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A Finlândia e a Suécia na OTAN

O presidente da Rússia, Vladimir Putin, sempre deixou bastante claro que a principal razão para a invasão da Ucrânia era a ameaça que a possível adesão daquele país à OTAN representava para a segurança da Rússia.

A forte objeção não se deve, apenas, ao fato de ser a Ucrânia um país intimamente ligado à Rússia, com raízes históricas comuns, que estaria se afastando da órbita de influência russa em direção à Aliança Ocidental e à União Europeia. Mas, principalmente, sempre segundo a linha de raciocínio do presidente Putin, tratar-se-ia de mais um passo da contínua expansão da OTAN em direção às fronteiras russas. Afinal, as antigas ex-repúblicas soviéticas, Letônia, Estônia e Lituânia, além dos antigos aliados do Pacto de Varsóvia, Polônia, Bulgária, Romênia, Hungria, República Tcheca e Eslováquia, já integram a OTAN. Ver a Ucrânia se juntar a esse grupo não é aceitável para presidente russo.

Expansão da OTAN
Fonte – BBC

Dessa forma, se entende a contrariedade que o presidente Putin certamente está experimentando ao ver que a Suécia e a Finlândia, países historicamente neutros, manifestarem o firme propósito de aderir à OTAN.

A Suécia não faz parte de nenhuma aliança militar há mais de 200 anos, desde as guerras napoleônicas, e também manteve a neutralidade durante a Segunda Guerra Mundial. A Finlândia, por outro lado, tornou-se neutra após perder cerca de 10% de seus territórios para a então União Soviética, na Segunda Guerra Mundial.

A mudança de postura dos dois países nórdicos é surpreendente e reflete as grandes alterações no ambiente de segurança da Europa após a invasão russa à Ucrânia, em 24 de fevereiro. A percepção da ameaça se tornou palpável e a guerra de conquista de território, uma possibilidade impensável até pouco tempo, ainda mais na Europa, mostra-se real. E essa sensação de insegurança se refletiu na opinião pública finlandesa e sueca. Pesquisas de opinião feitas em fevereiro indicavam que apenas 53% dos finlandeses eram favoráveis à adesão à OTAN. Hoje, os índices mudaram bastante, informando que 76% da população passou a ser favorável à adesão.

A entrada na OTAN depende de um rito que, se depender das declarações do Secretário-geral da organização, Jens Stoltemberg, um Norueguês, será acelerado ao máximo. Entretanto, pode haver algumas dificuldades. Segundo as normas da organização, a aceitação de um novo integrante depende da concordância unânime de todos os seus membros.

O presidente da Turquia, Recep Erdogan, deu a entender que seu país seria contrário à entrada ao declarar que Estamos acompanhando o desenvolvimento da situação com a Finlândia e a Suécia, mas não temos certeza [sobre esse assunto]. Os países nórdicos são uma hospedaria para organizações terroristas”. Erdogan está se referindo a cidadãos turcos que o regime considera ligados a atividades terroristas curdas que são recebidos como refugiados em ambos os países nórdicos. O presidente turco ainda se referiu à Grécia, ao afirmar que foi um erro da OTAN aceitar aquele país como membro, no passado.

Apesar dessas manifestações do presidente turco, é pouco provável que a Turquia, quando chamada formalmente a se manifestar no âmbito da OTAN, realmente vete a entrada de suecos e finlandeses. Seria politicamente muito difícil sustentar tal posição na Aliança, colocando-se em posição antagônica a praticamente todos os parceiros justamente em um momento de crise. A Finlândia formalmente integrada à OTAN agregará 1.340 km de fronteira direta entre a Rússia e os aliados, praticamente dobrando a extensão atual, que é de 1.215 Km. Por sua vez, suecos na OTAN representam um grande aumento na segurança e na dissuasão da Aliança no Mar Báltico, uma região de capital importância para os interesses estratégicos russos.

Quase três meses depois do início da invasão à Ucrânia, os russos sofrem um duro revés político-estratégico. O fortalecimento da OTAN resultante da ação militar russa se constitui em um desfecho absolutamente contrário aos objetivos de Putin. Resta saber quais serão as respostas russas a esses acontecimentos.

Este texto foi originalmente publicado no site Hoje no Mundo Militar

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Chineses e taiwaneses prestam atenção à Ucrânia

Estrategistas de todo o mundo estão atentos aos acontecimentos em curso na invasão russa à Ucrânia. Por dever de ofício, são obrigados a analisar os acontecimentos não só no campo militar, mas também em seus aspectos políticos, econômicos, sociais, culturais e tecnológicos.

Mas há dois grupos de analistas especialmente interessados nos desdobramentos do conflito: os chineses e os taiwaneses. A razão para isso está no paralelismo que pode ser encontrado nas aspirações russas de absorver parte do território ucraniano com a possibilidade de os chineses também conduzirem uma operação militar para reintegrar Taiwan à soberania da China continental.

É importante, de início, deixar claras as diferenças existentes entre os dois casos. Em primeiro lugar, relembre-se que a Ucrânia é um país soberano, reconhecido por todos os países do mundo, inclusive pela Rússia. Já Taiwan, embora na prática seja um ente político independente, não é reconhecido desta forma pela comunidade internacional. A ampla maioria dos países reconhece a República Popular da China e, por consequência, formalmente concorda com princípio de “uma só China”, que aquele país advoga como exigência fundamental para o estabelecimento de relações com qualquer nação.

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A política externa da Rússia e da China em relação ao uso de suas forças armadas como instrumento de projeção de poder também apresenta diferenças. Os russos enviam tropas ao exterior para operações militares com frequência, como na própria Ucrânia, em 2014, além de Geórgia, Síria, Belarus e Casaquistão, sem falar no grupo mercenário Wagner, que trabalha em perfeito alinhamento com os interesses russos em dezenas de países. Já os chineses, embora tenham adotado um comportamento mais assertivo nos últimos anos, especialmente por intermédio de sua marinha no Mar do Sul da China, excetuando-se os contingentes que compõem as missões de paz da ONU, desdobrou tropas para uma ação militar no estrangeiro pela última vez na campanha contra o Vietnã, no já longínquo ano de 1979.

Para os russos, que negaram até o último instante a intenção de invadir a Ucrânia, a causa da guerra está ancorada nas preocupações com uma Ucrânia cada vez mais sob a influência do Ocidente, caminhando para uma adesão à Otan que, desde o ponto de vista da Rússia, representaria uma ameaça à sua segurança. Já para os chineses, que nunca negaram a possibilidade de agir militarmente, a reunificação de Taiwan é um objetivo permanente a ser perseguido, reiterado em várias oportunidades pelo presidente Xi Jinping e presente em diversos documentos do Estado chinês.

Mas, se as diferenças são marcantes, são as semelhanças que atraem os estrategistas de ambos os lados do Estreito de Taiwan a se debruçarem sobre algumas questões: a comunidade internacional reagiria no caso de uma invasão chinesa a Taiwan de forma semelhante à adotada no caso ucraniano? A surpreendente resiliência ucraniana na defesa de sua pátria seria reproduzida também pelos defensores da ilha de Taiwan? O Exército de Libertação Popular da China, muito menos experimentado em combate que o poderoso exército russo, enfrentaria as mesmas dificuldades operacionais e logísticas que são observadas pelos invasores da Ucrânia?

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A reação da comunidade internacional a uma invasão a Taiwan seria modulada principalmente pela provável aceitação, por muitos países, da narrativa chinesa de que se trataria de uma questão interna, e não de uma agressão a um país estrangeiro, uma vez que Taiwan não é um Estado soberano. Este seria um pretexto ideal para todos os países que, em razão dos enormes interesses econômicos envolvidos, dependem da manutenção de boas relações com a China. Mas, certamente, essa não seria a posição dos EUA e seus principais aliados: Canadá, cerca de três dezenas de países da Europa Ocidental, Austrália, Japão e Coreia do Sul. A este conjunto restariam a alternativa pouquíssimo provável de atuar militarmente em apoio a Taiwan ou a replicação das sanções econômicas – como impostas à Rússia –, com a enorme diferença de que sancionar a China, maior parceira econômica da maior parte das nações do mundo, é tarefa muitíssimo mais complicada do que embargar economicamente a Rússia.

Taiwan, ao que parece, já percebeu, observando a invasão da Ucrânia, que estará sozinha no campo militar, caso seja invadida. Várias recentes notícias dão mostras de que a ilha se prepara para a hipótese de ter de se defender sozinha. O anúncio da possível ampliação do tempo do serviço militar obrigatório, a aquisição de sistemas antiaéreos Patriot, dos EUA, e o desenvolvimento próprio de um míssil com alcance de 1.200 km, assim capaz de atingir importantes cidades chinesas, são exemplos claros dessa atitude.

As diferenças e semelhanças da guerra na Ucrânia com uma possível crise no Estreito de Taiwan, como se vê, merecem ampla reflexão. Esperemos que as conclusões sejam as que levem à solução pacífica das controvérsias e à paz mundial.

Este artigo foi originalmente publicado no jornal O Estado de S. Paulo, em 03/05/2022

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O fantasma do emprego de uma bomba nuclear volta a assombrar

A possibilidade de emprego de uma arma nuclear tática pelos russos, na guerra da Ucrânia, embora remota, não pode ser descartada. Antes de tratar desta possibilidade assustadora, vejamos como tudo começou.

A Era nuclear, ou atômica, teve início com o teste do primeiro artefato dessa natureza, no deserto do Novo México, nos EUA, em 16 de julho de 1945. Cerca de mês depois, os EUA lançariam as duas únicas bombas nucleares lançadas até hoje em uma situação de conflito, sobre as cidades japonesas de Hiroshima (06 de agosto 1945) e Nagasaki (09 de agosto 1945).

Em Hiroshima, apenas uma fração de segundo após a detonação, a temperatura ao nível do solo ultrapassou 7.000o C e uma poderosa onda de choque varreu a paisagem. De uma população de 343.000 habitantes, cerca de 70.000 pessoas morreram instantaneamente, e até o final do ano, o número de mortos ultrapassou 100.000. Dois terços da área da cidade foram destruídos. “Sombras nucleares” eram tudo o que restava das pessoas que haviam sido submetidas à intensa radiação térmica. Uma enorme nuvem em forma de cogumelo subiu a uma altura de mais de 12 km.

Na manhã de 09 de agosto, os soviéticos, que acabavam de declarar guerra ao Japão, já haviam invadido a Manchúria e as ilhas Sakalinas. Os japoneses, mesmo atacados em Hiroshima, não falavam em rendição. Então aconteceu o ataque a Nagasaki, com 40 mil vítimas instantâneas. No dia 14, os japoneses aceitavam os termos aliados. Era o fim da 2ª Guerra Mundial. O impacto do ataque norte-americano causou profundas transformações na forma como os estrategistas da época passaram a encarar as possibilidades de conflitos entre potências nucleares.

A estratégia atômica, ou melhor, a aplicação pela estratégia das consequências da arma atômica, produziu importantes reviravoltas na concepção do emprego das forças, sob o ponto de vista da guerra ou da manutenção da paz.

A arma atômica não é uma arma como as outras, apenas mais poderosa. Por sua potência, ela está fora de proporção com tudo que a humanidade havia conhecido até o seu desenvolvimento. Além disso, os vetores que transportam as armas nucleares podem atingir qualquer local do Globo terrestre, com precisão notável, com uma rapidez que, na maior parte das vezes, inviabiliza uma resposta defensiva. Esses vetores compõem a capacidade de lançamento de um arsenal nuclear, comumente conhecida por “tríade nuclear”. Os componentes dessa tríade são os mísseis balísticos intercontinentais terrestres, os bombardeiros estratégicos e os mísseis balísticos lançados por submarinos.

Essa característica de incomparável poder destrutivo, os terríveis efeitos da radiação nuclear, aliada ao fato de poder ser lançada sobre qualquer ponto da Terra pelos modernos meios de lançamento, criou uma situação inteiramente nova: uma única bomba passou a ser capaz de produzir os efeitos que antes só poderiam ser alcançados com enormes quantidades de bombas, granadas, aviões, canhões e obuseiros.

As bombas nucleares liberam sua energia pelos processos de fissão ou fusão nuclear, ou pela combinação dos dois processos. As bombas de fissão são comumente chamadas de bombas atômicas. As bombas de fusão são as termonucleares, ou de hidrogênio. Seu poder destrutivo é de tal magnitude, que duas unidades de medidas tiveram que ser criadas: o quiloton, que corresponde 1.000 Ton de TNT, e o megaton, que corresponde a 1.000.000 Ton do mesmo explosivo. A bomba de Hiroshima, por exemplo, era de cerca de 15 quilotons. A maior bomba já testada, a russa “Tsar”, chegou à inacreditáveis 57 megatons, potência suficiente para destruir uma grande cidade, do porte das maiores capitais do mundo.

As armas nucleares tiveram um imenso e rápido desenvolvimento durante a Guerra Fria, o enfrentamento entre os EUA e seus aliados, de um lado, e União Soviética e seus satélites, de outro, entre 1945 e 1991. Para se ter uma ideia, em 1966, o arsenal nuclear norte-americano alcançava cerca de 32 mil armas, de 30 diferentes tipos. Os soviéticos, por sua vez, em 1988 chegaram a possuir um arsenal de 33 mil bombas. Após a desintegração da URSS, seu arsenal foi herdado pela Rússia.

Mas EUA e Rússia não são os únicos países possuidores de armamento nuclear. Reino Unido, França, China, Índia, Paquistão, Coreia do Norte e Israel, embora este último país não reconheça, também possuem tais armas em seus arsenais.

Na Guerra Fria, cada um dos lados se deparou com a realidade de que a única maneira de evitar um ataque nuclear por parte do adversário, que certamente resultaria na destruição completa do Estado, seria impor ao oponente o medo de represálias. Para isso, era preciso possuir uma força de ataque de potência suficiente para desviar o adversário do propósito de empregar a sua força. É a chamada Estratégia da Dissuasão.

dissuasão repousa antes de tudo sobre o fator material: é preciso ter um grande poder de destruição, um alcance adequado e uma boa precisão. Outro fator a se considerar é, qual dos dois partidos será o primeiro a atirar. Este cálculo não tinha grande importância na época dos aviões relativamente lentos, porque os prazos de execução decorrentes do alerta eram tais que o ataque e a resposta se cruzavam no ar.

Com os mísseis, entretanto, não há mais dissuasão se a primeira rajada do atacante possuir capacidade de destruição tal que a resposta do defensor seja consideravelmente enfraquecida. Assim, o valor da dissuasão encontra-se ligado não à potência de fogo da força de ataque, mas à sua potência de fogo restante, após ter sofrido os efeitos da primeira rajada do defensor.

Assim, é importante o fator psicológico. O que se quer é impressionar o adversário até o ponto de impedi-lo de usar sua força de ataque. Então é preciso, antes de mais nada, ter uma capacidade de destruição tal que ele a tema suficientemente. Em seguida, é imperioso levá-lo a crer que se é capaz de desencadear uma represália em resposta, ou numa primeira rajada, qualquer que seja a hipótese.

Todos os cálculos levados em consideração para o desenvolvimento da Estratégia da Dissuasão Nuclear levavam em consideração as armas nucleares estratégicas. É sobre elas que estamos a falar até este ponto. São as armas de grande poder destrutivo que podem ser levadas pelos vetores da tríade nuclear a qualquer parte do Globo Terrestre.

Mas, e aqui começamos a nos aproximar da questão referente ao temor que envolve o atual conflito na Ucrânia, existem também as chamadas armas nucleares táticas. Elas são armas de muito menor poder explosivo, desenvolvidas para serem utilizadas no campo de batalha, mesmo na proximidade de tropas amigas ou em territórios em disputa ou contestados.

Podem ser bombas de gravidade, lançadas por bombardeiros, ou podem ser mísseis de curto alcance, granadas de artilharia, minas terrestres, cargas de profundidade, ou torpedos que estejam equipados com cabeças de guerra nucleares. Não há uma definição universalmente aceita para a potência de tais armas, mas elas podem ser bastante limitadas, de 0,5 a 5Kt, por exemplo.

Estima-se que, hoje em dia, a Rússia possua cerca de 2 mil armas nucleares táticas em seus arsenais. Dois sistemas de armas que podem conduzir em seus mísseis cabeças de guerra deste tipo são o “Kalibr”, míssil lançado a partir de submarinos e o “Iskander”, lançado de plataformas terrestres móveis.

Os russos utilizam em seus planejamentos militares uma estratégia chamada de “Escalar para Desescalar”. Tal ideia pressupõe uma ação de alto impacto — como o lançamento de uma arma nuclear tática no campo de batalha — de modo a causar tamanha repercussão no adversário, e na sua opinião pública, que ele será forçado a recuar.

A preocupação, cada vez maior, é a de que o presidente Putin, caso sinta-se encurralado, ou perceba que seus planos na Ucrânia estão falhando e pressinta que o insucesso pode ameaçar até mesmo sua permanência no poder, determine o uso de uma bomba nuclear tática como um “divisor de águas”, para reverter a situação e evitar a derrota.

Tal cálculo leva em consideração a premissa, provavelmente verdadeira, de que o uso de uma bomba atômica de pequeno porte não provocaria uma reação no Ocidente que causasse uma confrontação nuclear. Para isso, o alvo seria cuidadosamente escolhido para, mesmo provando a determinação russa de usar tal arma, causar uma destruição limitada, não muito diferente da que está atualmente em curso na guerra.

É claro que esta não é uma decisão simples e fácil de ser tomada. Putin quebraria um tabu e seria o primeiro líder a usar tal armamento desde Hiroshima e Nagasaki. Outro aspecto a ser considerado é o de que ele afirma que os povos russo e ucraniano são na verdade um só povo, o que o colocaria na absurda posição de lançar uma arma atômica contra aqueles que seriam, nas suas próprias palavras — seus compatriotas. Há ainda o fortíssimo impacto que tal atitude teria na opinião pública internacional e nos governos de todo o mundo, inclusive naqueles que lhe são favoráveis. A China e a Índia, por exemplo, teriam muita dificuldade em apoiar a Rússia em uma atitude como essa. O emprego da arma nuclear certamente significaria, portanto, o completo isolamento da Rússia no cenário internacional.

Mas, como a própria invasão da Ucrânia comprovou, Putin nem sempre toma as decisões consideradas mais racionais. Assim, é bom recordar dos conselhos dados por Sun Tzu, o autor da magistral obra Arte da Guerra, escrita há 2.500 anos. O general chinês aconselhava, no capítulo VII do livro, a quando cercar um exército, deixar uma saída, pois um inimigo aflito e sem escapatória poderá tomar medidas desesperadas para tentar sobreviver.

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As Ilhas Salomão são novo palco de disputa geopolítica no Pacífico

O recente anúncio de um de acordo entre a China e as Ilhas Salomão, um arquipélago formado por centenas de ilhas localizado a cerca de 2 mil quilômetros da Austrália causou apreensão na própria Austrália, na Nova Zelândia e nos Estados Unidos.

O acordo possibilitará que a China utilize os portos da capital Honiara para reabastecimento e ressuprimento dos navios da sua marinha. O texto ainda prevê a possibilidade de a China manter efetivos militares na ilha, com a finalidade de proteger empresas e cidadãos chineses, além de um acordo que forneceria “imunidade legal e judicial” para todo o pessoal chinês.

O aumento da influência chinesa na área acende a disputa geopolítica em curso na região do Indo-pacífico. Para se compreender melhor esse fenômeno, é necessário entender as condicionantes históricas e geopolíticas das Ilhas Salomão.

O arquipélago, constituído por seis ilhas principais e centenas de ilhas menores, localiza-se a leste de Papua Nova Guiné, a cerca de 2.000 Km da Austrália.

Figura 1 – Ilhas Salomão / Fonte – Google Maps

No ano de 1900, alemães e britânicos entraram em acordo, com os ingleses efetivando seu domínio colonial sobre o arquipélago. Durante a Segunda Guerra Mundial, as ilhas foram palco de várias batalhas entre japoneses e aliados. A vitória aliada na batalha de Guadacanal, em agosto de 1942, marcou o ponto de virada do conflito naquele Teatro de Operações, com os norte-americanos freando o avanço japonês e iniciando a contraofensiva.

Somente em 1978 as ilhas se tornaram independentes do Reino Unido, passando a integrar a Comunidade Britânica. A partir do final dos anos 1990, a violência étnica tomou grandes proporções no país, com o surgimento de movimentos nacionalistas nas ilhas de Guadacanal e Malaita. Em 2001, a crise econômica tomou graves proporções e o Estado faliu, incapaz de arcar com suas obrigações.

Em 2003, a Austrália liderou uma missão de pacificação nas ilhas, denominada Missão de Assistência Regional às Ilhas Salomão (RAMSI), que contou também com tropas da Nova Zelândia e Papua Nova Guiné, além de outras nações insulares do Pacífico. Essa missão se estendeu até 2013, quando foi encerrada, com o retraimento da maior parte das tropas. Entretanto, pequenos efetivos ainda foram mantidos em missão de “assistência policial”.

Em 2019, Manasseh Sogavare, político influente desde 2000, é eleito primeiro-ministro e Salomões muda sua política em relação à China. O país, que tinha um antigo relacionamento com Taiwan, corta relações com os taiwaneses e celebra relações com os chineses. A decisão não encontra unanimidade no país. O líder político da ilha de Malaita critica com veemência a mudança e sugere que a ilha deveria buscar independência.

Visto o contexto histórico que emoldura a atual aproximação da China com o arquipélago, passemos a algumas observações de caráter geopolítico.

A China tem sua saída para o Oceano Pacífico contida por duas cadeias de ilhas.

Figura 2 – Duas cadeias de ilhas / Fonte wikipedia

As duas cadeias de ilhas foram definidas pelos EUA e seus aliados, na década de 1940, como uma forma de conter a então União Soviética e a China Comunista. Assim, tais ilhas, se mantidas dentro da esfera de influência norte-americana, serviriam de obstáculo ao avanço dos interesses dos adversários dos EUA na região do Pacífico. A primeira cadeia de ilhas compreende as Curilas, as principais ilhas do Japão, Okinawa, Taiwan, a parte norte dos arquipélagos das Filipinas, e a Península Malaia. A segunda cadeia consiste nas ilhas do Japão que se estendem até Guam e as ilhas da Micronésia.

Os chineses sabem que para se tornar um poder dominante na Ásia precisam controlar as rotas marítimas do Oceano Pacífico. Por isso, eles têm dado prioridade à sua marinha, que tem se desenvolvido de forma impressionante nos últimos anos. Ela é, atualmente, em número de navios, a maior marinha do mundo, com cerca de 350 plataformas, dentre navios de superfície, submarinos, navios de assalto anfíbio, navios-aeródromo (porta-aviões), navios anti-minas, dentre outros.

O Livro Branco de Defesa da China, de 2019, ressalta que a marinha do país está deixando o patamar de ser uma marinha que faz a “defesa dos mares próximos” para passar a ser uma marinha que cumpre “missões de proteção em mares distantes”.

A marinha é composta por seus meios navais, sua aviação e pelo corpo de Fuzileiros Navais. Dispõe de três frotas, subordinadas aos Teatros Norte, Leste e Sul. Conta com dez submarinos nucleares, sendo quatro lançadores de mísseis intercontinentais e seis de ataque, além de outros 50 submarinos convencionais. Conta, ainda, com dois porta-aviões, um deles construído localmente.

O Corpo de Fuzileiros Navais, com 8 Brigadas, tem aumentado sua capacidade anfíbia, com foco no Mar do Sul da China e em Taiwan. Além disso, eles mobíliam a base que a China mantém no Djibuti.

Apoiada nesse poderio militar, a China vem estabelecendo instalações de comunicações, campos de pouso e portos, posições fixas de armas e guarnições militares nas Ilhas Spratly, no Mar do sul da China, desde 2018.

Figura 3 – Mar do Sul da China / Fonte wikipedia

A Guarda Costeira Chinesa, por sua vez, frequentemente assedia embarcações de pesca e pesquisa de outros Estados com os quais o país disputa a posse e a exploração econômica no Mar do Sul da China. São recorrentes episódios como aquele em que um navio de guerra chinês marcou a laser um navio da Marinha das Filipinas, ou outro, em que um navio de pesquisa chinês entrou ilegalmente na zona econômica exclusiva marítima da Malásia e perseguiu um navio contratado de uma empresa estatal de petróleo daquele país. Há também casos em que navios da Guarda Costeira chinesa assediaram navios de pesca japoneses nas Ilhas Diaoyu/Senkaku, disputadas entre os dois países (e também pelos taiwaneses, que as denominam Tiaoyutai).

Figura 4 – Ilhas Senkaku/Dyaoyu / Fonte wikipedia

O assédio de navios estrangeiros de Diaoyu/Senkaku até a Península Malaia, e a militarização das ilhas contestadas, no sul, expõe a intenção e a estratégia da China de controlar a primeira cadeia de ilhas, aspiração que somente poderá ser alcançada, de fato, com o retorno de Taiwan à soberania chinesa.

O desenvolvimento de uma presença militar forte e permanente na primeira cadeia de ilhas daria à China o controle das principais rotas marítimas na Ásia e a ajudaria a se estabelecer como uma potência global dominante. Mas não seria suficiente. Projetar poder em áreas mais distantes, e além, inclusive, da segunda cadeia de ilhas, seria um passo decisivo.

A aproximação chinesa das Ilhas Salomão, quando observada em conjunto com outras ações estratégicas recentes, como a aproximação de Vanuatu, onde já se especulou a possibilidade de o país estar preparando a construção de uma base naval[1], de Papua Nova Guiné, transformada em parceira estratégica da China em 2018[2], das obras chinesas na Base Naval de Ream, no Camboja[3], além das atividades no Oceano Índico, como a aquisição do Porto de Hambantota no Sri Lanka[4], além do Porto de Gwadar, no Paquistão[5], demonstra claramente que as ambições do país vão muito além da primeira cadeia de ilhas.

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[1] Saiba mais em  https://www.smh.com.au/politics/federal/china-eyes-vanuatu-military-base-in-plan-with-global-ramifications-20180409-p4z8j9.html

[2] Saiba mais em https://www.scmp.com/news/china/diplomacy/article/2173654/china-agrees-upgrade-relations-strategically-important-papua

[3] Saiba mais em https://amti.csis.org/changes-underway-at-cambodias-ream-naval-base/

[4] Saiba mais em https://revistacargo.pt/hambantota-sri-lanka-china/

[5] Saiba mais em https://www.revistamilitar.pt/artigo/217




Um mês de guerra na Ucrânia

A invasão russa à Ucrânia, iniciada em 24 de fevereiro, completa seu primeiro mês. É hora de um balanço dos eventos em curso nos campos de batalha da Ucrânia, ressaltando-se que se trata de uma análise parcial, uma vez que a guerra está em andamento, e incompleta, em razão de só possuirmos os dados que nos chegam pela imprensa ou pelas mídias sociais.

Comecemos pelas razões políticas da guerra, afinal Clausewitz já ensinava que “A guerra é a continuação da política por outros meios”. Parece claro que Putin, ao decidir travar a guerra, tinha como seu principal objetivo político impedir a Ucrânia de entrar para a OTAN. Tal adesão, mesmo que informal, seria inaceitável para o presidente russo, que inclusive tem dificuldades em aceitar a própria existência da Ucrânia como nação soberana, como declarou reiteradas vezes[1].

No trigésimo dia de guerra, apesar de uma série de problemas no desenvolvimento tático da campanha, parece que a Rússia conseguirá, no mínimo, garantir que as províncias de Luhansk e Donetsk se separem de facto da Ucrânia. Também parece provável que o litoral sul do país, especialmente a leste da foz do Rio Dnieper, também seja separado da Ucrânia. A conquista da capital Kiev ainda não está garantida, mas se for conseguida, é provável que o atual governo se mude para alguma cidade ocidental do país, como Lviv, por exemplo. Na hipótese da Ucrânia resultar dividida da guerra, Putin talvez consiga o controle do território a leste do rio Dnieper. A pergunta que se impõe, a partir dessa hipótese, é a seguinte: terá valido a pena?

Para responder essa pergunta é necessário se analisar o que Putin esperava alcançar em relação à OTAN. A aliança militar Ocidental, criada para se antepor à União Soviética e – por extensão – à Rússia, vivia nos últimos anos um período de indefinição, para dizer o mínimo. Diversos países não cumpriam a meta acordada de investir 2% de seus PIB em defesa[2]. Os EUA, líderes da aliança, se voltavam com clareza para a região do Indo-Pacífico, criando novos arranjos como o “Quad[3]” – sua aliança com Japão, Índia e Austrália para conter a China – e a “Aukus”[4], o pacto militar entre EUA, Reino Unido e Austrália para a construção de um submarino nuclear pela Austrália, deixando aos poucos de priorizar a Europa. Não se pode esquecer, ainda, que há menos de três anos, em novembro de 2019, o presidente Macron declarava que a OTAN estava em “morte cerebral”[5].

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Pois bem, a invasão russa à Ucrânia teve o condão de reunir novamente os países da Aliança contra um inimigo comum. Países que vinham investindo pouco em defesa, sendo a Alemanha[6] o exemplo paradigmático, decidiram incrementar em muito seus investimentos na área. A Aliança reposicionou suas tropas e equipamentos, aumentando seus efetivos nos países do leste. Haverá, a partir de agora, na Europa e nos EUA, um novo e forte estímulo para se reforçar a OTAN em todos os seus aspectos. Se a Aliança Atlântica estava em morte cerebral, parece que a guerra a ressuscitou.

Apesar dos reiterados pedidos do presidente Zelenski, da Ucrânia, para que a OTAN intercedesse militarmente na guerra, especialmente pela garantia de uma zona de exclusão aérea sobre os céus da Ucrânia que impedisse as aeronaves russas de sobrevoar e, consequentemente, atacar com mais proximidade, alvos no país, a Aliança evitou se envolver diretamente, restringindo-se ao fornecimento de sistemas e material de emprego militar. Afinal, isso significaria um enorme risco de confronto direto entre aeronaves da OTAN e da Rússia. E, como afirmou o presidente dos EUA, Joe Biden, quando russos e norte-americanos trocarem tiros, isso significará a 3ª guerra mundial.

Aqui se vê com clareza que a estratégia da dissuasão[7] funcionou muito bem para o lado russo, evitando que a OTAN interviesse diretamente no conflito, claramente contida pela ameaça da escalada nuclear da guerra pelo lado russo. Por outro lado, os ucranianos não se mostraram suficientemente fortes para impedir os russos de atacarem, bem como os EUA e seus aliados que também foram incapazes de dissuadir os russos e evitar a invasão, apenas com as ameaças de “sanções econômicas nunca vistas”.

Mas, apesar de não evitarem a guerra, as sanções econômicas foram utilizadas com uma intensidade até aqui inédita, infligindo pesados custos econômicos à Rússia, mas também aos países e corporações que mantinham negócios como os russos. Foram impostas sanções a bancos e membros do governo e da elite econômica, incluindo o congelamento de ativos, restrições de viagens e exclusão de grandes bancos russos do sistema financeiro e do sistema de comunicação usado para transações internacionais (Sistema SWIFT). Outras medidas incluíram restrição de importações de petróleo, gás e carvão da Rússia, proibição da exportação de diversos produtos para o país, incluindo artigos de luxo, taxação sobre importação de produtos e restrições a aeronaves russas no espaço aéreo de diversos países.

As sanções atingiram diretamente também os cidadãos russos comuns, que de uma hora para a outra não puderam mais usar seus cartões de crédito e deixaram de contar com os serviços e a presença de diversas empresas ocidentais, de lojas de departamentos a lanchonetes, bancos, empresas de streaming, etc. Grandes empresas do setor privado, como Coca-Cola, McDonald’s, Starbucks e várias outras, suspenderam operações na Rússia. Certamente essa situação gera inúmeros transtornos aos cidadãos russos comuns, o que pode criar uma crescente insatisfação com as consequências práticas da operação militar em curso.

Aliás, na guerra, a percepção que a população tem da realidade é de suma importância. Dessa percepção advém o apoio ou não às operações, consequentemente, a legitimidade que cada um dos lados recebe, tanto de sua população quanto da comunidade internacional, para travar o combate.  Neste sentido, ocorre a disputa no campo informacional, com ambos os lados tentando impor sua narrativa. De um lado, os russos falam em “desnazificar” e “desmilitarizar” a Ucrânia, além de acusarem o governo de promover um “genocídio” contra as minorias russas do leste do país. Por outro lado, os ucranianos adotam a narrativa de “Davi x Golias”, do país injustamente agredido que luta pela própria sobrevivência, acusando os russos de atacarem civis e destruírem as cidades. A Ucrânia vem vencendo essa guerra, tanto pelo apelo da narrativa, muito mais facilmente compreensível pela opinião pública, que inclusive se mostra empática com o sofrimento da população atacada, quanto pela falta de verossimilhança da narrativa russa.

Nesse sentido, o sofrimento dos milhões de refugiados e deslocados pela guerra é muito palpável para os europeus, especialmente para os países mais de leste, como Polônia, Romênia e Moldávia. Em trinta dias de guerra já são cerca de 3,6 milhões de refugiados, um grande problema, com efeitos de longo prazo.

Finalmente, passemos a uma breve análise dos combates propriamente ditos. Os russos optaram por atacar a Ucrânia em quatro frentes. Uma que vem de Norte, de Belarus, em direção a Kiev. Outra que vem de Nordeste, em direção a Kharkiv. Há ainda a direção leste, na região de Donbas e a Sul, que vem da Criméia e dos mares de Azov e Negro.

Após um avanço inicial em todas as frentes, o movimento russo foi interrompido há cerca de dez dias, aproximadamente aonde se encontram as manchas vermelhas, no mapa.

As causas para a interrupção do movimento podem apenas ser especuladas, uma vez que não se dispõe de informações fidedignas a este respeito. Entretanto, é bastante provável que tenha ocorrido uma conjunção de fatores.

Em primeiro lugar o fator logístico. A tarefa de apoiar logisticamente uma invasão em território estrangeiro, de uma tropa de cerca de 190 mil homens, é gigantesca. Especialmente em se tratando, como é o caso, de tropas mecanizadas e blindadas. Os volumes de combustíveis e lubrificantes são contados nas casas dos milhões de litro por dia. Isso sem falar em rações e água, munição, material de intendência, como equipamentos, capacetes, barracas, coletes balísticos, dentre inúmeros outros itens, munições e explosivos, peças e conjuntos de reparação, armamento, etc. Aparentemente, pelos relatos vindos do front, muitos desses itens escassearam, especialmente combustível, o que exigiu um intervalo operacional para reorganização dos atacantes.

Um segundo aspecto a considerar é a obstinada defesa ucraniana, talvez em um nível inesperado pelas tropas russas. Apoiados pelo armamento fornecido pelos países ocidentais, em especial os mísseis anticarro e antiaéreos, os ucranianos vem utilizando muito bem o terreno, que conhecem profundamente, afinal lutam em seu próprio país, para vender caro cada palmo conquistado pelos russos. Os ucranianos estão adotando uma “defesa elástica”, uma técnica defensiva que permite avanços do inimigo para coloca-los em posição de serem emboscados. Ao mesmo tempo, realizam com muita frequência contra-ataques e ações ofensivas de pequena profundidade, fustigando e impondo elevadas baixas ao inimigo.

A interrupção do avanço caracteriza o que Clausewitz chamava de atingimento do “ponto culminante da ofensiva”, um momento nas operações em que o atacante é detido. Quando isso acontece, segundo o grande general prussiano do século 19, autor do clássico “Da Guerra”, algumas coisas podem acontecer: negociações de paz que ponham fim às hostilidades, mudança da atitude do atacante, que passa à defensiva, ou uma reorganização para retomar a iniciativa da ofensiva. No caso, vemos as três coisas acontecendo, embora a construção de posições defensivas pelos russos não seja generalizada e apenas ocorra em alguns locais aonde os ucranianos fazem pequenos contra-ataques, e as negociações de paz, até o momento, tenham se mostrado inconclusivas. O mais provável é que os russos retomem a ofensiva, após uma reorganização.

Ao mesmo tempo em que os russos perderam a impulsão do ataque, eles passaram a atuar mais fortemente com os fogos, aumentando a intensidade e a frequência dos ataques aéreos, de artilharia de campanha, de mísseis e de foguetes, sobre as posições ucranianas. Esses ataques, muitas vezes feitos a alvos nas cidades, têm causado grande destruição suscitando críticas da comunidade internacional pelo sofrimento causado aos civis e dúvidas quanto a legalidade das ações segundo o Direito da Guerra

A este respeito, é importante que se separem os dois corpos jurídicos que tratam da guerra. O primeiro é o “Jus ad bellum”, ou o direito à guerra, que trata da legitimidade para se travar a guerra. A Carta das Nações Unidas[8], assinada tanto por Rússia como por Ucrânia, obriga as nações a buscarem a resolução de disputas por meios pacíficos e requer autorização das Nações Unidas antes que uma nação possa iniciar qualquer uso da força contra outra. Entretanto, a própria carta resguarda o direito do país soberano de se defender em caso de agressão. Sob esse ponto de vista, a invasão da Ucrânia pela Rússia é claramente ilegal, uma vez que não foi autorizada pela ONU. Um exemplo histórico de outra invasão não autorizada a um país soberano – portanto ilegal – foi a do Iraque, pelos EUA, em 2003. Já a defensiva ucraniana, em seu próprio território, em face de uma invasão estrangeira, é perfeitamente justificada legalmente.

O segundo é o “Jus in bello”, ou o direito na guerra. Este parte da premissa de que, uma vez que a guerra existe e está sendo travada, os dois lados combatentes devem respeitar certas normas, acordadas em convenções como as de Genebra e outras, que limitem as ações no sentido de limitar o sofrimento causado pelo conflito. Esse corpo jurídico, que conforma o Direito Internacional dos conflitos Armados[9] (DICA), também chamado de Direito Internacional humanitário (DIH) é regido por princípios e é focalizado sob sua luz que as ações de ambos os contendores estão sendo observadas, e que os comandantes poderão ser responsabilizados ao fim das hostilidades.

Com trinta dias de guerra, não é possível, evidentemente, se afirmar com certeza o rumo dos acontecimentos. Como tentei demonstrar, a guerra é uma atividade muitíssimo complexa, submetida a uma infinidade de variáveis, que podem em determinado momento interagir de uma forma inesperada e descortinar novos e imprevisíveis cenários.

O panorama apresentado dos acontecimentos decorridos até o momento visa apenas mostrar, muito sumariamente, alguns dos diversos aspectos envolvidos, com o objetivo de auxiliar o leitor a compreender melhor os acontecimentos, contribuindo para a formação de suas próprias conclusões.

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[1] “George, você precisa entender que a Ucrânia não é um país.” Estas foram as palavras de Vladimir Putin ao presidente George W. Bush em Bucareste, na cúpula da Otan, em 2008. Disponível em https://internacional.estadao.com.br/noticias/geral,putin-conseguiu-colocar-os-eua-exatamente-onde-ele-queria-leia-artigo,70003959787

[2] Os 70 anos da OTAN. Disponível em https://paulofilho.net.br/2019/12/09/os-setenta-anos-da-otan/

[3] Estados Unidos fortalecem aliança com Japão, Índia e Austrália para conter avanço da China no Indo-Pacífico. Disponível em https://brasil.elpais.com/internacional/2021-09-25/estados-unidos-fortalecem-alianca-com-japao-india-e-australia-para-conter-avanco-da-china-no-indo-pacifico.html

[4] Aukus: o que é o pacto militar anunciado por EUA, Reino Unido e Austrália para conter a China. Disponível em https://www.bbc.com/portuguese/internacional-58582195

[5] Macron afirma que OTAN está em “morte cerebral’ Disponível em https://www.dw.com/pt-br/macron-afirma-que-otan-est%C3%A1-em-estado-de-morte-cerebral/a-51159104

[6] Alemanha investirá 100 bilhões de euros nas Forças Armadas. Disponível em  https://www.dw.com/pt-br/alemanha-investir%C3%A1-100-bilh%C3%B5es-de-euros-nas-for%C3%A7as-armadas/a-60937933

[7] A Estratégia da Dissuasão caracteriza-se pela manutenção de forças militares suficientemente poderosas e prontas para o emprego imediato, capazes de desencorajar qualquer agressão militar. Esta é a definição do Manual de Estratégia do Exército Brasileiro. Disponível em  http://www.coter.eb.mil.br/images/noticias/2020/294/Painel_de_Manuais.pdf

[8] Leia o Capítulo VII da carta, que trata das ações relativas a ameaças à paz, rupturas da paz e atos de agressão – http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1930-1949/d19841.htm

[9] Saiba mais consultando o manual do Ministério da Defesa sobre DICA – https://www.gov.br/defesa/pt-br/arquivos/File/legislacao/emcfa/publicacoes/md34a_ma_03a_dicaa_1aed2011.pdf




A guerra está de volta ao continente europeu

Em pleno século 21, a guerra de alta intensidade está de volta ao continente europeu. Perplexos, fomos acordados na manhã de 24 de fevereiro pelo som das explosões das granadas e dos disparos das armas de fogo.  Eram inacreditáveis as cenas de mísseis atingindo residências, de blindados em chamas e de engarrafamentos gigantescos provocados pelos veículos de ucranianos em fuga.

Os europeus, de uma maneira geral acreditavam que, depois da guerra do Kosovo, nos estertores do século 20, não mais testemunhariam um conflito como o que está em curso na Ucrânia. Os vencedores da Guerra Fria acreditaram que o mundo globalizado, no qual os fluxos de capitais, pessoas, serviços e ideias desconhecem fronteiras, criaria tal interdependência que tornaria os custos de um conflito tão altos que dissuadiriam qualquer iniciativa belicosa.

Além disso, a vitória na disputa contra o bloco socialista tinha levado ao “fim da história”. Todos os países caminhariam inexoravelmente para o modelo democrático liberal do Ocidente. Esse pensamento talvez tenha sido um dos fatores contribuintes para que os vencedores desprezassem a necessidade de se estabelecer um pacto com os derrotados. A Rússia, herdeira da União Soviética, teve suas preocupações de segurança ignoradas e a OTAN, nas duas primeiras décadas do século 21 foi se expandindo em sucessivas ondas em direção ao Leste, passando a incluir países que antes eram repúblicas integrantes da própria URSS. Este avanço causou profundo ressentimento dentre as lideranças russas.

Neste contexto, ocorreram os atentados de 11 de setembro em Nova York, que provocaram a reação dos EUA e foram o evento disparador de uma importante mudança nas estratégias militares: como não havia mais a ameaça de um conflito interestatal e a nova ameaça eram os grupos terroristas, grupos guerrilheiros e entes não-estatais, o esforço principal dos exércitos não deveria mais ser voltado para a preparação para o combate de alta intensidade, interestatal, mas, sim para a “Guerra ao Terror”.

Então, se já “não havia mais guerras”, como escreveu o General britânico Rupert Smith na abertura de sua obra “A utilidade da Força”, de 2005, por que os investimentos em Defesa europeus deveriam se manter nos níveis até então existentes? Para que investir em carros de combate, submarinos, caças, se essas armas eram desnecessárias para se enfrentar terroristas? Essa foi se tornando uma pergunta incômoda para os políticos em todo o mundo, que foram sendo cada vez mais pressionados a diminuírem seus investimentos em Defesa, priorizando outras áreas.

Até que veio o primeiro alerta, com a invasão da Geórgia pelos russos, em 2008, e o consequente reconhecimento de duas novas “repúblicas”, que se declararam independentes: Abecásia e Ossétia do Sul. A ascensão de Xi Jinping ao poder na China, em 2012, e o grande impulso estratégico que ele deu às suas forças armadas, que passaram por uma reorganização e rapidíssima modernização, também fizeram soar alarmes nos estrategistas ocidentais. O terceiro e decisivo alerta foi a anexação da Crimeia pelos russos e o apoio aos separatistas das regiões de Luhansk e Donetsk, na bacia do Rio Don, no Leste da Ucrânia.

Os alertas ecoaram nos centros de estudos estratégicos dos principais países do Ocidente. Em 2017, os EUA lançaram o conceito de Operações em Múltiplos Domínios, já voltado para a guerra de alta intensidade em largas frentes. Em 2018, o país publicou sua estratégia militar, onde “guerra ao terror” perdeu importância, e a nova prioridade passou a ser a competição entre Estados. O documento lista nominalmente os potenciais inimigos: China, Rússia, Irã e Coreia do Norte. À Rússia, o documento atribui ações de violação de fronteiras e a intimidação de países vizinhos.

Reino Unido e França, ambos em 2021, também lançaram revisões de seus documentos norteadores de Defesa. Os britânicos identificavam nominalmente a Rússia como sendo a maior ameaça à segurança europeia. O documento francês seguiu a mesma ideia.

Como se vê, a guerra russo-ucraniana estava anunciada nos documentos estratégicos das principais potências militares do Ocidente. Então, cabe a pergunta: se ela foi antevista pelos estrategistas militares, por que as lideranças políticas não foram capazes de evitá-la?

Essa é uma pergunta muito complexa, para a qual não existe uma explicação simples. Talvez um bom caminho a explorar na busca das respostas seja a análise da incapacidade dos líderes ocidentais de se afastarem das questões domésticas para enxergarem o todo, de identificarem prioridades e de estabeleceram ações com objetivos político-estratégicos claramente definidos. A inércia internacional face às sucessivas violações russas do Direito Internacional, em 2008 e 2014, certamente pavimentou o caminho para a guerra. Esperemos que, desta vez, a lição seja aprendida. Forças militares minimamente capazes não se improvisam, assim como vácuos de poder podem custar muito caro à segurança internacional.

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O Direito Internacional dos Conflitos Armados e a Guerra Russo-ucraniana

Soldados! É fácil a missão de comandar homens livres: basta apontar-lhes o caminho do dever. O nosso caminho está ali defronte. Não me é preciso lembrar-vos que o inimigo vencido e o paraguaio inerme ou pacífico devem ser sagrados para um exército composto de homens de honra e de coração. (OSÓRIO, abril de 1866)

General Osório

As ações russas e ucranianas acompanhadas por todos praticamente em tempo real pelas televisões e pela internet suscitam uma série de dúvidas acerca da legitimidade das ações de ambos os lados do conflito. Neste artigo, procuro esclarecer alguns aspectos do Direito Internacional dos Conflitos Armados (DICA) que podem ajudar na compreensão dos acontecimentos em curso na Ucrânia.

O DICA, como entendido atualmente, surgiu em 1864, ano em que foi celebrada a primeira Convenção de Genebra. Mas, desde a antiguidade, existiam regras sobre os meios e métodos a serem utilizados nos combates.

As leis da guerra nasceram do confronto entre forças armadas no campo de batalha. Até a metade do século XIX, essas regras permaneceram costumeiras por natureza, reconhecidas porque elas existiam desde tempos imemoriais e porque elas correspondiam às demandas da civilização. Todas as civilizações haviam desenvolvido regras com o intuito de minimizar a violência – até essa a forma de violência institucionalizada que chamamos de guerra – já que a limitação da violência faz parte da essência da civilização. (Henckaerts e Doswald-Beck, citados por Silva Gomes (2013)

O DICA é um conjunto de normas que, procura limitar os efeitos de conflitos armados. Protege as pessoas que não participam ou que deixaram de participar nas hostilidades, e restringe os meios e métodos de combate. Ele também designado por “Direito da Guerra” e por “Direito Internacional Humanitário (DIH). Ele faz parte faz parte do Direito Internacional que rege as relações entre Estados e que é constituído por acordos concluídos entre Estados – geralmente designados por tratados ou convenções – assim como pelos princípios gerais e costumes que os Estados aceitam como obrigações legais.

Sugestão de leitura – compre na Amazon

As fontes do DICA são basicamente três: Os chamados Direito de Genebra, de Haia e de Nova York.

O Direito de Genebra é constituído pelas quatro convenções de Genebra, de 1949, que estabelecem normas de proteção das vítimas dos conflitos: membros das forças armadas fora de combate; feridos; doentes; náufragos; prisioneiros de guerra; população civil e todas as pessoas que não participem ou tenham deixado de participar das hostilidades.

As quatro convenções são complementadas por seus protocolos adicionais I e II que tratam, respectivamente, da proteção das vítimas dos conflitos armados internacionais e das vítimas dos conflitos armados não internacionais. Tanto Rússia, quanto Ucrânia, são signatários das Convenções de Genebra[1].

O Direito de Haia consubstancia-se nas Convenções de Haia, celebradas em 1889 e revistas em 1907, e em vários acordos internacionais posteriores. Trata da proibição ou regulação da utilização de armas, impondo limitações aos meios utilizados para provocar danos ao inimigo.

As normas originadas no âmbito da ONU ficaram conhecidas como o “Direito de Nova York”. Ele também ficou conhecido como “Direito Misto”, porque buscou complementar e aproximar as normas de Genebra e de Haia.

O DICA é regido por cinco princípios básicos: humanidade, distinção, limitação, proporcionalidade e necessidade militar.

Foi o princípio da humanidade que motivou o General Osório, na Guerra da Tríplice Aliança, a exortar seus homens em 13 de abril de 1866, às vésperas de cruzar o Rio Paraguai e entrar pela primeira vez em território inimigo, a agirem com “honra e com coração”. Uma exortação de claro caráter humanitário.

De acordo com o Comitê Internacional da Cruz Vermelha, a finalidade do princípio da humanidade é evitar e aliviar, a todo custo, em qualquer situação, o sofrimento humano. Ao final da invasão da Ucrânia pela Rússia, certamente a comunidade internacional vai se debruçar sobre os acontecimentos em território ucraniano e o princípio da humanidade será um dos que mais será verificado, especialmente se se verificarem ações, por parte dos comandantes dos dois partidos, que afrontem esses princípio tão fundamental.

O princípio da distinção, segundo Cinelli (2011) é aquele sobre o qual se assenta todo o edifício do DICA como corpo normativo destinado à proteção de pessoas e bens. Isso se deve à necessidade do combatente de identificar, com clareza, entre aqueles que são considerados “população civil” e aqueles considerados combatentes inimigos. O objetivo desse princípio é, em suma, impedir ataques amplos e indiscriminados sem preocupação com baixas civis e danos à propriedades. Esse princípio suscitará muita discussão no caso da Ucrânia. Convocar os civis para defender o país e armá-los, em tese, na constitui violação deste princípio, desde que esses civis utilizem sinais distintivos claros, como uniformes ou qualquer adereço que os identifique, utilizem as armas de forma ostensiva e entrem em uma organização com uma clara cadeia de comando. Caso contrário, caso escondam o fato de que atuam como combatentes, não atenderão ao princípio da distinção e estarão, em tese, cometerão o crime de perfídia, listado no artigo 37 do Protocolo I das Convenções de Genebra.

O princípio da limitação afirma que o direito das partes beligerantes na escolha dos meios para causar danos ao inimigo não é ilimitado, sendo imperiosa a exclusão de meios e métodos que causem sofrimento desnecessário ou danos supérfluos. De acordo com o artigo 52 do Protocolo I, “os ataques devem se limitar estritamente aos objetivos militares”.  Assim, a população civil, deve sempre ser protegida. A guerra, não é um vale-tudo. No caso da invasão russa à Ucrânia, as cenas de prédios civis destruídos por armas que infligem danos não só ao objetivo militar, mas também a todo o seu entorno, em tese, constituem violação desse princípio, exceto se ficar comprovado que os prédios civis também constituíam alvos legítimos segundo o DICA.

O princípio da proporcionalidade rege que os meios e métodos de combate devem ser proporcionais à vantagem militar concreta e direta. Nenhum alvo, mesmo militar, deve ser atacado se os prejuízos e sofrimento forem desproporcionais aos ganhos militares que se esperam da ação. No caso da ação russa na Ucrânia, chama atenção o caso da utilização da munição cluster, ou de fragmentação, pelos russos. Há muita discussão sobre o uso desse tipo de arma, que espalha submunições explosivas por uma grande área, muitas das vezes redundando em engenhos falhados espalhados por uma grande área, que após a cessação das hostilidades terão que ser desarmadas e poderão provocar danos por um longo período, mesmo após a guerra.

Finalmente, há o princípio da necessidade militar. Em todo o conflito armado, o uso da força deve corresponder à vantagem militar que se pretende obter. As necessidades militares não justificam condutas desumanas, tampouco atividades proibidas pelo DICA. Assim, qualquer ação que não traga uma vantagem militar clara deve ser evitada por ambas as partes em conflito.

Como se vê, o dito popular que afirma que “no amor e na guerra vale tudo”, não representa a verdade. Desde tempos imemoriais, há um esforço em se regular minimamente as ações das partes beligerantes, a fim de se preservar a ética no campo de batalha.

Um exemplo de cumprimento, por ambos os partidos, dos princípios do DICA, foi a Guerra das Malvinas. Tanto argentinos quanto britânicos se comportaram exemplarmente, e, ao fim do conflito os dois lados foram reconhecidos e respeitados em relação ao comportamento ético no campo de batalha.

Finalmente, espero que este artigo proporcione aos leitores algumas ferramentas mínimas para acompanhar com mais profundidade os acontecimentos da guerra que, tristemente, acontece em território ucraniano neste momento.

 

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REFERÊNCIAS

BRASIL, Ministério da Defesa. Manual de Emprego do Direito Internacional dos Conflitos Armados nas Forças Armadas. Disponível em https://www.gov.br/defesa/pt-br/arquivos/File/legislacao/emcfa/publicacoes/md34a_ma_03a_dicaa_1aed2011.pdf

CINELLI, Carlos Frederico. Direito Internacional Humanitário: ética e legitimidade na aplicação da força em conflitos armados. Editora Juruá. 2011

SILVA GOMES, Túlio Endres da. Impactos do Direito de Guerra para a Campanha do Exército Brasileiro na Guerra entre a Tríplice Aliança e o Paraguai (1864-1870). Tese de Doutorado. Escola de Comando e Estado-Maior do Exército. Disponível em http://www.eceme.eb.mil.br/images/IMM/producao_cientifica/teses/tulio-endres-da-silva-gomes.pdf

[1] Lista de países signatários aqui – https://ihl-databases.icrc.org/applic/ihl/ihl.nsf/States.xsp?xp_viewStates=XPages_NORMStatesParties&xp_treatySelected=375




A estratégia norte-americana no Indo-Pacífico

O governo dos EUA acaba de divulgar sua Estratégia para a Região do Indo-Pacífico. Logo na primeira frase do documento, os norte-americanos afirmam: “Os EUA são uma potência do Indo-Pacífico”. Tal afirmação se baseia em uma interpretação bastante elástica para definir os limites da área, muito mais ampla do que a habitualmente proposta pelos geógrafos, que restringem aquela região à bacia do Índico, ao Sul e Sudeste Asiático e à Oceania. Os EUA aproveitam o fato de serem banhados pelo Pacífico para definir a região como sendo a imensa área, estendida desde sua própria costa oeste até o Oceano Índico, lar de mais da metade da população do mundo, de quase 2/3 da economia mundial e de sete dos dez maiores exércitos do planeta.

Para os norte-americanos, o Indo-Pacífico é vital. Assim, eles resolveram reafirmar seu interesse na região, exatamente no momento histórico em que China e Rússia se posicionam como polos de poder mundial, declaram uma amizade mútua “sem limites” e desafiam abertamente o poderio norte-americano.

No documento, não só se ressalta a importância que a região tem para os EUA, mas também se afirma que os laços com os países da área remontariam a dois séculos, quando os norte-americanos teriam buscado estabelecer contatos comerciais na região. Tais laços teriam sido reforçados pela imigração asiática para os EUA. O documento ainda relembra a atuação de seus militares na 2º Guerra Mundial e as alianças do país com Japão, Coreia do Sul, Austrália, Filipinas e Tailândia.

A estratégia foca em cinco (5) objetivos principais, listados a seguir, os quais serão analisados na sequência:

1. Garantir que a região permaneça “livre eaberta”;
2. Construir conexões no interior e além da região;
3. Conduzir a região à prosperidade;
4. Fortalecer a segurança regional; e
5. Construir uma resiliência regional face às ameaças transnacionais do século 21.

Garantir que a região do Indo-Pacífico permaneça livre e aberta

O primeiro objetivo é um recado nada sutil aos chineses. Segundo o documento, os EUA garantirão aos países da região a tomada de decisões, consistentes com as leis internacionais, de forma independente e livre de coerção. Também ocorrerá o fortalecimento da liberdade de imprensa, das instituições democráticas e uma “vibrante sociedade civil”. A liberdade e a segurança da internet e do ciberespaço são listadas como prioridade, além da garantia do cumprimento das leis internacionais no que se refere aos mares do Sul da China e do Leste da China.

Construir conexões no interior e além da região

O segundo objetivo reforça a importância que os EUA atribuem às alianças com seus tradicionais parceiros na região, afirmando que se
pretende fortalecer as relações com outros países do Indo-Pacífico. Reafirma-se a importância da parceria com o Japão, a Austrália e a Índia no chamado “Diálogo Quadrilateral de Segurança – Quad” e se reforça a importância da Associação das Nações do Sudeste Asiático – ASEAN, afirmando-se o apoio à aproximação daquele grupo com o Quad e também com as nações do sul da Ásia. Os EUA afirmam, ainda, querer contribuir com a construção de pontes entre o Indo-Pacífico e a região Euro-Atlântica, além de estreitar a coordenação das ações dos países da região na Organização das Nações Unidas.

Conduzir a região à prosperidade

O terceiro objetivo reforça que a prosperidade dos americanos está diretamente ligada à região. O comércio entre os EUA e o Indo-pacífico somou US$$1,75 trilhões em 2020, gerando 5 milhões de empregos e os EUA pretendem estabelecer o “Indo-Pacific economic framework”, uma estrutura voltada para a facilitação do comércio, estabelecimento de padrões para a economia digital e tecnologia, criação de resiliência da cadeia de suprimentos, descarbonização e geração de energia limpa, infraestrutura, padrões de trabalho e outras áreas de interesse compartilhado.

Fortalecer a segurança regional

O penúltimo objetivo colimado pela Estratégia trata da segurança regional. O país está presente na região há 75 anos e lá permanecerá,
aperfeiçoando suas capacidades a fim de defender seus interesses e dissuadir agressões ou coerções feitas contra o próprio país ou contra aliados. O documento reafirma que o país continuará empenhado, junto com os parceiros e aliados regionais, na manutenção da estabilidade no Estreito de Taiwan. Afirma-se que a parceria de Defesa com a Índia será reforçada e que os EUA continuarão comprometidos com a
desnuclearização da Península Coreana.

Construir uma resiliência regional face às ameaças transnacionais do século 21

O quinto e último objetivo traçado é o de construir uma resiliência regional face às ameaças transnacionais do século 21. A ameaça destacada é a crise climática, cujo epicentro seria a própria região do Indo-Pacífico, área onde ocorrem 70% dos desastres naturais do mundo. Assim, os EUA se comprometem a estabelecer, junto com os parceiros da região, objetivos, estratégias, planos e políticas com vistas a limitar o aquecimento global a 1,5° Celsius. O enfrentamento da pandemia da Covid-19 também é destacado como um dos esforços que será apoiado pelos EUA.

Para implementar a estratégia e alcançar os objetivos mencionados, o documento lista ações que serão adotadas em até dois anos, reunidas em 10 linhas de esforço, as quais estão resumidas a seguir.

  1. Direcionar novos recursos para a região do Indo-Pacífico: abrir novos consulados e embaixadas, particularmente no sudeste asiático e nas ilhas do Pacífico, expandir a cooperação da Guarda Costeira norte-americana aos países insulares do Pacífico e aos do sudeste asiático
  2. Lançar a Indo-Pacific Economic Framework, uma nova parceria econômica que pretende promover e facilitar as transações econômicas, criar uma governança para a economia digital, melhorar a resiliência das cadeias de suprimentos, catalisar investimentos em infraestrutura e conectividade digital, de forma a dobrar os laços econômicos dos EUA com a região.
  3. Reforçar a dissuasão, de modo a defender os interesses dos EUA e de seus aliados na região, inclusive no Estreito de Taiwan, pelo incremento das capacidades militares, aumento das atividades militares e das iniciativas da Indústria de Defesa. Outro caminho mencionado é a busca do melhor formato para a parceria AUKUS, de modo que a Austrália tenha um submarino de propulsão nuclear no mais curto prazo.
  4. Fortalecer a ASEAN. Os Estados Unidos estão fortalecendo os laços EUA-ASEAN, inclusive promovendo uma Cúpula Especial EUA-ASEAN – a primeira a ser realizada em território norte-americano, em Washington.
  5. Apoiar o crescimento da Índia e sua liderança regional, desenvolvendo a parceria estratégica com o país, de modo a “promover a estabilidade no Sul da Ásia”.
  6. Fortalecer o Quad, de modo que o grupo trate das questões que importam para a região do Indo-Pacífico. O grupo estimulará o desenvolvimento de tecnologias emergentes, e fomentará a cooperação em diversas áreas.
  7. Expandir a cooperação trilateral entre EUA, Japão e Coreia do Sul, não somente nos assuntos relativos à Coreia do Norte e à segurança da península coreana, mas também na área de tecnologias críticas e questões de cadeias de suprimentos.
  8. Parceria para aumentar a resiliência das nações insulares do Pacífico, especialmente em relação aos efeitos das mudanças climáticas, além de colaboração em outros setores, como na tecnologia da informação e comunicações, transportes, navegação e pesca.
  9. Apoio à boa governança e à prestação de contas, apoiando ações dos governos que erradiquem a corrupção e também a sociedade civil e jornalistas para que se garanta que eles possam “expor e mitigar o risco de interferência estrangeira e manipulação da informação”. Os EUA continuarão a defender a democracia em Mianmar pressionando a junta militar a proporcionar um retorno do país à democracia.
  10. Apoiar a manutenção de uma estrutura tecnológica digital aberta, segura e confiável, especialmente garantindo diversidade de fornecedores de serviços de nuvem e de telecomunicações, inclusive por meio de tecnologias inovadoras, e aumentando a resiliência e a segurança cibernéticas.

Na conclusão do documento, o governo norte-americano afirma que sua política exterior entra em um novo período, que exigirá que os EUA se dediquem à região do Indo-Pacífico de uma forma que não lhes foi exigida desde o fim da 2ª Guerra Mundial. Afirma que os interesses vitais do país na região se tornaram ainda mais claros e difíceis de proteger, e que a próxima década será decisiva para o futuro da região, dos EUA e do mundo.

Como se vê, os EUA reagem ao exponencial crescimento da influência chinesa na região, que ganhou muita velocidade com a iniciativa Belt and Road (Cinturão e Rota), que injetou bilhões de dólares em obras de infraestrutura em toda a região. Também reage à maior assertividade geopolítica chinesa, que vem desenvolvendo aceleradamente suas forças armadas, em especial sua marinha, que se projeta cada vez mais para a toda a região do Indo-Pacífico.

O lançamento da Estratégia consubstancia a reação norte-americana, demonstrando que o país não pretende renunciar a sua liderança política, econômica, militar e cultural, nem mesmo na região do Indo-Pacífico, natural área de influência da China. Mais do que isso, a Estratégia indica com clareza, que a prioridade dos norte-americanos não pode ser mais identificada na Europa ou no Oriente-Médio. Ela migrou, definitivamente, para o extremo Oriente.

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Na guerra vale tudo?

Todas as guerras são baseadas no logro. Portanto, quando capazes de atacar, devemos parecer incapazes, ao usarmos as nossas forças, devemos parecer inativos, quando estivermos próximos, devemos parecer distantes e quando distantes, devemos parecer próximos.

Sun Tzu. A Arte da Guerra/Cap 1

Quem faz injuria vil e sem razão,

Com forças e poder em que está posto

Não vence, que a vitória verdadeira

É saber ter justiça nua e inteira

 

Camões. Os Lusíadas, Canto X, estrofe LVIII

 

O jornal The New York Times, em sua edição de 03 de fevereiro, publicou uma reportagem citando autoridades norte-americanas que, sem serem identificadas, afirmaram que a Rússia estava planejando divulgar um vídeo falso no qual seria mostrado um ataque ucraniano em território russo ou um ataque contra a comunidade étnica russa das regiões separatistas no leste da Ucrânia.

Esse tipo de operação, já utilizada muitas vezes ao longo da história em guerras passadas, em inglês recebem o nome de false flag operations[1].

Trata-se de atuar militarmente contra um objetivo e atribuir essa operação ao inimigo, com a finalidade de criar um pretexto para a reação – um casus belli[2] – legitimando-a aos olhos da comunidade internacional e perante seu próprio público interno.

É, evidentemente, uma ação realizada muito abaixo da linha da ética. Por essa razão, nos casos já documentados na história, dificilmente o Estado assume sua prática.

A Segunda Guerra Mundial foi iniciada coma invasão da Polônia pela Alemanha. E o pretexto para a invasão foi uma famosa operação de bandeira falsa, a Operação Himmler, que leva esse nome em razão de ter sido criada por Heinrich Himmler.

A Operação Himmler teve vários episódios: assalto à estação de rádio de Gleitwitz (atualmente Gliwice na Polônia); ataque à estação aduaneira de Hochlinden; e ataque à estação de serviço florestal de Pitschen.

O principal foi o assalto à estação de rádio de Gleitwitz (a cerca de 4 Km da então fronteira com a Polônia). Por volta das 20 horas do dia 31 de agosto de 1939, um pequeno grupo de seis agentes alemães das SS, vestidos com uniformes poloneses e liderado por Alfred Naujocks, atacou a estação de rádio de Gleiwitz e transmitiu uma curta mensagem antialemã, em polonês, afirmando que a rádio estava nas mãos dos poloneses. Os alemães deixaram os corpos de alguns poloneses fardados no local ao mesmo tempo em que as emissoras de rádio alemãs noticiaram o incidente na fronteira, relatando a invasão e a reação da polícia alemã, que teria matado os poloneses. Em Londres, a BBC retransmitiu a informação. No dia seguinte, Hitler usou o “incidente” como pretexto para iniciar a invasão da Polônia e a II Guerra Mundial.

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A invasão japonesa da Manchúria chinesa, em 1931, também foi uma operação de bandeira falsa. Em setembro de 1931, forças japonesas detonaram uma pequena quantidade de explosivos perto de uma linha férrea de propriedade de uma empresa japonesa, a South Manchuria Railway, nas proximidades de Mukden – atualmente Shenyang. A explosão não causou danos relevantes, e um trem passou pelo local sem problemas, minutos depois. Entretanto, o Exército japonês acusou chineses do ato e desencadeou a invasão que levou à ocupação da Manchúria, na qual o Japão estabeleceu seu estado fantoche de Manchukuo, seis meses depois. A operação foi exposta internacionalmente, levando o Japão ao isolamento diplomático e sua retirada da Liga das Nações em março de 1933.

Em setembro de 2003, o jornal The Guardian divulgou documentos em uma reportagem que mostrava a existência de um plano secreto, elaborado em 1957, de forma conjunta pelos serviços secretos britânico, o MI-6, e norte-americano, a CIA, para criar falsos incidentes na fronteira da Síria, a fim de criar um levante para derrubar o regime sírio. O plano não foi executado, por falta de apoio dos vizinhos árabes da Síria.

Em 26 de novembro de 1939, a União Soviética realizou disparos com sua própria artilharia contra a vila soviética de Mainila, acusando os finlandeses de terem efetuado os tiros. Assim, forjou o casus belli que desencadeou a Guerra do Inverno, contra a Finlândia.

Como disse Platão, somente os mortos verão o fim das guerras. O fenômeno acompanha a história humana desde tempos imemoriais e assim permanecerá por muito tempo. Entretanto, até as guerras, um ato de suprema violência, têm suas regras no Direito Internacional Humanitário (DIH), constantes nas convenções de Genebra e seus protocolos adicionais, além de outros tratados internacionais. Igualmente importantes são as normas não-escritas, consuetudinárias, vigentes por usos, tradições, convenções e costumes de honradez.

As operações de bandeira falsa são condenáveis sob todos os aspectos. Do ponto de vista do DIH, podem configurar crimes de guerra, enquadrados no artigo 8º do Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional: VII) utilizar indevidamente uma bandeira de trégua, a bandeira nacional, as insígnias militares ou o uniforme do inimigo ou das Nações Unidas, assim como os emblemas distintivos das Convenções de Genebra, causando deste modo a morte ou ferimentos graves.

Do ponto de vista moral, causam a repulsa de toda a comunidade internacional. Estratagemas para enganar o inimigo, como recomenda Sun Tzu no cabeçalho deste texto, sempre existiram, e sempre existirão. São exemplos notórios o cavalo de troia e o exército fictício comandado por Patton posicionado de modo a enganar os alemães sobre o local de desembarque no dia D, na II Guerra Mundial. Coisa completamente diferente é atuar de forma pérfida, desleal e traiçoeira, criando um casus belli falso.

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Afinal, as causas que justificam a guerra, como a legítima defesa contra uma agressão, a intenção moralmente correta, o fato de ser o último recurso e de ser travada para evitar um mal maior são os critérios que fazem com que os povos aceitem pagar o altíssimo preço de participar de um conflito armado.

Por tudo isso, a acusação feita à Rússia de que ela estaria preparando uma operação de bandeira falsa para forjar um casus belii é gravíssima. Se concretizada, por qualquer dos lados, certamente causará enorme repulsa internacional.

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[1] Na falta de uma tradução consagrada para a expressão, neste artigo vou usar “operação de bandeira falsa”.

[2] Na terminologia bélica, casus belli é uma expressão latina para designar um fato considerado suficientemente grave pelo Estado ofendido, para declarar guerra ao Estado supostamente ofensor.




O Irã e o acordo nuclear

Enquanto o mundo está com suas atenções voltadas para a escalada de tensões na Ucrânia, em razão da concentração de tropas russas na fronteira entre os dois países, as negociações para a retomada do acordo nuclear entre o Irã e as potências globais, retomadas em maio de 2021, continuam em andamento.

Reino Unido, China, França, Alemanha e Rússia tentam negociar a retomada de um acordo que limite as atividades nucleares iranianas. Os EUA não participam diretamente das reuniões, mas acompanham os trabalhos de perto. Após oito rodadas de negociações, os países foram incapazes de chegar a um acordo.

Para entender como a situação chegou ao ponto atual, é necessário relembrar o desenrolar dos acontecimentos. Em 14 de julho de 2015, Irã, EUA, Rússia, China, Reino Unido, França e Alemanha celebraram um acordo, o Joint Comprehensive Plan of Action (JCPA). O pacto foi ratificado pelo Conselho de Segurança da ONU e suas disposições passaram a ser verificadas pela Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA).

O acordo previa que o Irã reduziria em 98% suas reservas de urânio enriquecido, além de limitar o nível de enriquecimento do metal a 3,67%, o suficiente para ser usado nas usinas termonucleares, para geração de energia elétrica. Essa limitação se deve ao fato de que, para ser utilizado para a fabricação da bomba atômica, por exemplo, o Urânio-235 deve ser enriquecido a níveis superiores a 90%, em centrifugas organizadas em série, numa espécie de cascata, especificamente destinadas a esse fim.

O JCPOA impôs ainda diversas outras limitações na área de pesquisa e desenvolvimento nuclear ao Irã. Em contrapartida, foram levantadas todas as sanções econômicas que eram impostam ao país na época, que haviam custado cerca de US$ 160 bilhões ao país, apenas em receitas de petróleo. Assim, todas as sanções foram suspensas e o país pôde retomar a venda de petróleo nos mercados internacionais, reavendo o acesso a ativos no valor de US$ 100 bi, que estavam congelados no exterior.

Entretanto, em 2018, o presidente Trump abandonou o JCPOA, reimpondo todas as sanções norte-americanas ao Irã, em uma estratégia de “pressão máxima”, exigindo que o Irã reduzisse seu programa de mísseis balísticos e sua participação em conflitos regionais.

Mas o Irã se recusou a ceder e sua economia sofreu um duro golpe, com sua moeda atingindo o menor valor em décadas e a inflação subindo a níveis recordes. Em 2019, o Irã passou a violar o acordo, usando o argumento de que, como uma das partes havia violado antes, o país não estava mais obrigado a cumprir suas obrigações.

Além disso, o país adotou uma estratégia de escalar as tensões. Assim, naquele ano o Irã implementou – ou patrocinou – uma série de ações, como a sabotagem de navios petroleiros no Estreito de Ormuz, ataques a oleodutos e empresas petrolíferas na Arábia Saudita, apreensão de um petroleiro britânico e a derrubada de uma Aeronave Remotamente Pilotada norte-americana.

Em janeiro de 2020, foram os EUA que atuaram de forma impactante, eliminando o General Qassim Suleimani, poderoso comandante da Guarda Revolucionária Iraniana, quando este se encontrava em visita ao Iraque.

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Autor –  Samy Adghirni

A difícil condição econômica do Irã deu ainda maior impulso à aproximação com a China, que remonta a década de 1980, durante a guerra contra o Iraque. Assim, em 2021 os persas foram aceitos na Organização para Cooperação de Xangai, além de ampliarem a participação do país em investimentos relacionados à Iniciativa Cinturão e Rota , ou nova Rota da Seda. No último dia 14 de janeiro, em uma reunião realizada na China, os ministros das Relações Exteriores da China, Wang Yi e do Irã, Hossein Amirabdollahian afirmaram que um acordo de cooperação nas áreas de energia e infraestrutura, válido por 25 anos, assinado no ano passado, estava sendo oficialmente implementado. Tal aproximação é vista como uma das razões pelas quais a China já não se sente tão pressionada pelas sanções comerciais do ocidente como no passado. Afinal, a China, não aderindo às sanções, serve como uma válvula de escape para a combalida economia iraniana.

Ignorando as limitações impostas pelo JCPOA, o Irã, em novembro de 2021, já havia acumulado um estoque de urânio enriquecido que era muitas vezes maior do que o permitido, estocando pelo menos 17,7 kg de metal enriquecido com 60% de pureza, aproximando-se do nível necessário para a fabricação da bomba. Também havia instalado mais centrífugas, de um tipo mais avançado e produzido uma liga de urânio metálico enriquecido, um material chave para a fabricação de armas nucleares. Além disso, o país também restringiu significativamente o acesso de inspetores internacionais às instalações do país, ao interromper o cumprimento do previsto pelo Protocolo Adicional de seu Acordo de Salvaguardas da AIEA.

Desta forma chegamos à situação atual, na qual as negociações para a retomada de um acordo nuclear se arrastam, com o Ocidente alertando que o prazo final, aquele depois do qual as condições necessárias ao desenvolvimento da arma atômica pelos iranianos já terá sido alcançado, se aproxima rapidamente.

Resta saber qual será a postura a ser adotada por EUA, Israel, Arábia Saudita e demais potências regionais e mundiais caso tal condição se estabeleça. A questão nuclear iraniana está em aberto, e será um dos maiores focos de tensão geopolítica no decorrer de 2022.

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