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Para onde vai a China de Xi Jinping?

Encerrado o 20º Congresso do Partido Comunista da China, o que era esperado aconteceu: Xi Jinping foi confirmado para um inédito terceiro mandato como Presidente da República, acumulando os cargos de Secretário-Geral do Partido e Presidente do Comitê Central Militar. Xi ficará no poder por mais, no mínimo, 5 anos. Será o líder, depois de Mao Zedong, que por mais tempo liderará a China comunista.

O êxito de Xi Jinping no congresso foi completo. Ao mesmo tempo que assegurou sua permanência no poder, configurou as mais importantes instâncias decisórias do partido – e consequentemente do próprio Estado chinês – à sua imagem e semelhança.

Xi passa a ser o líder mais poderoso desde Mao Zedong. Mao era chamado de “o grande timoneiro”, ou simplesmente de “o líder”. Esses títulos já não eram mais aplicados aos presidentes chineses, desde Deng Xiaoping. Mas o culto à personalidade retornou com força. Não é incomum encontrar referências a Xi como “o líder do povo”, “núcleo do partido”, ou outros títulos dessa natureza.

Conheça a aula sobre o futuro da China de Xi Jinping

Paulatinamente, ao longo dos seus dez primeiros anos no poder, Xi Jinping foi modificando o estilo de liderança colegiada de seus antecessores, especialmente de Hu Jintao, para um estilo centralizador, no qual ele passou a ter a palavra final sobre praticamente todos os assuntos relevantes. Xi afastou as possíveis dissidências e lideranças que lhe pudessem fazer sombra. Li Keqiang, Primeiro-Ministro e chefe do governo, e Wang Yang, membro do Comitê Permanente do Politburo, instância máxima de decisão do Partido, foram afastados do poder na eleição realizada no 20º Congresso. Isso aconteceu mesmo sem nenhum dos dois ter completado a idade de 68 anos, que por uma regra não escrita, balizaria a idade da aposentadoria dos próceres do partido. Na direção contrária, os líderes leais a Xi foram mantidos, como Zhang Youxia, do Comitê Central Militar, já com 72 anos, ou promovidos, como Li Qiang, secretário do partido em Xangai, que passará a ocupar a posição que pertencia a Keqiang. Li Qiang é conhecido por implantar o duro lockdown da COVID-19 em Xangai, que trouxe repercussões bastante negativas na economia. Sua promoção mostra que a lealdade a Xi importa mais do que a competência na governança econômica.

Houve ainda o episódio da retirada de ex-presidente Hu Jintao do plenário do Congresso, visivelmente contra sua própria vontade, em meio aos trabalhos e em frente às câmeras da imprensa de todo o mundo. Especula-se que Hu estaria insatisfeito com o afastamento das lideranças que lhe eram próximas e, embora o episódio não tenha sido bem explicado, a forma com que Hu foi retirado do plenário deixou claro para todos na China – e no mundo – que há apenas uma liderança no Partido Comunista e no país: Xi Jinping.

Ao mesmo tempo em que concentra o poder político, Xi Jinping vai alterando os rumos do país na economia, com a iniciativa privada cada vez mais submetida ao controle do Estado. O progresso econômico chinês, obtido nos últimos 44 anos, desde o início das reformas e da abertura do país, por Deng Xiaoping, e mantida por Jiang Zemin e Hu Jintao, foi obtido dentro das regras de uma ordem internacional liderada pelos Estados Unidos. Xi acredita que está na hora de incentivar um desenvolvimento sob novas bases, em uma ordem ditada conforme os interesses chineses. Na prática, significa que os ditames políticos serão considerados pelo governo chinês prioritariamente em relação às universais leis econômicas da oferta e da demanda. Um bom exemplo é a ênfase que o governo chinês passou a dar ao mercado interno, buscando uma autossuficiência que lhe permita, por exemplo, enfrentar embargos econômicos como os que a guerra da Ucrânia causou à Rússia. Nesse sentido, em seu discurso no 20º Congresso, Xi enfatizou a necessidade de autonomia tecnológica para que o país consiga manter seu desenvolvimento a despeito de embargos comerciais, como os atualmente impostos pelos EUA à China na área de semicondutores e chips de alta tecnologia.

Os relatórios dos secretários-gerais do Partido Comunista da China nos congressos do partido são documentos definidores do futuro do partido e, em consequência, da China. Nesse sentido, vale a pena prestar atenção na quantidade de vezes que certos termos apareceram no texto lido por Xi Jinping. A expressão “segurança nacional”, por exemplo, apareceu apenas uma vez no relatório de 1992; 4 vezes em 2012; 18 vezes em 2017 e 27 vezes em 2022. A expressão em chinês para “Estado poderoso” (qiangguo) aparece 23 vezes no documento deste ano, contra 19 em 2017 e apenas 2 vezes em 2002. É evidente que o partido está muito mais preocupado com a segurança nacional.

Nesse sentido, Xi Jinping coloca a questão de Taiwan com clareza. A reunificação completa da China é, para o Partido Comunista, uma “missão histórica e um compromisso inabalável”. A reunificação pacífica é preferível, mas Xi não abrirá mão de usar o poder militar para atingir esse objetivo.

Ao término do congresso, houve um evento significativo, que ajuda a compreender o momento que a China vive e dá pistas sobre o futuro. Xi Jinping liderou uma visita dos seis membros que com ele compõem o Comitê Permanente do Politburo a Yan’an, na província de Shaanxi. Trata-se do local onde, em 1945, Mao Zedong liderou o 7º Congresso do Partido Comunista da China, no qual Mao consolidou o controle do Partido e estabeleceu seu próprio pensamento como dogma. Em suas declarações sobre a visita, Xi destacou que a conquista da unidade política do PCC na era Yan’an permitiu que ele superasse inimigos muito mais fortes, numa clara referência aos desafios que ele lista como sendo os atuais. Xi declarou ainda: “Eu vim aqui para manifestar que a nova liderança central herdará e levará adiante as gloriosas tradições e os bons estilos de trabalho do Partido cultivados durante o Período Yan’an, e levarão adiante o Espírito de Yan’an”. Ao identificar a nova liderança com o “espírito Yan’an”, Xi está enquadrando sua recente consolidação de poder como motivada pelo imperativo de unir o Partido em face de tempos desafiadores. Mais do que isso, remete sua liderança à força simbólica de Mao Zedong.

Como se vê, a China de Xi Jinping caminha para uma maior centralização do poder político na figura de seu líder supremo, mais intervencionismo estatal na economia e mais nacionalismo e impetuosidade nas relações internacionais. Tudo isso embasado em uma espécie de renascimento ideológico e fortalecimento das crenças e do ideário original do Partido Comunista. Essa postura vai gerar transformações nos cenários regional e internacional, com reflexos para a segurança e comércio internacionais. Sendo a China o ator geopolítico que é, haverá reflexos em todos os cantos do globo.

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A nova Estratégia de Segurança dos EUA

Os Estados Unidos divulgaram a sua nova Estratégia Nacional de Segurança no último dia 12 de outubro. O documento desvela a maneira como os norte-americanos enxergam o mundo e define os princípios que guiarão suas ações estratégicas para conformá-lo de forma que, no futuro, esteja alinhado aos seus interesses e princípios.

O mundo, de acordo com o diagnóstico do documento, está atravessando um momento crucial, sendo os próximos anos decisivos para a definição do futuro dos EUA e de todo o planeta. Nessa circunstância, os Estados Unidos teriam dois grandes desafios estratégicos: o primeiro seria a competição com a China, cujo resultado definiria a ordem internacional pós Guerra Fria. O segundo seria o enfrentamento dos desafios compartilhados globalmente, quais sejam, as mudanças climáticas, a insegurança alimentar, as doenças pandêmicas, o terrorismo, a escassez energética e a inflação. Por serem desafios compartilhados, esses últimos exigiriam a cooperação entre os países. Entretanto, essa cooperação estaria sendo dificultada pelo próprio ambiente de competição geopolítica, que alimentaria nacionalismos e populismos.

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No documento, os EUA se posicionam como líderes das democracias do mundo no enfrentamento das autocracias. A Rússia é apresentada como uma ameaça imediata à ordem internacional aberta e livre, pelo desrespeito à lei internacional e pela invasão à Ucrânia. Os russos são acusados de atuar contra os interesses norte-americanos em várias partes do mundo e, inclusive, dentro dos EUA. O apoio decidido à Ucrânia é reafirmado, bem como a intenção de conter a Rússia em todos os campos do poder.

A China, entretanto, é apresentada como o verdadeiro competidor dos EUA, uma vez que teria a intenção de reconfigurar a ordem internacional em seu próprio benefício e, consequentemente, em desfavor dos norte-americanos.

Ao afirmar que pretendem competir com a China, os EUA asseveram, dentre outras coisas, que irão apoiar seus aliados no Indo-Pacífico para que tomem suas decisões de forma livre da coerção chinesa. Também dizem que irão responsabilizar Pequim por “genocídio e crimes contra a humanidade em Xinjiang, violação dos direitos humanos no Tibet e desmantelamento da autonomia e das liberdades em Hong Kong”.

Em relação a Taiwan, os norte-americanos afirmam que a paz e a estabilidade do Estreito de Taiwan são críticas para a segurança da região e do mundo. Afirmam continuar apoiando a política de “uma só China”, não apoiando a independência da ilha. Dizem ainda ser contrários a que qualquer dos lados promova tentativas de mudança no “status quo” da região. Entretanto, de acordo com a lei que rege as relações do país com Taiwan, manterão o apoio militar para que Taiwan esteja em condições de se defender de qualquer agressão chinesa.

A crise climática recebe destaque, sendo apresentada como o “desafio existencial do nosso tempo”. Afinal, o aquecimento do planeta colocaria em perigo os norte-americanos e as pessoas de todo o mundo, arriscando os suprimentos de comida e água, a saúde pública, a infraestrutura e própria segurança nacional norte-americana. O documento afirma ainda que sem uma ação global imediata para reduzir as emissões, cientistas afirmam que em breve serão excedidos os 1,5ºC de aquecimento, o que ocasionaria o aumento do nível do mar e uma perda catastrófica de biodiversidade.

Ao tratar da postura dos EUA em relação às regiões do mundo, os EUA deixam clara sua opção pela Ásia, mais especificamente pela região do Indo-pacífico, considerada o epicentro da geopolítica no século 21. A aliança atlântica, entretanto, não é esquecida, e os EUA reafirmam seu compromisso com a OTAN e seus parceiros europeus. A América do Sul não é citada, sendo região englobada quando o documento se debruça sobre o Hemisfério Ocidental. Entretanto, os EUA falam em proteger a região da “interferência e coerção” que seriam praticadas por Rússia, China e Irã contra países da região. O Brasil não é citado no documento. Apenas a Amazônia, uma vez e superficialmente, para se falar na necessidade de preservação daquele bioma.

O documento deixa nítido o entendimento norte-americano de que, apesar da guerra na Ucrânia e das ameaças nucleares que ressurgiram com ela, o mundo caminha para uma nova disputa bipolar, entre EUA e China. Será, portanto, na China, que estarão a atenção e o foco da política exterior norte-americana.

Leia a Estratégia de Segurança:

Biden-Harris-Administrations-National-Security-Strategy-10.2022

Leia a Estratégia de Defesa

2022-NATIONAL-DEFENSE-STRATEGY-NPR-MDR

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O 20º Congresso do Partido Comunista chinês

No dia de hoje, domingo, 16 de outubro, o Partido Comunista Chinês inicia seu vigésimo congresso. Cerca de 2,3 mil delegados, representando os mais de 90 milhões de filiados, se reunirão no “Grande Salão do Povo”. Será um evento importantíssimo, que confirmará um inédito terceiro mandato para o presidente Xi Jinping, além de confirmá-lo nas outras duas posições que o caracterizam como líder supremo: Secretário-Geral do partido e Presidente da Comissão Militar Central. O congresso do partido tem entre suas finalidades elevar o moral dos seus integrantes, aumentando sua determinação e comprometimento, além de lembrá-los da necessidade de disciplina. Mas é claro que a reunião tem também objetivos formais:

  1. eleger os cerca de 370 membros do comitê central, dentre eles os 25 componentes do Politburo, dentre os quais os 7 (Xi Jinping incluído) que comporão o Comitê Permanente do Politburo, o ápice do poder no país;
  2. discutir, alterar e aprovar dois relatórios que serão lidos: o do Secretário Geral Xi Jinping e o do Comitê Central de Inspeção disciplinar; e
  3. revisar a Constituição do Partido Comunista Chinês.
  1. Na semana passada, os 358 membros do Comitê Central se reuniram por 4 dias em uma reunião plenária, onde se completou o longo processo de cerca de um ano de preparação para o congresso. Não há, portanto, espaço para surpresas. O evento que se inicia hoje é um espetáculo previamente coreografado e, na prática, tudo já foi decidido.
  2. A reunião será aberta pela leitura do relatório do Secretário Geral Xi Jinping. Este é um documento muito importante, que servirá de base para muitos outros nos próximos 5 anos. Espera-se que cerca de 1/3 do documento seja dedicado a questões ideológicas, com o “marxismo do século 21” que caracteriza o “Pensamento de Xi Jinping”. O relatório tem uma organização já definida, com 12 temas a serem desenvolvidos, em uma ordem já conhecida. Entretanto, será interessante prestar atenção à ênfase com a qual os assuntos serão tratados. No relatório de 2012, o assunto principal foi o combate à corrupção. Em 2017, Xi deu mais ênfase à desigualdade social, pobreza e questões rurais. Em 2022, espera-se encontrar temas como a “prosperidade comum”, segurança nacional, meio ambiente, e as Iniciativas de “Segurança Global” e de “Desenvolvimento Global”.
  3. O relatório do Comitê Central de Inspeção Disciplinar será importante dado que a disciplina partidária é um assunto muito caro a Xi Jinping e “falhas ideológicas” são vistas pelo presidente como traição ao partido. A Constituição do Partido Comunista Chinês é seu documento mais importante. No último congresso, o 19º, o “Pensamento de Xi Jinping sobre o socialismo com características chinesas para uma nova era” foi inserido na Constituição. É provável que neste congresso novas e importantes modificações sejam inseridas no documento.
  4. Um ponto sobre o qual as atenções estarão concentradas será a nova composição do Politburo e do seu comitê Permanente. Há uma regra de aposentadoria compulsória aos 68 anos – não aplicada ao caso de Xi Jinping, que está com 69 anos – mas que poderá será usada para tornar esses fóruns ainda mais alinhados a Xi Jinping, consolidando definitivamente seu poder. Quase todos os outros 6 membros do comitê permanente, inclusive o chefe do Conselho de Estado, Li Keqiang, com 67 anos, estão muito próximos de atingir a idade limite. Dois deles, Li Zhanshu (72 anos) e Han Zheng (68anos), na verdade já a superaram. A propósito, a continuidade ou não de Li Keqian no Comitê Permanente do Politburo servirá de indicação do quanto Xi Jinping foi exitoso no objetivo de controlar completamente o partido, uma vez que Keqian é oriundo de uma corrente importante, a Liga da Juventude Comunista, e exerce um contraponto a Xi Jinping no partido.

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O congresso do Partido Comunista, em sua 20ª edição, para além da importância que possui para o próprio país, ganhou destaque global em razão da importância que a China adquiriu no concerto das nações. Começa a atrair quase tanta atenção no Ocidente quanto as eleições norte-americanas. Como se viu, é bastante provável que dele saia um Xi Jinping fortalecido, que se perpetuará no poder. E, nessas condições, ele poderá se tornar um líder com ainda mais liberdade de ação para atuar com mais impulsão na cena internacional, o que aumentará a probabilidade de choques de interesse com os EUA e seus aliados em todo mundo, em especial na Região do Indo-Pacífico. Uma coisa é certa. A China sob a renovada liderança de Xi Jinping continuará desafiando a liderança global dos EUA e, com isso, as tensões que imperam na atual conjuntura internacional tendem a crescer.

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A ameaça nuclear de Putin

No discurso feito no último dia 21 de setembro, em que anunciou a “mobilização parcial” dos meios em pessoal e material para a guerra na Ucrânia, o presidente Putin ameaçou utilizar seu arsenal nuclear: “…gostaria de lembrar àqueles que fazem afirmações sobre a Rússia que o nosso país também dispõe de vários meios de destruição e que, em alguns casos, eles são mais modernos do que os dos países da Otan. Se a integridade territorial russa for ameaçada, utilizaremos todos os meios disponíveis para proteger a Rússia e o nosso povo.” Não é a primeira vez que Putin ou outras autoridades russas acenam com a carta nuclear desde o início da guerra. Em maio, o chanceler Sergey Lavrov, já havia afirmado que o perigo de uma escalada nuclear era “sério, real e não deveria ser subestimado”.

A frase de Putin foi dita no contexto da realização dos referendos que os russos e seus proxies promoveram em quatro províncias ucranianas que atualmente se encontram parcialmente ocupadas pelas tropas russas: Lugansk, Donetsk, Zaporzhizia e Kherson. O resultado do referendo, como era evidente, decidiu pela incorporação dos territórios à Rússia, o que já foi formalizado pelo governo russo.

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Uma vez anexadas, na narrativa engendrada por Putin, aquelas áreas passaram a ser Rússia, e suas populações, “povo russo”, mesmo que toda a comunidade internacional permaneça considerando-as solo e povo ucranianos.

Assim, a guerra, na narrativa russa, deixa de ser travada em solo ucraniano e passa a ser disputada em território da própria Rússia. O emprego de “todos os meios disponíveis” passa a ser legitimado pela narrativa da defesa do próprio território. O uso da arma nuclear pelos russos deixaria de ser uma ação ofensiva, uma vez que se tratava de uma invasão de um país soberano, para ser uma ação defensiva, a defesa de seu próprio território.

É evidente que a maior parte da comunidade internacional não aceitou a anexação. Mas, para Putin, isso não faz a menor diferença. A guerra claramente não saiu como ele previa e a contraofensiva ucraniana, que causa enormes perdas em pessoal e material às suas forças armadas, já o obrigou a mobilizar tropas pela primeira vez desde a Segunda Guerra Mundial, uma medida que vem se mostrando muito impopular na Rússia. Não conquistando os objetivos iniciais e vendo sua popularidade diminuir, Putin precisa pelo menos salvar as aparências, propósito a que a anexação das quatro províncias pode servir, pois seria uma situação que poderia ser apresentada aos cidadãos russos como uma vitória.

Mas, os ucranianos já demonstraram não estar dispostos a renunciar a seus territórios e uma paz que exigisse essa condição certamente seria recusada por Kiev. Caso a ofensiva ucraniana continue obtendo êxitos, teme-se que Putin, cada vez mais acuado pelos insucessos na guerra e pelas pressões internas, resolva fazer o impensável: apelar ao seu arsenal nuclear.

Caso tomasse essa decisão, Putin ultrapassaria seu Rubicão, provocando reações por parte dos EUA, da OTAN e da Ucrânia que podem não ser exatamente aquelas que ele prevê. O mais provável é que ele fizesse isso como uma demonstração de força e de disposição para escalar o conflito, lançando um artefato nuclear tático. Há várias formas de se definir esse tipo de armamento nuclear, mas, para simplificar, basta dizer que se trata de uma arma com menor alcance e menor poder explosivo, destinada a ser utilizada no próprio Teatro de Operações, muitas vezes na presença das tropas da própria força que a utiliza.

Também se especula que os russos a lançariam sobre o mar – poderia ser no Mar Negro, por exemplo – ou em alguma região rural, pouco habitada e relativamente isolada na Ucrânia que, não nos esqueçamos, é um país de grande extensão territorial. Os russos também poderiam lançar suas bombas sobre efetivos militares ucranianos, o que exigiria a utilização de várias armas ao mesmo tempo. Em um cenário ainda mais grave, as bombas poderiam ser utilizadas contra cidades ucranianas.

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A lógica russa por trás desse ataque seria o pressuposto – correto – de que os EUA e a OTAN não desejam escalar o conflito para se contrapor diretamente aos russos. Nessa linha de raciocínio, uma ação nuclear não ensejaria uma resposta nuclear, dada a mútua destruição assegurada de um conflito dessa natureza. Mas, ao lançar as bombas atômicas, Putin tentaria demonstrar que diferentemente dos ocidentais, não temeria essa escalada e que seria exatamente isso que estaria prestes a acontecer caso a Ucrânia não mudasse de rumo e aceitasse negociar uma paz nos termos russos. Seria o que se denomina “escalar para desescalar”: levar o conflito a um nível insuportável para obrigar a rendição do inimigo.

Ocorre que mesmo no cenário mais brando, da explosão sobre o mar ou em áreas desabitadas, causando relativamente poucas baixas, essa seria uma escalada no conflito que exigiria que os principais atores do sistema internacional se posicionassem, e eles o fariam, isolando ainda mais a Rússia.

Países que tem evitado posicionar-se contra a Rússia, em especial China e Índia, certamente desaprovariam vigorosamente a ação. Embora provavelmente continuassem a manter distância do conflito, evitando envolvimentos, e provavelmente pugnassem pela imediata negociação entre as partes, eles acabariam por aderir a novos embargos e sanções contra a Rússia, deixando o país presidido por Putin completamente isolado.

Já os EUA e a OTAN, poderiam reagir, em tese, de uma das seguintes formas:

  1. Contra-atacando o território russo com armas nucleares
  2. Atacando convencionalmente as forças russas na Ucrânia ou mesmo fora daquele território.
  3. Aumentando ainda mais o apoio à Ucrânia, fornecendo mais armamentos, de tipos ainda não disponibilizados, como mísseis de longo alcance, e recursos financeiros, além de assessoria militar e de inteligência.
  4. Pressionando a Ucrânia a resolver o conflito, dando à Rússia uma saída honrosa.

As hipóteses 1 e 2 mudariam fundamentalmente a natureza do conflito, uma vez que a OTAN e os EUA passariam a estar diretamente envolvidos. A hipótese 4 é politicamente inviável, dada a solidariedade e o apoio até aqui oferecidos à Ucrânia pelo Ocidente. Mais do que isso, significaria que a chantagem nuclear teve sucesso, um desdobramento que os EUA e a OTAN não podem admitir. Assim, considero as hipóteses 1 e 4 muito improváveis. A segunda hipótese, pouco provável, somente seria adotada caso o ataque nuclear russo à Ucrânia causasse muitas e insuportáveis baixas.

Dessa forma, creio que a terceira hipótese seja a que seria adotada, à qual se somaria a organização de embargos que isolariam quase completamente a Rússia do Sistema Internacional. O problema de se aumentar ainda mais o apoio à Ucrânia em armamento convencional, é que isso poderia estimular os russos a novos empregos de armas nucleares táticas, com alvos mais relevantes, levando o conflito a uma nova e mais perigosa escalada.

Potências nucleares já foram derrotadas em guerras convencionais. Os EUA, no Vietnã, e os próprios russos, no Afeganistão. Mas a situação que se apresenta na guerra da Ucrânia é inteiramente nova pois, pela primeira vez, desde 1945, um país que detém armamento nuclear admite empregá-lo contra um adversário que não possui o mesmo recurso. Isso leva a um questionamento. Nesta circunstância, uma potência nuclear pode ser derrotada?

Por considerar que não pode, é que Putin e os seus generais acenam com a possibilidade de usar a arma atômica. Os desdobramentos, caso isso aconteça, serão gravíssimos.

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A China comunica suas intenções em relação a Taiwan

Livros brancos são relatórios oficiais que têm a finalidade de apresentar assuntos complexos ao grande público, de uma forma acessível. Mais do que simplesmente relatar aquele assunto, um livro branco tem a finalidade de transmitir a filosofia que orienta o direcionamento daquela política pública. Quando trata de assuntos de Defesa, eles são uma das ferramentas que um Estado utiliza para comunicar seus objetivos políticos e estratégicos, de modo a delinear com clareza os seus conceitos de Segurança Nacional e os limites de sua atuação, tanto para os próprios cidadãos, quanto para a comunidade internacional.

Nesse sentido, foi com a finalidade de deixar claríssima a sua postura em relação a Taiwan que a República Popular da China acaba de divulgar seu livro branco intitulado “The Taiwan Question and China’s Reunification in the New Era”. Trata-se do terceiro documento do tipo. Os anteriores foram publicados em 1993 e 2000. A nova edição é divulgada em um momento especialmente sensível, após a visita da presidente da Câmara dos Representantes dos EUA e terceira na linha sucessória do governo norte-americano, deputada Nancy Pelosi, à ilha, fato que causou profunda contrariedade no governo chinês e elevou as tensões no Estreito de Taiwan ao nível mais alto desde a década de 1990.

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O livro branco é constituído de um preâmbulo, cinco capítulos e uma conclusão. A seguir, farei um resumo dos seus principais aspectos, certo de que o entendimento da compreensão oficial dos chineses acerca da questão taiwanesa é fundamental para todos aqueles que pretendem entender a China atual e a dinâmica de segurança naquela importante região do planeta.

Logo na primeira frase, o documento afirma que resolver a questão taiwanesa e completar a reunificação da China é aspiração de todos os “filhos e filhas da nação chinesa”, além de ser uma missão histórica do Partido Comunista chinês. O uso da expressão “filhos e filhas da nação” não é mero recurso estilístico. As palavras foram escolhidas para remeter ao sentimento patriótico: trata-se de uma aspiração da “mãe pátria”, o que eleva a questão ao nível máximo da nacionalidade, acima de quaisquer divergências políticas.

O primeiro capítulo traz uma longa exposição histórica, para concluir que o território taiwanês pertence à China desde a antiguidade e que há uma só China, fato que seria comprovado pela história e pelas leis internacionais.

O segundo capítulo trata dos esforços empreendidos pelo Partido Comunista chinês para reunificar a ilha ao continente. Destaca que isso teria se iniciado mesmo antes da conquista do poder, uma vez que desde sua fundação o partido teria definido o objetivo de livrar a ilha do domínio colonial imposto pelos japoneses desde a vitória na primeira guerra sino-japonesa, no final do século 19.

O documento destaca que o partido criou, em 1978, o conceito de “Um país, dois sistemas”, aplicando-o primeiro em Hong Kong e Macau, que no final do século 20 retornaram à soberania chinesa. A adoção desse conceito teria possibilitado o início de um novo capítulo nas relações entre os dois lados do Estreito de Taiwan, contribuindo para o aumento do comércio entre as duas partes, que passou de 46 milhões de dólares, em 1978, para 328,34 bilhões, em 2021. Há 21 anos que a China é o maior destino das exportações taiwanesas.

O terceiro capítulo afirma em seu título que o processo de reunificação da China é um processo que não pode ser interrompido. Neste ponto, o documento se volta para o chamado “século da humilhação”, período que vai de meados do século 19 até a vitória comunista na guerra civil, em 1949. Essa foi a época em que os impérios ocidentais, além de Rússia e Japão impuseram uma série de humilhações aos chineses. É a época das duas guerras do ópio e da exploração colonial de diversas áreas do território chinês.

Ao relembrar esse período especialmente sensível aos chineses, o documento afirma que somente realizando uma completa reunificação, o povo chinês, em ambos os lados do Estreito, poderá deixar no passado a sombra da guerra civil e criar e desfrutar de uma paz duradoura. A reunificação seria a única maneira de evitar o risco de Taiwan ser invadida e ocupada novamente por estrangeiros e de frustrar as tentativas de forças externas para conter a China.

O partido atualmente no poder em Taiwan, o DPP (Partido Progressista Democrático) é acusado de colocar em perigo a paz e a estabilidade no Estreito de Taiwan, uma vez que estaria promovendo políticas independentistas, em “conluio” com forças externas

Essas forças externas (os EUA são citados diretamente) estariam interferindo e seriam um obstáculo à reunificação da China. A questão taiwanesa é colocada como uma questão interna da China e a interferência dos EUA teria a intenção encoberta de conter a China, minando seu desenvolvimento e progresso.

O quarto capítulo fala sobre a “reunificação nacional em uma nova era”. Nele, os chineses propagandeiam como se daria a reunificação. Afirmam que a solução pacífica é a “primeira opção” do Partido Comunista Chinês, sendo a que melhor atende aos interesses em ambos os lados do Estreito. Aos taiwaneses seria concedido muita autonomia, baseada no conceito de “um país dois sistemas”.

Os chineses afirmam, ainda, que o separatismo e a interferência estrangeira levarão a ilha ao abismo e ao desastre. Neste ponto, o documento, diferentemente das versões de 1993 e 2000, afirma que a China, apesar de preferir a solução pacífica, não abrirá mão de utilizar a força se for necessário. E faz um alerta aos EUA, dizendo que algumas forças naquele país estão incitando grupos taiwaneses à agitação e usando Taiwan como um peão contra a China. Isso comprometeria a paz e estabilidade no Estreito de Taiwan, obstruindo os esforços do governo chinês para a reunificação pacífica, e minando o desenvolvimento saudável e estável das relações sino-americanas. Afirmam que se não for controlada, a tensão continuará a aumentar em todo o Estreito. Segundo os chineses, os EUA devem respeitar o princípio de uma só China, lidar com questões relacionadas com Taiwan de forma prudente e adequada, manter seus compromissos anteriores e parar de apoiar os separatistas de Taiwan.

No quinto e último capítulo, os chineses listam o que chamam de “brilhantes perspectivas” para a reunificação pacífica. Reafirmam que os taiwaneses terão um grande espaço para se desenvolver, que terão seus direitos e interesses protegidos e que a reunificação será benéfica para toda a região do Indo-Pacífico e fará com que a China seja ainda mais forte e próspera, aumentando sua influência internacional.

Na conclusão do livro branco os chineses sintetizam a mensagem que querem passar ao mundo através do documento: a reunificação precisa ser, e será, efetivada.

A divulgação deste documento, neste momento, é significativa também porque é uma resposta chinesa a uma crescente assertividade norte-americana na região do Indo-Pacífico. Além disso, os chineses travam uma batalha pelos corações e mentes dos taiwaneses. As ideias separatistas ganham corpo naquela sociedade. Em recentes pesquisas, o percentual de cidadãos que deseja a reunificação imediata atingiu os menores índices da série histórica[1], sendo a opção de apenas 1,3% da população.

A Guerra na Ucrânia tem um papel no retorno desse tema às manchetes internacionais. Afinal, a guerra como instrumento para conquista de territórios, que se julgava ultrapassada, especialmente dentre as grandes potências, voltou a se mostrar possível. E essa opção, se antes não era explicitada pelos chineses, agora passou a ser claramente apresentada como possível, em um documento oficial.

The Taiwan Question and China’s Reunification in the New Era

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Um mundo mais perigoso

Mesmo o observador mais desatento já percebeu que algo está fora de ordem no mundo. A Europa caminha para completar seis meses assistindo a uma guerra de alta intensidade em seu território. Mísseis chineses cruzam o espaço aéreo de Taiwan para atingir mares da Zona Econômica Exclusiva do Japão. Foguetes palestinos cruzam-se no ar com mísseis israelenses, de forma tristemente rotineira. Autoridades iranianas dizem que, embora não desejem, poderiam construir a bomba atômica, se quisessem, a qualquer momento. No Cáucaso, azerbaijanos e armênios rompem o frágil cessar-fogo na região de Nagorno Karabakh. Tudo isso em meio ao agravamento das consequências das mudanças climáticas, da gravíssima crise alimentar na África, da resiliência da pandemia da covid e do surgimento de uma possível nova pandemia, da varíola dos macacos.

A solução para tantas controvérsias internacionais e desafios mundiais, na ordem internacional pós-guerra fria, teria de passar obrigatoriamente por uma ação concertada dos Estados, tendo a Organização das Nações Unidas (ONU) como centro de gravidade. Mas não é isso o que se vê. A ONU, modelada pelos vencedores da 2.ª Guerra Mundial, está sendo incapaz de fazer face aos desafios que se impõem. Seu Conselho de Segurança, instância mais importante do organismo e local em que tais assuntos são prioritariamente tratados, está bloqueado, com a Rússia exercendo constantemente seu poder de veto.

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Toda essa instabilidade não ocorre por acaso. Estamos a assistir às dores do fim de uma ordem internacional estabelecida no pós-guerra fria e o surgimento de outra, ainda lutando para emergir; um momento em que as velhas certezas foram postas em dúvida e as novas ainda não surgiram, em que as instâncias de poder, os freios e contrapesos que valiam antes, perdem aceleradamente sua relevância. Percebendo o momento, os principais Estados do sistema internacional se movimentam na defesa do que consideram ser seus interesses vitais.

A invasão russa à Ucrânia, flagrantemente ilegal sob o prisma do Direito Internacional, é a culminância de um processo de décadas, para o qual Vladimir Putin vinha preparando seu país há alguns anos. Em 2007, numa conferência na Alemanha, Putin declarou que o mundo testemunhava um “quase incondicional hiperuso da força nas relações internacionais, força que está mergulhando o mundo num abismo de permanente conflito”. Ele se referia, obviamente, aos EUA. Um ano depois dessa declaração, os EUA declararam que Geórgia e Ucrânia, dois antigos Estados da União Soviética, poderiam se unir à Otan. Para Putin, era mais um exemplo deste “hiperuso da força”. Ato contínuo, a Rússia invadiu a Geórgia. Em 2014, aconteceu o que Michael Mandelbaum, no livro The Four Ages of American Foreign Policy (Ed. Oxford, 2022), considera ser o episódio que é, ao mesmo tempo, símbolo e causa do fim da era pós-guerra fria: a anexação da Crimeia e a guerra civil provocada pelos russos na Ucrânia. Os russos procuravam mudar o status quo do continente, desafiando, em última análise, o país que era seu garantidor: os EUA. Como obteve êxito em 2014, Putin se sentiu confiante para a invasão de 2022.

Percebendo que sua segurança está em risco, os países europeus resolveram prestar atenção a uma verdade que foi bem sintetizada numa máxima atribuída frequentemente a Rui Barbosa: “Uma nação que confia em seus direitos, em vez de confiar em seus soldados, engana-se a si mesma e prepara a sua própria queda”.

Desde que a invasão da Ucrânia pela Rússia começou, em fevereiro, os Estados-membros da União Europeia anunciaram aumentos nos gastos com defesa no valor de cerca de € 200 bilhões. Isso representa uma enorme mudança. Entre 1999 e 2021, os gastos combinados do bloco em defesa haviam aumentado apenas 20%, em comparação com 66% dos EUA, 292% da Rússia e 592% da China.

Deste modo, a Alemanha anunciou um vigoroso aumento dos investimentos em defesa, a começar por uma injeção de € 100 bilhões. A Polônia decidiu aumentar seus gastos para 3% do PIB, anunciando a aquisição de centenas de veículos blindados e aeronaves. A França anunciou um aumento de € 3 bilhões em seus investimentos, para citar apenas alguns exemplos.

O rearmamento dos países europeus ocorre de forma simultânea ao aumento das tensões na Ásia, onde, no Estreito de Taiwan, se desenrola a maior crise desde a década de 1990 e, no Japão, toma vulto um movimento para a modificação da Constituição pacifista e reestruturação das Forças Armadas. Ao mesmo tempo, no Oriente Médio, o Irã se aproxima da fabricação da arma atômica.

A solução para a diminuição de tantas tensões passaria, necessariamente, por uma revisão das instâncias de interlocução entre os países, especialmente da mais importante delas, a ONU. Urge modernizar suas estruturas, tornando-a mais representativa da ordem internacional atual, para que ela possa, de fato, ser eficaz em seu propósito primeiro: manter a paz e a segurança internacionais.

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A conversa entre Biden e Xi Jinping sobre Taiwan

No último dia 19 de julho, o jornal britânico Financial Times divulgou, citando “seis fontes familiarizadas com o assunto”, que a deputada Nancy Pelosi, do Partido Democrata, presidente da Câmara dos Representantes, o equivalente à Câmara dos Deputados no Brasil, terceira autoridade na linha sucessória da presidência dos EUA, planejava viajar à Taiwan. Oficialmente, Pelosi visitará a Ásia, com escalas no Japão, Indonésia e Cingapura. Taiwan, até o momento, não consta oficialmente do programa, embora a reportagem não tenha sido desmentida por nenhuma autoridade norte-americana.

A reação à possibilidade de uma visita de uma autoridade norte-americana de tamanha importância a Taiwan enfureceu o governo chinês. Isso porque o tema já estava sensível em razão de uma declaração de Biden, no dia 23 de maio, quando afirmou que seu governo interviria militarmente caso a China invadisse Taiwan. Assim, no mesmo dia em que o Financial Times divulgou a matéria, e em repetidas oportunidades depois disso, o Ministério das Relações Exteriores da China demonstrou forte oposição à presença de Pelosi em Taiwan. O porta-voz do Ministério da Defesa do país disse que a China exigia que os Estados Unidos tomassem medidas concretas para cumprir seu compromisso de não apoiar a independência de Taiwan, não permitindo a visita de Pelosi à ilha. As declarações insinuaram que a China utilizaria os meios necessários, inclusive militares, para “defender resolutamente a soberania e a integridade nacionais”.

Para que se possa compreender corretamente a sensibilidade do assunto, é necessário se retornar à história de Taiwan. Acredita-se que os primeiros habitantes chegaram à ilha há cerca de 8 mil anos, vindos de outras ilhas do Oceano Pacífico. Os chineses da etnia Han teriam tentado se estabelecer nas Ilhas Pescadores no século 13, mas o enfrentamento com os aborígenes e a falta de atrativos econômicos impediram uma efetiva colonização. Em 1517, navegadores portugueses a avistaram, sem, no entanto, aportar na ilha, batizando-a com o nome de Formosa, pelo qual ficou bastante conhecida no Ocidente. No século 17, espanhóis e holandeses se estabeleceram na ilha. Os últimos conseguiram expulsar os primeiros e permaneceram na ilha, explorando-a colonialmente. Com a queda da dinastia Ming, na China, um líder militar fiel à dinastia derrubada, que ficou conhecido como Koxinga (Zheng Chenggong), conquistou a ilha, em 1662, expulsando os holandeses e fundando um reino, o Reino de Tungnin, de onde passou a enfrentar os Manchus da dinastia Qing, que governavam a China. Em 1683, o neto de Koxinga foi derrotado pela dinastia Qing, que anexou a ilha de Taiwan ao império chinês. A partir de então o império chinês controlou efetivamente a ilha por dois séculos, até que, em 1895, o Japão venceu a Guerra Sino-Japonesa e tomou a ilha, que passou a ser tratada como colônia japonesa. Em 1945, a ilha voltou à soberania chinesa, em razão da derrota japonesa na Segunda Guerra Mundial.

Taiwan – Fonte wikimedia

Em 1949, depois de quase vinte anos de combates, Mao Zedong tomou o poder na China, saindo vitorioso em sua revolução comunista. O governante derrubado, Chiang Kai-Shek, fugiu com seu governo para a ilha de Taiwan. Desde então estabeleceram-se, de facto, dois governos. A República Popular da China, comunista, e a República da China (Taiwan), capitalista. A separação criou duas posições conflitantes para uma mesma identidade nacional. Do ponto de vista dos nacionalistas de Chiang Kai-shek, Taiwan não era um estado independente, era, isto sim, a sede do governo chinês no exílio, temporariamente deposto pelos comunistas e que iria retornar ao poder no continente. Na concepção de Pequim, Taiwan era — e continua sendo até hoje — sua 23ª província, uma província rebelde. O reconhecimento internacional de Taiwan foi escasseando na medida em que o tempo passava e o regime comunista chinês se consolidava. Em 1971, a ONU passou a reconhecer a China, ao invés de Taiwan, como representante oficial do povo chinês naquele organismo multinacional. Em 1974, foi a vez do Brasil. Os EUA reconheceram a China em 1979. Todos esses atos formais de reconhecimento significaram que, para estes países e organismos internacionais, a China é única e Taiwan não constitui um país independente. Atualmente, apenas treze[1] países no mundo, além do Vaticano, reconhecem Taiwan como um estado soberano. Na América do Sul, o Paraguai é o único dentre esses países.

Assim, para os chineses, como os EUA não reconhecem e não mantêm relações formais com o governo de Taiwan, o fato de eles fornecerem armamentos para a ilha é inadmissível. Tal apoio é considerado uma grave afronta e a China julga estar amparada pelo direito internacional ao condenar veementemente a atitude norte-americana. Mas, na disputa de interesses entre as potências, as coisas não são tão simples. No mesmo dia em que as relações entre EUA e China foram normalizadas, em 01 de janeiro de 1979, os EUA promulgaram a Lei de Relações com Taiwan[2] que, dentre outras coisas, estabelece que “para ajudar a manter a paz, a segurança e a estabilidade no Pacífico Ocidental”, mesmo não mantendo relações diplomáticas oficiais ou não reconhecendo Taiwan como um país soberano, é política dos EUA fornecer armamentos para que Taiwan possa prover sua autodefesa. Além disso, a lei estabelece que qualquer tentativa de se determinar o futuro de Taiwan pelo uso da força, incluindo-se aí embargos e boicotes, será considerada pelos EUA uma “séria ameaça à paz e a segurança do Pacífico Ocidental” e, consequentemente, uma “grave preocupação” para os EUA. Essa foi a razão pela qual, nas três crises do Estreito de Taiwan, os EUA enviaram sua frota para a Região.

A posição norte-americana é, portanto, deliberadamente ambígua. Não reconhece Taiwan, mas mantém seu apoio, econômico e militar.

Assim, voltemos ao momento atual, ao dia 28 de julho, em que Joe Biden presidente dos EUA, e Xi Jinping, presidente da China, conversaram ao telefone por 2h e 17 minutos. A viagem de Pelosi a Taiwan foi o assunto principal. Segundo a Casa Branca[3], a conversa teve os objetivos de gerenciar diferenças e trabalhar em conjunto nos temas em que há interesses comuns. As mudanças climáticas e questões de segurança sanitária teriam sido objetos da conversa. Não há menção no comunicado da Casa Branca sobre a guerra na Ucrânia. Sobre a questão taiwanesa, Biden teria reafirmado a Xi Jinping que a política norte-americana em relação à China e Taiwan não havia mudado, que o país se opõe fortemente a uma mudança unilateral do status quo, que mine a paz e a estabilidade no Estreito de Taiwan. Essa posição mostra bem a ambiguidade norte-americana. Ao se opor a uma mudança unilateral do status quo, o país afirma, por um lado, não apoiar uma ação taiwanesa pela independência, mas também não admite uma ação chinesa pela reintegração da ilha. Apenas uma ação que não fosse unilateral, ou seja, que fosse adotada em consenso por ambas as partes, seria admitida. Esse consenso, como se sabe, está muito longe de acontecer.

Segundo os chineses, a conversa foi mais incisiva. A imprensa oficial divulgou a versão de que Biden foi avisado por Xi Jinping para “não brincar com fogo” em relação a Taiwan. Analistas chineses na imprensa fizeram questão de lembrar aos norte-americanos que a questão de Taiwan é inegociável para a China, um ponto fundamental, onde não há nenhuma possibilidade de negociação. Esses mesmos analistas também salientaram que a China de hoje é uma potência militar capaz de fazer valer seus interesses no Estreito de Taiwan, muito diferentemente daquela China de 25 anos atrás, quando outro presidente da Câmara dos Representantes dos EUA visitou Taiwan. Finalmente, os analistas afirmam que o povo chinês apoiaria firmemente uma resposta mais incisiva do governo em reação à visita de Pelosi.

A divulgação da possibilidade da visita deixou Pelosi — e os EUA em uma situação difícil. Se não fizer a viagem, ficará a impressão de que cedeu às ameaças chinesas, o que enfraquecerá a posição dos EUA perante a opinião pública taiwanesa e de outros países asiáticos, especialmente Japão e Coreia do Sul, que começam a ter dúvidas se os EUA realmente se envolveriam decisivamente ao lado deles em caso de conflito com a China. Se fizer a viagem, poderá provocar um incidente de graves e imprevisíveis consequências.

De qualquer forma, em breve saberemos. Definitivamente, 2022 não está dando margem à monotonia.

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[1] Disponível aqui (em inglês) https://en.mofa.gov.tw/AlliesIndex.aspx?n=1294&sms=1007

[2] Disponível aqui (em inglês) – https://www.ait.org.tw/policy-history/taiwan-relations-act/?_ga=2.198922671.1499685768.1659046188-1333509346.1659046188

[3] Disponível aqui (em inglês) https://www.whitehouse.gov/briefing-room/statements-releases/2022/07/28/readout-of-president-bidens-call-with-president-xi-




A viagem de Joe Biden ao Oriente Médio

O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, acaba de encerrar uma viagem a Israel, Cisjordânia, e Arábia Saudita. As visitas ocorreram em um momento conturbado, em que a guerra na Ucrânia desorganiza o mercado mundial de gás natural, petróleo e derivados; o Irã caminha a passos largos para a fabricação da arma nuclear e Israel está sendo governado por um gabinete interino, após a renúncia do Primeiro-Ministro Naftali Bennett. A região também vive um momento de acirramento da disputa geopolítica, em que o Irã, a Turquia e a Arábia Saudita disputam primazias e esferas de influência; o Afeganistão está mergulhado no caos econômico após o retorno do Talibã ao poder; e o Líbano passa por grave crise econômica, assim como a Síria, país que enfrenta uma guerra civil há mais de 11 anos. No Iêmen, a guerra civil, que na verdade é travada por procuração entre iranianos e árabes desde 2014, com os primeiros financiando os rebeldes Houthis e os últimos apoiando o governo, está assistindo a um momento de trégua, negociado pela ONU.

Biden iniciou sua viagem por Israel, país que vive mais um momento político conturbado, com a renúncia do Primeiro-Ministro Naftali Bennett, em junho. Com isso, Biden se reuniu com Yair Lapid, que acabou de assumir um governo interino, até que sejam realizadas novas eleições, no final do ano. O presidente norte-americano também se reuniu com Mahmoud Abbas, líder da Autoridade Palestina. As relações entre israelenses, palestinos e norte-americanos encontra-se ainda mais tensionada do que de costume, em razão do assassinato, por tropas israelenses, da jornalista palestino-americana Shireen Abu Akleh, em maio.

Em Israel, um dos principais focos das conversas de Biden foi o programa nuclear iraniano, que tem alcançado significativos avanços. O país acaba de anunciar que enriqueceu Urânio a 20% utilizando as novas e avançadas centrífugas IR-6 da instalação nuclear de Fordo, construída por razões de segurança no subterrâneo das montanhas da cidade de Qom, ao Sul de Teerã. A Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) informou no mês passado que o Irã já teria 43 quilos de urânio enriquecido com 60% de pureza – um importante passo para chegar aos 90% necessários para a produção da arma nuclear. Especialistas em não proliferação alertam que se trata de uma quantidade de material físsil suficiente para a fabricação da bomba.

É grande a preocupação israelense com o fato de o Irã estar cada vez mais próximo de alcançar o status de potência nuclear. Existe no país a percepção de que sua própria existência pode ser ameaçada, uma vez que os iranianos não reconhecem a legalidade ou a legitimidade do Estado israelense.

Essa preocupação ficou muito clara na declaração conjunta, divulgada pelos governos dos EUA e de Israel, denominada “Declaração de Jerusalém” ¹. Nela, os EUA reafirmam sua parceria estratégica com os israelenses e seu compromisso com a segurança de Israel, declarando que ela é, também, de interesse da própria segurança dos EUA. Em um trecho especialmente importante da declaração, os EUA enfatizam o compromisso de nunca permitir que o Irã adquira armas nucleares, dizendo-se, inclusive, preparado para usar todos os elementos de seu poder nacional para garantir esse resultado. Tal afirmação refere-se, evidentemente, ao poder militar, em uma clara delimitação de uma “linha vermelha” que não pode ser ultrapassada pelo Irã: tornar-se detentor de armamentos nucleares.

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Joe Biden também esteve na Cisjordânia, onde se encontrou com Mahmoud Abbas, presidente da Autoridade Palestina. No encontro, reiterou o compromisso norte-americano com uma solução para a questão palestina que contemple a existência de dois Estados, o israelense e o palestino, embora tenha dito que este encaminhamento não está maduro “no momento”. Abbas, por sua vez, disse que a chave da paz para a região seria a saída dos israelenses dos territórios ocupados.

A chegada de Biden à Arabia Saudita foi marcada por um gesto simbólico: a viagem do avião presidencial diretamente de Israel à Arábia Saudita, rota até então interditada pelos árabes. Significativamente, em medida simultânea à presença de Biden no país, os sauditas informaram que tal proibição seria retirada, abrindo seu espaço aéreo à chegada de voos comerciais vindos de Israel.

A presença de Biden na Arábia Saudita causou reações desfavoráveis em sua própria base de apoio, os integrantes do Partido Democrata. Ainda durante a campanha eleitoral, Biden declarou que aquele seria um “país pária”. E expressão foi usada em razão do assassinato, em território turco, do jornalista árabe Jamal Khashoggi. A inteligência norte-americana responsabilizou diretamente o príncipe herdeiro, e homem-forte do regime saudita, Mohammed bin Salman, pelo assassinato. Assim, o encontro entre MBS, como Salman é conhecido, e Biden causou constrangimentos a ambas as partes.

Mas o pragmatismo falou mais alto porque, neste momento, a Arábia Saudita é um parceiro ainda mais importante para os EUA. E isso ficou caracterizado pela declaração conjunta ²emitida após o encontro. Nela, se destacam a questão energética, na qual a Arábia Saudita tem um papel fundamental na estabilização do mercado profundamente afetado pela guerra na Ucrânia, uma vez que é o segundo maior produtor de petróleo do mundo, e a questão de segurança, com ambos os países afirmando que é importante impedir que o Irã “interfira em assuntos internos de outros países, patrocine o terrorismo e atue para desestabilizar a região”.

Ainda em território saudita, Biden aproveitou uma reunião do Conselho de Cooperação do Golfo para se encontrar com os demais líderes dos países do Golfo Pérsico: Omã, Kuwait, Bahrein, Catar e Emirados Árabes Unidos (EAU). Além dos países do Golfo, também compareceram à reunião os líderes do Egito, Iraque e Jordânia. Nesse encontro, Biden disse que os EUA não abandonariam o Oriente Médio à China ou à Rússia, em referência à disputa que essas potências travam por influência na região.

A viagem de Biden ao Oriente Médio foi cheia de significados. Mostrou que dois antagonistas históricos, israelenses e árabes, possivelmente deixarão suas diferenças de lado para enfrentar um adversário comum, cada vez mais poderoso: o Irã. Deixou claro também que o Oriente Médio, quer por sua produção petrolífera, quer por sua posição geográfica privilegiada, ainda é uma área de fundamental importância para o jogo geopolítico das grandes potências, razão pela qual os norte-americanos continuarão a tentar fazer valer sua influência na região.

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¹ https://www.whitehouse.gov/briefing-room/statements-releases/2022/07/14/the-jerusalem-u-s-israel-strategic-partnership-joint-declaration/?utm_source=twitter

² https://www.whitehouse.gov/briefing-room/statements-releases/2022/07/15/the-jeddah-communique-a-joint-statement-betweeen-the-united-states-of-america-and-the-kingdom-of-saudi-arabia/




O assassinato de Shinzo Abe e o contexto geopolítico japonês

O assassinato do ex Primeiro-Ministro japonês Shinzo Abe, baleado pelas costas enquanto participava de um evento de campanha eleitoral de um aliado, na cidade de Nara, próxima a Osaka, no Japão, em 07 de julho, chocou os japoneses e surpreendeu o mundo. Não é o tipo de acontecimento que se espere ocorrer no Japão, um país onde assassinatos por armas de fogo são eventos raríssimos.

Abe renunciou ao cargo de Primeiro-Ministro, após ter sido o político que por mais tempo exerceu aquela função de forma ininterrupta na história do Japão, em 2020, alegando problemas de saúde, oportunidade em que a sua popularidade disparou. Seu desempenho no cargo, entre 2012 e 2020, se caracterizou, na economia, por uma série de medidas liberais apelidadas de “abenomics”, com aposta no livre mercado, estímulo à produção e equilíbrio fiscal. Manteve uma política externa de aproximação com os Estados Unidos e uma postura nacionalista que muitas vezes causou tensão com seus vizinhos, em especial, quando homenageou ex-combatentes da 2ª Guerra Mundial, reavivando feridas ainda abertas pelas atrocidades cometidas por soldados japoneses contra coreanos e chineses, naquele conflito. Suas tentativas de rever aspectos da constituição pacifista japonesa, promulgada ao término da guerra, com a finalidade de fortalecer as capacidades militares do Japão, também foi motivo de forte desconfiança, especialmente na China.

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Recorde-se que, pelo artigo 9º da constituição japonesa, de 1947, o país renuncia ao uso da força para a resolução de disputas internacionais. Tradicionalmente, o país não gasta mais do que 1% do PIB em Defesa. Abe tentou implementar políticas que mudassem essa realidade e revogassem o artigo 9º, sem sucesso.

Entretanto, o acirramento das tensões geopolíticas no entorno japonês nesses últimos anos reforçou, dentre os atuais líderes japoneses, a necessidade de se aumentar os investimentos em Defesa. Nesse sentido, durante a última reunião do Quad[1], realizada em maio, o Primeiro-Ministro Kishida Fumio afirmou a intenção de seu governo de levar o Japão a atingir, em 5 anos, o patamar de 2% do PIB em investimentos de Defesa, o nível mantido como parâmetro nos países integrantes da OTAN.

O Japão tem questões territoriais não resolvidas com seus vizinhos, Rússia e China. Com os russos, a principal questão é a posse das Ilhas Curilas do Sul, que estão sob a soberania da Rússia desde a 2ª Guerra Mundial e é reivindicada pelos japoneses desde então.

Ilhas Curilas / Fonte Economist.com

Com a China, a principal questão territorial envolve a posse das Ilhas Senkaku, chamadas pelos chineses de ilhas Diaoyu Dao e ocupada pelos japoneses desde o século 19. Além da questão territorial, na China – e também na Coreia do Sul – ainda são grandes os ressentimentos em relação aos japoneses, fruto do trauma causado pela invasão de seus territórios pelas tropas daquele país na 2ª Guerra Mundial, oportunidade em que os soldados nipônicos cometeram uma série de atrocidades contra as populações civis dos Estados invadidos.

Ilhas Senkaku – Fonte Wikipedia

Todas essas questões são agravadas pelo contexto geopolítico atual, de transição hegemônica, com a China incrementando exponencialmente seu poderio militar, especialmente suas capacidades aeronavais, e a Rússia travando uma guerra de alta intensidade em plena Europa.

A aceleração do desenvolvimento do poderio militar chinês e a guerra na Europa agravam a sensação de insegurança internacional, servindo de gatilho para um fenômeno amplamente conhecido nas relações internacionais: o dilema de segurança. Trata-se de uma situação na qual um Estado, notando a degradação da sua segurança por perceber como ameaçadoras atitudes de um país vizinho, resolve aprimorar sua própria segurança, investindo ainda mais em Defesa. Tal decisão tem efeito similar nos outros países, que também percebem tais medidas como ameaçadoras, o que estimula ainda mais sua própria escalada militar. Isso resulta em uma espiral de difícil controle, onde ambos os lados acabam por travar uma corrida armamentista.

A morte de Shinzo Abe, neste momento, e de forma tão traumática para uma sociedade pouco acostumada a assassinatos, ainda mais de seus líderes políticos, servirá de gatilho para uma reflexão sobre suas ideias, especialmente sua defesa de uma mudança constitucional que conceda mais espaço para que as forças armadas japonesas possam incrementar suas capacidades.

Desconfio que Shinzo Abe possa assistir, depois da morte, as mudanças que ele tentou implementar no Japão, sem sucesso.

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[1] Diálogo de Segurança Quadrilateral, também conhecido como Quad (em inglês: Quadrilateral Security Dialogue), é um fórum estratégico informal entre Estados Unidos da América, Japão, Austrália e Índia que é mantido por meio de cúpulas semirregulares, trocas de informações e exercícios militares entre os países membros. Saiba mais em https://www.theguardian.com/world/2022/may/24/what-is-the-quad-and-how-did-it-come-about




Disputa geopolítica no Pacífico

As Ilhas Salomão, um arquipélago localizado no sudoeste do Oceano Pacífico, normalmente não recebe destaque nos noticiários internacionais. Isso mudou recentemente, no último mês de abril, quando os governos de Pequim e de Honiara assinaram um acordo bilateral de segurança.

Ilhas Salomão

O acordo prevê o incremento das capacidades de segurança do arquipélago. Inclui ainda cooperação em assistência humanitária, resposta a desastres e esforços para manter a ordem social, entre outros aspectos. O acordo ainda autoriza que navios chineses utilizem os portos do arquipélago para fazer reabastecimentos, manutenção e escalas.

Os EUA e seus aliados no Pacífico Sul – Austrália e Nova Zelândia – viram com preocupação o acordo. A posição estratégica das ilhas – que na Segunda Guerra Mundial marcaram o início da contraofensiva norte-americana contra os japoneses no Pacífico – permite que a China amplie significativamente seu alcance militar no Pacífico Sul. Essas preocupações ocorrem a despeito das afirmações de autoridades, tanto chinesas quanto das Ilhas Salomão, negando a intenção de se instalar uma base militar chinesa nas Ilhas.

A presença chinesa em um arquipélago próximo acionou os alertas de segurança na Austrália. O assunto se tornou importante tema de debates bem na época em que ocorreram as eleições. O novo primeiro-ministro, Anthony Albanese, imediatamente após tomar posse, enviou sua chanceler para as Ilhas Fiji. “Está muito claro que a China está buscando estender sua influência ao que tem sido desde a Segunda Guerra Mundial… a região do mundo onde a Austrália tem sido o parceiro de segurança preferido“, Albanese declarou. Um exemplo do envolvimento da Austrália em questões de segurança na região foi a Missão de Assistência Regional às Ilhas Salomão (RAMSI). Entre 2003 e 2017, a Austrália liderou uma missão militar de assistência integrada por 15 países do Pacífico, com a finalidade de controlar a violência étnica que explodira nas Ilhas Salomão.

Não é de agora que os chineses tratam com mais atenção as nações insulares do Pacífico. O investimento chinês naquela região subiu de US$ 900 milhões, em 2013, para US$ 4,5 bi, em 2018. Um aumento de 400% em 5 anos. De 2010 a 2020, o comércio total de produtos da pesca entre a China e as ilhas do Pacífico aumentou de US$ 35 milhões para US$ 112 milhões.

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Os EUA, por sua vez, fecharam sua embaixada nas Ilhas Salomão em 1993, em um exemplo da negligência norte-americana para com os países insulares do Pacífico. Esse descuido não combina com a visão geopolítica daquele país para com a região. Em 1954, o presidente Dwight D. Eisenhower declarou que os EUA deveriam manter o Pacífico como um “lago americano”. Os americanos têm uma forte presença militar na região por meio do Comando do Indo-Pacífico, com cerca de 375 mil militares e civis, 2.460 aeronaves e 200 embarcações, incluindo 5 Grupos tarefas de ataque, liderados por navios aeródromos. Recentemente, o país divulgou sua Estratégia para o Indo-Pacífico[1], reiterando sua prioridade para a região. Mas, talvez, os norte-americanos tenham concentrado demais suas atenções no Sudeste e Sul asiáticos, deixando de lado os países insulares da Polinésia e da Micronésia. Entretanto, após a divulgação do acordo entre chineses e salomonenses, os EUA anunciaram a reabertura de sua embaixada no país.

O Presidente Biden recentemente retornou de sua visita à Coreia do Norte e ao Japão, onde se reuniu com os chefes de governo dos países do “Quad”, composto, além dos EUA, por Japão, Índia e Austrália. O “Quad” é o “Diálogo Quadrilateral de Segurança”, criado em 2004, em razão do Tsunami, foi revitalizado nos últimos anos como um instrumento de contenção da China. Além disso, na mesma viagem, os EUA lançaram o “Indo-Pacific Economic Framework for Prosperity (IPEF)” com doze parceiros iniciais: os outros três integrantes do Quad, Austrália, Índia, e Japão, mais Brunei, Indonésia, Coreia do Sul, Malásia, Nova Zelândia, Filipinas, Cingapura, Tailândia e Vietnã. Juntos, estes países representam 40% do PIB mundial.

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Os chineses, por sua vez, não restringiram suas ações ao acordo com as Ilhas Salomão. O chanceler chinês Wang Yi, acabou de encerrar uma viagem de dez dias por oito países insulares: as próprias Ilhas Salomão, Kiribati, Samoa, Fiji, Tonga, Vanuatu, Papua Nova Guiné e Timor Leste. Em Fiji, houve um encontro entre os ministros das relações exteriores da China e dos demais países da região. Nesta reunião, os chineses tentaram estabelecer um acordo amplo, envolvendo dez países, que abrangeria vários aspectos, de segurança à pesca. Mas o acordo não foi assinado porque os países não conseguiram chegar a um consenso. Apesar de ter falhado no objetivo de conseguir um acordo amplo, a China assinou, durante a viagem, uma série de acordos bilaterais com vários países.

Como se vê, China e EUA encontram-se em meio a uma acirrada disputa por influência geopolítica na Ásia. Os EUA, a potência até aqui hegemônica no sistema internacional, não quer perder espaço para a China, potência emergente. Nessa dinâmica, cada vez mais, seus interesses ficarão justapostos, causando tensão e atrito. Espera-se que ambos consigam escapar da chamada Armadilha de Tucídides, expressão criada por Graham Alisson para explicar por que, ao longo da história, potências emergentes muitas vezes acabaram por ir à guerra contra as potências até então líderes do sistema internacional.

Este texto foi originalmente publicado no site Hoje no Mundo Militar

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[1] Ver artigo publicado aqui