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A TURQUIA E OS CURDOS. OS RUSSOS, OS IRANIANOS E A SIRIA. E OS EUA COM ISSO

O Presidente Trump ordenou a retirada das tropas norte-americanas que estavam na Síria. Talvez esta tenha sido a decisão de política externa mais criticada de seu período como presidente, tanto por integrantes da oposição quanto por membros do seu próprio partido, por vários motivos. O mais evidente foi o fato de a retirada das tropas servir como senha para a invasão do norte da Síria pela Turquia, em uma ofensiva contra os Curdos, que dominam a região desde 2012. Curdos esses que, aliados aos próprios norte-americanos, foram os grandes responsáveis por combater com êxito o grupo terrorista Estado Islâmico, na Síria.

Para entender a confusa situação da Síria, é preciso consultar a história da formação das fronteiras dos países do Oriente Médio. Essas fronteiras inexistiam até as potências vencedoras da 1ª Guerra Mundial dividirem o território que antes fora o Império Otomano. Pelo acordo Sykes-Picot, celebrado entre Reino Unido e França, confirmado pela Conferência de San Remo, em 1920, os europeus traçaram linhas em mapas, linhas que não existiam na realidade e que criaram algumas das fronteiras mais artificiais da história. Antes, não havia nenhuma Síria, nem Líbano. Tampouco Israel, ou Palestina, Iraque, Kuait, Arábia Saudita, Jordânia. Esses e outros países foram criados, de um lado, unindo pessoas e povos que não estavam habituados a conviver e, de outro, separando etnias e povos de origens e costumes comuns.

Assim, a área onde hoje é a Síria, logo após a I Guerra Mundial, tornou-se um protetorado francês. Essa condição só foi modificada com a independência, em 1946. Em 2011, na esteira da chamada Primavera Árabe, teve início a Guerra Civil que se prolonga até hoje.

Bashar al-Assad, ditador sírio, esteve a ponto de ser derrubado, mas graças ao apoio de russos e iranianos, o regime se manteve. O apoio russo tem forte motivação geopolítica. Após a queda de Kadafi, na Líbia, na Primavera Árabe, os russos viram sua influência na região ser ameaçada. E o risco de perder um governo amigo também na Síria era intolerável. É neste país que, desde 1971, os russos mantêm a base naval de Tartus, um porto de águas profundas. A base é fundamental para garantir a presença naval russa no Mediterrâneo.

O Irã é outro forte ponto de apoio do regime de Assad. Isso se deve a alguns fatores, políticos e religiosos. O principal é que os sunitas, principais opositores de Bashar al-Assad, são também rivais dos xiitas iranianos. A eventual troca de governo na Síria, e a consequente ascensão sunita, aproximaria a Síria da esfera de influência da Arábia Saudita, significando um forte revés para a influência iraniana na área.

A Turquia aproveitou a retirada das tropas norte americanas da Síria para lançar uma ofensiva contra os curdos, que detêm o controle da posição nordeste do país, mantendo-se em uma situação de semiautonomia. O motivo alegado é o de criar uma “faixa de segurança” na fronteira, do lado sírio, para onde seriam enviados de volta parte dos 3,6 milhões de refugiados que estão no país, em fuga da guerra civil síria. Para um país de economia frágil e de 80 milhões de habitantes, esse é um problema de dificílima resolução. O presidente turco Recep Erdogan acusa as autoridades europeias e norte-americanas de não cumprirem acordos, deixando de enviar ao país 3 bilhões de euros que foram prometidos pela União Europeia em 2016. Ameaça também, caso não consiga enviar os sírios de volta ao seu país, “abrir as portas” para que os refugiados entrem Europa adentro.

Os curdos são um povo originário da região que hoje engloba a parte sudeste da Turquia, norte do Iraque, noroeste do Irã e sudoeste da Armênia. Estima-se que hoje sejam entre 25 e 35 milhões de pessoas.

Curdistão

Na Turquia, os curdos são vistos como uma ameaça. Desde a década de 1980, o grupo PKK, ou Partido dos Trabalhadores do Curdistão, fez uma opção pela luta armada, em busca da independência do Curdistão. Mais de 40 mil pessoas já morreram em atentados terroristas e em enfrentamentos com o Exército Turco desde então. Para os turcos, os curdos que estão na Síria nada mais são do que um dos braços de apoio ao PKK.

E, em meio a esse cenário conturbado, a decisão do presidente Trump afeta fortemente o equilíbrio das forças, redundando em um reequilíbrio que dificilmente será favorável aos interesses dos proprios norte-americanos na região. Em primeiro lugar, os curdos se sentiram traídos e abandonados, imediatamente entrando em acordo com o Presidente Bashar al-Assad. A fama de “parceiro não confiável” dos norte-americanos será espalhada pela máquina de propaganda dos seus inimigos no Oriente Médio, e exigirá um grande esforço futuro para que essa narrativa seja revertida. Em segundo lugar, o aforismo “o poder não deixa vácuo” foi comprovado pela enésima vez. Quase imediatamente, o presidente russo Vladimir Putin intermediou o acordo entre o presidente sírio e os curdos, e iniciou contatos com o presidente turco. Posicionou tropas em locais estratégicos no norte da Síria e tenta mediar o conflito. A Rússia assume o papel que até então era desempenhado pelos EUA na região.

O presidente norte-americano talvez ampare a decisão de retirar as tropas da Síria na premissa de que os cidadãos do seu país desejem uma política exterior mais isolacionista. Uma em que os EUA não se metam em “problema dos outros”. Afinal, o país tem enviado tropas para combater em lugares distantes já há um bom tempo. O que talvez essa postura não considere, é que os EUA só chegaram a ocupar o lugar de única superpotência do planeta porque, a partir da 2ª Guerra Mundial, souberam defender seus próprios interesses no xadrez geopolítico global. Decisões implicam em consequências. Somente o tempo indicará quais as repercussões geopolíticas das decisões do Presidente Trump.




OS SETENTA ANOS DA REPÚBLICA POPULAR DA CHINA

Em 1.º de outubro de 2019 a República Popular da China completou 70 anos. Nessa data, em 1949, Mao Tsé-tung discursava na Praça Tiananmen, proclamando a vitória do movimento revolucionário que comandava. Iniciava-se a fase em que o povo chinês, de História milenar, passaria a ser governado pelo Partido Comunista Chinês.

O desfile militar em comemoração da data, cuidadosamente preparado, procurou mostrar uma China militarmente poderosa e unida sob a liderança do presidente Xi Jinping. O ardor patriótico e o orgulho nacional são as mensagens que o desfile quis transmitir ao público interno do país e ao mundo.

Mas a verdade é que o aniversário de 70 anos da vitória comunista chegou com a China num cenário geopolítico desafiador para as suas lideranças. O desafio mais evidente é a questão de Hong Kong.

Antiga colônia inglesa, Hong Kong tem o status de “região administrativa especial” desde o acordo que, em 1997, devolveu a cidade à soberania da China. No acordo, a potência asiática comprometeu-se a manter a política de “um país, dois sistemas”, garantindo uma série de liberdades sociais, políticas e econômicas que inexistem na China continental.

Acontece que a população de Hong Kong percebe uma crescente ingerência do governo central. Esse sentimento desencadeou, em 2014, uma série de manifestações que ficaram conhecidas como “revolução dos guarda-chuvas”. As manifestações prolongaram-se por quase três meses. Este ano, a partir do início de julho, milhões de manifestantes saíram novamente às ruas para protestar. A causa inicial das manifestações, pressionar o governo local a retirar a lei que autorizava extradições para a China continental, serviu de estopim para uma série de outras reivindicações, que retomam a pauta de defesa da democracia dos protestos de 2014.

Para analisar o dilema que o governo chinês enfrenta ao responder aos protestos em Hong Kong vou me socorrer do general francês André Beaufre. O militar ensinou em seu livro Introdução à Estratégia, de 1963, que o “impulso estratégico”, ou seja, a capacidade que um Estado tem de atuar com maior ou menor intensidade em face de um desafio, depende diretamente de quatro fatores: liberdade de ação, forças materiais, forças morais e tempo disponível. Forças materiais, forças morais e tempo disponível não faltam ao governo chinês. O que lhe é escassa, em relação a Hong Kong, é a liberdade de ação. A imprensa repercute todos os acontecimentos na cidade praticamente em tempo real. O trauma do massacre da Praça Tiananmen, em 1989, está ainda presente na sociedade internacional. A repercussão dos acontecimentos em Taiwan também preocupa. Assim, o governo chinês “pisa em ovos” e tenta fazer prevalecer uma narrativa que confere aos manifestantes uma postura impatriótica, violenta e subordinada a interesses internacionais.

Já em outro desafio enfrentado neste aniversário de 70 anos, o separatismo da província de Xinjiang, terra da minoria étnica islâmica uigur, o fator “liberdade de ação” é muito mais favorável aos chineses. Isolada no oeste chinês, na Ásia Central, essa região recebe pouquíssima atenção do restante do mundo quando comparada com Hong Kong. Apenas informações dispersas, sobre “campos de reeducação” onde milhares, se não milhões, de uigures estariam internados, além de acusações da criação de um avançado sistema de vigilância social, chegam ao Ocidente.

A questão de Taiwan é bem mais complexa, por colocar a China e os EUA em lados opostos. A ilha, que a imensa maioria dos países do mundo, incluídos os EUA, reconhece ser, de direito, parte do território chinês, mantém-se, de facto, soberana, com governo próprio. Para a China, essa é uma situação inadmissível, que só perdura em razão da política norte-americana de relações com a ilha. Apesar de não reconhecer seu governo e de não manter relações diplomáticas oficiais, os EUA continuam a vender armas e a proteger a ilha contra “qualquer tentativa de se determinar o futuro de Taiwan pelo uso da força, incluindo-se aí embargos e boicotes”.

Ao tratar de Taiwan, e relembrando a importância dos mares para o comércio internacional, convido o leitor a consultar um mapa da China. Observe sua costa para o Oceano Pacífico. Compare com a costa brasileira para o Atlântico. Notou a diferença? A saída brasileira para o mar é completamente livre. A saída da China para o Pacífico é bloqueada por inúmeros pontos controlados por países adversários. Ao Norte, a saída pelo Mar Amarelo é bloqueada pela Península Coreana e, em seguida, pelo Japão. Mais ao sul, na altura de Xangai, pelo Mar do Leste da China, a saída é bloqueada por uma cadeia de ilhas, também japonesas, chamadas Ryukyu, onde se destaca Okinawa, sede de parte das tropas norte-americanas estacionadas no Japão. Prosseguindo para o sul, a saída é bloqueada por Taiwan, definida pelo general MacArthur como “um porta-aviões que não se pode afundar”. A frase é autoexplicativa da importância geoestratégica da ilha para os norte-americanos. Finalmente, no Mar do Sul da China, a saída é atravancada pelos países vizinhos, Filipinas, Brunei, Malásia e Vietnã, com os quais a China disputa a soberania de várias ilhotas, bem como a soberania do mar e a exclusividade da exploração econômica.

A incômoda situação da China em relação ao Oceano Pacífico é a causa da grande ênfase que o país tem dedicado ao desenvolvimento de sua Marinha. Já são cerca de 300 navios e o país está produzindo seu terceiro porta-aviões, o primeiro de fabricação própria.

Como se vê, são muitos os desafios neste 70.º aniversário. Também poderiam ser listados a manutenção do crescimento econômico, os problemas do acentuado envelhecimento da população, a guerra comercial com os EUA e a ascensão da Coreia do Norte ao status de potência nuclear. Mas isso fica para uma próxima conversa.




GEOPOLÍTICA E AMAZÔNIA

“Geopolítica é a arte de aplicar o poder aos Espaços Geográficos”

Carlos de Meira Mattos

A frase do General Meira Mattos sintetiza o objeto da Geopolítica: a arte de aplicar o poder aos espaços geográficos. De saída, peço ao leitor que tenha a Amazônia em mente ao considerar o “espaço geográfico”, na leitura deste artigo. Já quando pensar sobre o “poder” constante na definição de Meira Mattos, considere que este pode ser aplicado aos espaços geográficos de várias formas: ser exercido por intermédio da política; ser imposto pela força das armas; ser demonstrado pela força das imposições econômicas, ou mesmo, pela força da cultura, da propaganda, das correntes majoritárias de pensamento.

A Amazônia é uma imensidão. Possui uma biodiversidade incrível, com espécies de plantas e animais contadas nas casas dos milhares ou, até mesmo, dos milhões. Sua influência sobre o clima do continente é grande e suas reservas de água potável, enormes. Sua área gigantesca, de 5,5 milhões de Km2 (4,2 milhões dos quais em território brasileiro), atravessa quase completamente a América do Sul em sua porção centro-norte, do Oceano Atlântico à Cordilheira dos Andes, ocupando áreas em 9 países.

Oito desses países, Brasil, Bolívia, Equador, Peru, Colômbia, Venezuela, Guiana e Suriname formam o que poderia ser chamado de Pan-Amazônia. A eles se une a França (não podemos nos esquecer que a Guiana Francesa é um território francês na América do Sul) no grupo de governos que detém a legitimidade para aplicar o poder político na área delimitada por suas fronteiras.

Mas, quando se trata da aplicação do poder econômico, essas fronteiras têm seu papel relativizado. A globalização da economia, com a consequente integração e interdependência causada pelos fluxos de capitais, bens e serviços, tecnologias e pessoas, cria tensões e interesses também em escala global. Questões que antes poderiam ser resolvidas de forma local, agora podem influenciar, economicamente, diversos outros países e empresas transnacionais que distribuem sua operação por diferentes países do mundo, na chamada cadeia global de valor. Países e empresas que se sentirão impelidos a aplicar seu poder econômico na defesa de seus interesses, mesmo que isto signifique ignorar fronteiras políticas. Por mais que a legitimidade deste tipo de imposição seja discutível, certamente o leitor poderá se lembrar de vários exemplos da aplicação do poder econômico por parte de empresas ou países nas condições mencionadas.

A aplicação do poder militar é muito mais facilmente caracterizada. No caso da guerra, na clássica definição de Clausewitz, trata-se da continuação da política com a utilização de outros meios. Ou seja, pela coerção militar um Estado impõe a outro a sua vontade, de forma que seus objetivos políticos sejam atingidos. Mas é importante lembrar que a força das armas pode também ser imposta por entidades não estatais, como grupos terroristas. As FARC, na Colômbia; o denominado Estado Islâmico, em várias partes do mundo; e o Boko Haram, na África, são alguns exemplos famosos.

Contudo, a mais sutil e, atualmente, mais frequente forma de aplicação – ou tentativa de aplicação – de poder sobre um espaço geográfico é aquela que ocorre no chamado campo psicossocial, ou seja, pela força da cultura, da propaganda e das correntes majoritárias de pensamento. Não há dúvida, por exemplo, que existem hoje algumas “megatendências”, que são os movimentos das massas populacionais em direção a uma nova maneira de pensar ou agir, mais ou menos uniforme, em relação a determinado assunto ou aspecto da vida em sociedade. As mudanças climáticas e a escassez de recursos naturais indispensáveis à vida humana são dois exemplos desses tipos de assuntos que mobilizam as massas a agir. E essa mobilização toma vulto antes inimaginável por intermédio da repercussão que obtém por meio da internet e, mais especificamente, das mídias sociais. Estes movimentos, espontâneos ou provocados – não importa –, pressionam governos, pautam meios de comunicação, impulsionam Organizações Não Governamentais que, por sua vez, passam a impor que as ações dos governos e das sociedades daquele espaço geográfico sejam coerentes com aquela determinada pela megatendência em voga.

As quatro formas de aplicação de poder aos espaços geográficos descritas acima podem ser vistas todos os dias, em diferentes partes do mundo. Basta folhear as páginas dos jornais ou consultar a internet: da ação da Rússia na Ucrânia às disputas que ocorrem no Mar do Sul da China; da guerra civil no Iêmen às tensões na Caxemira; da guerra comercial entre a China e os EUA ao embargo imposto sobre o Irã e sobre a Coreia do Norte; do terrorismo do Boko Haram na Nigéria ao retorno das FARC à luta armada na Colômbia; e das acusações de interferência russa nas eleições norte-americanas às acusações que a China faz de que há interferência externa insuflando os protestos em Hong Kong. Em maior ou menor grau, diretamente ou por interpostos grupos, cada um destes conflitos pode ser explicado sob o prisma da geopolítica.

Finalmente, retorno à Amazônia. Não para responder, mas para perguntar. Nós, brasileiros, achamos que ela está imune às disputas geopolíticas? Mesmo ela ocupando um papel de destaque quando se fala em ecologia, recursos naturais, biodiversidade, mudanças climáticas? Devemos crer que não há motivações políticas, econômicas ou psicossociais suficientes para que outros Estados ou entidades não estatais se sintam compelidos a atuar sobre ela?

As respostas a essas perguntas são vitais para a defesa dos interesses de todos os brasileiros. Isso porque, se em uma disputa geopolítica um lado sabe o que está fazendo e o porquê, enquanto do outro lado a população nem ao menos sabe o que está em jogo, o resultado dificilmente será favorável ao lado que ignora.




TAIWAN E A VINGANÇA DA GEOPOLÍTICA


“Taiwan é um porta-aviões que não se pode afundar”. Atribui-se esta frase ao General Douglas McArthur, comandante das tropas norte-americanas no Teatro de Operações do Pacífico durante a II Guerra Mundial. Os navios-aeródromo (porta-aviões) capitaneiam as forças navais utilizadas para o controle de áreas marítimas. Assim, a metáfora de McArthur resume a importância geopolítica atribuída àquela ilha: sua posse garante o controle dos mares ao seu redor, os mares da China Oriental, do Sul da China e das Filipinas.

As tensões na região voltaram a se elevar em razão da decisão do Departamento de Estado dos EUA de aprovar uma venda de material de emprego militar para Taiwan, no valor de 2,2 bilhões de dólares. A venda ainda tem que ser aprovada pelo congresso norte-americano, mas parece improvável que venha a ser desautorizada. A transação incluiria 150 carros de combate (tanques) Abrams M1A2T, 250 unidades de tiro do míssil antiaéreo Stinger, além de diferentes tipos de metralhadoras e veículos de manutenção, dentre outros equipamentos. Trata-se de material moderno, capaz de aumentar substancialmente a capacidade militar de Taiwan.

O governo chinês reagiu imediatamente. A agência de notícias oficial Xinhua transcreveu um comunicado do governo informando que as vendas de armas dos EUA para Taiwan são uma “grave violação do direito internacional, de normas básicas das relações internacionais, do princípio de uma única China e de três comunicados conjuntos entre os dois países…”. O comunicado ainda informou que a China considera que sua soberania e sua segurança nacional seriam afetadas pela venda e que o governo chinês imporia sanções às empresas que negociassem material de emprego militar com Taiwan.

Em 1949, depois de quase vinte anos de combates, Mao Tse Tung tomou o poder na China, saindo vitorioso em sua revolução comunista. O governante derrubado, Chiang Kai-Shek, fugiu com seu governo para a ilha de Taiwan. Desde então estabeleceram-se, de facto, dois governos. A República Popular da China, comunista, e a República da China (Taiwan), capitalista. O reconhecimento internacional de Taiwan foi escasseando na medida em que o tempo passava e o regime comunista chinês se consolidava. Em 1971, a ONU passou a reconhecer a China, ao invés de Taiwan. Em 1974, foi a vez do Brasil. Os EUA reconheceram a China em 1979. Todos esses atos formais de reconhecimento significaram que, para estes países e organismos internacionais, a China é única e Taiwan não constitui um país independente. Atualmente, apenas dezessete países no mundo, além do Vaticano, reconhecem Taiwan como um estado soberano. Na América do Sul, o Paraguai é o único dentre esses países.

Assim, para os chineses, como os EUA não reconhecem e não mantêm relações formais com o governo de Taiwan, o fato de eles fornecerem armamentos para a ilha é inadmissível. Tal apoio é considerado uma grave afronta e a China julga estar amparada pelo direito internacional ao condenar veementemente a atitude norte-americana.

Mas, na disputa de interesses entre as potências, as coisas não são tão simples. No mesmo dia em que as relações entre EUA e China foram normalizadas, em 01 de janeiro de 1979, os EUA promulgaram a Lei de Relações com Taiwan que, dentre outras coisas, estabelece que “para ajudar a manter a paz, a segurança e a estabilidade no Pacífico Ocidental”, mesmo não mantendo relações diplomáticas oficiais ou não reconhecendo Taiwan como um país soberano, é política dos EUA fornecer armamentos para que Taiwan possa prover sua autodefesa. Além disso, a lei estabelece que qualquer tentativa de se determinar o futuro de Taiwan pelo uso da força, incluindo-se aí embargos e boicotes, será considerada pelos EUA uma “séria ameaça à paz e a segurança do Pacífico Ocidental” e, consequentemente, uma “grave preocupação” para os EUA.

“Geopolítica é destino”, alguém poderia dizer, brincando com o título de um dos livros do General Meira Mattos (Brasil: Geopolítica e Destino) para iniciar uma explicação sobre porque a questão de Taiwan permanece tão complexa e sem solução




TENSÕES NO GOLFO PÉRSICO

O Irã é um país governado, desde a Revolução de 1979, por religiosos da corrente islâmica xiita. E, especialmente após a chamada Primavera Árabe de 2011, posiciona-se em defesa dos grupos xiitas de todo o Oriente Médio, normalmente contrapondo-se à outra corrente do islamismo: os sunitas. Assim, o país apoia os Houtis no Iêmen, país que enfrenta uma guerra civil, considerada pela ONU “a maior crise humana da atualidade”. Também se posiciona em favor de reformas políticas no Bahrein, onde uma maioria xiita é governada por uma monarquia sunita. A Guarda Revolucionária iraniana apoiou decisivamente o regime de Bashar Assad na Síria, contra a oposição armada sunita, além de sustentar grupos xiitas no interior do Iraque, país que está completamente fragmentado desde a queda de Saddam Hussein.

A Arábia Saudita, país governado por uma monarquia wahabista, uma corrente sunita, disputa com o Irã a liderança regional. A relação entre os dois países se deteriorou significativamente nos últimos anos, especialmente após a execução do clérigo xiita Nimr al-Nimr, na Arábia Saudita, e em razão da guerra civil que vem sendo travada no Iêmen, uma verdadeira “guerra por procuração”, com cada um dos países apoiando um dos lados no conflito.

O governo de Israel considera que o Irã representa uma constante ameaça ao país, especialmente em razão do apoio dos iranianos ao grupo Hezbollah. O Primeiro Ministro Netanyahu já afirmou que Israel não aceitará que o Irã se torne uma potência nuclear.

Os interesses geopolíticos que cercam a região do Golfo Pérsico são enormes. Por ali, transitam as riquezas do Iraque, Kuwait e Emirados Árabes, além do Bahrein e do Catar. O território do Irã constitui-se em verdadeira ponte a unir o Mar Cáspio ao Oceano Índico.

É nesse contexto complexo e conturbado que as tensões no Golfo Pérsico mais uma vez se elevam, e o espectro da guerra volta a rondar a região. No dia 13 de maio, a Arábia Saudita denunciou a sabotagem de dois de seus navios petroleiros no Estreito de Ormuz. Apenas dois dias depois, Aeronaves Remotamente Pilotadas, carregadas com explosivos, atingiram poços de petróleo perto de Riad, a capital da Arábia Saudita. Os atos terroristas foram assumidos pelos Houtis, grupo Iemenita apoiado pelo Irã.

Reagindo aos acontecimentos, o Secretário de Estado dos EUA, Mike Pompeo, declarou que milícias xiitas no Iraque, patrocinadas pelo Irã, estariam ameaçando tropas americanas estacionadas naquele país. Disse ainda que, caso os militares fossem atacados, os EUA se sentiriam obrigados a reagir, sem necessidade de coordenar as ações com o governo iraquiano. Ao mesmo tempo, a Força-Tarefa liderada pelo porta-aviões USS Abraham Lincoln, reforçada por bombardeiros B-52, foi enviada ao Golfo Pérsico. Mesmo assim, exatamente um mês depois, no dia 13 de junho, dois navios petroleiros voltaram a ser atacados no Golfo de Omã, desta vez atingidos por minas. Mais uma vez, os EUA responsabilizaram o Irã pelo ataque.

Na última quinta-feira, ocorreu um incidente ainda mais grave do ponto de vista militar: o Irã abateu uma Aeronave Remotamente Pilotada RQ-4 Global Hawk, da Força Aérea norte-americana. Os iranianos alegam que a aeronave de reconhecimento estava no espaço aéreo do país. Os EUA negam, alegando que voava em espaço aéreo internacional.

Este fato agrava as tensões, que atingem um ponto culminante de uma escalada que já vem desde o ano passado, quando os EUA se retiraram do acordo multilateral, estabelecido em 2015, em Viena, que impunha limites ao programa nuclear iraniano em troca do alívio das sanções econômicas. Desde então, os EUA reimpuseram uma série de sanções unilaterais que afetaram transações financeiras, importações de matérias primas, inclusive petróleo, o setor automotivo e a aviação comercial. Apesar dos outros países integrantes do acordo, Reino Unido, França, Alemanha, China e Rússia, terem se negado a acompanhar as sanções norte-americanas, mantendo o respaldo ao tratado em 2015, o fato é que os embargos acabam por afetar inclusive os negócios feitos por eles, já que as empresas e países podem sofrer retaliações norte-americanas caso comerciem com Teerã.

Depois de aguardar por um ano por uma solução que contornasse os embargos americanos, no início de maio, ou seja, coincidentemente com o início dos diversos incidentes envolvendo os navios petroleiros, o Irã resolveu dar um ultimato aos europeus e chineses. Anunciou que suspenderia imediatamente o trato de limitar os estoques de água pesada e urânio enriquecido e que, se em sessenta dias os demais países signatários do acordo não encontrassem soluções para driblar as sanções norte-americanas, renunciaria a outros compromissos limitantes de suas capacidades nucleares, acordados em 2015.

Vê-se que a estratégia iraniana parece ser, por um lado, pressionar os países europeus e a China, para que estes, por sua vez, atuem no sentido de fazer os EUA voltarem ao acordo multilateral. Por outro lado, as ações contra os petroleiros também parecem ser uma tentativa de forçar os norte-americanos a se sentarem à mesa de negociações.

Mas se há um ensinamento que o estudo da história militar apresenta recorrentemente é o de que quando as tensões escalam, as coisas podem muito facilmente sair do controle. É o que parece ser o caso do ataque iraniano à ARP Global Hawk.

Imediatamente após o ataque, o Presidente Trump foi ao Twitter e escreveu que o Irã tinha cometido um “erro muito grande”. Em seguida, talvez percebendo que o cheiro de pólvora já estava perigosamente forte, atenuou a retórica afirmando que não acreditava que o ataque tivesse sido proposital.

Os próximos acontecimentos dependerão da habilidade dos envolvidos na condução da crise. O ataque à aeronave norte-americana complicou muito uma situação que já era extremamente complexa. Qualquer fagulha pode acender a fogueira da guerra.

 




UMA NOVA GUERRA NAS ESTRELAS?

No dia 27 de março, um evento causou surpresa e chamou a atenção para uma corrida silenciosa que está sendo travada pelas maiores potências militares do planeta: a disputa pelo domínio militar na última fronteira da humanidade, o espaço. A Índia anunciou ao mundo o sucesso no lançamento de um míssil que tinha por alvo um satélite do próprio país.

O alvo, que estava a altitude aproximada de 300 km, foi atingido e destruído. Assim a potência hindu se juntou ao seletíssimo grupo de três países, EUA, Rússia e China, capazes desse extraordinário feito militar.

O primeiro-ministro Narendra Modi comemorou: “A Índia obteve uma conquista inédita hoje. O país gravou seu nome dentre as potências espaciais”.

Os satélites desempenham papel fundamental na guerra moderna. Por eles transitam os fluxos de comunicações e dados. Guiam as famosas “armas de precisão cirúrgica” e as aeronaves remotamente pilotadas, os drones. São responsáveis pelo imageamento do campo de batalha, desempenhando papel decisivo na obtenção e difusão de dados de inteligência. Compõem as constelações responsáveis pelos sistemas GPS e similares, onipresentes em aplicações militares e em diversos e muito populares aplicativos em uso pela moderna sociedade civil.

Mas o sucesso da Missão Shakti, como foi batizada, não está somente na constatação de que agora os indianos podem destruir satélites inimigos. Como os avanços tecnológicos são na maioria das vezes de uso dual, o êxito também significa que o país atingiu invejável avanço na tecnologia que permite a fabricação de mísseis capazes de interceptar mísseis inimigos.

As reações internacionais foram imediatas. A mais veemente veio do Paquistão, país que está envolvido em disputa militar com a Índia pela posse da região da Caxemira, há décadas. O ministro das Relações Exteriores declarou que “o espaço é uma herança comum da humanidade e toda nação tem a responsabilidade de evitar ações que possam levar à sua militarização”.

A China, que na década de 1960 travou conflito armado com a Índia pela região do Tibete do Sul, reagiu cautelosamente. Expressou sua esperança de que “todos os países possam promover a paz e a tranquilidade no espaço”. Interessante notar que a China já tinha efetuado teste semelhante em 2007.

O secretário de Defesa dos EUA, Patrick Shanahan, alertou para os riscos causados pelos detritos produzidos por esse tipo de teste. O general David D. Thompson, subcomandante do Comando Espacial da Força Aérea dos EUA, expressou-se na mesma direção. Questionado por repórteres, declarou que esse tipo de teste preocupa não só pelo risco para os satélites dos EUA, “mas também pela produção de detritos que podem permanecer no espaço por longo tempo, o que pode causar danos em efeito cascata”.

Apesar da reação internacional, parece ser tarde para impedir a militarização do ambiente espacial. Embora até hoje nunca tenha havido uma ação militar àquela altitude, as potências militares do planeta preparam-se a passos largos para essa realidade. A Estratégia de Defesa dos EUA reconhece que a competição entre as grandes potências é o principal desafio à sua segurança e que o espaço é um dos domínios onde essa competição se travará. Reconhece, ainda, que China e Rússia têm capacidade de atuar militarmente no espaço, reduzindo gravemente a efetividade militar do país e de seus aliados. Para se contrapor a isso, em 2018, o presidente Trump declarou a intenção de criar a United States Space Forces (USSF), Força Espacial dos EUA, uma nova Força Armada. Em março deste ano o Ministério da Defesa americano encaminhou a proposta de criação da nova Força ao Congresso. Caso o Congresso aprove, a nova Força será criada em 2020.

Em 2015 a China promoveu uma grande reestruturação de suas Forças Armadas. Foram criadas duas novas Forças, a Força de Foguetes e a Força Estratégica de Apoio, esta para atuar nos domínios cibernético e espacial. Apesar da pouca informação disponível, parece claro que essas Forças foram criadas, dentre outras finalidades, com o foco no domínio espacial.

A Rússia, a exemplo da China, também reorganizou recentemente suas Forças militares. Em 2015 as capacidades espaciais dispersas pelas Forças Armadas foram reunidas numa nova Força, batizada como Força Aeroespacial de Defesa. A doutrina russa de defesa, de 2010, assim como a norte-americana, atribui ao espaço uma função essencial, afirmando que “assegurar a supremacia na terra, no mar, no ar e no espaço será fator decisivo para que os objetivos sejam atingidos”.

A década de 1940 assistiu ao nascimento das Forças Aéreas. O lançamento das bombas nucleares sobre Hiroshima e Nagasaki mostrou a um mundo estarrecido a capacidade destruidora do armamento transportado e lançado por aviões bombardeiros. Foi o auge da teoria geopolítica do poder aéreo, cujo maior expoente, Alexander Seversky, em sua obra A Vitória Pela Força Aérea, já destacava a importância estratégica dos vetores aéreos de combate e do domínio do espaço aéreo. Setenta anos se passaram e agora assistimos ao surgimento das Forças Espaciais. Mas, diferentemente das Forças Aéreas, que foram criadas em praticamente todos os países soberanos, a criação das Forças Espaciais exige tecnologias ainda muito restritas, sem falar de uma reserva de capitais indisponível para a grande maioria das nações.

Se é certo que o mundo ainda é castigado pela guerra, que neste momento assola muitos países, ceifando a vida de soldados e civis, também é correto afirmar que o equilíbrio obtido pela ameaça de destruição mútua assegurada dos tempos da guerra fria impediu que se deflagrasse uma guerra nuclear entre as superpotências do planeta. Resta saber se esse equilíbrio será mantido também no ambiente espacial.




A CRISE NA CAXEMIRA

“Eu sou o comandante Abhinadan, meu número é 27981, sou piloto de caça, minha religião é hindu. Desculpe-me. Isso é tudo o que tenho a dizer.” A declaração do piloto indiano abatido em território paquistanês segue estritamente os manuais militares. Ele se identifica conforme os tratados internacionais e deixa claro que não vai falar mais nada. Apesar de estar vendado, sabe que, na era da informação, certamente a entrevista seria filmada. E foi. O vídeo com a imagem do oficial espalha-se pelo mundo rapidamente, para a alegria nacionalista dos paquistaneses e fúria dos indianos. A mais recente crise entre as duas potencias asiáticas atinge o ápice.

É claro que a escalada de uma crise entre países que detêm armamento nuclear é muito grave e preocupante. Qualquer erro de cálculo de um dos lados pode provocar uma ação que ultrapasse um ponto irreversível. E a prisão filmada de um piloto de caça que teve sua aeronave abatida é um desses eventos que mobilizam as populações de ambos os lados, inserindo um componente bastante perigoso pelo potencial de influenciar emocionalmente os governantes na condução da crise.

A Caxemira é uma área ao norte do subcontinente indiano disputada por Paquistão e Índia desde a independência desses países, em 1947. Uma guerra foi travada à época, mas o problema não foi solucionado. O acordo de cessar-fogo previu a divisão da área, parte menor sob autoridade paquistanesa, parte maior sob autoridade indiana. Mas a questão permaneceu não resolvida. Desde então houve vários conflitos. A partir da década de 1980 a situação se agravou pela atuação de terroristas favoráveis às pretensões paquistanesas.

Em 14 de fevereiro deste ano, 42 paramilitares indianos foram mortos num ataque suicida na parte da Caxemira administrada pela Índia, causando grande comoção popular. Foi o ataque que causou o maior número de baixas nestas três décadas de ações terroristas. O grupo terrorista Jaish-e-Mohammad (Exército de Maomé), que tem sua base na Caxemira paquistanesa, reivindicou a autoria do ataque.

O primeiro-ministro indiano, Narendra Modi, acusou o Paquistão de usar o grupo para atacar indianos. O Paquistão negou envolvimento. Então, em 26/2 aeronaves indianas cruzaram a linha de controle que demarca a fronteira e atacaram o que foi descrito como um grande campo de treinamento do grupo terrorista, na região de Balakot, Caxemira paquistanesa.

No dia seguinte, 24 caças paquistaneses foram identificados pelos radares indianos voando provocativamente próximos à linha de fronteira. Três F-16 teriam cruzado a linha na direção do espaço aéreo indiano. Em resposta, oito caças indianos decolaram para interceptar as aeronaves paquistanesas. O que aconteceu a seguir foi um combate aéreo em que o Mig-21 do comandante Abhinadan foi abatido. Embora pudesse ter sido previsto, provavelmente um combate aéreo não era o resultado esperado pelos paquistaneses quando planejaram a ação militar.

A História está cheia de exemplos em que guerras foram iniciadas por erros de avaliação, falhas de interpretação ou simples enganos. A crise escala de lado a lado até que não há alternativa senão a guerra.

Esse parece ser um exemplo de como uma crise pode escalar rapidamente, quase saindo do controle. De um lado, o governo da Índia, às vésperas de eleições gerais, sentiu-se compelido a agir contra o grupo terrorista que matou dezenas de indianos. Do outro, ao atacar uma região além da linha de controle, em área paquistanesa, os indianos claramente cruzaram uma linha vermelha. Do ponto de vista paquistanês, o ataque causou sério dano à reputação do governo do primeiro-ministro Imran Khan e à honra das Forças Armadas do país. Era óbvio que o Paquistão se sentiria compelido a retaliar. A retaliação causou o abate de uma aeronave e a prisão de um piloto. Um rastilho de pólvora galvanizando a opinião pública de ambos os lados.

A decisão de devolver o piloto indiano em boas condições de saúde, dois dias após a captura, de forma digna, foi uma saída encontrada pelo governo paquistanês para desescalar a crise, oferecendo à Índia a possibilidade de também abrandar o discurso. Colaboraram para esse desfecho as manifestações de diversos líderes mundiais, além da ONU, clamando por comedimento. A situação permanece explosiva, mas no momento em que escrevo parece que as tensões retrocederam alguns pontos.

O caso traz ensinamentos e relembra questões muito importantes e por vezes ignoradas. Há formas corretas e métodos próprios para o gerenciamento de crises. Os erros e acertos do passado estão aí para ser relembrados e estudados. São exemplos o acerto na condução norte-americana da crise dos mísseis em Cuba, que impediu uma guerra nuclear entra EUA e URSS, e os erros do primeiro-ministro britânico Neville Chamberlain ao conduzir as negociações com a Alemanha nazista, uma das causas da 2.ª Guerra Mundial.

Por mais que se discorde dos princípios, da ideologia e das ações do adversário, reconhecer seus dilemas, entendendo a lógica que norteia seu comportamento, é um princípio fundamental a ser observado na condução de uma crise. Outro é manter abertos os canais de comunicação, proporcionando “saídas honrosas”, de modo a evitar que, emparedado, o oponente não veja outra solução a não ser aumentar o grau de enfrentamento.

A passionalidade que normalmente acompanha uma crise entre Estados vizinhos faz acontecimentos muitas vezes banais tomarem rumos inesperados. Para tentar minimizar essa possibilidade todos os agentes do Estado que podem vir a ter alguma participação nos eventos devem receber diretrizes muito claras, normas e regras de fácil interpretação, para que enganos, dificuldades de entendimento ou erros de avaliação não resultem em consequências ainda mais graves.




A CRISE NA VENEZUELA E A CONFRONTAÇÃO GEOPOLÍTICA

Como se sabe, a Venezuela tem hoje um governo de facto, do presidente Nicolás Maduro, não reconhecido por grande parte da comunidade internacional, e um presidente autoproclamado, Juan Guaidó, aceito pela maioria dos países das Américas, o Brasil incluído, e por grande parte dos países europeus. Isso em meio a uma crise política, econômica e social gravíssima, com milhares de pessoas fugindo do país, num fluxo migratório inédito na América do Sul. Os venezuelanos convivem ainda com hiperinflação, escassez de alimentos, denúncias de fraudes eleitorais, de censura à imprensa e de uso de força desproporcional pelas tropas do governo contra os manifestantes oposicionistas.

Esta crise pode ser analisada de vários pontos de vista. Há o viés humanitário, decorrente do grave sofrimento imposto à população, em que o acesso aos itens mais básicos de alimentação e aos serviços de saúde, sem contar inúmeros outros aspectos fundamentais para o bom funcionamento de uma sociedade, simplesmente não estão mais disponíveis para os cidadãos. E há o aspecto político, pela confrontação ideológica entre os que ainda defendem o regime chavista de Maduro e os que mostram a falência do modelo político-ideológico que se aplicou por lá. O aspecto econômico também pode ser analisado: como o país chegou ao caos econômico? Que efeitos podem advir das sanções econômicas aplicadas pelos EUA? Enfim, há espaço para discussão nos campos político, econômico, psicossocial e militar.

Este texto abordará o campo da confrontação geopolítica entre as grandes potências – EUA, Rússia e China -, tendo a Venezuela como pano de fundo. Como estão se posicionando? Como isso afeta o desenrolar dos acontecimentos?

Os EUA foram o primeiro país a reconhecer Guaidó como presidente da Venezuela, acusando o governo Maduro de ilegitimidade pelas fraudes eleitorais no processo de reeleição que o reconduziu à presidência. Além da crise humanitária e econômica, aspectos criadores de instabilidade que podem trazer graves consequências para a América do Sul e o Caribe, os EUA veem com preocupação a crescente influência chinesa e russa na área.

Dessa forma, os EUA atuaram com muita firmeza. O presidente Donald Trump declarou que “todas as opções estão sobre a mesa”, afirmação que, obviamente, mostra que não se descartaria uma intervenção militar. Além disso, impôs duras sanções econômicas que afetam diretamente o coração da economia venezuelana: a exportação de petróleo.

A China, por sua vez, há muito advoga que as relações entre os países devem respeitar o princípio da não intervenção. Esse princípio é fundamental para o país, que considera inadmissível a interferência estrangeira em seus próprios problemas, como a questão da Ilha de Taiwan e o separatismo dos uigures na província de Xinjiang.

Além disso, a Venezuela é uma grande parceira comercial e destino de investimentos e empréstimos chineses na América do Sul. Somente entre 2007 e 2012, o Banco de Desenvolvimento da China emprestou a Caracas a impressionante quantia de US$ 42,5 bilhões. Grande parte dos pagamentos desses empréstimos foi feita diretamente em petróleo venezuelano.

Assim, a posição da China, até o momento, é de apoio ao governo Maduro, defendendo uma solução pacífica e interna para o imbróglio político.

Já o presidente russo, Vladimir Putin, e seu primeiro-ministro, Dmitry Medvedev, elevaram o tom da retórica e acusaram os EUA de hipocrisia e de apoiarem um golpe. Medvedev chegou a perguntar como os americanos reagiriam se a presidente da Câmara, Nancy Pelosi, deputada oposicionista a Trump, se autoproclamasse presidente dos EUA.

A Rússia, que trava uma batalha para manter ou reassumir a influência sobre os países do Leste Europeu, sua área de influência, como as ações na Ucrânia demonstram claramente, dá uma espécie de troco nos EUA ao atuar contra seus interesses na Venezuela. Não se pode descartar que esse tipo de ação possa ser útil como uma espécie de moeda de troca em relação à posição dos EUA em alguma questão no Leste Europeu no futuro.

Os países europeus, inicialmente hesitantes, exigindo que Maduro convocasse novas eleições, após a negativa deste passaram, em sua maioria, a reconhecer Guaidó, liderados por Reino Unido, França, Espanha e Alemanha.

O Brasil, que sofre os efeitos da crise venezuelana ao receber grandes contingentes de refugiados, ficou fortemente contra o governo Maduro, reconhecendo Guaidó como presidente interino. Alinhou-se à posição norte-americana, dispondo-se até a prestar ajuda humanitária, se necessário.

O mundo já assistiu a esse tipo de confrontação. Parece que estamos de volta à guerra fria. Mas a História, que nos dá valiosas pistas sobre o desenrolar futuro dos acontecimentos, não se repete sob as mesmas circunstâncias. Trata-se, desta vez, de uma confrontação num mundo globalizado, com interesses econômicos entrelaçados como nunca antes.

Os militares são o centro de gravidade que mantém Maduro no poder. E a pressão está cada vez maior. No momento em que os comandantes perceberem que o presidente corre o risco de perder o apoio chinês e russo, desembarcarão do governo. Se isso se concretizar de forma que se salvem as aparências de uma “solução interna”, em que não tenha havido “interferência externa nos problemas de uma nação soberana”, China e Rússia poderão alegar que o povo venezuelano encontrou sua saída, apoiando o novo governo. Assim, não se descarte a possibilidade de um “autogolpe” para o qual se encontrará um verniz legal, que “mudaria sem mudar”, mantendo o establishment e tentando reduzir a pressão internacional, com o apoio russo e chinês. Caso isso se confirme, será o prenúncio de nova crise.




TRUMP E A DEFESA DOS EUA

“Em 2024, a China realiza um ataque surpresa, para impedir Taiwan de declarar independência. As forças chinesas desencadeiam ataques aéreos e de mísseis, e realizam desembarques anfíbios na ilha, tornando clara a necessidade de intervenção norte-americana. Infelizmente, os EUA não podem mais intervir a um custo aceitável. As capacidades militares chinesas referentes aos domínios aéreos, marítimos e de superfície continuaram a se desenvolver, enquanto as dos EUA estagnaram. Áreas do oeste do Pacífico se tornaram proibidas para as forças dos EUA. O Pentágono informa ao presidente americano que os EUA podem derrotar a China numa guerra de longa duração, em que toda a capacidade nacional seja mobilizada, com perda de grande número de navios e aeronaves, milhares de vidas e grandes transtornos econômicos – tudo isso sem garantias de que haja um impacto decisivo antes de Taiwan ser invadida. Permitir que Taiwan seja incorporada pela China seria um golpe terrível para a credibilidade norte-americana e para a sua posição na região. Mas impedir que isto aconteça agora exigirá assumir perdas horrendas.”

Da mesma fonte de onde se extrai o texto acima podem ser retiradas outras situações hipotéticas que envolvem desafios ao poderio norte-americano: uma situação de escalada de tensões nucleares envolvendo a Coreia do Norte; uma situação de caos doméstico ocasionada por ações russas contra satélites, cabos interoceânicos de fibra ótica e ataques cibernéticos; a proibição do acesso dos navios comerciais e de guerra dos Estados Unidos ao Mar do Sul da China.

Nenhuma dessas situações foi retirada de livros de ficção. Elas foram extraídas de relatório elaborado pela Comissão da Estratégia Nacional de Defesa. Trata-se de um painel suprapartidário instituído pelo Congresso dos EUA com a missão de avaliar a Estratégia de Defesa desse país e de fazer as sugestões que julgasse adequadas. Os especialistas da comissão encerraram seu trabalho em novembro de 2018.

A comissão, em seu relatório – disponível na internet -, concorda com as conclusões da Estratégia de Defesa Norte-Americana, publicada também em 2018 e sobre a qual tratei neste espaço em 18 de abril do ano passado. Ambos inferem que a competição estratégica entre estados nacionais, e não a chamada guerra ao terror, é a primeira prioridade da segurança nacional dos EUA.

E como se pode claramente aduzir da situação hipotética do ataque chinês a Taiwan, os estrategistas e consultores, tanto do Congresso quanto do Pentágono, concordam que a superioridade da capacidade militar norte-americana em relação a seus possíveis adversários, especialmente a China, vem sendo reduzida ano a ano.

Dentro desse cenário, destaca-se a preocupação com a disponibilidade orçamentária. Os especialistas alertam para o fato de que em 1996, para cada dólar gasto por Rússia e China em pesquisa e desenvolvimento científico, os EUA gastavam US$ 8,21. Vinte anos mais tarde os gastos dos EUA na mesma área superam os de seus adversários em apenas seis centavos.

Ao mesmo tempo, a China sob a liderança de Xi Jinping adota uma postura cada vez mais incisiva em relação a Taiwan. No início deste ano Jinping reafirmou que a “China deve ser – e será – reunificada”. Dirigindo-se ao Comitê Central Militar do Partido Comunista, instância máxima das Forças Armadas do país, ele alertou que “o mundo está passando por uma era de mudanças drásticas” e que “riscos previsíveis e imprevisíveis” estavam aumentando.

Por outro lado, Tsai Ing-wen, presidente de facto de Taiwan, repetidas vezes tem conclamado a comunidade internacional a reafirmar “os valores de democracia e liberdade, com a finalidade de conter a China e minimizar a expansão de sua influência hegemônica.”

O presidente Donald Trump, por sua vez, emite sinais contraditórios. Ao mesmo tempo que reforça o orçamento de defesa e endurece a posição comercial dos EUA, travando uma verdadeira batalha no campo econômico contra a China, anuncia a retirada das forças norte-americanas da Síria, ação que enfraquece a posição dos EUA no Oriente Médio, área de enorme importância estratégica. O gesto causou o imediato pedido de demissão de Jim Mattis, respeitadíssimo general fuzileiro naval que era secretário de Defesa e assinou a Estratégia de Defesa de 2018. Não havia forma mais clara de Mattis demonstrar a sua insatisfação.

Confirmando-se a saída dos EUA da Síria, abre-se um vácuo que será necessariamente preenchido. Irã e Rússia, países citados como adversários estratégicos nos documentos de defesa, ganham espaço e os alertas feitos pela Comissão da Estratégia Nacional de Defesa tornam-se mais evidentes, com o enfraquecimento ainda maior das posições relativas dos EUA em mais uma área de importância vital para seus interesses estratégicos.

Mattis não foi o primeiro militar a sair do governo Trump por discordância na condução dos rumos estratégicos da defesa. Em março do ano passado, apenas um ano após sua nomeação como assessor de segurança nacional, outro militar respeitadíssimo, o general H. R. McMaster foi demitido. Assim como Mattis, McMaster dificilmente teria concordado com a retirada das tropas norte-americanas da Síria neste momento.

Alguns analistas internacionais têm definido a política externa de Trump, especialmente em assuntos de defesa, como “errática e cambiante”. Ao mesmo tempo que aprovou a nova Estratégia de Defesa, indicando a necessidade de maior assertividade e alertando para o crescente enfraquecimento da posição estratégica de seu país em várias regiões de interesse vital, Trump toma decisões que vão exatamente na contramão do que seria esperado para a efetivação daquela estratégia. Os aliados e rivais dos EUA acompanham, entre surpresos e incrédulos, para onde caminhará a maior potência militar do planeta.




O DRAMA DOS REFUGIADOS

A crise política e econômica na Venezuela já provocou, segundo dados da Agência das Nações Unidas para Refugiados (Acnur), desde 2015, a fuga de cerca de 3 milhões de cidadãos. Atualmente, estima-se que cerca de 5 mil pessoas deixem o país a cada dia.

O principal destino dos venezuelanos é a Colômbia, que já recebeu cerca de 1 milhão de pessoas. Para o Peru já foram cerca de 500 mil. Equador, Chile, Argentina e Panamá também são destinos bastante procurados, bem como o Brasil.

Aliás, os reflexos imediatos da crise para o Brasil já se fazem sentir há mais de um ano. Em 16 de junho do ano passado este jornal publicava editorial alertando para a gravidade do problema. Atualmente, segundo dados do governo federal, mais de 54 mil venezuelanos já solicitaram refúgio no Brasil. Outros 18 mil solicitaram residência temporária e 12 mil haviam agendado atendimento na Polícia Federal até setembro.

O Brasil começa a lidar com uma situação que não é novidade no planeta. Estima-se que existam hoje mais de 25 milhões de refugiados em todo o mundo. A Europa convive com as tristes cenas de barcos à deriva, com centenas de pessoas amontoadas tentando cruzar o Mediterrâneo, vindas do Norte da África. Hoje, na Turquia há quase 3 milhões de refugiados sírios. Em 2016 o Paquistão recebeu cerca de 1,4 milhão de refugiados afegãos. Uganda abriga quase 1 milhão de refugiados do Sudão do Sul.

Enquanto isso, a coluna de cerca de 5 mil migrantes, em sua maioria hondurenhos, que cruza o México com destino à fronteira com os EUA foi tema importante das recentes discussões eleitorais naquele país. O presidente Trump assinou decreto proibindo por 90 dias que imigrantes ilegais solicitem refúgio e determinou o deslocamento de militares do Exército para a fronteira, mostrando-se firme na decisão de impedir a entrada da massa de migrantes.

O problema dos refugiados alcança proporções alarmantes. Mas estamos falando de refugiados ou de migrantes? Ao tratar desse assunto, é muito importante que a distinção entre essas duas categorias fique clara. Migrante é a pessoa que muda seu lugar de residência por tempo indeterminado. Essas pessoas estão sujeitas às normas e políticas migratórias de cada nação, que permitem ou não a entrada e permanência no país. Segundo a Organização Internacional para Migração, organismo da ONU que trata do tema, existiam em 2015 cerca de 243 milhões de migrantes internacionais no mundo, ou seja, uma em cada 30 pessoas vivia num país diferente de onde nasceu.

Se os migrantes estão sujeitos às normas de cada país para terem seu acesso pela fronteira aceito, os refugiados contam com situação diferente. Estes são “pessoas que estão fora de seu país de origem devido a fundados temores de perseguição relacionados a questões de raça, religião, nacionalidade, pertencimento a um determinado grupo social ou opinião política, como também devido a grave e generalizada violação de direitos humanos e conflitos armados”. E por esse status, de acordo com a Convenção das Nações Unidas relativa ao Estatuto dos Refugiados, de 1951, da qual o Brasil e a maior parte dos países do mundo são signatários, “nenhum país expulsará ou rechaçará, de maneira nenhuma, um refugiado para as fronteiras dos territórios em que a sua vida ou a sua liberdade seja ameaçada em virtude da sua raça, da sua religião, da sua nacionalidade, do grupo social a que pertence ou das suas opiniões políticas”.

Assim, fica claro que o tratamento a ser dado a um refugiado é completamente diferente daquele a ser dispensado a um migrante. No Brasil, de acordo com o Estatuto do Refugiado, lei promulgada em 1997, qualquer estrangeiro que chegue ao País, mesmo irregularmente, e se apresente a uma autoridade migratória na fronteira expressando sua vontade de ser reconhecido como refugiado não poderá ser deportado até que lhe seja concedido ou não o refúgio. Caso o migrante não expresse essa condição, será tratado normalmente e de acordo com as normas migratórias.

Os milhares de venezuelanos que chegam ao Brasil vêm causando grande impacto econômico e social ao Estado de Roraima – problemas na rede hospitalar, aumento da violência urbana e impacto na oferta de empregos, entre muitos outros problemas. O governo local, pressionado, cobrou do governo federal a ampliação da ajuda econômica e chegou a solicitar ao Supremo Tribunal Federal o fechamento temporário da fronteira. Como se viu acima, tal decisão seria polêmica, em razão do status de refugiados que os venezuelanos almejam alcançar, o que impediria o seu rechaço na fronteira. Por outro lado, o Ministério da Defesa determinou o estabelecimento da Operação Acolhida, de modo que as Forças Armadas, num ambiente interagências, dessem uma resposta mais eficiente às demandas de toda ordem que surgem em razão desse enorme afluxo de pessoas.

Outro aspecto a ser considerado é que a crise humanitária sem precedentes na América do Sul poderá causar tensões ainda maiores entre a Venezuela e os seus vizinhos sul-americanos, em especial a Colômbia, país mais fortemente afetado por ser o principal destino dos venezuelanos. Qualquer tensão entre vizinhos afetaria o Brasil, que por sua importância no subcontinente não se poderia manter indiferente.

A Organização dos Estados Americanos (OEA), por ser o foro por excelência para tratar dos assuntos de segurança hemisférica, deveria patrocinar os maiores esforços na busca de soluções para a crise migratória venezuelana. Nesse sentido foi criado um grupo de trabalho para estudar o problema (www.oas.org/legal/spanish/gensec/EXOR1803.pdf). Espera-se que, ao final dos trabalhos, o grupo chegue a recomendações que mitiguem o sofrimento dos venezuelanos que deixaram sua pátria e, ao mesmo tempo, auxiliem os governos sul-americanos a encontrar as melhores soluções para lidar com a situação.