado com um conflito de alta intensidade, ainda mais levando em consideração as graves consequências que certamente sofreriam suas populações e seus governos. Já ações pontuais e restritas, como as que vêm sendo desencadeadas até aqui, atenderiam a cada uma das partes na busca de seus objetivos estratégicos.

Assim, não creio que haja mudança significativa no panorama da crise. O Irã deve retaliar, vingando a morte de seu general, com alguma ação semelhante às até aqui praticadas. Os EUA também devem manter sua estratégia, acreditando que as sanções econômicas e a ameaça do emprego da força impeçam o Irã de prejudicar seus interesses na região.




OS SETENTA ANOS DA OTAN

Chefes de Estado e de Governo dos 29 países que compõem a Organização para o Tratado do Atlântico Norte reuniram-se recentemente em Londres para comemorar os 70 anos da Organização. Na cobertura da imprensa, ganhou destaque o desconforto causado pelas divergências nas visões de alguns dos presidentes dos países da Aliança, especialmente as dos Presidentes Trump, dos EUA, e Macron, da França. O francês reafirmou uma declaração anterior que havia causado desconforto no presidente americano, de que a Aliança estava em “morte-cerebral” em razão da falta de coordenação estratégica e liderança.

A OTAN foi criada em 1949, inicialmente composta por doze países, dentre os quais EUA, Reino Unido, França, Itália e Canadá. Na década de 1950, mais 3 países se juntaram ao grupo: Alemanha, Grécia e Turquia. Nenhum outro país se juntou à Aliança até a década de 1980, quando a Espanha foi incorporada.

Assim, quando a União Soviética se dissolveu, em 1991, a OTAN era composta por 16 membros. A partir de 1999, vários países do leste europeu, região que era tradicional área de influência dos soviéticos, foram sendo incorporados à Aliança. Em 2004, apenas 15 anos depois de 1989, todos os países do antigo Pacto de Varsóvia, com exceção da própria Rússia e da maioria dos Estados que compunham a antiga URSS, estavam na OTAN ou na União Europeia.

A Rússia considerou que essa expansão da OTAN em direção ao Leste caracterizava claramente uma estratégia de contenção e cerco. Na visão dos russos, a OTAN já havia se expandido além do aceitável quando incorporou os países bálticos – Estônia, Letônia e Lituânia – à Aliança. E definiu um limite: a Ucrânia. Esse país, que em 2008 havia solicitado à OTAN sua incorporação ao grupo, é a própria origem da “mãe Rússia”, a antiga Rus Kievana. Além disso, o porto de Sebastopol e as riquezas minerais do país são de grande importância para os russos. A intervenção militar, de um ponto de vista puramente geopolítico, passou a ser praticamente inevitável.

As ações militares russas na Geórgia, em 2008 e na Ucrânia, em 2014, acenderam uma luz vermelha nas salas de planejamento da OTAN.  A Aliança, que na primeira década do século 21 considerava a guerra ao terror a sua principal hipótese de emprego, retirou das gavetas os antigos planejamentos de um enfrentamento militar de alta intensidade contra a Rússia. E ao verificar seus planos, descobriu que não estava preparada para tal tipo de conflito. A razão para isso é simples de se explicar. Sem dinheiro, não se preparam Forças Armadas.

Os gastos dos europeus com defesa caíram substancialmente a partir do desmantelamento da União Soviética. A Alemanha, por exemplo, desde 1998 não gasta 2% do PIB com defesa. O mesmo ocorre com Itália, Espanha e outros 17 países da aliança.

Desde que assumiu a presidência dos EUA, o presidente Trump tem insistido na necessidade de os países-membros da OTAN investirem ao menos 2% de seus PIB em defesa. Os EUA investiram cerca de 3,2% em 2018. A mensagem implícita na exigência é a de que os europeus, maiores interessados na própria segurança, deveriam gastar mais e depender menos dos EUA.

Ao mesmo tempo em que a geopolítica alerta os países europeus, especialmente os do Leste e do Centro da Europa, para o ressurgimento da ameaça russa, a França e os EUA concentram suas atenções em outras partes do mundo. Os EUA passaram a considerar sua principal hipótese de emprego uma confrontação com a China, no Oceano Pacífico. Os franceses estão envolvidos nas crises de suas antigas colônias na África. O país mantém mais de dez mil militares desdobrados entre Senegal, Costa do Marfim, Gabão e Djibuti, além dos 5 países do chamado Sahel: Burkina Faso, Chade, Mali, Mauritânia e Níger. Além disso, os franceses mantêm tropas na Síria e no Iraque.

Assim, fica claro que a Aliança se defronta com 3 situações distintas, cada uma delas atraindo a atenção dos países membros em diferentes graus de intensidade: a ameaça russa, a ameaça chinesa e a ameaça do terrorismo. Não bastasse isso, há ainda uma inédita fonte de tensão interna. Um dos países membros enfrenta militarmente um grupo que atua como aliado de outros países membros. Estou tratando da Turquia, país de vital importância geoestratégica, que está combatendo os curdos na Síria, curdos esses que são aliados de norte-americanos e franceses no enfrentamento do governo de Bashar al-Assad. Além disso, a Turquia se aproxima da Rússia, inclusive com a aquisição de material de defesa.

Dessa forma, a OTAN passa por um momento desafiador na definição de seus destinos. Seu principal integrante, os EUA, está mudando seu foco para priorizar o Teatro de Operações do Pacífico, no Leste Asiático. A postura do atual governo, anunciada pelo slogan “America first” (América em 1º lugar), gera desconfiança dentre os aliados sobre se os norte-americanos realmente estariam dispostos a cumprir o pacto de defesa mútua em caso de agressão a um dos países membros da OTAN. Os franceses, por sua vez, continuam concentrados na contra-insurgência e no contraterrorismo na África e Oriente Médio. Em razão disso, reclamam que o foco estratégico voltado para a Rússia e para a guerra de alta intensidade está errado, daí a afirmação de Macron da “morte cerebral” da organização.

A OTAN não é apenas uma aliança militar. É sobretudo uma aliança política, que usa seu enorme poderio militar para dissuadir adversários e consubstanciar a máxima de Clausewitz, de que a “guerra é a continuação da política por outros meios”. Nesse sentido, é exitosa pois conseguiu, ao longo de seus 70 anos de história, atingir os interesses políticos de seus integrantes, inclusive o mais importante deles: vencer a Guerra Fria. Foi justamente essa vitória que levou à sua expansão e, paradoxalmente, torna cada vez mais difícil a definição de objetivos comuns.




PROTESTOS VIOLENTOS POR TODO O MUNDO

“Nas guerras civis do presente, esvaiu-se a legitimidade. A violência libertou-se completamente da fundamentação ideológica”

Hans Magnus Enzensberger

Recentemente, as páginas dos jornais passaram a relatar grandes manifestações populares, em diferentes partes do mundo que, via de regra, descambam para a violência, inclusive com mortes de manifestantes, agentes de segurança ou civis. Cenas de enfrentamento entre populares e policiais equipados com equipamentos anti-distúrbios, nuvens de gases lacrimogêneos, carros, prédios e barricadas em chamas tornaram-se comuns em lugares tão díspares quanto distantes entre si, governados por comunistas ou liberais, progressistas ou conservadores, religiosos ou ateus, banhados pelo Pacífico ou pelo Atlântico, no Ocidente ou no Oriente. Chile, Hong Kong, Bolívia, Equador, Haiti, França, Espanha, Líbano, Iraque e Indonésia foram palco de cenas muito parecidas.

Não há uma causa comum determinável para esses acontecimentos. No Chile, os protestos se iniciaram em razão de um aumento nos preços dos transportes urbanos. Em Hong Kong, a causa foi uma nova lei de extradições. Na Espanha, os catalães protestaram em razão da prisão de líderes do movimento separatista. No Líbano, o motivo foi exigir a queda do governo incapaz de resolver os problemas econômicos. Os haitianos foram às ruas por não suportar mais o completo caos político, econômico e social. Em Paris, as causas iniciais dos protestos dos “coletes amarelos” foram os aumentos de impostos e do custo de vida.

Protestos são a forma de que as pessoas dispõem para se fazerem ouvir quando os canais oferecidos pela organização política dos Estados não estão disponíveis, ou se mostram ineficientes. Martin Luther King dizia que são “a linguagem dos que não são ouvidos”. Todos os exemplos acima comprovam que as causas iniciais dos protestos, mesmo diversas, têm em comum o fato de serem reivindicações legítimas e bem definidas. Entretanto, há outro ponto que os une: muito rapidamente as manifestações ganham novos e variados objetivos e são tomadas por episódios de violência crescente e incontrolada.

Essa violência cobra um preço alto em vítimas civis e agentes de segurança pública. Em patrimônio público e privado. Em deterioração econômica e institucional. E é o fato de ser a violência o ponto comum que assemelha eventos tão distantes entre si que provoca a pergunta: há uma causa comum, um estopim, para deflagrar a cenas de vandalismo, de enfrentamento, tão parecidas entre si que tornam impossível se distinguir à distância se ocorreram em Santiago do Chile ou em Hong Kong?

Alguns articulistas na imprensa nacional e internacional respondem identificando uma espécie de mal-estar social, causado por uma série de fatores. Crescimento econômico frustrante, desigualdade social, corrupção, falta de liberdade política, todos esses fatores apresentados como geradores de uma grande frustração, que permanece encubada até o momento em que há uma explosão. A partir de um pretexto inicial, os eventos se aceleram em uma espiral de violência incontrolável.

O intelectual alemão Hans Magnus Enzensberger, também tem sido lembrado na busca por explicações. Em ensaio publicado em 1995, ele tratou do tema, sob a perspectiva da época, cunhando um novo conceito, o da chamada “guerra civil molecular”. Segundo a visão pessimista do intelectual alemão, que escreveu impactado pelo fim da bipolaridade e pela guerra na Iugoslávia, as guerras não seriam mais entre estados nacionais, passando a ser travadas no coração das sociedades. Seria um fenômeno urbano, de vandalismo e violência nas cidades. As ações seriam caracterizadas pelo “autismo e pela falta de convicção. Seriam lideradas por vanguardas de jovens movidas pelo simples desejo de agressão, sem nenhum conteúdo ideológico”.

Ao caldo de “mal-estar social”, frustração ou simples agressividade, há que se acrescentar os fenômenos da instantaneidade das comunicações, das redes sociais, das fake news e da chamada “guerra de narrativas”. Correntes de opinião influentes se formam e se sobrepõem, umas às outras, em um ritmo frenético, ao sabor de comentários nas redes sociais. Quando uma dessas ondas coincide com os gritos das multidões nas ruas, os protestos virtuais impulsionam os reais, que realimentam o mundo virtual com imagens transmitidas por milhões de celulares ao vivo, em um ciclo difícil de ser quebrado.

Em meio a tudo isso, é importante considerar ainda que há grupos, nacionais e estrangeiros, interessados em fomentar e tentar conduzir os protestos na direção de seus próprios interesses. Esses grupos atuam com profissionalismo e objetivos bem definidos, muitas vezes produzindo e disseminando informações falsas ou fora de contexto.

Face a tantas variáveis, governos de todo o mundo têm se mostrado incapazes de oferecer respostas e de lidar com essas situações. Estão presos a estratégias de comunicação ultrapassadas, que não reagem com a rapidez necessárias às demandas sociais. São incapazes de detectar as “ondas” em seu início ou de proteger suas sociedades de manipulações ou orquestrações.

Hannah Arendt escreveu, em 1951, que “provavelmente, jamais faltou ódio ao mundo, no entanto ele evoluiu ao ponto de tornar-se um assunto político decisivo em todos os assuntos públicos… (o ódio) penetrou em cada poro da vida cotidiana e pôde disseminar-se em todas as direções e assumir as formas mais fantásticas e imprevisíveis… Cada um passou a ser contra cada um e, sobretudo, contra os vizinhos.” Os acontecimentos recentes nas mais diferentes partes do mundo parecem afirmar que suas palavras permanecem atuais. Espera-se que as sociedades encontrem as melhores maneiras para mediar os conflitos e serenar os ânimos.