1

Dois Anos de Guerra na Ucrânia: Repercussões Geopolíticas, Humanitárias e Militares

A data de hoje marca os dois anos da invasão russa à Ucrânia, momento oportuno para uma breve análise acerca de alguns, dentre vários, desdobramentos que o conflito trouxe aos campos da geopolítica, da economia, das relações internacionais e da defesa. Isso sem falar nas terríveis consequências humanitárias para as pessoas, contadas aos milhões, diretamente afetadas pela tragédia da guerra.

As repercussões geopolíticas são evidentes. A guerra é a manifestação mais violenta do momento de contestação da ordem internacional liderada pelos Estados Unidos, erigida no pós Guerra Fria. Trata-se principalmente da ascensão chinesa e do desafio que passou a ser oferecido à liderança norte-americana por atores estatais que buscam o protagonismo no sistema internacional. Isso ficou muito bem caracterizado na conversa entre Putin e Xi Jinping, em frente aos repórteres, em Moscou, em março do ano passado, quando Xi disse a Putin que o mundo estava vivendo um momento de mudanças, como não era visto há cem anos, e que eram eles próprios, os dois líderes, que as estavam promovendo. Putin respondeu, concordando.

Compre na Amazon, por este link, e apoie o Blog do Paulo Filho

A Rússia, tendo conquistado quase 20% do território ucraniano, renovou a preocupação de segurança entre os europeus, que até 24 de fevereiro de 2022 pareciam acreditar que os conflitos de grande escala estavam superados no continente. Esta mudança de percepção foi acompanhada por um notável redirecionamento nos investimentos em defesa por parte dos países europeus. De acordo com um levantamento realizado pelo Institut de Relations Internationales et Stratégiques, entre 2022 e meados de 2023, as aquisições de sistemas e materiais militares pelos países europeus totalizaram quase 100 bilhões de euros, representando um aumento de cerca de 33% em relação ao ano anterior. A Alemanha e a Polônia foram responsáveis por aproximadamente um terço desse aumento substancial, com encomendas avaliadas em cerca de 28 e 16 bilhões de euros, respectivamente. Dos 27 países europeus pesquisados, 25 aumentaram seus orçamentos de defesa de 2022 para 2023, evidenciando uma mudança de tendência. Apenas Hungria e Grécia foram exceções, registrando uma diminuição em seus orçamentos de defesa neste período.

No campo dos estudos estratégicos, a guerra na Ucrânia veio para derrubar mitos, reforçar fundamentos e apresentar novidades. A principal característica do conflito – sua alta intensidade, caracterizada pelo atrito e pelo maciço emprego da artilharia pelos dois lados – derrubou uma crença recente de que os conflitos modernos poderiam ser resolvidos apenas por pequenos exércitos, altamente móveis, dotados de ferramentas tecnológicas no estado da arte. É claro que mobilidade e tecnologia são importantes. Mas, para se conquistar um território invadido, defendido em linhas de trincheiras apoiadas por extensos campos de minas e por poderosa artilharia, o que ainda importa são as massas dos exércitos, constituídos por uma reserva mobilizável contada em centenas de milhares de soldados. Essa é a razão pela qual o serviço militar obrigatório volta a ser adotado e discutido por diversos países europeus. Também se deve a isso o esforço acelerado de abertura de fábricas de munições, para superar a enorme deficiência europeia nessa produção, especialmente quanto à granadas de artilharia.

Ao mesmo tempo em que se assiste ao emprego de técnicas, táticas e procedimentos utilizados desde a Primeira Guerra Mundial, o Teatro de Operações da Ucrânia serve de palco para inovações. Os sistemas aéreos remotamente pilotados, ou drones aéreos, que já tinham surgido como armas importantes na guerra de 2020 entre Armênia e Azerbaijão, se apresentam como sistemas fundamentais nos conflitos atuais. Seus congêneres navais, entretanto, fazem sua estreia, com resultados surpreendentes, sendo os responsáveis pelo afundamento de diversos navios da frota russa no Mar Negro. O emprego dos mísseis hipersônicos russos também é uma inovação digna de nota.

No campo econômico, um primeiro aspecto a se destacar é a constatação de que a coerção econômica que os EUA e seus aliados pretendiam infligir à Rússia por intermédio das dezenas de sanções e embargos não atingiram os resultados esperados. Os russos conseguiram, em grande medida, substituir as trocas comerciais embargadas por novas relações com países do chamado “Sul Global”, que não aderiram às sanções. Nesse sentido, o caso da Índia é exemplar. O país aumentou em mais de 13 vezes o valor das importações de petróleo da Rússia, totalizando, em 2023, cerca de 37 bilhões de dólares.

Essa não é uma boa notícia para a manutenção da paz no mundo. A constatação, por parte das grandes potências, de que a ferramenta da coerção econômica não é mais tão eficaz como foi no passado, pode vir a significar uma opção direta pela solução militar, sem a “escala” pela pressão econômica. Ou seja, pode vir a significar o aumento do risco da eclosão de novos conflitos armados.

Finalmente, há que se destacar a questão humanitária. A guerra sempre impõe enorme sofrimento às populações atingidas, e não seria diferente no caso da guerra na Ucrânia. Cerca de 14 milhões de pessoas foram forçadas a abandonar as suas casas desde o início da invasão russa, há dois anos, e quase 6,5 milhões vivem fora do país como refugiados. O número de baixas fatais de combatentes de ambos os lados é tratada com sigilo, e os números não são confiáveis. Entretanto, é um consenso entre os analistas que, somadas, ultrapassam facilmente a cifra de meio milhão de soldados. Há também os deploráveis episódios de maus tratos e violações graves e generalizadas dos direitos humanos, com centenas de casos relatados de violações do Direito Internacional dos Conflitos Armados, sem falar na enorme destruição de infraestrutura, inclusive de cidades quase por completo, como os casos de Bakhmut e Avdiivka.

Clique e descubra as ofertas do dia na Amazon!

Assim, constata-se que a guerra na Ucrânia pode ser caracterizada como um divisor de águas, evidenciando a fragilidade da ordem internacional pós-Guerra Fria e o recrudescimento das tensões geopolíticas.

O conflito na Ucrânia também terá impactos importantes e duradouros no campo dos estudos estratégicos. O retorno da guerra de alta intensidade, de atrito e da artilharia, convivendo com novas armas e tecnologia no estado da arte, obrigará os governos de todo o mundo a aumentarem seus investimentos em defesa, repensarem suas estratégias, suas formas de mobilização e o preparo de suas forças armadas.

Por fim, embora no momento não se vislumbre a possibilidade de um desfecho a curto prazo, destaca-se a urgência de uma solução para o conflito. A guerra na Ucrânia causou um enorme sofrimento humano, com milhões de pessoas deslocadas, cidades devastadas e enormes perdas de vidas. A reconstrução da Ucrânia será um desafio monumental, que exigirá um esforço global para garantir a recuperação do país e o bem-estar de sua população.

Se você gosta do conteúdo do blog e pode colaborar com sua manutenção, junte-se àqueles que se tornaram apoiadores

clique aqui e saiba como!




A Europa desperta: a ameaça de Trump e o renascimento da Defesa europeia

O ex-presidente e virtual candidato à presidência pelo Partido Republicano nas próximas eleições dos Estados Unidos, Donald Trump, provocou uma onda de choque política entre os aliados europeus da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN). Em um discurso de campanha, Trump declarou ter advertido o líder de “um importante país europeu” que, caso falhasse no pagamento de suas obrigações financeiras para com a Aliança, ele, na qualidade de presidente dos EUA, recusaria defender o país europeu contra uma potencial invasão russa. Trump inclusive sugeriu que, nesse caso, poderia incentivar a Rússia a “fazer o que bem entendesse”.

Ao mencionar o descumprimento das obrigações financeiras, Trump se refere à diretriz da Aliança, criada em uma reunião de cúpula realizada no País de Gales, em 2014, que estabelece a meta de 2% do PIB para os investimentos de Defesa de cada um dos 31 membros da organização. O acordo de 2014 previa que os países deveriam se esforçar para atingir a meta em dez anos, ou seja, até este ano de 2024. Em 2014, apenas três Estados alcançavam aquele patamar. Em 2023, esse número já havia subido para onze. Jens Stoltenberg, Secretário Geral da OTAN, lamentou as palavras de Trump, afirmando que “qualquer sugestão de que os aliados não se defenderão mutuamente mina toda a nossa segurança, incluindo a dos EUA, e aumenta os riscos para os soldados americanos e europeus”. Disse ainda que, ao que tudo indica, no final deste ano, dezoito países terão atingido a meta de investimento em Defesa.

A ameaça de Trump reverberou ainda mais porque neste final de semana aconteceu a conferência anual de segurança de Munique, reunindo os ministros da defesa da Europa. A repercussão foi parar na capa da revista semanal alemã Der Spiegel, que pergunta se, dada a ameaça de Trump – e a real possibilidade de sua eleição – não estaria na hora dos europeus, especialmente a Alemanha, considerarem desenvolver a sua própria bomba nuclear.

Capa da Revista Der Spiegel. Edição de 17 Fev 2024

A promessa de assistência recíproca é a pedra angular da Aliança Atlântica. Está fundamentada no famoso artigo 5º, que determina que o ataque a um dos membros da organização “será considerado um ataque contra todos eles” e que, consequentemente, cada um deles tomará “as ações que julgar necessárias, inclusive o uso da força armada para restaurar e manter a segurança do Atlântico Norte”.

Ironicamente, na única vez em que o artigo 5º foi acionado nos 75 anos de existência da Aliança, não o foi por nenhum membro europeu, mas sim pelos EUA, após os ataques de 11 de setembro de 2001. Isso resultou no apoio efetivo da Aliança à guerra ao terror, incluindo às invasões do Iraque e do Afeganistão.

Entretanto, é inegável que Trump trouxe à tona uma realidade preocupante: os europeus se acostumaram a contar com o guarda-chuva dissuasório dos EUA, relegando perigosamente suas próprias capacidades de defesa a um segundo plano. Isso ficou especialmente patente no desabafo do general Alfons Mais, comandante do exército alemão, expressado no Linkedin, no dia em que os russos invadiram a Ucrânia. Disse o general[1]: “No meu 41º ano de serviço em tempos de paz, não teria pensado que teria de passar por uma guerra”. “E o Bundeswehr, o exército que tenho a honra de comandar, está mais ou menos de mãos vazias. As opções que podemos oferecer ao governo em apoio à aliança são extremamente limitadas.”

As palavras do general Alfons completarão dois anos no dia 24 de fevereiro. A guerra na Europa serviu como um duríssimo aviso e os europeus estão se mobilizando. Na conferência de Munique, várias declarações foram dadas nesse sentido. O chanceler alemão, Olaf Scholz, disse que a ameaça da Rússia à Europa é real e os países do continente precisam fazer muito mais para garantir a sua própria segurança. O primeiro-ministro dos Países Baixos, Mark Rutte, afirmou que a Europa deveria parar de reclamar de Trump, e se concentrar em aumentar os investimentos em defesa e “aumentar maciçamente a produção de armas”. O ministro da Defesa da Alemanha, Boris Pistorius, afirmou que seu país atingirá a meta este ano, pela primeira vez desde o fim da Guerra Fria, embora reconhecendo que isso pode não ser suficiente para a construção das capacidades de defesa necessárias.

A Europa vive um momento crucial em sua história. A crise de segurança no continente, representada pela ameaça russa e a possível escalada da guerra para outros países europeus convive com a perspectiva da eleição de Donald Trump à presidência dos EUA, que pode significar que o maior aliado pode vir a faltar em um momento crítico.

Promoção de material de escritório na Amazon

Diante dessa conjuntura, é imperioso que a Europa reavalie sua dependência estratégica dos EUA e invista decisivamente na construção de suas próprias capacidades de defesa. Isso não significa abandonar a OTAN. Pelo contrário, a construção de uma autonomia europeia fortalecerá a Aliança.

Então, é de se esperar que assistamos, já em 2024 e nos próximos anos, a um aumento significativo dos investimentos europeus em Defesa, a um maior desenvolvimento de suas capacidades militares combinadas, ao fortalecimento da cooperação em inteligência e à promoção da indústria de Defesa, com a ampliação da produção de armas e munições, bem como o desenvolvimento de novas tecnologias bélicas.

Tudo isso vai trazer repercussões para os outros continentes, com o provável desencadeamento de uma corrida armamentista, no chamado Dilema de Segurança. Mas isso é assunto para um próximo artigo.

[1] https://www.linkedin.com/feed/update/urn:li:activity:6902486582067044353/

Se você gosta do conteúdo do blog e pode colaborar com sua manutenção, junte-se àqueles que se tornaram apoiadores

clique aqui e saiba como!

Siga o Canal Geopolítica com Paulo Filho no Telegram!

 




A OTAN cuida de manter sua pólvora seca

A frase “Confie em Deus e mantenha a pólvora seca”, atribuída a Oliver Cromwell, político e militar inglês do século XVII, sugere que, embora a confiança na providência divina seja fundamental, a preparação e a ação humana desempenham papéis cruciais. Esta sábia lembrança ressalta a importância de que os homens estejam preparados tomem medidas práticas para enfrentar os desafios da vida, especialmente em tempos de conflito e incerteza.

Indubitavelmente, os tempos atuais, especialmente no contexto das Relações Internacionais, Estratégia e Geopolítica, caracterizam-se por uma notável incerteza e conflitualidade. Portanto, não é surpreendente que os líderes das potências mundiais – e aqueles mais conscientes dos riscos iminentes – estejam atentos à condição de seus arsenais, garantindo que “a pólvora esteja seca”.

Traduzindo-se a metáfora para as ações práticas da realidade, “manter a pólvora seca” implica assegurar que o aparato militar do Estado esteja plenamente operacional. No caso da OTAN, há evidências que indicam uma crescente preocupação em manter a Aliança como um instrumento de combate eficiente e eficaz, dessa forma percebido pela opinião pública ocidental mas também, e talvez principalmente, por seus principais adversários.

Conheça os livros que eu indico na Amazon. Compre qualquer produto por esse link e contribua para a manutenção do nosso Blog!

Os investimentos em Defesa têm experimentado um aumento significativo em escala global. Segundo o Instituto Internacional de Pesquisa para a Paz de Estocolmo (SIPRI), a despesa militar global total registrou um incremento[1] de 3,7% em termos reais em 2022, alcançando um patamar recorde de 2,240 trilhões de dólares. Notavelmente, as despesas militares na Europa apresentaram o maior aumento anual em pelo menos 30 anos. Paralelamente, a OTAN anunciou recentemente um substancial incremento[2] de 12%, elevando seus investimentos para 2.03 bilhões de Euros até 2024. Esses números refletem uma clara resposta ao conflagrado ambiente geopolítico atual, destacando o comprometimento dos países membros da aliança em fortalecer suas capacidades de defesa e a prontidão para enfrentar os desafios emergentes.

Na próxima semana, a OTAN dará início ao que se tornará o maior exercício militar desde o término da Guerra Fria: o “Steadfast Defender”. As manobras militares sinalizam uma clara e renovada ênfase na preparação militar e na coordenação entre os países-membros, evidenciando a determinação da aliança em responder às ameaças percebidas. O Steadfast Defense contará com a participação de 90 mil militares, mais de 50 navios de guerra, aproximadamente 80 aeronaves e 1,1 mil veículos de combate. Destaque-se que o exercício simulará um conflito contra um “adversário de poder militar semelhante” à OTAN, sendo a Rússia o inimigo subentendido, embora não explicitamente nomeado. Este exercício, de magnitude sem precedentes, reforça a prontidão da OTAN com vistas a fortalecer sua capacidade de enfrentar desafios complexos no cenário geopolítico atual.

A intensificação da cooperação entre os países-membros da OTAN é evidenciada por recentes acordos de cooperação e planejamentos estratégicos integrados. Notavelmente, os países bálticos – Estônia, Letônia e Lituânia – solidificaram seu compromisso ao assinar um acordo para a construção da “Linha Defensiva do Báltico”. Este projeto visa a estabelecer uma robusta linha defensiva na fronteira entre essas nações e a Rússia, bem como com a Bielorrússia. A linha defensiva coordenará ações conjuntas dos três países, integrando medidas ativas e passivas de defesa desde os primeiros metros do território, preparando-se para eventuais incursões russas. Essa iniciativa destaca a colaboração proativa dos membros da OTAN na região, fortalecendo a segurança coletiva diante de desafios específicos e reforçando a prontidão para proteger suas soberanias.

Aproveite a oferta da Amazon, compre seu refil da Gilette Mach3 muito mais barato do que você encotra por aí, perto da sua casa!

Além dos aspectos acima citados, é crucial ressaltar as declarações públicas proferidas por líderes da OTAN, tanto civis quanto militares, sublinhando a vital importância da prontidão militar e expressando inquietações específicas relacionadas aos desafios à segurança dos países-membros da aliança. O Almirante Rob Bauer, presidente do Comitê Militar da aliança, recentemente afirmou que, embora a OTAN não busque um conflito com a Rússia, está se preparando de maneira ativa para essa possibilidade. Já o ministro da defesa da Alemanha, Boris Pistorius, disse em entrevista que a Rússia poderia atacar a OTAN em menos de uma década, alertando que os estrategistas alemães acreditam que isso seria possível em um intervalo de 5 a 8 anos a partir do fim da guerra na Ucrânia. Essas declarações refletem não apenas o reconhecimento da complexidade do cenário geopolítico atual, mas também a determinação da OTAN em reforçar sua capacidade de resposta diante de potenciais ameaças à segurança coletiva.

Em síntese, a metáfora da “pólvora seca” ressoa de maneira notável no atual cenário geopolítico, onde os líderes da OTAN demonstram não estarem dispostos a deixar os acontecimentos correrem à própria sorte atuando proativamente para a construção de um instrumento militar capaz de fazer face às ameaças. A busca pela prontidão da OTAN para enfrentar desafios é evidenciada não apenas por investimentos substanciais em defesa, mas também pela realização do exercício militar “Steadfast Defender” e pela intensificação da cooperação entre os países-membros, como observado na construção da “Linha Defensiva do Báltico”.

A resposta unificada dos líderes da aliança, expressa por declarações públicas e estratégias coordenadas, reflete a seriedade com que a OTAN encara as ameaças percebidas, principalmente as relacionadas à Rússia. O compromisso declarado de se preparar para eventualidades, destaca a postura prudente adotada pela aliança.

À medida que a incerteza e a conflitualidade permeiam as Relações Internacionais, a OTAN busca integrar a cooperação entre os países-membros e a prontidão. Esta abordagem, alinhada à sabedoria da metáfora, oferece um paradigma eficaz para enfrentar os desafios do século XXI, onde a segurança global demanda uma preparação ativa e uma diplomacia assertiva.

Se você gosta do conteúdo do blog e pode colaborar com sua manutenção, junte-se àqueles que se tornaram apoiadores

clique aqui e saiba como!

[1] Veja em https://www.sipri.org/media/press-release/2023/world-military-expenditure-reaches-new-record-high-european-spending-surges

[2] Veja em https://www.reuters.com/world/nato-increases-military-budget-by-12-203-billion-euros-2023-12-13/




O resultado das eleições presidenciais em Taiwan pode levar a um aumento das tensões com a China

Lai Ching-te, conhecido como William Lai, venceu as eleições em Taiwan, tendo conquistado cerca de 40% dos votos válidos. Hou Yu-ih, candidato do Partido Nacionalista (Kuomintang), obteve 33% dos votos, enquanto Ko Wen-je, candidato de uma terceira via, que se opõe aos dois partidos tradicionais, obteve uma surpreendente votação, com 26% dos votos. O resultado demonstra que os mais de dezenove milhões de eleitores da ilha decidiram manter no poder o grupo governista, do Partido Democrático Popular (DPP), para decepção do presidente Xi Jinping, da China, e de todo o Partido Comunista Chinês.

Lai Ching-te

Lai, um médico com mestrado em Harvard, é o atual vice-presidente. Com a vitória, seu partido iniciará um inédito terceiro mandato consecutivo. Desta forma, os eleitores referendaram a política da atual presidente Tsai Ing-wen, e do DPP, que busca manter Taiwan longe da influência chinesa, procurando evitar conflitos, mas fortalecendo os laços com os Estados Unidos e outros países do Ocidente. Além disso, ele promete também aumentar a capacidade militar de Taiwan e fortalecer a economia da ilha. O apoio da maioria dos eleitores à essa política fica ainda mais claro tendo-se em vista que um dos candidatos vencidos, Hou Yu-ih, do Kuomitang, fez sua campanha prometendo expandir os laços e reiniciar negociações comerciais com Pequim.

Foi o oitavo pleito eleitoral presidencial em Taiwan, que realiza eleições livres e diretas desde 1996. Os chineses não queriam a vitória de Lai, e deixaram isso bastante claro, sugerindo que sua vitória poderia levar Taiwan para mais perto da guerra. A China, que considera Taiwan uma província rebelde que deve ser reincorporada à plena soberania chinesa, vê em Lai um defensor da independência de Taiwan. Na verdade, ele mesmo, embora não tenha adotado essa retórica na campanha eleitoral, enfatizando que não planeja declarar a independência formal da ilha, chegou a declarar no passado ser um “pragmático defensor da independência” da ilha, algo que é absolutamente inaceitável para o governo chinês.

Xi Jinping tem aumentado de forma notável a atividade militar chinesa no entorno da ilha, em uma demonstração que reforça a mensagem que ele quer transmitir a Taiwan, aos chineses e ao mundo: a de que a reunificação é inevitável.

Taiwan é uma ilha de grande importância geoestratégica, posicionada em local fundamental para o comércio e a segurança regionais, já tendo sido definida pelo general norte-americano Douglas MacArthur como um “porta-aviões inafundável” ancorado eternamente em frente à China. Por isso, seu destino está ligado à competição sistêmica em curso entre Estados Unidos e China. Nesse sentido, os EUA devem manter sua postura de ambiguidade, sem reconhecer seu governo como um ente soberano, mas mantendo o apoio militar e relações próximas.

A vitória de Lai é, sem dúvida, um contratempo para Pequim. Suas políticas e atitudes no governo serão acompanhadas muito de perto por chineses e norte-americanos, bem como pelas demais potências mundiais. O mundo não pode ignorar o que acontece nessa pequena ilha, que está no centro do tabuleiro geopolítico global.

Se você gosta do conteúdo do blog e pode colaborar com sua manutenção, junte-se àqueles que se tornaram apoiadores

clique aqui e saiba como!

 




A crise entre Venezuela e Guiana está longe de ser um assunto encerrado

Em dezembro passado, a população venezuelana compareceu às urnas, para votar em um referendo promovido pelo governo de Nicolás Maduro. Como era esperado, votou de forma massiva na opção “Sim”, respondendo às perguntas sobre a incorporação da região da Guiana Essequiba à soberania da Venezuela.

A pretensão venezuelana sobre a região que se estende de sua atual fronteira com a Guiana para o leste, até o corte do rio Essequibo, remonta as origens coloniais dos dois países, havendo um consenso entre os venezuelanos acerca da legitimidade da pretensão do país de incorporar à sua soberania uma área que corresponde a cerca de 2/3 do território guianense – uma área comparável ao estado brasileiro do Ceará – rica em minérios, petróleo e diamantes.

Figura 1 – Região da Guiana Essequiba / Fonte – Stratfor (2015)

Não se trata, apenas, da porção terrestre do território. É do trecho do Mar do Caribe que defronta a região do Essequibo que a Guiana retira as riquezas petrolíferas que levaram o país a ter atualmente a economia que mais cresce no mundo, com uma taxa de aumento do PIB, em 2023, de cerca de 38%. Para se ter uma ideia do tamanho das riquezas, estima-se que a Guiana possa se tornar o quarto maior país produtor offshore do mundo em 2035, com uma média de 1,7 milhão de barris/dia – ultrapassando EUA, México e Noruega.

Essa riqueza toda, que vem sendo explorada por mais de uma dezena de companhias petrolíferas internacionais de grande porte, de norte-americanas a chinesas, certamente está entre as razões que levaram o regime autoritário venezuelano a reacender o debate sobre a posse da região do Essequibo.

Mas essa não parece ser a principal razão, ou mesmo a única. O presidente Maduro está pressionado pelas eleições presidenciais previstas para acontecer no segundo semestre de 2024, em um momento em que a oposição conseguiu se reunir em torno de uma candidata única, a liberal Maria Corina Machado que, entretanto, está impossibilitada de participar por decisão da mais ata corte judicial venezuelana. Ao propor o referendo, o governo conseguiu mudar de assunto, retirando o tema eleitoral da pauta de discussões e inserindo uma questão que unifica os venezuelanos em torno de uma causa nacionalista. Uma estratégia clássica, utilizada muitas vezes ao longo da história, por governantes em apuros.

A campanha do governo pelo voto “sim” encontrou nos militares venezuelanos um forte ponto de apoio. O General Vladimir Padrino Lopes, Vice-Presidente e Ministro da Defesa, esteve onipresente nas mídias sociais e na imprensa defendendo a causa. Às vésperas do referendo, tropas foram acionadas para participar de operações militares e adestramentos, entoando gritos de guerra e músicas que reafirmam a posse venezuelana da região contestada, tudo com o claro propósito de transmitir à população venezuelana e à opinião pública internacional a mensagem de que o país possui capacidade militar para empurrar, manu militari, a linha de fronteira até o rio Essequibo.

Desde o conflito entre Equador e Peru, na década de 1990, a América do Sul tem se mantido livre de confrontos militares entre Estados nacionais. Assim, uma operação militar de conquista de território, em plena América do Sul, parece impensável. Mas, a irrazoabilidade de uma aventura militar se assenta em premissas de respeito ao direito internacional que talvez não estejam em alta conta em Caracas.

Passada a votação, a governo venezuelano diminuiu a intensidade do discurso nacionalista. Em uma reunião na ilha de São Vicente e Granadina, pequeno país insular do Caribe que desempenha a função de presidente temporário da Comunidade de Estados Latino-Americanos e do Caribe (CELAC), os presidentes Nicolás Maduro e Irfaan Ali se comprometeram a não usar a força um contra o outro, acordando em resolver as disputas territoriais entre Venezuela e Guiana com base no direito internacional. Não houve nenhum acordo acerca da disputa propriamente dita, mas uma nova reunião entre os dois ficou agendada para ocorrer em três meses, no Brasil.

A disputa atrai para a América do Sul a atenção de potências extrarregionais, por motivos geopolíticos e econômicos.

Estados Unidos e Reino Unido fizeram movimentos militares discretos, mas suficientes para transmitir uma mensagem clara à Venezuela de que estão atentos à questão. No dia 7 de dezembro, poucos dias após o referendo, o Comando Sul das forças armadas norte-americanas divulgou a realização de “exercícios aéreos conjuntos” com a Guiana. O Reino Unido, por sua vez, enviou um de seus navios de patrulha oceânica, o HMS Trent, para a região do litoral da Guiana. O navio inclusive recebeu a bordo, no dia 29 de dezembro o Chefe do Estado-Maior de Defesa das forças armadas da Guiana, brigadeiro Omar Khan[1]. A presença do navio britânico no mar que a Venezuela considera estar em litígio reacendeu a retórica nacionalista venezuelana e provocou uma reação do presidente Maduro, que determinou que cerca de 5.600 militares fossem mobilizados em exercícios conjuntos de suas forças armadas, na região de seu litoral.

Figura 2 – Brigadeiro Omar Khan sendo recebido no HMS Trent / Fonte – Conta @HMSTrent na rede social “X”

A Rússia, um importante fornecedor de materiais e sistemas de Defesa para a Venezuela, vem mantendo um perfil discreto em relação à questão. O Ministério das Relações Exteriores do país se pronunciou por intermédio de uma nota curta[2], instando os dois países a resolverem a questão por vias pacíficas e se opondo à intervenção de terceiros países. Uma viagem do presidente Maduro à Rússia, que estava prevista para acontecer em dezembro, acabou por ser adiada.

No que concerne aos interesses econômicos envolvidos, é bom lembrar que há companhias petrolíferas norte-americanas, canadenses, catari, chinesa, inglesa, francesa e espanhola explorando os recursos energéticos no litoral guianense. Certamente as potências envolvidas estão atentas aos acontecimentos, e atuarão, se necessário, na defesa das empresas de seus países.

Assim, fica claro que referendo deu ao presidente Maduro a oportunidade de reacender a questão. O território já foi acrescentado aos mapas oficiais do país o general Alexis José Rodríguez Cabello foi designado pelo presidente venezuelano como “governante único” da Guiana Essequiba. É de se esperar que o regime venezuelano reacenda a questão de forma artificial, criando incidentes esporádicos, de forma a manter o assunto em pauta, especialmente quando as eleições presidenciais – que ainda não possuem data marcada – se aproximarem.

Figura 3 – Mapa venezuelano incorporando a região do Essequibo / Fonte – Governo da Venezuela

Se você gosta do conteúdo do blog e pode colaborar com sua manutenção, junte-se àqueles que se tornaram apoiadores

clique aqui e saiba como!

[1] https://x.com/HMSTrent/status/1740870713219715281?s=20

[2] https://mid.ru/en/foreign_policy/news/1919851/




O custo da resposta israelense aos ataques do Hamas

A guerra entre Israel e o grupo terrorista Hamas está sendo travada em altíssimos níveis de violência, o que faz os estudiosos da guerra se lembrarem dos ensinamentos de Carl von Clausewitz. Autor do clássico “Da Guerra”, o general prussiano do século 19 afirmou que esta é “um ato de força para compelir o nosso inimigo a fazer a nossa vontade”. A aplicação dessa força implicaria ser a ação militar um ato de extrema violência.

O ataque do Hamas, que no dia 7 de outubro atingiu indistintamente crianças, mulheres e idosos, foi meticulosamente executado de forma a causar terror e choque à população israelense, com o nítido objetivo de provocar uma forte reação. Não há novidade nisso. Dentro da perversa lógica dos planejadores dos atos terroristas, ao provocar a reação israelense, que certamente seria centrada na Faixa de Gaza, área habitada por mais de 2 milhões de palestinos, conseguiria alcançar o objetivo de chamar atenção para a causa do grupo, reunindo árabes e muçulmanos contra o inimigo “sionista” comum. Novos militantes seriam atraídos para a causa terrorista, atentados ocorreriam em outras partes do mundo e seria sabotada a aproximação que Israel vinha promovendo em direção aos países árabes, muito especialmente com a Arábia Saudita.

A reação israelense aos violentíssimos atentados terroristas perpetrados pelo Hamas pode ser explicada por Clausewitz mas, ao infligir grande sofrimento a civis não combatentes, causa indignação e protestos ao redor do mundo. Além disso, a forte reação internacional contra o que é considerado um excesso na resposta israelense parece indicar que o Hamas pode estar alcançando, pelo menos parcialmente, os seus objetivos. Isso claramente contraria os próprios interesses dos israelenses. Afinal, o processo de aproximação com os árabes foi interrompido e há uma onda desfavorável ao país na opinião pública internacional. Isso traz um questionamento fundamental: a resposta de Israel aos bárbaros atentados de 7 de outubro é exagerada?

O chinês Sun Tzu, autor do magistral “Arte da Guerra”, destaca que, dentre os cinco erros que podiam ser cometidos por um general estavam a “imprudência, que leva à destruição”, e a “cólera, que leva à precipitação”. Estariam os líderes israelenses motivados por uma cólera imprudente?

Certamente, a autocontenção israelense neste momento é uma atitude difícil de ser tomada, uma vez que seu inimigo, o grupo terrorista Hamas, ignora completamente qualquer princípio moral ou ético. Os terroristas descumprem completamente um princípio básico do Direito Internacional dos Conflitos Armados (DICA), o conjunto de normas e costumes que tentam limitar, por razões humanitárias, os meios e métodos de combate das partes em conflito: o princípio da distinção. O artigo 48 do Protocolo Adicional I às Convenções de Genebra define como uma regra fundamental para a proteção da população civil durante as hostilidades que “as Partes em conflito devem sempre fazer a distinção entre a população civil e os combatentes, assim como os bens de caráter civil e os objetivos militares”. Ao se misturar à população da Faixa de Gaza, utilizando indiscriminadamente instalações civis para fins militares, o Hamas borra propositalmente essa fronteira, impedindo, na prática, tal distinção pelos israelenses. É inegável que o Hamas deliberadamente coloca em risco, e de forma vil, a própria população palestina, seus bens e suas condições de subsistência.

Aproveite as promoções da Semana Black Friday da Amazon – compre pelo link, aproveite os descontos e contribua com o blog!

Por outro lado, esse comportamento do Hamas não autoriza o Estado de Israel a utilizar quaisquer meios ou métodos de combate para alcançar seus objetivos militares. Existem outros princípios básicos do DICA que devem ser observados: humanidade, necessidade militar, proporcionalidade e limitação. Os casos de ataques a instalações como hospitais e escolas, em que houve reconhecidamente um elevado número de baixas de civis, suscitam críticas e questionamentos justos. Afinal, Israel não poderia ter escolhido outro meio ou método de combate para atingir seus objetivos militares naquelas situações, causando menos sofrimento aos não combatentes? E, sob o ponto de vista de seus próprios interesses políticos e estratégicos, ao optar pelas ações que alcançam de forma imediata seus objetivos táticos mas causam muitos danos colaterais, não estariam os israelenses obtendo uma vitória de curto prazo, mas plantando uma derrota no nível estratégico para o futuro?

O objetivo dos beligerantes, em qualquer guerra, é chegar a uma paz que lhes seja melhor do que aquela que existia antes do conflito. A vitória de Israel, no campo da Tática, é questão de tempo. Mas, a conquista dos objetivos militares é só uma parte da operação. Depois dela, virá a mais difícil: estabilizar a Faixa de Gaza e encontrar uma forma para que israelenses e palestinos convivam em harmonia. Só assim haverá uma paz melhor do que aquela de antes de 7 de outubro. Para que isso aconteça, será primordial que os meios e métodos de combate empregados por Israel não deixem um rastro de ódio que faça a vitória tática se transformar em uma derrota política.

Se você gosta do conteúdo do blog e pode colaborar com sua manutenção, junte-se àqueles que se tornaram apoiadores

clique aqui e saiba como!




A era dos carros de combate – como prova a guerra na Ucrânia – ainda não acabou

 

1. Introdução

As imagens da guerra atualmente em curso na Ucrânia, de carros de combate (CC) destruídos por armas anticarro e por “drones camicases”, divulgadas à exaustão na imprensa e nas mídias sociais, criaram no grande público, pouco afeito às táticas, técnicas e procedimentos do combate blindado, a impressão de que os CC tinham se tornado alvos fáceis, e por isso mesmo, obsoletos. Dessa forma, estavam dadas as condições para que analistas apressados e normalmente com pouco conhecimento de causa decretassem a “morte dos carros de combate”.

Não foi a primeira vez que isso aconteceu. Ao fim da Primeira Guerra Mundial, autoridades de defesa britânicas anunciaram que o carro de combate estaria morto ou morrendo, e que os CC nunca mais seriam usados. Os britânicos dissolveram suas unidades blindadas em 1928. O Ministério da Guerra, explicando a decisão, declarou que “tanques não eram mais uma ameaça[1]”.

Em 1936, as instruções de blindados do Exército francês afirmavam: “Na ofensiva, deve-se enfatizar que hoje a arma antitanque é, para o tanque, o que a metralhadora foi para a infantaria durante a Guerra Mundial”. Três anos depois, um livro best-seller de um general da reserva do exército francês argumentou que o CC havia falhado como uma arma inovadora, já que “uma arma anticarro de 75 ou 77 milímetros, que custava 150 francos, poderia destruir um CC que custava um milhão de francos.” (HENKIL, 2022). Um ano se passou e, em maio de 1940, os CC alemães lideraram com enorme êxito a invasão da França.

Em 1960, ao perceber que o anuncio do fim dos CC era uma afirmação recorrente, Sir Basil Liddell Hart escreveu que, “de tempos em tempos, durante os últimos 40 anos, autoridades anunciaram que o CC estava morto ou morrendo. Mas, a cada uma dessas vezes, ele ressurgiu da sepultura que lhe haviam consignado”[2].

Esse não é um fenômeno exclusivo dos blindados. Algo semelhante ocorreu com aeronaves de combate após o primeiro míssil superfície-ar se fazer presente no campo de batalha. O general da Força Aérea de Israel Ezer Weizman, famoso piloto de combate que foi comandante durante a Guerra dos Seis Dias de 1967, disse em 1975 que “o míssil havia dobrado a asa do avião.” Sete anos depois, com o auxílio de contramedidas eletrônicas e armamento apropriado, a força aérea israelense destruiu 19 baterias de mísseis superfície-ar sírias no Líbano sem sofrer uma única baixa. (HENKIL, 2022)

Isso deveria servir como uma advertência contra declarações prematuras de que sistemas de armas estão finalmente desatualizados.

Este texto tentará demonstrar que, mais uma vez, erraram aqueles que, ao testemunharem os acontecimentos atualmente em curso na Ucrânia, anunciaram a morte dos CC. Ainda não será dessa vez.

2. As ameaças aos carros de combate

A história dos CC tem sido uma constante disputa entre sua blindagem e sua capacidade de engajar alvos a grande distância, com rapidez e precisão, de um lado, e as armas anticarro que lhes contrapõem, de outro. Quando os carros surgiram, no Somme, em 1916, suas blindagens resistiam às metralhadoras alemãs, mas não às granadas de artilharia. Rapidamente, os alemães desenvolveram um fuzil antitanque, com um projetil maior e mais pesado, que tinha a capacidade de perfurar a blindagem. Trata-se da mesma disputa de sempre, como a existente entre a espada e o escudo, entre a catapulta e a fortificação, entre o projetil e o colete balístico.

Essa competição continua desde então. À medida que as ameaças foram se aprimorando, as blindagens também se aperfeiçoaram, desde as simples chapas de aço, passando pelas blindagens compostas, chegando às reativas, até as mais modernas, as chamadas blindagens ativas.

Atualmente, o leque de ameaças ao carro de combate é enorme: helicópteros armados com armas anticarro, CC e outros blindados inimigos, mísseis, “drones camicases” (loitering munitions), projéteis de orientação terminal dispersos por bombas de aeronaves, foguetes, projéteis de artilharia, munições cluster, minas anticarro, aí se incluindo as modernas minas de efeito direcionado, e armas leves, como granadas anticarro lançadas por fuzil ou por lançadores de granadas.

Em contrapartida às ameaças, surgiram os equipamentos de defesa ativa, que são aqueles que dispõem de munições ou módulos explosivos que reagem para interferir ou destruir os projéteis que são direcionados contra o carro ou veículo blindado no qual estão instalados. (MATEOS, 2018). Um exemplo desse tipo de equipamento é o sistema Rafael Trophy Active Protection System, que foi instalado em diversos CC, tais como o Merkava israelense, a família Abrams norte-americana, o Leopard 2A8 alemão e, especula-se, também estará na próxima versão do Challenger III britânico.

De acordo com a informação do fabricante, o sistema cria “uma bolha de neutralização” ao redor do veículo. Ele detecta, classifica e engaja rapidamente todas as ameaças conhecidas, incluindo mísseis, foguetes e granadas alto-explosivas. O sistema ainda tem a capacidade de localizar a origem da ameaça, permitindo que a tripulação responda ao fogo de forma eficaz[3].

Figura 1 – Funcionamento do Sistema – Fonte Reddit, adaptado pelo autor

Vê-se, portanto, que não há nenhuma razão para se acreditar que as novas ameaças, representadas por veículos aéreos não tripulados, por exemplo, não possam ser sobrepujadas por novas e modernas alternativas de blindagens e outros tipos de defesa ativa.

3. A relevância do Carro de Combate no campo de batalha

A invasão russa à Ucrânia, desencadeada em 24 de fevereiro de 2022, demonstrou com clareza e sem qualquer margem para outra interpretação, que a guerra de alta intensidade, o confronto cinético entre massas de exércitos regulares, ainda é uma realidade inescapável. No ambiente caótico do combate, as características de poder de fogo, ação de choque e proteção blindada, além da velocidade, conferidas aos exércitos por suas tropas blindadas, ainda são essenciais.

A essência do emprego do CC está na penetração das linhas defensivas inimigas, permitindo o aprofundamento do avanço das tropas atacantes e a abertura e exploração de brechas que redundarão no desequilíbrio de seu dispositivo. O uso de uma massa de blindados se mostrou essencial nas principais batalhas de alta intensidade do século 20. E não é diferente agora, no momento em que escrevo este artigo, quando as forças ucranianas iniciam uma operação ofensiva com o objetivo de tentar expulsar o invasor russo de seu território.

Lançar-se contra uma posição fortificada, como é o caso da posição defensiva russa, com trabalhos de organização do terreno realizados durante meses, na presença de obstáculos, campo de minas, setores de tiro delimitados, tiros de artilharia amarrados, itinerários de contra-ataques definidos e ações dinâmicas de defesa treinadas, em um ambiente em que o defensor possui meios de inteligência de sinais e de imagens que lhe permitem ampla consciência situacional, não é, por óbvio, uma tarefa simples.

Os comandantes ucranianos conhecem perfeitamente essa dificuldade. E por isso sabem que não podem prescindir dos blindados. Essa é a razão pela qual o presidente da Ucrânia, Volodimyr Zelenski, tanto insistiu – e continua insistindo – junto a seus parceiros ocidentais, pelo envio de caros de combate e demais veículos blindados à Ucrânia.

Em atendimento a essas demandas, diversos países se mobilizaram. Os EUA prometeram o envio de seus carros M1 Abrams. Os britânicos enviaram seus Challenger II. Alemães, poloneses, noruegueses, finlandeses, espanhóis e portugueses enviaram seus Leopard, nas versões I e II. Além de diversos outros países europeus que ainda detinham equipamentos de origem soviética, e os estão também enviando aos ucranianos. Trata-se de um enorme esforço, visto que os próprios países europeus da OTAN, via de regra, não dispõem de grandes quantidades de CC. Isso os está obrigando a acelerar seus programas de aquisição desse tipo de equipamento, para repor seus próprios inventários e manter – e até mesmo ampliar – suas capacidades operacionais.

Assim, a Polônia firmou um acordo para comprar centenas de VBC M1A2 Abrams SEPv3, além de outros blindados da mesma família, dos Estados Unidos [5]. Na mesma direção, a Romênia divulgou a intenção de comprar 54 unidades do mesmo CC norte-americano [6].  Os alemães, por sua vez, anunciaram a compra de novos Leopard [7]. Os britânicos estão estudando a ampliação de sua frota. Os franceses, também encomendaram novos carros Leclerc para seu exército[8].

Como demonstram os exemplos acima, as potências europeias, alarmadas pela guerra no velho continente, estão investindo na ampliação e modernização de suas frotas de carros de combate. Isso sem falar nos diversos projetos de CC autônomos e semiautônomos, que já estão em fase de desenvolvimento nas principais potências militares do planeta.

4. Conclusão

A guerra, para Clausewitz, nada mais é do que “um ato de força para obrigar o inimigo a submeter-se a nossa vontade”. E, como a guerra em curso no território ucraniano nos lembra, suas características totais permanecem, pois ela é travada em alta intensidade, com toda a “violência, ódio e animosidade” que a compõe.

Travar e vencer essas guerras de alta intensidade, em nome de seus povos, é a missão primordial dos exércitos nacionais. Para isso, desde o tempo de paz, devem manter um poder de combate crível, composto das capacidades militares necessárias para, em um primeiro momento, dissuadir eventuais adversários de agirem contra suas nações. Caso tal dissuasão falhe, deverão atuar decisivamente para garantir a integridade e os interesses nacionais. Para tanto, deverão, obviamente, ter construído, desde o tempo de paz, as capacidades militares necessárias.

É nesse contexto que a manutenção de forças blindadas e mecanizadas potentes, adestradas e compostas por um núcleo de soldados profissionais adestrados e motivados, é essencial. Elas serão a espinha dorsal da Força Terrestre em operações.

Afinal, sempre que os exércitos entrarem em combate eles deverão possuir uma tropa capaz de manobrar para obter vantagem sobre o inimigo, vencê-lo e sobreviver ao encontro. Para isso sempre serão necessários meios de proteção, poder de fogo e mobilidade adequados. O principal material de emprego militar para se alcançar isso ainda é – e continuará sendo em um futuro previsível – o carro de combate.

 

ESTE ARTIGO FOI ORIGINALMENTE PUBLICADO NA REVISTA AÇÃO DE CHOQUE, EDIÇÃO 21. LEIA A REVISTA COMPLETA, COM MUITO BONS ARTIGOS SOBRE O COMBATE DE BLINDADOS: https://www.calameo.com/read/007489941ce703935a1c5 

Se você gosta do conteúdo do blog e pode colaborar com sua manutenção, junte-se àqueles que se tornaram apoiadores

clique aqui e saiba como!

 

[1] JP Harris, Men, Ideas and Tanks, British Military Thought and Armoured Forces, 1903-1939.

[2] Stuart Crawford, “Quality or Quantity? The Tank Conundrum”, UK Defence Journal, July 27, 2022, Quality or Quantity? The Tank Conundrum (ukdefencejournal.org.uk).

[3] https://www.rafael.co.il/worlds/land/trophy-aps/ Veja o vídeo do funcionamento do sistema em https://www.youtube.com/watch?v=KVma76ZQ2dQ&ab_channel=RAFAELAdvancedDefenseSystemsLtd

[4] https://apnews.com/article/technology-poland-district-of-columbia-business-5f1681545d1bbe41ea4fb40fe719b21e

[5] https://www.romania-insider.com/romania-abrams-tanks-purchase-2023

[6] https://www.reuters.com/world/europe/germany-aims-buy-18-leopard-2-tanks-545-mln-euros-source-2023-05-12/

[7] https://ukdefencejournal.org.uk/britain-considering-expanding-tank-fleet/

[8] https://www.thedefensepost.com/2023/01/16/france-leclerc-battle-tanks/ 

REFERÊNCIAS

CLAUSEWITZ, Carl Von. Da guerra. Disponível em https://www.amigosdamarinha.com.br/wp-content/uploads/2018/04/Da-Guerra-Carl-Von-Clausewitz.pdf Acesso em 27 Jun 2023

CRAWFORD, Stuart. The age of the tank is not yet over. Disponível em https://ukdefencejournal.org.uk/the-age-of-the-tank-is-not-yet-over/ Acesso em 27 Jun 2023

GUTIERREZ, Roberto. O futuro dos Tanques. Revista Ejercitos. Disponível em https://www.revistaejercitos.com/2018/11/11/el-porvenir-de-los-carros-de-combate/ Acesso em 27 Jun 2023

HENKIN, Yagil. The “Big Three” Revisited. Initial Lessons from 200 Days of War in Ukraine. Disponível em https://www.usmcu.edu/Portals/218/EXP_Henkin_BigThreeRevisited__PDF.pdf Acesso em 27 Jun 2023

MATEOS, Francisco. Sistemas de proteção ativa. Revista Ejercitos. Disponível em https://www.revistaejercitos.com/2018/09/16/sistemas-de-proteccion-activa/ Acesso em 27 Jun 2023

 

 




Seiscentos dias de guerra na Ucrânia

Hoje, segunda-feira, 16 de outubro de 2023, completam-se seiscentos dias da invasão russa à Ucrânia. Os combates entre ucranianos e russos continuam a acontecer de forma feroz na planície sul da Ucrânia e no leste do país. Os bombardeios russos se mantêm impiedosos, atingindo alvos de forma indiscriminada em todo o território ucraniano. Mas, a opinião pública mundial está concentrada em outra tragédia: a guerra entre Israel e o grupo terrorista Hamas.

Para os ucranianos, que veem sua contraofensiva obter resultados muito mais modestos do que o esperado pelos políticos e pela opinião pública ocidental, que apoia o esforço de guerra ucraniano e está ávida por boas notícias do campo de batalha, a explosão da violência na Terra Santa foi mais uma má notícia. O esforço de guerra ucraniano, totalmente dependente do apoio financeiro e material dos EUA e de seus aliados europeus, agora tem um competidor a dividir as atenções e recursos: o esforço de guerra israelense.

Muitas coisas surpreendentes aconteceram nos últimos seiscentos dias. A primeira delas, é termos chegado a esta data com a Ucrânia ainda combatendo. Quando, em 24 de fevereiro do ano passado, os russos invadiram o território internacionalmente reconhecido da Ucrânia, poucos poderiam prever que a resiliência das forças armadas e do povo ucraniano pudesse nos trazer à situação atual, de seiscentos dias de resistência. Afinal, tratava-se de um ataque em quatro direções estratégicas, duas delas tendo a capital, Kiev, como objetivo, feito por aquele que é considerado o segundo mais poderoso exército do mundo. A Ucrânia era presidida por um político inexperiente, em primeiro mandato, mal avaliado nas pesquisas, que, nos cálculos russos, não tinha condições de fazer face ao desafio e provavelmente fugiria do país. Para o presidente Putin e seu entorno, em duas ou três semanas, no máximo, o exército ucraniano seria batido e seria instalado no palácio presidencial de Kiev um novo governo, chefiado por um líder amigável aos russos, no estilo da vizinha Belarus e do seu eterno presidente Lukashenko.

Inscreva-se no canal Geopolítica do Paulo Filho, no Telegram, e receba notificações diárias sobre assuntos estratégicos e geopolíticos!


Como se sabe, nada disso aconteceu. O exército russo apresentou falhas de planejamento, liderança e execução das operações militares que eram inesperadas em razão de sua fama. O exército ucraniano, por sua vez, bem liderado, bem treinado e usando uma estratégia inteligente, além de táticas, técnicas e procedimentos de combate muito eficientes, conseguiu resistir ao ataque inicial russo, ganhando o tempo necessário para que o indispensável apoio internacional e financeiro começasse a chegar. A liderança política ucraniana, por sua vez, surpreendeu. O presidente Zelensky não fugiu, como esperavam os russos. Pelo contrário: fez o que se espera de um líder político de um país em guerra: galvanizou a vontade de lutar de seu povo, reunindo os apoios internos necessários ao esforço de guerra, ao mesmo tempo em que iniciou uma incessante e bem-sucedida campanha internacional, angariando apoios materiais e financeiros que já somam cifras da ordem de dezenas de bilhões de dólares.

A segunda surpresa foi o fortalecimento da OTAN. Há seiscentos dias, ninguém poderia prever que hoje a Finlândia seria o 31º membro da aliança atlântica, ou que a Suécia estaria às portas de se tornar o 32º. Os dois países renunciaram a políticas de neutralidade longevas e decidiram buscar abrigo no guarda-chuvas dissuasório da OTAN, em uma reação ao expansionismo da Rússia, país contra o qual os dois Estados nórdicos já guerrearam no passado. A resposta praticamente uníssona da Aliança é a antítese do que foi expresso há menos de quatro anos pelo presidente da França, Emmanuel Macron, que afirmou literalmente que a OTAN estava em morte cerebral, no dia 07 de novembro de 2019. O reavivamento da ameaça da guerra contra um inimigo comum foi responsável pela saída da Aliança do estado vegetativo em que se encontrava, de acordo com diagnóstico feito pelo líder francês.

A terceira constatação surpreendente foi a da maior liberdade de ação e autonomia do grupo de países que passou a receber a genérica denominação de “Sul Global”. Países africanos, latino-americanos, do grande Oriente Médio, do Sul e do sudeste asiático, com especial destaque para China e Índia, foram diretamente responsáveis por evitar que as sanções econômicas sem precedentes impostas pelos Estados Unidos, pela Europa e seus principais aliados levassem a Rússia ao colapso econômico. Afinal, se quarenta países sancionam a Rússia, cerca de 2/3 da população do mundo vivem em Estados que não o fazem.

Isso não significa que esses países apoiem a invasão russa. Em março do ano passado, em sessão de emergência da Assembleia Geral das Nações Unidas, 141 nações votaram a favor de uma resolução condenando a agressão da Rússia contra a Ucrânia, 35 abstiveram-se e apenas cinco votaram contra. No entanto, para muitos, esta é uma “guerra europeia”, que não lhes diz respeito, embora sofram as consequências, especialmente nos campos da segurança alimentar e energética. Isso foi expresso de maneira enfática pelo Ministro das Relações Exteriores da Índia, Subrahmanyam Jaishankar, ao afirmar que a Europa “pensa que os problemas da Europa são os problemas do mundo, mas que os problemas do mundo não são os problemas da Europa”. A conclusão mais evidente é a de que, se os Estados Unidos e a Europa não conseguiram levar tantos países a concordarem com suas políticas retaliatórias em relação à Rússia, é porque sua influência e poder globais estão a enfraquecer. Isso reflete um momento de mudanças na arquitetura global de poder, com profundas implicações nas relações entre os Estados.

Confira os livros que eu indico na Amazon. Ao comprar qualquer produto por lá entrando por esse link, você estará contribuindo com o Blog!

As três constatações acima são apenas algumas das que podem ser destacadas dentre tantas surpresas e reviravoltas da política internacional nesses seiscentos dias. Outras devem continuar a surgir, uma vez que, infelizmente, o flagelo da guerra parece não estar próximo do fim nos campos de batalha da Ucrânia.

Os russos e os ucranianos estão atualmente se enfrentando em uma feroz guerra de atrito, com a presente ofensiva ucraniana já chegando a seu ponto culminante e com o período chuvoso e de inverno a transformar o campo de batalha em um imenso lamaçal, que estabilizará as operações nos próximos meses. A guerra, portanto, continuará a cobrar seu enorme preço em vidas humanas e destruição.

A essa situação se some a deflagração da guerra entre Israel e Hamas, apenas no início, mas que, se vislumbra, também se estenderá por um longo período, com todo seu potencial de gerar ainda mais instabilidade no sistema internacional.

Os dois conflitos, separados geograficamente, estão interligados. Como dito no início deste texto, a guerra na Terra Santa tende a beneficiar a Rússia, embora os EUA e seus aliados digam que o apoio a Israel não afetará o apoio à Ucrânia. Mas, repercussões como uma possível crise no abastecimento de petróleo, em uma eventual escalada do conflito, podem ter consequências importantes no Teatro de Operações ucraniano. Isso sem falar nas surpresas e repercussões imprevistas, que assim como no conflito europeu, podem surgir da guerra na Faixa de Gaza.

As guerras em curso afetam terrível e profundamente as pessoas das áreas conflagradas, mas não deixarão ilesos os habitantes dos demais países do globo. Todos já estão sendo indiretamente afetados. E as coisas, infelizmente, não parecem estar destinadas a melhorar no curto prazo.

Se você gosta do conteúdo do blog e pode colaborar com sua manutenção, junte-se àqueles que se tornaram apoiadores

clique aqui e saiba como!

 




Cáucaso em Transformação: Nagorno-Karabakh e suas Implicações Regionais

Em apenas dois dias, com rápidos movimentos de tropas apoiadas por fogos de artilharia, o exército do Azerbaijão retomou o controle sobre toda a região de Nagorno-Karabakh, forçando as lideranças da minoria armênia que controlavam aquele enclave montanhoso, localizado entre os territórios da Armênia e do Azerbaijão, a se renderem. Os azerbaijanos reconquistaram, assim, uma grande porção de territórios, que embora internacionalmente fossem reconhecidos como pertencentes ao Azerbaijão, na prática eram uma região autônoma mantida pelos separatistas, com apoio militar armênio, há cerca de três décadas, desde as guerras que se seguiram ao esfacelamento da antiga União Soviética.

Em 2020, foi travada uma guerra de seis semanas em que o Azerbaijão, fortemente apoiado pela Turquia, derrotou uma Armênia que reclamou não ter recebido o apoio que esperava de seus aliados russos. Como resultado, os azeris reconquistaram porções importantes do enclave, derrotando as forças separatistas e armênias, o que lhes permitiu cercar completamente a região.

As posições operacionalmente vantajosas conquistadas em 2020 permitiram que o Azerbaijão estrangulasse o fluxo logístico para Nagorno-Karabakh, em um cerco que se intensificou no final do ano passado e causou uma grave crise humanitária. O chamado “corredor Lachin”, por onde passa a principal via de transporte que liga o enclave à Armênia, e por intermédio dessa, ao resto do mundo, passou a ser rigorosamente controlado pelas tropas azerbaijanas, causando uma grave escassez de alimentos, medicamentos, produtos de higiene e combustível, o que redundou em uma grave crise humanitária na região.

Figura 1 – Corredor Lachin

Fonte – BBC

É importante destacar que o cessar-fogo de 2020, mediado pela Rússia, e cujo acordo estabeleceu a permanência de forças russas na região, como uma espécie de “tropas de paz”, estabelecia que era das forças russas a responsabilidade pelo controle do tráfego no corredor Lachin. Entretanto, os russos foram incapazes de impedir que o exército do Azerbaijão assumisse esse controle.

Esse é também um indício de que, para fazer valer sua vontade e reconquistar Nagorno-Karabakh em uma operação de apenas 48 horas, os azerbaijanos souberam escolher um momento que lhes favorecia. A guerra na Ucrânia atrai todos os esforços e atenções da Rússia. Assim, a “tropa de manutenção da paz” daquele país, que tinha por finalidade garantir o cessar-fogo acordado sob sua liderança após a guerra de 2020, foi incapaz de qualquer ação que impedisse a ofensiva do Azerbaijão. Houve, inclusive, baixas fatais dentre os militares russos que foram surpreendidos pelo fogo cruzado durante a ofensiva.

A incapacidade da Rússia de impedir a ofensiva do Azerbaijão também pode ser considerada um indicador do declínio da influência russa no sul do Cáucaso. Afinal, a mediação da questão entre a Armênia e o Azerbaijão concedia aos russos uma posição de relevância geopolítica, que eles perdem com o desenlace da crise.

As consequências políticas dos acontecimentos também estão sendo fortemente sentidas em Yerevan, capital da Armênia. Centenas de manifestantes saíram às ruas, furiosos com o governo, em especial com o primeiro-ministro Nikol Pashinyan, acusado de trair os habitantes de etnia armênia de Arstakh, o nome pelo qual Nagorno-Karabakh é conhecido naquele país. Embora o presidente do Azerbaijão, Ilham Aliyev, tenha afirmado que os direitos dos habitantes da etnia armênia seriam garantidos, dadas as circunstâncias históricas, muitas dessas pessoas se opõem veementemente a ficar sob governo azerbaijano, o que cria mais um problema humanitário com os deslocados pela guerra. A solução mais óbvia para essas pessoas deverá ser fugir para a Armênia. Não se descarta o agravamento da crise política naquele país, inclusive com a queda do governo de Pashinyan.

Outros dois países da região têm interesse nos acontecimentos de Nagorno-Karabakh: Turquia e Irã. Os turcos comemoram o resultado do Azerbaijão, um aliado histórico. O lema “dois países, uma nação”, enfatizado pelo presidente da Turquia, Recep Erdogan, é anterior ao seu mandato, e relembra a origem étnica comum das duas nações. Além de acordos na área militar, também são importantes as relações econômicas entre os dois parceiros. Um aspecto muito relevante dessa relação é o energético. O Azerbaijão é o maior fornecedor de gás natural para a Turquia. Os dois países operam em conjunto o gasoduto Transanatólio, que leva gás do Azerbaijão para a Europa via Turquia. Há planos para expansão da rede de gasodutos, incluindo uma iniciativa de trazer gás do Turcomenistão, aproveitando a necessidade de gás europeia, que aumentou muito em razão da guerra na Ucrânia e dos consequentes embargos europeus ao gás russo.

Figura 2 – Gasodutos

Fonte JAM News

O Irã, por sua vez, que possui uma rivalidade histórica com o Azerbaijão, tem visto com grande desconfiança o estreitamento das relações entre aquele país e Israel. Por outro lado, a crescente influência turca no sul do Cáucaso também preocupa os iranianos. É provável que o país tente salvaguardar seus interesses geopolíticos na região com uma postura ainda mais assertiva.

Como se vê, o sul do Cáucaso vive um momento de mudanças geopolíticas. E, como a história ensina, muitas vezes esses momentos são acompanhados por enorme turbulência.

Se você gosta do conteúdo do blog e pode colaborar com sua manutenção, junte-se àqueles que se tornaram apoiadores

clique aqui e saiba como!




Estados Unidos, Japão e Coreia do Sul estabelecem os Princípios de Camp David

A reunião de cúpula que reuniu os líderes de EUA, Coreia do Sul e do Japão no último dia 18 de agosto, em Camp David, nos Estados Unidos, merece atenção. O mundo vive tempos de evidente acirramento das tensões geopolíticas e os três líderes tentam, ao aproximar ainda mais seus países, ganhar algumas vantagens estratégicas para os desafios que sabem que estão por vir, especialmente no contexto da disputa em curso entre EUA e China, que tem na região do Indo-Pacífico seu principal palco.

Inicialmente, é interessante destacar que os acordos trilaterais, divulgados ao término da reunião, só puderam acontecer porque Japão e Coreia do Sul têm conseguido uma maior aproximação e alinhamento sob os atuais governos de Fumio Kishida e Yoon Suk-yeol. As desconfianças nas relações entre os dois países são históricas, remontando as feridas da ocupação japonesa da península da Coreia, entre 1910 e 1945. Mas, as tensões geopolíticas do momento atual parecem ser de tal ordem desafiadoras que os problemas do passado estão sendo deixados de lado em nome de um maior entendimento.

Afinal, não faltam desafios geopolíticos comuns a japoneses, sul-coreanos e norte-americanos no Indo-Pacífico. A Coreia do Norte é o primeiro deles. Ainda formalmente em guerra com a Coreia do Sul, detentora de armas nucleares, com uma retórica agressiva e desencadeando frequentes testes balísticos e exercícios de tiro, a ditadura de Kim Jong-un volta e meia a causa tensões, inclusive no Japão, onde populações já foram orientadas a procurar abrigo em razão de mísseis norte-coreanos voando em trajetórias potencialmente perigosas.

Os desafios impostos pela China evidentemente também estão no centro das preocupações geopolíticas dos três países. A questão de Taiwan, a maior assertividade chinesa nas disputas no Mar do Sul da China, a reação da China à implementação dos sistemas de defesa antimísseis THAAD pela Coreia, que resultou em retaliações econômicas chinesas contra os coreanos, e a disputa torno das ilhas Senkaku, que os chineses consideram suas e são hoje controladas pelo Japão são alguns exemplos questões sensíveis.

Neste cenário é que foram divulgados os “Princípios de Camp David” (íntegra aqui), que nortearão a ação trilateral. Do texto, destaco os seguintes pontos:

  1. Os três países se comprometem a promover um Indo-Pacífico livre e aberto com base no respeito ao direito internacional, normas compartilhadas e valores comuns. Declaram se opor fortemente “a qualquer tentativa unilateral de mudar o status quo pela força ou coerção”. Nesse trecho há um recado implícito à China em relação a Taiwan, na oposição à mudança do status quo, ou seja, independência de facto de Taiwan, pela força.
  2. Afirmam o compromisso de desnuclearizar a Coreia do Norte. Apoiam uma Península coreana “unificada e livre”. Trata-se de um desafio complexo, uma vez que a Coreia do Norte não renunciará a seu arsenal nuclear enquanto for governada pela dinastia dos Kim.
  3. Fazem referência ao compromisso com boas práticas econômicas, à cooperação na área tecnológica e a compromissos com a busca de soluções para os problemas relacionados às mudanças climáticas.
  4. Em outra mensagem implícita, dessa vez à Rússia e à guerra na Ucrânia, reafirmam o compromisso com a Carta da ONU, especialmente no que se refere à manutenção da soberania e da integridade territorial dos Estados, bem como com a solução pacífica de controvérsias.
  5. Afirmam que o encontro inaugura um novo capítulo no relacionamento entre os três Estados, que passarão a atuar no Indo-Pacífico “como se fossem um só”.

Fora da declaração oficial, mas em entrevistas, foram reveladas as intenções realizar reuniões de cúpula e exercícios militares anualmente, impulsionar mecanismos de comunicação entre os três países e estabelecer uma linha direta para resolução de crises regionais.

Não se trata, portanto, da criação formal de uma aliança militar, fato que certamente geraria enorme oposição de chineses, russos e norte-coreanos. Mas é, sem dúvida, mais uma iniciativa, que se soma ao QUAD e à AUKUS na clara estratégia norte-americana de construção de uma arquitetura de contenção da China no Indo-Pacífico.

Se você gosta do conteúdo do blog e pode colaborar com sua manutenção, junte-se àqueles que se tornaram apoiadores

clique aqui e saiba como!