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A nova aliança militar entre EUA, Reino Unido e Austrália

No dia 15 de setembro, um pronunciamento feito pelo presidente Joe Biden, com a participação virtual dos primeiros-ministros britânico, Boris Johnson, e australiano, Scott Morrison, causou protestos da China e indignação na França: EUA e Reino Unido acordavam em repassar para Austrália a tecnologia necessária para a produção local de submarinos de propulsão nuclear.

Os protestos chineses são compreensíveis. Afinal, embora o nome da China não tenha sido citado em nenhum momento, é óbvio que a posse de submarinos nucleares pela Austrália tem a finalidade de conter a emergente potência asiática, detentora da maior Marinha do mundo em quantidade de meios navais e cada vez mais assertiva em suas ações no Mar do Sul da China. Aquela porção do Oceano Pacífico, que vai de Cingapura a Taiwan, é o palco da disputa entre a China e os países da região, envolvendo a exploração econômica dos recursos marinhos, a posse de centenas de pequenas ilhas e o acesso ao Oceano Índico via Estreito de Málaca.

Submarinos de propulsão nuclear são armas poderosíssimas. Enquanto um submarino convencional tem sua permanência submersa limitada, necessitando subir à superfície para recarregar suas baterias, um submarino nuclear pode ficar muito mais tempo submerso. Na prática, este tempo é limitado pela capacidade física e psicológica das tripulações e pelo estoque de víveres disponível. É muito mais rápido que o convencional e incomparavelmente mais furtivo, ou seja, de detecção muito mais difícil pelo inimigo. Uma flotilha de submarinos nucleares australianos navegando sob as águas do Mar do Sul da China seria um pesadelo para os militares chineses.

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Autor – Tim Marshall

Mas, se a reação chinesa podia ser esperada, a reação da França talvez tenha surpreendido norte-americanos, australianos e britânicos. O ministro das Relações Exteriores francês, Jean-Yves Le Drian, qualificou o acordo como “brutal” e uma “facada nas costas”. O presidente francês, Emmanuel Macron, determinou que os embaixadores franceses nos EUA e na Austrália fossem à França, “para consultas”. Como se sabe, essa é uma forma de expressar um profundo descontentamento. As razões francesas são predominantemente comerciais. O país havia firmado um acordo com os australianos para a venda de submarinos convencionais, no valor de US$ 66 bilhões. Agora, o acordo foi desfeito. Um enorme prejuízo. Mas esta não é a única causa de descontentamento. A França é uma aliada histórica dos EUA. Aliás, foi o primeiro país com quem os norte-americanos firmaram uma aliança militar, em 1778, quando os franceses com eles ombrearam contra os ingleses na guerra pela independência. Hoje, é um importante membro da Otan. Ao serem surpreendidos pelo acordo, os franceses se sentiram traídos.

O movimento de norte-americanos e britânicos, ocorrido imediatamente depois da completa e traumática retirada dos EUA e aliados do Afeganistão, emite sinais claros para toda a comunidade internacional. Os EUA mostram que o seu foco prioritário passa a ser a China e que o país não medirá esforços para conter aquele que considera ser o seu maior adversário geopolítico neste século 21. O Reino Unido, por sua vez, depois do Brexit, demonstra seu alinhamento prioritário com os EUA e reforça sua intenção de se manter relevante do ponto de vista geopolítico. Trata-se de uma ação dentro da Estratégia Global Britain, lançada por Boris Johnson, que vê o Reino Unido desvencilhado da Europa, como uma das mais influentes nações do planeta.

É interessante notar que a aliança entre EUA, Reino Unido e Austrália foi anunciada ao mesmo tempo que o Japão faz seu maior exercício militar em 30 anos, empregando cerca de 100 mil militares, em meio a um aumento das tensões com a China em torno da posse das ilhas Senkaku, que os chineses consideram suas e chamam de Diaoyu Dao. Note-se, também, que o Japão acaba de anunciar um acordo militar com o Vietnã, que envolve a realização de exercícios militares conjuntos entre os dois países e exportações de materiais de emprego militar dos japoneses para os vietnamitas.

Ao mesmo tempo que os EUA e seus maiores aliados no Indo-pacífico adotam atitudes cada vez mais assertivas no sentido de conter a China, esta se movimenta na direção contrária, projetando seu poder em direção ao Ocidente. Isso fica claro, por exemplo, quando China e Rússia aceitam o Irã como membro pleno da Organização para Cooperação de Xangai ou na assertividade com que o país se comporta em relação ao Afeganistão, ocupando o vácuo deixado por EUA e seus aliados.

“Na briga entre o mar e o rochedo, é o marisco que apanha”, diz o dito popular. O sistema internacional passa por um momento de reacomodação, no qual os movimentos de chineses e norte-americanos exigirão muita atenção dos demais países, que devem estar atentos para não verem comprometidos seus próprios interesses estratégicos. Ninguém está a salvo deste embate, nem mesmo o Brasil, na (distante) América do Sul.

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Autor – Robert Kaplan




Vinte anos dos ataques de Onze de Setembro de 2001 aos Estados Unidos da América

Para quem tem mais de trinta anos, 11 de setembro de 2001 é um dia inesquecível. Poucos são os eventos não relacionados às nossas vidas pessoais que ficam gravados na nossa memória de tal forma que nos lembramos exatamente do que estávamos fazendo quando recebemos a notícia. No meu caso há pessoal, apenas dois eventos desse tipo: a morte de Ayrton Senna e os atentados que hoje completam vinte anos.

O impacto foi tamanho em razão dos 2.977 mortos, de 77 nacionalidades diferentes (inclusive 5 brasileiros) e cerca de 6 mil feridos, dos gigantescos prejuízos financeiros, da surpresa, do ineditismo, e porque, mesmo intuitivamente, as pessoas sabiam que a partir daquele momento, o mundo seria outro.

Afinal, os Estados Unidos da América eram, à época, a única superpotência do planeta. Vivia-se a época da unipolaridade. A guerra fria havia terminado, e o vencedor, os EUA, eram indiscutivelmente a maior potência econômica, militar, cultural e tecnológica do planeta. E, apesar disso, os EUA tinham sofrido um ataque em seu próprio território apenas pela segunda vez na história. O primeiro, em 7 de dezembro de 1941, à Base de Pearl Harbor, tinha levado o país à 2ª Guerra Mundial. O segundo, levou o país à “Guerra ao Terror”.

A máquina militar norte-americana, que sempre teve a chamada guerra convencional, ou conflito de alta intensidade, como sua primeira prioridade de emprego, a partir daquele momento passava a se dedicar a outro tipo de conflito, de baixa intensidade, prolongado, de resultados muito mais dificilmente mensuráveis: o combate ao terrorismo, muito especialmente à Rede Al Qaeda de Osama bin Laden, responsável pelos ataques de 11 de setembro.

Assim, quase imediatamente, os EUA invadiam o Afeganistão. O grupo extremista Talibã, que governava o país e permitia que a Al Qaeda operasse a partir do seu território, foi deposto. Osama fugiu de seu complexo de Comando e Controle localizado nas montanhas de Tora Bora, fronteira com o Paquistão, para ser encontrado e morto por um grupo de Forças Especiais norte-americano somente em maio de 2011, no Paquistão.

Após a invasão do Afeganistão, que recebeu o apoio da comunidade internacional e da ONU, os EUA decidiram, também no contexto da Guerra ao Terror, invadir o Iraque e derrubar o ditador Saddam Hussein, sob o pretexto de que o país produzia armas químicas de “destruição em massa”. A comunidade internacional, neste caso, não apoiou a invasão, mas os EUA a efetivaram mesmo assim, derrubando o regime iraquiano.

Nos dois casos, Afeganistão e Iraque, a queda dos governos inimigos não significou o fim da guerra e o retorno dos soldados norte-americanos ao seu país. Seguiu-se a tentativa de implantação de regimes democráticos, de modelo ocidental. Essa tentativa de state building[1] encontra amparo em um pensamento ocidental de característica missionária, descrito, dentre muitos outros, da seguinte forma por Samuel Huntington.

O Ocidente – e em especial os EUA, que sempre foram uma nação missionária – está convencido de que os povos não-ocidentais deviam se dedicar aos valores Ocidentais de democracia, mercados livres, governos limitados, direitos humanos, individualismo e império da lei, e que deveriam incorporar esses valores às suas Instituições.[2]

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Autor – Samuel Huntington

Neste aniversário de vinte anos dos atentados é desnecessário lembrar que, tanto no Iraque quanto no Afeganistão, os EUA fracassaram em sua tentativa de implementar regimes de corte ocidental. No primeiro, que assistiu no pós-guerra o nascimento do grupo terrorista Estado Islâmico, o governo se equilibra precariamente entre as tensões entre grupos sunitas, xiitas e curdos. No segundo, o Talibã está exatamente no mesmo lugar em que estava em 11 de setembro de 2001.

As falhas de segurança que permitiram a ação da Al Qaeda foram esquadrinhadas, e os EUA modificaram suas leis e ampliaram significativamente a estrutura de inteligência. A Agência Nacional de Segurança (NSA), a CIA e as demais agências de inteligência passaram a contar com ampla liberdade de ação. Qualquer pessoa, em qualquer lugar do mundo, poderia ser alvo das agências e ter sua vida monitorada. A relativização da privacidade é uma das consequências do 11 de Setembro. As prisões arbitrárias de pessoas acusadas de terrorismo, mantidas encarceradas sem julgamento, e a divulgação das imagens do tratamento desumano dispensado aos presos da prisão de Abu Ghraib, no Iraque, abalaram a imagem dos EUA, tanto no exterior quanto junto à sua própria opinião pública, tornando a guerra impopular e contribuindo significativamente para o fim das operações em ambos os países.

Ao chegar ao aniversário de 20 anos dos atentados tendo se retirado completamente do Afeganistão, os EUA viram uma página dolorosa de sua história e, dessa forma, podem se concentrar nos desafios que não existiam à época, mas que hoje conformam o tabuleiro geopolítico mundial.

A China, que em 2001 ainda era a 7ª economia do mundo, passou a ser um desafiante de muito peso, capaz de rivalizar com os EUA em todos os campos do poder e de ameaçar os interesses norte-americanos, especialmente no Pacífico. A Rússia, que em 2001 ensaiava uma aproximação do Ocidente, após a invasão da Ucrânia e da anexação da Crimeia, voltou a ser o principal antagonista da OTAN e a almejar um protagonismo em sua esfera de influência.

Assim, creio que se os EUA forem capazes de evitar um novo atentado de proporções semelhantes ao 11 de setembro, dificilmente veremos aquele país voltar a se engajar em guerras como a do Afeganistão e a do Iraque. Eles agora têm outras ameaças, talvez ainda maiores, com que se preocupar.

[1] Construção de Estado

[2] Huntington, Samuel. O Choque das Civilizações. p.228. Ed Objetiva. 1996

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As repercussões do fim da guerra no Afeganistão

As cenas das aeronaves civis e militares sendo cercadas por pessoas desesperadas para fugir do Afeganistão ficará gravada na memória dos milhões de espectadores que acompanharam pela televisão e pela internet a reconquista de Cabul pelo Talibã. Trata-se de um daqueles eventos marcantes que, por seu simbolismo, será utilizado por historiadores no futuro para explicar os acontecimentos marcantes desta segunda década do século 21.

Os custos da guerra para os Estados Unidos foram enormes. Morreram aproximadamente 2,5 mil militares norte-americanos; 1,1 mil militares dos países da coalizão e cerca de 70 mil militares afegãos. A esses números somem-se cerca de 50 mil baixas civis. Estima-se ainda que o esforço de guerra tenha custado cerca de 2 trilhões de dólares aos contribuintes norte-americanos.

Apesar desse esforço gigantesco em recursos humanos e materiais, os resultados não foram os esperados. E, ao final, os Estados Unidos da América, maior potência militar do planeta, e seus aliados da OTAN foram surpreendidos pela velocidade com que o Talibã executou sua ofensiva final, obrigando-os a uma humilhante retirada. Em meio ao caos das pessoas tentando chegar ao aeroporto para conseguir uma vaga em uma aeronave para fugir do país, atentados terroristas mataram cerca de 180 pessoas, dentre elas 13 militares norte-americanos.

Neste artigo, procurarei delinear o histórico dos acontecimentos, mostrando como  caminharam para esse desenlace e apresentarei possíveis repercussões da nova situação política do Afeganistão para o chamado “Grande Oriente Médio” e para as potências do entorno, especialmente China, Rússia, Paquistão e Irã.

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Autora – Adriana Carranca

As intervenções norte-americanas no Afeganistão e no Iraque

Em 1990, reagindo à invasão do Iraque ao Kuwait, os EUA, autorizados pela ONU, lideraram uma coalizão militar internacional que derrotou o exército iraquiano e restabeleceu a soberania do Kuwait sem, entretanto, derrubar o regime liderado por Saddam Hussein no Iraque. Naquele episódio, um fato revoltou os grupos islâmicos radicais: as tropas ocidentais empregadas na Guerra do Golfo ficaram sediadas na Arábia Saudita, país islâmico sunita e wahabista, onde se encontram duas das mais importantes cidades sagradas do Islã: Meca e Medina.

É neste contexto que radicais islâmicos – em especial a rede Al Qaeda – planejaram e executaram uma série de atentados, contra o World Trade Center, em Nova York, em 1993, contra a base militar norte-americana em Kobhar, Arábia Saudita, em 1996, contra embaixadas dos EUA no Quênia e na Tanzânia, em 1998 e, finalmente, novamente contra as Torres Gêmeas do World Trade Center e ao Pentágono, em 11 de Setembro de 2001.

Esse último ataque, por suas inéditas proporções, vitimando mais de 3 mil pessoas em solo norte-americano, ganhou imediata repercussão mundial. A rede terrorista Al Qaeda, chefiada pelo saudita Osama bin Laden, foi imediatamente acusada de ser a autora dos atentados. Abrigada no Afeganistão pelo governo do grupo islâmico Talibã, que controlava cerca de 90% do território do país naquela época e era, de facto, o governo em Cabul, a Al Qaeda contava com ampla liberdade de ação nas montanhas ao sul do país, na porosa fronteira com o Paquistão.

Os EUA exigiram que o Talibã entregasse Bin Laden, o que não aconteceu. Em consequência, os norte-americanos iniciaram sua campanha militar no Afeganistão, novamente com o beneplácito da ONU, com o objetivo de retirar o Talibã do poder, desmantelar a rede terrorista Al Qaeda e eliminar Osama bin Laden.

As operações começaram em outubro de 2001 e, em dezembro do mesmo ano, o Talibã já havia sido retirado do poder. Osama bin Laden, entretanto, conseguiu fugir do seu complexo de comando e controle, escavado nas montanhas de Tora Bora, no sul do Afeganistão, próximo à fronteira com o Paquistão. O líder terrorista que havia planejado os atentados de 11 de setembro só viria a ser morto quase uma década depois, em maio de 2011, em uma ação norte-americana que encontrou seu esconderijo no Paquistão.

Mas as ações dos EUA não ficaram restritas ao Afeganistão. Em março de 2003, o país invadiu o Iraque, ainda governado por Saddam Hussein, alegando que o regime estava produzindo e estocando armas químicas de destruição em massa. Naquela oportunidade, diferentemente das anteriores, a ação militar norte-americana foi decidida unilateralmente, sem o respaldo das Nações Unidas.

Assim, os EUA mantinham, no contexto da estratégia de “guerra ao terror” que o país adotava naquele momento, duas intervenções militares ao mesmo tempo, no Afeganistão e no Iraque. Ambas as intervenções tinham por objetivos declarados a construção de regimes democráticos naqueles países, com instituições que fossem suficientemente sólidas para impedir que eles se transformassem em santuários para o planejamento de atentados terroristas sobre o território norte-americano ou europeu.

Nenhuma das ações obteve o êxito esperado. No Iraque, as tensões entre os grupos xiitas, curdos e sunitas se intensificaram, com os dois primeiros, que assumiram o poder no país, vingando-se dos anos de repressão promovida pelo partido de Saddam Hussein, o Baath, sunita. Este ambiente propiciou o surgimento da insurgência terrorista sunita, em especial o chamado Estado Islâmico do Iraque, que recrutou inclusive ex-integrantes das forças armadas iraquianas, que haviam sido desmanteladas com a queda do regime imposta militarmente pelos EUA.

A retirada das tropas norte-americanas do Iraque em 2011 deu espaço para o início de uma verdadeira guerra civil no país. Em junho de 2014, o Estado Islâmico do Iraque e do Levante (ISIS), grupo terrorista resultado da integração do já mencionado Estado Islâmico do Iraque a facções terroristas sunitas da Síria, proclamou o chamado “Califado Islâmico”, que chegou a manter o domínio do território em importantes porções dos dois países[1]. A reação ao grupo, no Iraque, foi feita pelo governo com apoio de milícias curdas e do Ocidente. Na Síria, o governo contou com forte apoio russo. No final de 2017, o ISIS finalmente foi derrotado.

Já as tratativas formais entre o governo dos EUA e o grupo Talibã no Afeganistão remontam ao ano de 2018. As conversas estavam baseadas em quatro premissas: os EUA retirariam todas as suas tropas; em contrapartida, os afegãos assumiriam o compromisso de que o país não se tornaria um santuário para grupos terroristas; deveria haver um amplo cessar fogo e um diálogo dentre todos os grupos afegãos na busca de um governo de consenso. Para que esse plano desse certo, o governo afegão, presidido por Ashraf Ghani, e o grupo Talibã, além das outras facções existentes no país deveriam conseguir chegar a um mínimo grau de entendimento. Ou, pelo menos, o governo afegão deveria ter condições de conter o grupo Talibã por tempo suficiente, após a retirada das tropas norte-americanas, para forçar o grupo Talibã a negociar. Nada disso aconteceu. Em uma ofensiva fulminante de cerca de dez dias, praticamente sem enfrentar resistências, o Talibã tomou para si o poder e o Presidente Ashraf Ghani fugiu do país.

A constatação inescapável é a de que as tentativas norte-americanas de instalar governos democráticos no Iraque e no Afeganistão não alcançaram o êxito esperado. O Afeganistão hoje é governado pelo Talibã, o mesmo grupo que estava no poder no início da guerra em 2001, e o Iraque vive grande instabilidade política.

Por outro lado, houve êxitos no nível tático. Osama bin Laden foi morto e o terrorismo da rede Al Qaeda e do ISIS foram muito enfraquecidos. Além disso, nesses últimos vinte anos, nenhum grande atentado terrorista ocorreu em território norte-americano.

O que pode acontecer no Afeganistão a partir de agora?

O desenrolar dos acontecimentos no Afeganistão, a partir de agora, deverá ser observado com atenção, para que se possa tentar antever os desdobramentos para o próprio país e para seu entorno.

Um primeiro ponto a se observar é se o país mergulhará em uma guerra civil ou se o Talibã será capaz de derrotar os demais grupos que tentarão disputar o poder, em especial a chamada “Aliança do Norte”, grupo que ainda controla do Vale do Panjshir, única área do país que não foi conquistada pelo Talibã em sua ofensiva final, e que é liderado por Ahmad Massoud, filho de Ahmad Shah Massoud, um comandante veterano da campanha contra os soviéticos na década de 1980.

Outro aspecto a ser acompanhado é a produção de papoula, base para a fabricação do ópio. O Talibã já se comprometeu publicamente a acabar com a produção da planta. Ocorre que ela é a principal fonte de financiamento do grupo. De acordo com um relatório do Escritório das Nações Unidas para as Drogas e o Crime (UNDOC), em 2020, houve um aumento de 37% da área de cultivo da papoula no Afeganistão, se comparada com 2019. Nesse mesmo estudo, o UNDOC afirma que mais de um terço dos fazendeiros entrevistados informaram que pagam impostos da ordem de 6% das vendas do ópio, principalmente, para o Talibã[2]. A transformação do território afegão em uma espécie de “zona livre” para a produção de drogas seria fator altamente desestabilizador para a região.

Um terceiro foco da atenção deve ser a possibilidade de aumento do terrorismo. Há um grande temor na comunidade internacional de que o território afegão volte a ser uma área livre para homizio, concentração e planejamento de ações terroristas. Embora o Talibã afirme que não permitirá que tais ações se desenvolvam, o atentado terrorista perpetrado pelo Estado Islâmico Khorasan, conhecido como ISIS-K, na região do aeroporto de Cabul, no momento em que os EUA e demais países do Ocidente faziam a retirada de suas tropas, serviu como um alerta de que o Talibã, mesmo que (e se) realmente quiser combater o terrorismo, talvez não tenha essa capacidade. É interessante notar que, em suas bases, o Talibã também possui militantes fanatizados, que podem muito bem servir de fonte de terroristas para o ISIS-K e outros grupos, caso acreditem que o governo Talibã tenha deixado de ser suficientemente rígido na sua interpretação dos valores pelos quais lutaram. E isso não é difícil de ocorrer, visto que as atuais lideranças do grupo, no governo, certamente terão que fazer concessões em favor da governabilidade, naturais do processo político e das relações internacionais.

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Autor – Patrick Cockburn

Repercussões da retirada norte-americana do Afeganistão

Vistos alguns possíveis rumos dos acontecimentos no Afeganistão, vejamos as possíveis repercussões para os principais atores internacionais envolvidos.

Os ecos da retirada serão fortemente sentidos nos Estados Unidos, tanto no campo interno quanto no campo externo. A sociedade norte-americana cobrará, especialmente por intermédio de seus congressistas e da imprensa, as razões para o fracasso da intervenção. A palavra “fracasso” aqui é usada propositalmente, porque essa será a percepção dominante na sociedade, mesmo que os eventuais sucessos táticos sejam apresentados ao grande público. E tal cobrança será grandemente potencializada caso ocorra algum atentado terrorista contra alvos norte-americanos em um futuro próximo. O atual governo, do presidente Joe Biden, sofrerá grande pressão e tenderá a responder com ações pontuais contra alvos identificados com o terrorismo no Oriente Médio e no norte da África.

No campo militar, os EUA fecham definitivamente a página da “Guerra ao Terror” e passam a se concentrar em uma nova era de competição estatal, conforme inclusive já preconiza a Estratégia de Defesa dos EUA[3], de 2018. O foco sai definitivamente do Oriente Médio e vai para a Ásia. Se no curto prazo, como se vê, a saída do Afeganistão é traumática para os EUA pelo inegável gosto de derrota, por outro lado, nos médio e longo prazos, os recursos economizados com o fim da guerra estarão disponíveis para serem empregados na Ásia, na contenção à China, e mesmo na Europa, na contenção à Rússia.

No campo externo, os EUA sofrerão um abalo em sua reputação. Adversários explorarão a narrativa de que o país abandona seus aliados, como teria feito com o governo afegão, deixado à mercê do Talibã. Esta é, inclusive, a narrativa que a China propagandeia, com o foco nos taiwaneses, indicando que estes igualmente seriam deixados sós contra a própria China em caso de um conflito entre chineses e separatistas taiwaneses.

Isso nos traz para as repercussões para a China. A potência asiática, vale a pena lembrar, faz fronteira com o Afeganistão através do Corredor Wakhan, em uma estreita faixa de terra de cerca de 70 quilômetros de largura. Do lado chinês da fronteira está Xinjiang, região autônoma habitada principalmente pela etnia uigur, um grupo majoritariamente islâmico. Xinjiang também é a base do grupo terrorista Movimento Islâmico do Turquestão Oriental, grupo separatista responsável, segundo o governo chinês, por mais de 200 ataques, com mais de uma centena de vítimas no país.

A China teme que o vizinho Afeganistão se torne um santuário para os terroristas, fortalecendo o movimento que atualmente se encontra enfraquecido.

A instabilidade no Afeganistão, caso o país entre em guerra civil, por exemplo, também seria muito ruim para a China, que possui uma série de interesses econômicos nos vizinhos Paquistão e países da Ásia Central. Os investimentos da Iniciativa Cinturão e Rota (Belt and Road Initiative) são fundamentais na estratégia de desenvolvimento econômico chinês e qualquer instabilidade que os ameace seria frontalmente contra os interesses chineses.

Assim, se à primeira vista o fracasso dos EUA no Afeganistão pode ser compreendido como vantajoso para a China, por outro lado a nova situação obrigará o país a assumir um protagonismo na segurança da região que antes era exercido pelos EUA, com todos os possíveis ônus que isso pode causar.

O governo chinês já está atuando para estreitar os laços com o governo talibã. A embaixada do país em Cabul foi mantida em funcionamento e espera-se que a China ofereça suporte financeiro ao país em troca da garantia de que não haverá nenhum tipo de apoio aos separatistas uigures.

Russos também têm motivos para se preocupar com o novo status afegão. A onda de refugiados afegãos em direção aos países fronteiriços de norte – Turcomenistão, Uzbequistão e Tadjiquistão – é uma grande preocupação para aquelas frágeis economias, e uma eventual instabilidade nesses países afeta diretamente os grandes interesses russos na Ásia Central. O Tadjiquistão já acionou a Organização do Tratado de Segurança Coletiva, aliança militar regional liderada pela Rússia, para auxiliar em uma eventual crise provocada por um grande afluxo de refugiados.

Para o Irã, as primeiras consequências podem ser econômicas. Em razão do isolamento imposto pelo ocidente, o Irã e o Afeganistão aumentaram suas relações econômicas nos últimos anos. Atualmente, o Afeganistão é um dos maiores destinos das exportações iranianas de não derivados do petróleo, em um volume de cerca de 2 bilhões de dólares ao ano. Uma crise econômica no Afeganistão traria, portanto, consequências bastante negativas para o Irã. Outra causa de preocupação é o afluxo de refugiados, que já são contados na casa das centenas de milhares de pessoas.

O Paquistão, vizinho de sul que compartilha com o Afeganistão uma fronteira porosa habitada pelos Pachtuns, etnia de origem do Talibã, certamente sentirá rapidamente os reflexos dos acontecimentos no Afeganistão. O país era, formalmente, um aliado norte-americano na guerra. Suas forças armadas, em razão disso, receberam bilhões de dólares dos EUA nos últimos vinte anos. Acontece que o Talibã, que muitos analistas afirmam ter sido uma criação do próprio serviço secreto paquistanês, encontra um grande apoio dentro do Paquistão. O país pretende evitar a todo custo que o Afeganistão caia na esfera de influência de seus arqui-inimigos, os indianos. Para os paquistaneses, o Afeganistão provê profundidade estratégica para um eventual conflito contra a Índia. Além disso, a proximidade do governo de Ashraf Ghani com os indianos era vista com muita desconfiança pelo governo de Islamabad. Assim, quando os diplomatas indianos foram um dos primeiros a abandonar Cabul quando da chegada do Talibã, isso foi comemorado como uma vitória pela imprensa paquistanesa.

Conclusão

O fim da guerra do Afeganistão pode ser considerado um marco nas disputas geopolíticas globais. Os EUA, por ora, se retiram da Ásia Central, como já tinham feito no Oriente Médio e no norte da África, caracterizando um provável pivô em direção à Ásia, na contenção da China, e mesmo um retorno de sua atenção à Europa, com o fortalecimento da OTAN na contenção da Rússia. Em consequência, o país perderá influência no Oriente Médio e na Ásia Central, o que alimentará certa narrativa de que vive momentos de declínio e perda de poder em sua disputa com a China.

A saída dos EUA dessas regiões abre espeço para uma atuação mais incisiva de Rússia e China, com as vantagens e desvantagens que acompanham este fato. A China passa a ter uma preocupação maior na sua fronteira oeste, somada às preocupações que ela já tinha em Xinjiang. Em compensação, se conseguir trazer o Afeganistão para sua área de influência, poderá fortalecer sua presença na Ásia Central e no Oriente Médio.

O Paquistão, embora comemore secretamente a vitória do Talibã, talvez perca muito apoio dos EUA, que poderão acabar cada vez mais alinhados com a Índia na busca da contenção da China.

Finalmente, o Afeganistão, transformado em “Emirado Islâmico do Afeganistão”, estará sob escrutínio da opinião pública internacional. O tratamento que dispensar às mulheres e às minorias, sua atitude face ao terrorismo internacional e ao tráfico de drogas e a sua capacidade de unificar o país evitando uma guerra civil serão os fatores que definirão se o país se integrará à comunidade internacional ou se será um pária, mais uma vez sujeito a intervenção das grandes potências. De qualquer forma, a retirada dos Estados Unidos permanecerá reforçando o mito da invencibilidade do Afeganistão em seu próprio território.

 

[1] Importante recordar que a Síria estava em guerra civil, com o Presidente Bashar al-Assad enfrentando diversos grupos, dentre eles, o ISIS.

[2] Disponível em https://www.unodc.org/unodc/en/frontpage/2021/May/afghanistan_-37-per-cent-increase-in-opium-poppy-cultivation-in-2020–while-researchers-explore-novel-ways-to-collect-data-due-to-covid-19.html

[3] Saiba mais em https://paulofilho.net.br/2018/04/18/nova-estrategia-de-defesa-dos-eua-e-ataque-a-siria/ e https://paulofilho.net.br/2021/06/27/a-otan-e-as-mudancas-no-equilibrio-do-poder-mundial/

 

REFERÊNCIAS

BARMAK, Pazhwak; ASMA, Ebadi; BELQUIS, Ahmadi. After Afghanistan Withdrawal: A Return to ‘Warlordism? United States Institute for Peace.  Disponível em https://www.usip.org/publications/2021/06/after-afghanistan-withdrawal-return-warlordism . Acesso em 30 de agosto de 2021.

CASTRO VIEIRA, Danilo. Política Externa norte-americana no Oriente Médio e o Jihadismo. Editora Appris. Curitiba, PR. 2019.

__________. Irmandade Muçulmana. Editora Appris. Curitiba, PR. 2021.

GOMES FILHO, Paulo. Vinte anos de Guerra no Afeganistão. Blog do Paulo Filho. Brasília, DF. 2021. Disponível em https://paulofilho.net.br/2021/08/09/vinte-anos-de-guerra-no-afeganistao/. Acesso em 28 de agosto de 2021.

__________.  Cemitério de Impérios. Blog do Paulo Filho. Brasília, DF. Disponível em https://paulofilho.net.br/2021/08/21/cemiterio-de-imperios/ . Acesso em 26 de agosto de 2021.

HELF, Gavin e BARMAK Pazhwak. Central Asia prepares for Taliban takeover. United States Institute for Peace.  Disponível em https://www.usip.org/publications/2021/07/central-asia-prepares-taliban-takeover . Acesso em 30 de agosto de 2021.

UNITED NATIONS OFFICE ON DRUGS AND CRIME. Afghanistan Opium Survey 2020 Cultivation and Production ‒ Executive Summary. Disponível em https://www.unodc.org/unodc/en/frontpage/2021/May/afghanistan_-37-per-cent-increase-in-opium-poppy-cultivation-in-2020–while-researchers-explore-novel-ways-to-collect-data-due-to-covid-19.html




Cemitério de Impérios

A cena pareceu familiar aos norte-americanos. Um helicóptero de suas Forças Armadas sobrevoou a Embaixada dos EUA num país distante, recolheu passageiros para uma evacuação às pressas, enquanto o inimigo se aproximava por todos os lados. As tropas, depois de longa guerra, estão retornando para casa sem poder comemorar a vitória. As semelhanças entre a retirada de Saigon, ao fim da Guerra do Vietnã, e a retirada de Cabul no último domingo, 15 de agosto, marcando o fim da Guerra do Afeganistão, são óbvias e inescapáveis.

Tudo aconteceu numa velocidade espantosa. Numa ofensiva de cerca de dez dias, o Taleban conquistou todas as capitais provinciais e chegou à capital do Afeganistão, Cabul. O presidente Ashraf Ghani fugiu para o Usbequistão e o grupo reconquistou o poder praticamente sem encontrar resistência em sua ofensiva final.

Trinta e seis dias antes da cena do helicóptero na embaixada norte-americana em Cabul, no último dia 8 de julho o presidente Biden foi questionado por um repórter se era inevitável que o Taleban reconquistasse o Afeganistão. Biden foi firme: “Não! Não é (inevitável)!”. E prosseguiu: “Você tem no Afeganistão 300 mil militares bem equipados (…) e Força Aérea. Contra cerca de 75 mil taleban. Não é inevitável!”. Na mesma entrevista, o presidente negou que a inteligência de seu país lhe tivesse apresentado dados de que o governo afegão entraria em colapso. “Eles claramente têm a capacidade de manter o governo”.

E numa pergunta que se mostrou preditiva dos acontecimentos, uma repórter questionou: “O senhor vê algum paralelo entre esta retirada (das tropas dos EUA do Afeganistão) e o que aconteceu no Vietnã?”. Biden mais uma vez foi firme: “De jeito nenhum! O Taleban não é o exército do Vietnã do Norte. (…) Não há possibilidade de você ver cenas de pessoas sendo resgatadas do telhado da embaixada dos EUA no Afeganistão… A possibilidade de o Taleban tomar o controle de todo o país é muito remota”.

A entrevista do presidente Biden, se vista novamente, mostra como a liderança norte-americana estava equivocada acerca das capacidades das Forças Armadas do Afeganistão. Depois de 20 anos de treinamento e reequipamento que custaram bilhões de dólares aos EUA e à Otan, o dispositivo militar afegão desmoronou como um castelo de cartas, deixando muito armamento e equipamento militar nas mãos do Taleban. As razões para isso ainda serão estudadas e apresentadas, pois certamente a sociedade norte-americana cobrará respostas de seus políticos e militares.

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Autora – Adriana Carranca

A decisão de retirar todas as tropas norte-americanas do Afeganistão já vinha sendo ensaiada há vários anos, desde a Presidência Obama, passando por Donald Trump, que até abriu as negociações com o Taleban. Mas coube a Joe Biden tomar a decisão e marcar uma data: 11 de setembro de 2021. Exatamente 20 anos após os atentados de 2001, planejados no Afeganistão pela rede terrorista Al-Qaeda, de Osama bin Laden, havia chegado o momento de deixar o Afeganistão.

Entretanto, o anúncio do porta-voz do Taleban, no final do dia 15 de agosto, de que a “guerra no Afeganistão tinha terminado” e a imagem dos dirigentes do grupo sentados à mesa do presidente, na sede do governo, demonstram claramente que as coisas não ocorreram da maneira que Washington previra. Vinte anos, milhares de baixas militares e bilhões de dólares depois, o Taleban está no mesmo lugar onde estava em 11 de setembro de 2001: no governo do Afeganistão.

O fracasso dos EUA é indisfarçável. E trará consequências não só para norte-americanos e afegãos, mas também para toda a Ásia Central e o Oriente Médio, com reflexos em diversos outros países.

Uma primeira consequência, já visível, será o aumento exponencial no número de refugiados. As cenas caóticas das pessoas no aeroporto de Cabul em busca de uma maneira de deixar o país servem para ilustrar o desespero com que centenas de milhares de afegãos buscam asilo em outros países, o que pode causar tensões e desequilíbrios na região, especialmente para o Irã e países da Ásia Central.

Outra consequência, no campo geopolítico, será o aumento da presença chinesa no Afeganistão. A China, sempre é bom lembrar, faz fronteira com o Afeganistão, justamente na província de Xinjiang, berço do separatismo uigur e do grupo Movimento Islâmico do Turquestão Oriental, que já praticou dezenas de ações terroristas na China. Antevendo a ascensão do Taleban, o governo chinês já recebera suas lideranças. E deve trocar pesados investimentos econômicos no Afeganistão pela garantia de que o Taleban não apoiará grupos islâmicos uigures, garantindo tranquilidade nas suas fronteiras.

Ao retomar o controle do Afeganistão, o Taleban alimentou o mito da invencibilidade afegã, que tornou o país conhecido como “cemitério de impérios”. Afinal, os afegãos venceram Alexandre, o Grande, os britânicos por duas vezes no século 19 e os soviéticos no século 20. Certamente, agora, os taleban festejam a entrada dos norte-americanos nessa lista.




Vinte anos de guerra no Afeganistão

Em 11 de setembro de 2001, terroristas da Al Qaeda sequestraram quatro aviões comerciais e os lançaram contra as torres gêmeas do World Trade Center, em Nova York, e contra o Pentágono, em Washington. Uma das aeronaves caiu na Pensilvânia, sem chegar ao seu alvo, que era o prédio do congresso norte-americano. Cerca de três mil pessoas morreram nos ataques.

Em resposta, o governo norte-americano exigiu que o governo afegão, conduzido à época pelos talibãs, extraditasse Osama Bin Laden, o líder da Al Qaeda responsável pelos ataques. Ante a recusa dos talibãs, os EUA, apoiados por seus aliados britânicos, iniciaram a operação “Enduring Freedom”, bombardeando posições do Talibã e da Al Qaeda em território afegão. Por terra, elementos de forças especiais dos EUA apoiavam grupos contrários ao Talibã, em especial da chamada “Aliança do Norte”. Em 9 de dezembro, menos de três meses depois dos ataques aos EUA, o regime talibã foi deposto. Em 16 de dezembro, entretanto, Osama Bin Laden consegue escapar em direção ao Paquistão, fugindo do seu complexo de comando e controle localizado nas montanhas de Tora Bora.

Ainda em dezembro de 2001, em uma conferência realizada em Bonn, na Alemanha, as facções afegãs vitoriosas, em especial a Aliança do Norte, concordaram em estabelecer um governo interino, liderado por Hamid Karzai. Ao mesmo tempo, a ONU estabeleceu uma operação de paz para a segurança de Cabul.

Em 2002, os EUA, na sua estratégia de “Guerra ao terror”, voltam sua atenção ao Iraque de Saddam Hussein, apontado pelos EUA como uma grande ameaça à sua segurança.

Em 2003, ao mesmo tempo em que o presidente Bush declara que a missão “foi cumprida” no Iraque, o Secretário de Defesa norte-americano Donald Rumsfeld declara que os combates mais importantes no Afeganistão estão encerrados. O país mantém apenas 8 mil soldados no terreno e a OTAN substitui a ONU na missão de estabilização do Afeganistão.

Em 2004, após a aprovação de uma nova constituição, Karzai é eleito presidente da república na primeira eleição democrática da história do Afeganistão. Três semanas após as eleições, Osama Bin Laden reaparece para o mundo, em uma declaração em vídeo transmitida pela rede Al Jazeera, na qual zomba dos norte-americanos e assume a autoria dos ataques de 11 de setembro.

Em 2005, os presidentes Bush e Karzai assinam um acordo, firmando uma parceria estratégica, que permite que os EUA tenham acesso às instalações militares afegãs na luta contra “o terror e o extremismo”. Além disso, o país firma acordos para que os EUA possam treinar, equipar, modernizar e suprir as forças militares afegãs. No mesmo ano, 6 milhões de afegãos votam nas eleições legislativas, celebradas como um marco em direção à democratização do país.

Em 2006 a violência ressurge, com um grande aumento de ataques suicidas e detonações de explosivos a distância. Os países da OTAN divergem sobre a necessidade de se mandar mais tropas para o Afeganistão.

Em 2009, o presidente Obama, recém-eleito, reafirma a centralidade do Afeganistão na guerra contra o terror e anuncia o envio de mais 17 mil soldados para o país. No final daquele ano, ao lançar uma grande ofensiva contra o Talibã, as forças norte-americanas já contam com cerca de 60 mil militares.

Em 2010, em uma conferência em Lisboa, a OTAN decide estabelecer um plano de retirada do Afeganistão. O prazo-limite para a presença das tropas da Aliança é estabelecido como sendo o ano de 2014.

Em 1º de maio de 2011, Osama Bin Laden, o líder da Al Qaeda responsável pelos ataques de 11 de setembro, é morto no Paquistão por tropas norte-americanas. A morte do causador do envio de tropas ao Afeganistão alimenta um acalorado debate nos EUA sobre a continuação de uma guerra que já durava dez anos. Obama anuncia planos para retirar 33 mil soldados até o verão de 2012, mas há sérias dúvidas sobre a capacidade do governo afegão de manter o controle do país face a uma insurgência tão resiliente. O presidente norte-americano também anuncia estar mantendo “conversas preliminares de paz” com o Talibã.

Em março de 2012 o Talibã se retira das negociações, acusando os EUA de não cumprir promessas de trocas de prisioneiros. Ao mesmo tempo, diversos incidentes envolvendo militares norte-americanos, como a queima acidental de alcorões e acusações de assassinatos de aldeões golpeiam a credibilidade dos militares ocidentais perante a população afegã.

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Em 2013, as tropas afegãs assumem a responsabilidade pela segurança da maior parte do país, enquanto a OTAN se mantém responsável por 95 distritos. O Talibã abre uma representação no Catar, o que desagrada o presidente Karzai, que acredita que este movimento confere legitimidade ao Talibã. Em resposta, ele suspende as negociações com os EUA.

Em 2014, Obama anuncia a retirada da maioria das tropas norte-americanas do Afeganistão, que deveria acontecer até o final de 2016. Ashraf Ghani é eleito presidente, em substituição a Karzai, e assina um acordo de divisão de poder com seu principal oponente, Abdullah Abdullah.

Em 2017, o presidente Trump declara que, embora sua intenção inicial fosse recuar, manteria as tropas no país para evitar um “vácuo de poder”.

Em 2018, o Talibã aumenta a ousadia dos ataques terroristas a Cabul, matando 115 pessoas na capital. Os ataques acontecem enquanto o governo Trump implementa seu plano para o Afeganistão, destacando tropas para a zona rural do país e lançando ataques aéreos contra laboratórios de ópio para tentar dizimar as finanças do Talibã.

Em 2019, as negociações entre os EUA e o Talibã avançam, até que, em 2020, um acordo de paz é assinado. De um lado, os EUA assumem o compromisso de retirar todas as tropas, de outro, o Talibã se compromete a não permitir que o país seja usado por terroristas.  O acordo diz que as negociações intra-afegãs devem começar no mês seguinte, mas o presidente afegão, Ghani, diz que o Talibã deve atender às condições de seu governo antes de entrar em negociações.

Em 12 de setembro de 2020, pela primeira vez depois de quase 20 anos de guerra, representantes do governo afegão, do Talibã e da sociedade civil se encontram, em Doha, no Catar. As negociações ocorreram depois que o governo libertou 5 mil talibãs que estavam presos. Todos os lados disseram desejar restabelecer a paz no país após a retirada das forças norte-americanas. O governo afegão pressionou por um cessar-fogo, enquanto os talibãs exigiam o estabelecimento de um governo religioso islâmico.

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Autor – Mark Owen

Em 14 de abril de 2021, o presidente Biden anuncia a retirada completa das tropas até 11 de setembro, data que marca os 20 anos dos atentados de 2001.  “É hora de encerrar a guerra mais longa da América”, ele diz. A retirada acontecerá independentemente de haver progressos nas negociações de paz. As tropas da OTAN também abandonarão o país. Os EUA prometem continuar a “ajudar as forças de segurança afegãs e apoiar o processo de paz”.

Assim, os vinte anos de operações militares norte-americanas no Afeganistão estão prestes a se encerrar.

A maior parte do território afegão já está novamente sob o domínio do Talibã. Em três dias neste início de agosto, pelo menos três capitais de províncias também caíram sob o domínio do grupo. Muitas autoridades simplesmente abandonaram seus cargos e fugiram.

Muitos analistas consideram apenas uma questão de tempo até que o Talibã volte a dominar completamente o país. Essa parece ser também a opinião do governo chinês que, preocupado com a questão – não se pode esquecer que o Afeganistão faz fronteira com a China e que os asiáticos têm seus próprios problemas com o terrorismo islâmico na província de Xinjiang – já entabula suas próprias negociações com o Talibã, a despeito de ainda haver um governo em Cabul. O mulá Abdul Ghani Baradar, chefe do Comitê Político do Talibã, foi recebido pelo Ministro das Relações Exteriores da China, Wang Yi, na cidade chinesa de Tianjin.

Planejadores militares têm sempre em mente, ao iniciar uma operação, um objetivo político e uma “situação final desejada” a ser atingida ao término das operações militares. Vinte anos depois do início das operações que retiraram o Talibã do poder, o grupo está prestes a reavê-lo enquanto as tropas da OTAN e dos EUA estão completando sua retirada. É inescapável se constatar que a situação final alcançada é bastante diferente da situação final desejada no início da guerra.

Esse fracasso advém de múltiplas causas, que passam pela dificuldade tática de se enfrentar um inimigo perfeitamente adaptado ao terreno, ideologicamente comprometido com sua causa e decisivamente engajado nos combates. Também advém das consequências econômicas da crise de 2008, que tornaram os custos da guerra muito pesados para os contribuintes ocidentais. Podem também, de alguma forma, ser creditados à dificuldade dos próprios afegãos de compreenderem como benéficas as mudanças políticas introduzidas pelo Ocidente, que no final das contas, poucas melhorias trouxeram às suas condições de vida.

A saída dos EUA deixa um vácuo que provavelmente será preenchido pela China. Inicialmente, é provável que ela apoie fortemente a reconstrução do país por intermédio de investimentos econômicos, com objetivo de dar estabilidade ao regime e, com isso, tenha uma ferramenta para pressionar o regime a impedir qualquer apoio aos separatistas uigures de Xinjiang.  Em um segundo momento, embora não seja provável, caso ocorra algum recrudescimento nas atividades terroristas no interior da China, é possível que o país se engaje militarmente no Afeganistão, o que seria um passo inédito por parte dos chineses.

O Afeganistão é conhecido como “cemitério dos impérios”. A fama se deve aos reveses que Alexandre, o Grande, o Império Britânico por duas vezes no século 19 e os soviéticos, no século 20, colheram nas áridas montanhas do país. O retorno do Talibã ao poder, neste século, reforçará ainda mais o mito da invencibilidade dos afegãos diante dos grandes impérios da história.




Terrorismo em Moçambique

Tropas das Forças Especiais do Exército da África do Sul e militares de Botsuana desembarcaram em Moçambique no último dia 19, para auxiliar no combate aos insurgentes do grupo terrorista Ansar al-Sunna, responsável por mergulhar a região de Cabo Delgado, no nordeste do país, em uma espiral de violência. O grupo terrorista ataca aldeias, escolas e hospitais, já tendo causado cerca de 3 mil mortes e a fuga em massa de cerca de 732 mil pessoas[1] que hoje estão desabrigadas e em situação muito precária.

O desdobramento das forças ocorreu em razão de uma decisão da Comunidade de Desenvolvimento da África Austral (CDAA), a comunidade de países do sul da África. Os soldados sul-africanos e botsuaneses, neste primeiro momento, devem cumprir missões de inteligência, reconhecimento e assessoria aos seus pares moçambicanos, preparando o terreno para um futuro desdobramento de uma brigada com cerca de três mil militares das forças de contingência da CDAA. Outros militares estrangeiros que estão em Moçambique são os ruandenses que, inclusive, já se engajaram em combates contra os insurgentes. A presença de forças armadas estrangeiras em território moçambicano atesta de forma cabal a incapacidade do país de, por seus próprios meios, encontrar uma solução para a crise.

O grupo terrorista Ansar al-Sunna foi criado em 2015, sob forte influência da corrente ortodoxa e ultraconservadora islâmica salafista, advogando a “purificação” do Islã pela negação das práticas sufistas, predominantes no islamismo praticado em Moçambique. As tensões entre salafistas e sufistas foram crescendo até que, em 2017, já sob influência de clérigos estrangeiros e de outros grupos, como o Daesh e o Al-Shabbab da Somália, os militantes do Ansar al-Sunna passaram a pregar a adoção da lei islâmica (Sharia) em Cabo Delgado e a se recusar a seguir as leis moçambicanas, consideradas anti-islâmicas.

Em 2020, as ações violentas se intensificaram. No dia 23 de março, a cidade de Mocimboa da Praia foi capturada pelos jihadistas. Nos meses seguintes, até os dias atuais, diversos ataques a vilarejos causaram o assassinato dos civis que se recusaram a se unir ao grupo. As ações das forças governamentais de Moçambique também se intensificaram e os combates recrudesceram na região. Milhares de civis fugiram em direção ao sul do país, em uma gravíssima crise humanitária.

Tudo isso ocorre em uma região com riquíssimas reservas minerais, como petróleo, ouro, rubis, mármore e, muito especialmente, gás natural. Em relação a este último, existem três grandes projetos de exploração: o Moçambique Gás Natural, liderado pela empresa francesa Total Energia, que paralisou suas operações em razão da crise; o Coral Gás Natural, das empresas ENI (italiana) e Exxon-Mobil (norte-americana); e o Rovuma Gás Natural, onde a chinesa CNPC se juntou à ENI e à Exxon-Mobil. A presença dessas empresas, com seus grandes investimentos, reforça o interesse mundial e o caráter geopolítico da crise, uma vez que há diversos governos estrangeiros atentos aos acontecimentos em Cabo Delgado.

A insurgência em Moçambique desperta temores de que a região se torne a próxima fronteira do jihadismo na África. Mas a explicação puramente religiosa para a radicalização dos jovens que aderem ao terrorismo é insuficiente. Se é verdade que as lideranças são formadas por radicais islâmicos, a grande maioria dos recrutados é composta por pessoas desesperançadas, marginalizadas do usufruto das riquezas geradas pela exploração dos recursos minerais da região.

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Em iniciativa liderada por Portugal, a União Europeia (UE) iniciou no último dia 30 de junho uma “ponte aérea humanitária”, como o envio de três voos com equipamento e suprimentos de ajuda humanitária. A UE também decidiu enviar uma missão militar de treinamento, que será liderada por um general português. Nesse sentido, Portugal também enviará, em entendimento bilateral com Moçambique, 60 militares em uma missão de treinamento de soldados moçambicanos. Os EUA também enviaram ajuda financeira para recuperação de infraestruturas destruídas pelos terroristas, por meio de sua Agência para Desenvolvimento Internacional – USAID.

A Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), fórum que reúne Brasil e Moçambique, além de Portugal, Angola, Cabo Verde, Guiné Bissau, Guiné Equatorial, São Tomé e Príncipe e Timor Leste, manifestou-se timidamente até o momento. No documento de encerramento[2] da 13ª Conferência de Chefes de Estado e de Governo, divulgado no último dia 17 de julho, ficou registrado que os países da CPLP repudiam as ações terroristas, manifestam sua consternação pela violência infligida à população e solidarizaram-se com as autoridades moçambicanas em seus apelos por convergência de apoio internacional.

A situação em Moçambique é grave, tanto em razão das mortes, já contadas aos milhares, quanto em razão da grave crise humanitária dos deslocados. Além disso, pode espalhar pela África Austral um problema até então pouco comum naquela porção do continente africano: o terrorismo islâmico. O Brasil, eleito membro não-permanente do Conselho de Segurança da ONU para o biênio 2022/23, poderá, naquele fórum, ser um importante agente catalisador da ação internacional de colaboração com Moçambique no enfrentamento dessa gravíssima questão.

[1] Disponível em https://www.cplp.org/id-4447.aspx?Action=1&NewsId=9209&M=NewsV2&PID=10872

[2] Fonte – Escritório da ONU para coordenação de assuntos humanitários. Disponível em https://reports.unocha.org/en/country/mozambique




A nova estratégia de segurança russa

No último dia 02 de julho, o presidente Vladimir Putin assinou a nova Estratégia de Segurança da Rússia. O documento substituiu a que estava em vigor, que datava de 2015. A renovação da Estratégia era esperada, uma vez que esses documentos são concebidos para vigorarem por seis anos.

Em 44 páginas, os estrategistas russos anunciam que o mundo passa por uma fase de transição, com a emergência de potências interessadas em modificar a ordem global, antes fortemente marcada pela unipolaridade representada pela proeminência de uma única superpotência e de seus aliados, para uma nova ordem, marcada pela multipolaridade. Essa transição teria o potencial de causar conflitos, pois a perda da primazia pelo Ocidente geraria distúrbios e reações, cada vez mais graves.

Os principais objetivos para a defesa dos interesses nacionais da Federação Russa seriam: preservar a unidade da nação, proteger o sistema constitucional, apoiar a sociedade civil, desenvolver o espaço informacional, desenvolver a economia, proteger o meio ambiente, fortalecer os valores tradicionais e manter estabilidade social, especialmente em face de ameaças externas.

A aproximação dos países da OTAN das fronteiras russas é apresentada no documento como sendo a principal ameaça à segurança nacional russa, que acusa os EUA de abandonarem acordos de desarmamento, levando a uma corrida armamentista. Essas ameaças são apontadas como razões para que a Rússia fortaleça ainda mais seu potencial militar.

Os russos apontam no documento a ação de forças estrangeiras, que atuariam tanto em território russo quanto no exterior, explorando dificuldades socioeconômicas para enfraquecer a coesão interna do povo russo. O documento também acusa o ocidente de atuar contra os valores tradicionais dos russos, impondo uma exacerbação do individualismo, propagandeando atitudes egoístas e culto à violência, numa tentativa de destruir a soberania e a cultura da Federação Russa.

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autor – Steven Lee Myers

O ocidente também é acusado de, ao impor sanções econômicas e comerciais, dificultar as exportações russas de recursos naturais. O documento também identifica ações de contenção aos planos russos de desenvolver novas rotas comerciais, inclusive no Ártico.

Os russos pretendem diminuir as transações em dólar, com o objetivo de fortalecer a própria moeda. Os estrategistas russos reconhecem a necessidade de desenvolver e diversificar a economia do país, que precisaria passar a produzir e exportar itens de maior valor agregado, além de atuar para reduzir a dependência que a economia do país possui em relação a tecnologias importadas.

Sempre de acordo com o documento, a Federação Russa buscaria, em suas relações internacionais, os seguintes objetivos: fortalecer a estabilidade do sistema legal internacional, a fim de impedir sua aplicação de forma seletiva; fortalecer a paz mundial, evitando a eclosão de uma guerra mundial; aprimorar os mecanismos internacionais de segurança coletiva; impedir o uso de forças armadas em desacordo com o previsto na Carta da ONU; aprofundar a cooperação com os Estados-membros da CEI[1], Abecásia, Ossétia do Sul[2] e com os Estados-parte da União Eurasiana; desenvolver uma cooperação estratégica com China e Índia; participar ativamente dos BRICS; trabalhar pela estabilização de situações de crise em países fronteiriços à Rússia; fortalecer laços fraternais entre as nações russas, bielorrussas e ucranianas e; contrapor-se às tentativas de falsificar a história.

Como se vê, a Estratégia de Segurança da Rússia aponta para uma maior aproximação do país da China e da Índia e continua reconhecendo a OTAN como principal inimiga. O documento enfatiza que os russos se consideram vítimas de uma guerra cultural, onde os “valores russos” estariam sendo atacados pelo ocidente, com o objetivo de enfraquecer a coesão nacional. Os russos dão grande importância à sua área de influência, especialmente aos países que lhe fazem fronteira. As referências à Belarus e Ucrânia não são em vão, pois trata-se de dois países emblemáticos na disputa por influência travada entre russos e ocidentais.

Todo documento dessa natureza tem, entre seus objetivos, passar mensagens tanto para o público interno quanto para a comunidade internacional. Neste caso, não há muito espaço para dúvidas. Os russos traçaram as linhas vermelhas que, de seu ponto de vista, não devem ser ultrapassadas pelo ocidente. O problema é que, ao ler os documentos similares dos países da OTAN[3], descobre-se que, do ponto de vista da Aliança do Atlântico Norte, as linhas vermelhas não são coincidentes. É nesse descompasso que está a maior ameaça à paz mundial.

Acesse ao documento aqui Estratégia Nacional de Segurança a Rússia

[1] A CEI (Comunidade dos Estados Independentes) foi criada em 1991, após a desagregação da URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas). Os países integrantes são: Armênia, Belarus, Cazaquistão, Federação Russa, Moldávia, Quirquistão, Tadjiquistão, Ucrânia, Uzbequistão, Azerbaijão e Turcomenistão (membro associado).

[2] Abecásia e Ossétia do Sul são regiões da Geórgia que foram reconhecidas como independentes pela Federação Russa.

[3] Fiz a análise de documentos dos EUA, OTAN e do Reino Unido, disponíveis em https://paulofilho.net.br/2018/03/26/mudancas-nas-prioridades-de-defesa-norte-americanas/ , https://paulofilho.net.br/2020/12/06/a-visao-da-otan-para-2030/ , e

https://paulofilho.net.br/2021/03/23/como-os-britanicos-veem-seu-papel-no-mundo-em-2030-e-como-estao-se-preparando-para-exerce-lo/




A viagem de Biden à Europa

Este artigo foi publicado no Jornal O Estado de S. Paulo em 28/06/2021

Joe Biden vem de fazer sua primeira viagem à Europa como presidente dos Estados Unidos. Durante oito dias visitou o Reino Unido, reuniu-se com o G-7, com a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) e com o presidente russo, Vladimir Putin. Foi uma viagem cheia de mensagens e significados, durante a qual as sombras da China e da Rússia estiveram sempre presentes nas conversas.

Ao chegar mais cedo ao Reino Unido, que sediaria a reunião do G-7, Biden reforçou a aliança preferencial de seu país com os britânicos. No comunicado conjunto, em 20 parágrafos Biden e o primeiro-ministro Boris Johnson reforçam a crença comum de seus países no que eles chamaram de defesa da democracia, dos direitos humanos e do multilateralismo, reforçando o papel da ONU, que eles afirmam ser central, no sistema internacional.

No prosseguimento, ainda no Reino Unido, Biden e Johnson se reuniram com os líderes dos outros cinco países que compõem o G-7: Canadá, França, Alemanha, Japão e Itália. O comunicado divulgado ao término dos trabalhos destaca seis pontos principais: tomar providências em relação à pandemia de covid-19, revigorar a economia dos países integrantes do grupo, assegurar um futuro de prosperidade, proteger o meio ambiente do planeta, fortalecer parcerias do grupo, em especial com a África, e fortalecer os valores democráticos e de liberdade, igualdade, respeito à lei e aos direitos humanos.

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Joe Biden, de Evan Osnos

O comunicado afirma ainda que para a pandemia ser vencida em 2022 cerca de 60% da população mundial terá de estar vacinada. Nesse sentido, o G-7 compromete-se a financiar mais 1 bilhão de doses de vacinas, a serem distribuídas principalmente aos países pobres, até o fim de 2022. O grupo apoia que sejam feitas investigações transparentes, lideradas pela Organização Mundial da Saúde, sobre as origens da doença, na China. Aliás, esse país foi citado mais duas vezes no comunicado, em aspectos bastante sensíveis para o gigante asiático. O G-7 alertou a China sobre as questões dos direitos humanos, especialmente no referente aos uigures, minoria islâmica que habita a região autônoma chinesa de Xinjiang, e também em relação aos habitantes de Hong Kong. Além disso, o grupo fez referência a Taiwan, clamando por uma solução pacífica das questões que envolvem a ilha e externando preocupações com o que chamou de tentativas de mudança do status quo na região dos Mares do Leste e do Sul da China.

O encontro da Otan, realizado em Bruxelas, reuniu os 30 países que compõem a aliança militar. No comunicado divulgado, a Rússia figura como a principal ameaça. O país é acusado de ações agressivas que estariam deteriorando a segurança internacional: exercícios militares de larga escala, até mesmo nas proximidades das fronteiras dos países da Otan, instalações de mísseis modernos e de uso dual em Kaliningrado, integração militar com Belarus e violações em série do espaço aéreo dos países aliados. A Rússia também é acusada de promover ações de guerra híbrida, como tentativas de interferência em eleições de países democráticos, estabelecimento de pressões políticas e econômicas com a finalidade de intimidar outros países, financiamento de campanhas de desinformação e de ataques cibernéticos. Além disso, os russos são acusados de atuar ilegalmente com suas agências de inteligência em território de países da Otan e de expandir e modernizar seu arsenal nuclear, com vista a desestabilizar o equilíbrio de forças hoje existente.

A China também não passou despercebida na reunião da Otan. O país foi acusado de se comportar de forma a desafiar a ordem internacional. O comunicado afirma que suas políticas coercitivas contrastam com os valores fundamentais da aliança e que causam preocupação a expansão e a modernização de seu arsenal nuclear, além de sua aproximação militar da Rússia, até mesmo com participação conjunta em exercícios militares.

O último evento do presidente Biden na Europa foi a reunião com o presidente Vladimir Putin, da Rússia, por três horas, em Genebra. Do encontro, a única medida prática anunciada foi o retorno dos embaixadores dos dois países aos seus postos, de onde estavam afastados havia alguns meses.

No dia seguinte ao término da viagem, o mundo assistiu às imagens em alta definição da espaçonave chinesa levando três tripulantes para a estação espacial que o país constrói na órbita terrestre. Para muitos analistas, a leitura dos comunicados do G-7 e da Otan, emoldurados pelas cenas dos chineses no espaço, escancara que o sistema internacional está assistindo, realmente, a um período de transição hegemônica. Como sempre, em momentos assim, as potências estabelecidas se esforçam na manutenção do status quo e das características sistêmicas que as conduziram à hegemonia. Ao mesmo tempo, a potência emergente tenta moldar o mundo de acordo com seus próprios interesses. O atrito resultante, como sempre, gera calor. Que os líderes mundiais saibam controlar a temperatura, manter o diálogo e favorecer a manutenção da paz.




A OTAN e as mudanças no equilíbrio do poder mundial

No último dia 14 de junho, os chefes de governo dos 30 países aliados que compõem a OTAN se reuniram em Bruxelas. A leitura da declaração(1) conjunta proporciona uma boa compreensão de como a mais poderosa aliança militar da história vê a atual conjuntura mundial, quais são as ameaças que eles identificam e quais caminhos eles irão traçar em assuntos de defesa, sempre mantendo em vista as três tarefas fundamentais da Aliança: prover segurança coletiva, gerenciar crises e fortalecer a cooperação em segurança.

Os aliados identificam ameaças provenientes de todas as direções estratégicas, representadas pela competição sistêmica de potências “autoritárias e assertivas”; terrorismo; atores estatais e não-estatais que atuam para minar a ordem internacional, o estado de direito e a democracia; instabilidades políticas e sociais além das fronteiras dos países da OTAN que causam a imigração ilegal e o tráfico de pessoas; aumento das ameaças cibernéticas, híbridas e assimétricas, que incluem campanhas de desinformação; aumento das ameaças no domínio espacial; proliferação de armas de destruição em massa e erosão da arquitetura legal internacional destinada a controla-las; além das ameaças representadas pelas mudanças climáticas.

Para fazer face a essa conjuntura e ameaças, a Aliança adotou a chamada OTAN 2030 – Agenda Transatlântica para o Futuro. O documento lista uma série de providências, dentre as quais destaco a seguir as que considero mais relevantes.

– Fortalecer a OTAN como instrumento de segurança coletiva da região Euro-atlântica, contra todas as ameaças, vindas de todas as direções. Reitera-se o compromisso de se manter um apropriado mix de armas nucleares e convencionais para dissuasão e defesa.

– Adotar medidas no sentido de acelerar a cooperação entre os Estados aliados para o desenvolvimento de novas tecnologias na área de defesa.

– Fortalecer a capacidade da OTAN de preservar a atual ordem internacional nos aspectos que afetam a segurança coletiva dos países da Aliança. Isso inclui fortalecer o diálogo e a cooperação com países não aliados da própria Europa, Ásia, África e América Latina.

– Transformar a OTAN em uma organização internacional que lidere a compreensão dos impactos das mudanças climáticas na área de segurança. Isso inclui esforços para que as próprias forças armadas dos países aliados atinjam o equilíbrio nas emissões de carbono que resultam das atividades militares até 2050.

– Prover a Aliança dos recursos necessários, por intermédio dos orçamentos de defesa dos países-membros e do fundo comum da OTAN, para financiar os ambiciosos objetivos propostos.

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Prisioneiros da Geografia – Tim Marshall

A Rússia é citada nominalmente 62 vezes na declaração de Bruxelas. É, sem dúvidas, a maior ameaça identificada pela OTAN. O relatório afirma que os russos continuam a violar os princípios, a confiança e os compromissos previstos nos documentos que sustentam as relações entre o país e a OTAN. Praticamente toda a cooperação civil e militar entre a OTAN e a Rússia permanece suspensa. Os aliados reafirmam que manterão o que consideram ser uma resposta à deterioração do ambiente de segurança com o aumento de seu poder dissuasório e de sua “postura defensiva”, inclusive com a presença militar nas fronteiras mais orientais da Aliança.

Os russos são acusados de crescente desenvolvimento de capacidades militares nos múltiplos-domínios, de promover atividades militares provocativas, como exercícios militares inopinados e em larga escala, inclusive nas proximidades das fronteiras de países aliados, de aumentar seu poderio militar estacionado na Criméia, instalação de sistemas modernos de mísseis em Kaliningrado, aumento da integração militar com a Belarus e repetidas violações do espaço aéreo da OTAN.

A Rússia também é acusada de promover ações de Guerra Híbrida como tentativas de interferência em processos eleitorais de países da Aliança, intimidar e exercer pressões políticas e econômicas, lançar campanhas de desinformação, guerra cibernética, além de atuar com seus serviços secretos em atividades ilegais nos países da OTAN.

A OTAN acusa a Rússia de diversificar seu arsenal nuclear, inclusive desdobrando sistemas de mísseis de curto e médio alcance de modo a ameaçar a aliança e de ocupar ilegalmente a Crimeia, atuando diretamente contra a soberania da Ucrânia. Ações contra a Geórgia e a Moldávia também são condenadas.

Após dedicar-se à ameaça representada pela Rússia, o documento passa a analisar os demais desafios à segurança da OTAN.

O terrorismo se mantém listado como uma ameaça direta à segurança das populações, e embora o documento reconheça que a segurança interna é responsabilidade de cada país, a OTAN está atenta e contribuirá sempre para o enfrentamento dessa ameaça. O documento cita a atuação no Afeganistão e no Iraque, dizendo que, apesar de estar retirando suas tropas do Afeganistão, permanecerá comprometida com o enfrentamento do terrorismo internacional.

A OTAN afirma seu apoio a uma completa, irreversível e verificável desnuclearização da Coreia do Norte e seu compromisso de não permitir que o Irã possua armamento nuclear. Afirma que apoia a retomada das negociações para que o JCPoA – o acordo nuclear com o Irã – seja retomado para que as atividades nucleares naquele país tenham finalidades exclusivamente pacíficas.

O conflito na Síria, que entra em seu 11º ano, também é listado como fonte de instabilidade na região e de insegurança para a fronteira sul da Aliança, que não hesitará em agir militarmente para preservar a segurança contra ameaças provenientes daquela região.

A instabilidade política em Belarus também causa preocupação, e a ação que obrigou o pouso de uma aeronave civil que sobrevoava o país, com a prisão de um opositor do regime que estava a bordo, foi classificada como inaceitável.

O “comportamento assertivo” e as ambições chinesas são apresentadas como ameaças à ordem internacional. Sua modernização e expansão do arsenal nuclear, a chamada “estratégia de fusão civil-militar”, a crescente cooperação militar com a Rússia, inclusive com a participação em exercícios militares conjuntos na área Euro-atlântica, sua falta de transparência e uso de campanhas de desinformação, são apontadas como causas de preocupação.

As mudanças climáticas são apontadas como os desafios conformadores dos tempos atuais. Significam ameaças com múltiplos impactos, tanto na área Euro-atlântica, quanto nas vizinhanças da Aliança. A OTAN se compromete a regularmente avaliar os impactos das mudanças climáticas no ambiente estratégico e nas suas operações.

A chamada “política de portas abertas”, que permite a entrada de novos países europeus na Aliança, é reforçada. O documento afirma que essa é uma questão que diz respeito apenas ao país que deseja entrar na Aliança e à própria OTAN, não interessando a terceiros países. Isto é um claro recado à Rússia, que é contrária ao ingresso dos países do leste europeu, em especial da Ucrânia e da Geórgia, na OTAN.

Para fazer face aos desafios acima listados, além de outros constantes no documento, a OTAN delineia uma série de medidas para fortalecer sua capacidade dissuasória, incluindo-se aí medidas de modernização de seu arsenal nuclear, inclusive por intermédio de suas capacidades missilísticas.

A declaração de Bruxelas deixa claro que a OTAN está preocupada com as mudanças no equilíbrio global de poder. A Rússia é apontada como a maior ameaça a Aliança, mas a China, o Irã e o terrorismo, além das mudanças climáticas, também são apresentados como desafios à segurança e à estabilidade mundial.

A Aliança Euro-atlântica reage ao que considera ser uma postura desafiadora de russos e chineses, que por sua vez alegam estar se preparando para ameaças à sua segurança por parte da OTAN. É o velho Dilema da Segurança, em que a percepção da ameaça externa provoca um maior investimento em segurança e defesa, que por sua vez desperta no outro lado o mesmo sentimento, em uma escalada que acaba por afetar ambos os lados da disputa.

A conclusão, evidente, é a de que há muitos pontos de atrito e confrontação, todos potenciais causadores de crises, que deverão ser manejadas com habilidade por todos os envolvidos, para a manutenção da paz.

(1) Leia a declaração em https://www.nato.int/cps/en/natohq/news_185000.htm




A participação da China em Missões de Paz

Em setembro de 2020, a China publicou um documento oficial no qual relata a participação do país nas missões de paz da ONU. Neste artigo, faço uma breve análise da participação dos chineses nesse tipo de operação militar e concluo sobre as razões que levaram o país a um grande engajamento nessas ações da Organização das Nações Unidas.

A República Popular da China somente uniu-se à ONU em 1971. Até aquela data, os chineses eram representados pelo governo da República da China, dos nacionalistas de Taiwan, que tinham sido derrotados pela revolução comunista. Entretanto, o país demorou para iniciar suas participações nas missões de paz daquele organismo multinacional. Isso se deveu à sua retórica de não intervenção em assuntos internos de outros países, posição de quem defendia a não interferência internacional no seu próprio território.

Somente em maio de 1986 é que três militares chineses chegariam ao Oriente Médio para visitar a United Nations Truce Supervision Organization (UNTSO)[1], primeira e mais antiga missão de paz da Organização das Nações Unidas, destinada a supervisionar a cessação das hostilidades que deveria ter acontecido ao término da primeira guerra árabe-israelense. Era a primeira vez que ocorria esse tipo de participação de chineses em missão de paz.

Dois anos depois, em 1988, a China se incorporava oficialmente ao Comitê Especial das Nações Unidas para as Operações de Manutenção da Paz. Em abril de 1990, os primeiros cinco militares chineses designados para uma missão de paz da ONU chegam à mesma UNTSO para iniciarem suas missões de observadores militares. Estava aberto o caminho para uma importante participação militar da China nas operações que ela mesma, como um dos cinco países integrantes de forma permanente do Conselho de Segurança da ONU, detém o protagonismo de implementar.

Desde então o país enviou cerca de 40 mil militares para 25 missões, dentre as quais se destacam o Camboja, República Democrática do Congo, Costa do Marfim, Etiópia e Eritreia, Serra Leoa, Saara Ocidental, Libéria, Líbano, Sudão (Sudão do Sul e Darfur) e Mali.

Atualmente, o país está com cerca de 2500 soldados desdobrados em várias missões diferentes. Isso significa que o país tem praticamente o dobro dos efetivos de todos os outros quatro membros permanentes do conselho de segurança da ONU, somados[2]. Além disso, o país é o segundo maior contribuinte para o orçamento das missões de paz da ONU.

  Missão Período de participação
1 United Nations Truce Supervision Organization (UNTSO) Abril 1990 – presente
2 United Nations Iraq-Kuwait Observation
Mission (UNIKOM)
Abril 1991 – Janeiro 2003
3 United Nations Mission for the Referendum
in Western Sahara (MINURSO)
Setembro 1991 – presente
4 United Nations Advance Mission in Cambodia (UNAMIC) Dezembro 1991 – Março 1992
5 United Nations Transitional Authority in
Cambodia (UNTAC)
Março 1992 – Setembro 1993
6 United Nations Operation in Mozambique (ONUMOZ) Junho 1993 – Dezembro 1994
7 United Nations Observer Mission in Liberia (UNOMIL) Novembro 1993 – Setembro 1997
8 United Nations Observer Mission in Sierra
Leone (UNOMSIL)
Agosto 1998 – Outubro 1999
9 United Nations Mission in Sierra Leone (UNAMSIL) Outubro 1999 – Dezembro 2005
10 United Nations Mission in Ethiopia and Eritrea (UNMEE) Outubro 2000 – Agosto 2008
11 United Nations Organization Mission in the Democratic Republic of the Congo (MONUC) Abril 2001 – Junho 2010
12 United Nations Mission in Liberia (UNMIL) Outubro 2003 – Dezembro 2017
13 United Nations Operation in Côte d’Ivoire (UNOCI) Abril 2004 – Fevereiro 2017
14 United Nations Operation in Burundi (ONUB) Junho 2004 – Setembro 2006
15 United Nations Mission in Sudan (UNMIS) Abril 2005 – Julho 2011
16 United Nations Interim Force in Lebanon (UNIFIL) Março 2006 – presente
17 United Nations Integrated Mission in Timor-Leste (UNMIT) Outubro 2006 – Novembro 2012
18 African Union-United Nations Hybrid Operation
in Darfur (UNAMID)
Novembro 2007 – presente
19 United Nations Organization Stabilization Mission in the Democratic Republic of the Congo (MONUSCO) Julho 2010 – presente
20 United Nations Peacekeeping Force in Cyprus (UNFICYP) Fevereiro 2011 – Agosto 2014
21 United Nations Mission in South Sudan (UNMISS) Julho 2011 – presente
22 United Nations Organization Interim Security Force
for Abyei (UNISFA)
Julho 2011 – Outubro 2011
23 United Nations Supervision Mission in Syria (UNSMIS) Abril 2012 – Agosto 2012
24 United Nations Multidimensional Integrated Stabilization Mission in Mali (MINUSMA) Outubro 2013 – presente
25 United Nations Multidimensional Integrated Stabilization Mission in the Central African Republic (MINUSCA) Janeiro 2020 – presente

Tabela 1 – Participação da China em Missões de Paz

Fonte – Livro Branco das Operações de Paz 

A primeira missão para a qual os chineses enviaram um efetivo relevante foi a United Nations Transitional Authority in Cambodia (UNTAC). Tratou-se de uma operação em que, pela primeira vez na história da ONU, se estabeleceu um governo para se administrar um país independente. O mandato da missão estabelecia uma ampla variedade de responsabilidades: a administração civil do país, a preparação de eleições, a manutenção da ordem pública, garantia dos direitos humanos, a facilitação do retorno dos refugiados e a melhoria da infraestrutura básica do país.

Os chineses enviaram inicialmente 47 observadores e um Batalhão de Engenheiros com um efetivo de 400 militares, que foram substituídos, em sistema de rodízio. Dentre as missões que receberam, estava a de realizar obras de reparo e manutenção do aeroporto da capital, além de diversas estradas. De abril de 1992 a setembro de 1993, mais de 800 militares chineses participaram das operações de paz no Camboja, com duas baixas fatais.

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Autor – Marc Lanteigne e outros

Depois da participação no Camboja, os chineses somente mandariam tropas constituídas às missões de paz após o transcurso de uma década. Em abril de 2003, uma Companhia de Engenharia composta por 175 militares e um Destacamento de Saúde com o efetivo de 43 oficiais e praças, chegou ao seu destino na República Democrática do Congo para compor a MONUSCO.

No mesmo ano de 2003, o país mandou Unidades de transporte, engenharia e assistência médica à Libéria. A África, continente de grande importância geopolítica para a estratégia de inserção internacional chinesa, passa a receber grandes efetivos de capacetes azuis chineses.

Comprovando essa prioridade, em 2005 as forças de paz chinesas passam a compor a UNMISS, missão da ONU para o Sudão do Sul e, em 2007, em Darfur, região crítica no Sudão. Em 2013, chega a vez do envio de tropas ao Mali e, em 2020, à República Centro Africana.

Em setembro de 2020, o governo chinês publicou um livro branco de defesa que trata especificamente de missões de paz. Nele, fica clara a opção da liderança do Partido Comunista Chinês, especialmente a escolha feita por Xi Jinping, pelas operações de paz da ONU.

Dividido em cinco capítulos, o documento explicita a posição do país em defesa da ONU e do multilateralismo.

“China has always resolutely safeguarded the UN-centered international system and the basic norms governing international relations underpinned by the purposes and principles of the UN Charter, and worked with countries around the world to uphold multilateralism, equity and justice.”[3] (CHINA. 2020)

No primeiro capítulo, o governo chinês explica por que fez a escolha em apoiar decisivamente as missões de paz da ONU. Declara seu comprometimento com a paz, sua preocupação com o bem-estar dos demais povos da humanidade, diz ser função precípua de um “exército popular” servir às populações. O documento afirma que participar das missões de paz é honrar as responsabilidades de uma potência internacional e que o país cumpre as políticas das Nações Unidas para as operações de paz.

No segundo capítulo, o documento lista as principais tarefas cumpridas pelos chineses nas missões de paz: supervisão de cessar-fogo entre as partes beligerantes, estabilização, proteção à população civil, proteção às próprias Forças da ONU, disponibilização de capacidades militares específicas, tais como engenharia, transportes, saúde e apoio aéreo e, finalmente, “levar esperança” às populações.

No terceiro capítulo, o governo chinês apresenta suas ações em prol do sistema de missões de paz da ONU. Primeiro, apresenta as ações para manter tropas que atendam ao sistema de prontidão das Nações Unidas[4]. Os chineses se comprometem a manter um efetivo de 8 mil soldados, distribuídos por 28 Unidades de 10 diferentes especialidades. Além disso, o país se compromete a oferecer capacidades críticas para as missões de paz, como engenharia, saúde e aviação, além de treinamento para tropas de outros países e assessoramento específico aos países da União Africana. Finalmente, o documento informa sobre a disposição da China em contribuir financeiramente para as missões de paz, inclusive com a criação de um fundo específico, que já teria investido, entre 2016 e 2019, cerca de 33,6 milhões de dólares.

O quarto capítulo apresenta as ações chinesas no sentido de aumentar a cooperação internacional. O país alega estar fortalecendo a comunicação estratégica entre as nações para criar um consenso em favor das missões de paz. Isso incluiria diversas iniciativas bilaterais e multilaterais para compartilhar políticas, estratégias e planos para fortalecer as relações entre Estados e entre Forças Armadas.

No último capítulo do documento, o governo chinês reafirma o comprometimento com a construção da paz mundial. Fala novamente no compromisso com o fortalecimento do sistema de missões de paz e na necessidade de se atuar tanto nas causas como nas consequências dos conflitos.

A China está firmemente comprometida com as operações de paz da ONU. Isso se comprova não só pela efetiva participação do país com o envio de soldados e equipamentos, além do emprenho de recursos financeiros, mas também pela formulação das políticas nas áreas de defesa e relações internacionais.

As razões para isso, para além das boas intenções declaradas no livro branco, são variadas. Em primeiro lugar, pode-se citar a preocupação em participar do sistema internacional com efetividade, colhendo os lucros de apresentar-se como um país comprometido com o multilateralismo junto aos demais países do sistema internacional.

Por outro lado, é inegável que as missões de paz conferem aos militares chineses uma experiência operacional que lhes falta. A interação com militares de outros países, tanto nas atividades das missões propriamente ditas, quanto nos intercâmbios de treinamento, oferece aos chineses oportunidades de ganhos de experiência que não seriam obtidos de outra forma.

A presença dos capacetes azuis chineses na África também pode ser vista como uma oportunidade de expansão dos investimentos e de ganho de influência sobre os países daquele continente.

Assim, comprova-se que no espaço de três décadas, a participação da China nas missões de paz da ONU saiu de praticamente zero até uma posição de indiscutível liderança. As razões para isso são variadas, desde econômicas até políticas, geopolíticas e militares. Todas elas apontado para um maior protagonismo do gigante asiático no sistema internacional.

 

[1] Conheça a página oficial – https://untso.unmissions.org/

[2] Ver em https://peacekeeping.un.org/en/troop-and-police-contributors

[3] “A China sempre salvaguardou o sistema internacional centrado nas Nações Unidas e as normas básicas que regem as relações internacionais baseadas sustentadas pelos propósitos e princípios da Carta das Nações Unidas, e trabalhou com países ao redor do mundo para defender o multilateralismo, a equidade e a justiça”

[4] Peacekeeping Capability Readiness System (PCRS)english/2020-09/18/c_139376725.htm#:~:text=Over%20the%20past%2030%20years,world%20peace%20and%20common%20development Acesso em 04 de maio de 2021

 

REFERENCIAS

CHINA. China’s Armed Forces: 30 Years of UN Peacekeeping Operations. Livro Branco das Operações de Paz. Disponível em http://www.xinhuanet.com/

GOWAN, Richards. China’s pragmatic approach to UN peacekeeping. Artigo. Disponível em https://www.brookings.edu/articles/chinas-pragmatic-approach-to-un-peacekeeping/ Acesso em 03 maio 21

ROGERS, Philippe. China and United Nations Peacekeeping operations in Africa. Naval War College Review. Vol. 60, No. 2. 2007. Disponível em https://www.jstor.org/stable/26396822?seq=1#metadata_info_tab_contents. Acesso em 03 maio 2021.

SHANG, Chngyi. EPL y las operaciones de mantenimiento de paz de la ONU. China Press. 2015