A OTAN e as mudanças no equilíbrio do poder mundial



No último dia 14 de junho, os chefes de governo dos 30 países aliados que compõem a OTAN se reuniram em Bruxelas. A leitura da declaração(1) conjunta proporciona uma boa compreensão de como a mais poderosa aliança militar da história vê a atual conjuntura mundial, quais são as ameaças que eles identificam e quais caminhos eles irão traçar em assuntos de defesa, sempre mantendo em vista as três tarefas fundamentais da Aliança: prover segurança coletiva, gerenciar crises e fortalecer a cooperação em segurança.

Os aliados identificam ameaças provenientes de todas as direções estratégicas, representadas pela competição sistêmica de potências “autoritárias e assertivas”; terrorismo; atores estatais e não-estatais que atuam para minar a ordem internacional, o estado de direito e a democracia; instabilidades políticas e sociais além das fronteiras dos países da OTAN que causam a imigração ilegal e o tráfico de pessoas; aumento das ameaças cibernéticas, híbridas e assimétricas, que incluem campanhas de desinformação; aumento das ameaças no domínio espacial; proliferação de armas de destruição em massa e erosão da arquitetura legal internacional destinada a controla-las; além das ameaças representadas pelas mudanças climáticas.

Para fazer face a essa conjuntura e ameaças, a Aliança adotou a chamada OTAN 2030 – Agenda Transatlântica para o Futuro. O documento lista uma série de providências, dentre as quais destaco a seguir as que considero mais relevantes.

– Fortalecer a OTAN como instrumento de segurança coletiva da região Euro-atlântica, contra todas as ameaças, vindas de todas as direções. Reitera-se o compromisso de se manter um apropriado mix de armas nucleares e convencionais para dissuasão e defesa.

– Adotar medidas no sentido de acelerar a cooperação entre os Estados aliados para o desenvolvimento de novas tecnologias na área de defesa.

– Fortalecer a capacidade da OTAN de preservar a atual ordem internacional nos aspectos que afetam a segurança coletiva dos países da Aliança. Isso inclui fortalecer o diálogo e a cooperação com países não aliados da própria Europa, Ásia, África e América Latina.

– Transformar a OTAN em uma organização internacional que lidere a compreensão dos impactos das mudanças climáticas na área de segurança. Isso inclui esforços para que as próprias forças armadas dos países aliados atinjam o equilíbrio nas emissões de carbono que resultam das atividades militares até 2050.

– Prover a Aliança dos recursos necessários, por intermédio dos orçamentos de defesa dos países-membros e do fundo comum da OTAN, para financiar os ambiciosos objetivos propostos.

Sugestão de leitura – clique aqui e compre o livro na Amazon

Prisioneiros da Geografia – Tim Marshall

A Rússia é citada nominalmente 62 vezes na declaração de Bruxelas. É, sem dúvidas, a maior ameaça identificada pela OTAN. O relatório afirma que os russos continuam a violar os princípios, a confiança e os compromissos previstos nos documentos que sustentam as relações entre o país e a OTAN. Praticamente toda a cooperação civil e militar entre a OTAN e a Rússia permanece suspensa. Os aliados reafirmam que manterão o que consideram ser uma resposta à deterioração do ambiente de segurança com o aumento de seu poder dissuasório e de sua “postura defensiva”, inclusive com a presença militar nas fronteiras mais orientais da Aliança.

Os russos são acusados de crescente desenvolvimento de capacidades militares nos múltiplos-domínios, de promover atividades militares provocativas, como exercícios militares inopinados e em larga escala, inclusive nas proximidades das fronteiras de países aliados, de aumentar seu poderio militar estacionado na Criméia, instalação de sistemas modernos de mísseis em Kaliningrado, aumento da integração militar com a Belarus e repetidas violações do espaço aéreo da OTAN.

A Rússia também é acusada de promover ações de Guerra Híbrida como tentativas de interferência em processos eleitorais de países da Aliança, intimidar e exercer pressões políticas e econômicas, lançar campanhas de desinformação, guerra cibernética, além de atuar com seus serviços secretos em atividades ilegais nos países da OTAN.

A OTAN acusa a Rússia de diversificar seu arsenal nuclear, inclusive desdobrando sistemas de mísseis de curto e médio alcance de modo a ameaçar a aliança e de ocupar ilegalmente a Crimeia, atuando diretamente contra a soberania da Ucrânia. Ações contra a Geórgia e a Moldávia também são condenadas.

Após dedicar-se à ameaça representada pela Rússia, o documento passa a analisar os demais desafios à segurança da OTAN.

O terrorismo se mantém listado como uma ameaça direta à segurança das populações, e embora o documento reconheça que a segurança interna é responsabilidade de cada país, a OTAN está atenta e contribuirá sempre para o enfrentamento dessa ameaça. O documento cita a atuação no Afeganistão e no Iraque, dizendo que, apesar de estar retirando suas tropas do Afeganistão, permanecerá comprometida com o enfrentamento do terrorismo internacional.

A OTAN afirma seu apoio a uma completa, irreversível e verificável desnuclearização da Coreia do Norte e seu compromisso de não permitir que o Irã possua armamento nuclear. Afirma que apoia a retomada das negociações para que o JCPoA – o acordo nuclear com o Irã – seja retomado para que as atividades nucleares naquele país tenham finalidades exclusivamente pacíficas.

O conflito na Síria, que entra em seu 11º ano, também é listado como fonte de instabilidade na região e de insegurança para a fronteira sul da Aliança, que não hesitará em agir militarmente para preservar a segurança contra ameaças provenientes daquela região.

A instabilidade política em Belarus também causa preocupação, e a ação que obrigou o pouso de uma aeronave civil que sobrevoava o país, com a prisão de um opositor do regime que estava a bordo, foi classificada como inaceitável.

O “comportamento assertivo” e as ambições chinesas são apresentadas como ameaças à ordem internacional. Sua modernização e expansão do arsenal nuclear, a chamada “estratégia de fusão civil-militar”, a crescente cooperação militar com a Rússia, inclusive com a participação em exercícios militares conjuntos na área Euro-atlântica, sua falta de transparência e uso de campanhas de desinformação, são apontadas como causas de preocupação.

As mudanças climáticas são apontadas como os desafios conformadores dos tempos atuais. Significam ameaças com múltiplos impactos, tanto na área Euro-atlântica, quanto nas vizinhanças da Aliança. A OTAN se compromete a regularmente avaliar os impactos das mudanças climáticas no ambiente estratégico e nas suas operações.

A chamada “política de portas abertas”, que permite a entrada de novos países europeus na Aliança, é reforçada. O documento afirma que essa é uma questão que diz respeito apenas ao país que deseja entrar na Aliança e à própria OTAN, não interessando a terceiros países. Isto é um claro recado à Rússia, que é contrária ao ingresso dos países do leste europeu, em especial da Ucrânia e da Geórgia, na OTAN.

Para fazer face aos desafios acima listados, além de outros constantes no documento, a OTAN delineia uma série de medidas para fortalecer sua capacidade dissuasória, incluindo-se aí medidas de modernização de seu arsenal nuclear, inclusive por intermédio de suas capacidades missilísticas.

A declaração de Bruxelas deixa claro que a OTAN está preocupada com as mudanças no equilíbrio global de poder. A Rússia é apontada como a maior ameaça a Aliança, mas a China, o Irã e o terrorismo, além das mudanças climáticas, também são apresentados como desafios à segurança e à estabilidade mundial.

A Aliança Euro-atlântica reage ao que considera ser uma postura desafiadora de russos e chineses, que por sua vez alegam estar se preparando para ameaças à sua segurança por parte da OTAN. É o velho Dilema da Segurança, em que a percepção da ameaça externa provoca um maior investimento em segurança e defesa, que por sua vez desperta no outro lado o mesmo sentimento, em uma escalada que acaba por afetar ambos os lados da disputa.

A conclusão, evidente, é a de que há muitos pontos de atrito e confrontação, todos potenciais causadores de crises, que deverão ser manejadas com habilidade por todos os envolvidos, para a manutenção da paz.

(1) Leia a declaração em https://www.nato.int/cps/en/natohq/news_185000.htm




A participação da China em Missões de Paz

Em setembro de 2020, a China publicou um documento oficial no qual relata a participação do país nas missões de paz da ONU. Neste artigo, faço uma breve análise da participação dos chineses nesse tipo de operação militar e concluo sobre as razões que levaram o país a um grande engajamento nessas ações da Organização das Nações Unidas.

A República Popular da China somente uniu-se à ONU em 1971. Até aquela data, os chineses eram representados pelo governo da República da China, dos nacionalistas de Taiwan, que tinham sido derrotados pela revolução comunista. Entretanto, o país demorou para iniciar suas participações nas missões de paz daquele organismo multinacional. Isso se deveu à sua retórica de não intervenção em assuntos internos de outros países, posição de quem defendia a não interferência internacional no seu próprio território.

Somente em maio de 1986 é que três militares chineses chegariam ao Oriente Médio para visitar a United Nations Truce Supervision Organization (UNTSO)[1], primeira e mais antiga missão de paz da Organização das Nações Unidas, destinada a supervisionar a cessação das hostilidades que deveria ter acontecido ao término da primeira guerra árabe-israelense. Era a primeira vez que ocorria esse tipo de participação de chineses em missão de paz.

Dois anos depois, em 1988, a China se incorporava oficialmente ao Comitê Especial das Nações Unidas para as Operações de Manutenção da Paz. Em abril de 1990, os primeiros cinco militares chineses designados para uma missão de paz da ONU chegam à mesma UNTSO para iniciarem suas missões de observadores militares. Estava aberto o caminho para uma importante participação militar da China nas operações que ela mesma, como um dos cinco países integrantes de forma permanente do Conselho de Segurança da ONU, detém o protagonismo de implementar.

Desde então o país enviou cerca de 40 mil militares para 25 missões, dentre as quais se destacam o Camboja, República Democrática do Congo, Costa do Marfim, Etiópia e Eritreia, Serra Leoa, Saara Ocidental, Libéria, Líbano, Sudão (Sudão do Sul e Darfur) e Mali.

Atualmente, o país está com cerca de 2500 soldados desdobrados em várias missões diferentes. Isso significa que o país tem praticamente o dobro dos efetivos de todos os outros quatro membros permanentes do conselho de segurança da ONU, somados[2]. Além disso, o país é o segundo maior contribuinte para o orçamento das missões de paz da ONU.

  Missão Período de participação
1 United Nations Truce Supervision Organization (UNTSO) Abril 1990 – presente
2 United Nations Iraq-Kuwait Observation
Mission (UNIKOM)
Abril 1991 – Janeiro 2003
3 United Nations Mission for the Referendum
in Western Sahara (MINURSO)
Setembro 1991 – presente
4 United Nations Advance Mission in Cambodia (UNAMIC) Dezembro 1991 – Março 1992
5 United Nations Transitional Authority in
Cambodia (UNTAC)
Março 1992 – Setembro 1993
6 United Nations Operation in Mozambique (ONUMOZ) Junho 1993 – Dezembro 1994
7 United Nations Observer Mission in Liberia (UNOMIL) Novembro 1993 – Setembro 1997
8 United Nations Observer Mission in Sierra
Leone (UNOMSIL)
Agosto 1998 – Outubro 1999
9 United Nations Mission in Sierra Leone (UNAMSIL) Outubro 1999 – Dezembro 2005
10 United Nations Mission in Ethiopia and Eritrea (UNMEE) Outubro 2000 – Agosto 2008
11 United Nations Organization Mission in the Democratic Republic of the Congo (MONUC) Abril 2001 – Junho 2010
12 United Nations Mission in Liberia (UNMIL) Outubro 2003 – Dezembro 2017
13 United Nations Operation in Côte d’Ivoire (UNOCI) Abril 2004 – Fevereiro 2017
14 United Nations Operation in Burundi (ONUB) Junho 2004 – Setembro 2006
15 United Nations Mission in Sudan (UNMIS) Abril 2005 – Julho 2011
16 United Nations Interim Force in Lebanon (UNIFIL) Março 2006 – presente
17 United Nations Integrated Mission in Timor-Leste (UNMIT) Outubro 2006 – Novembro 2012
18 African Union-United Nations Hybrid Operation
in Darfur (UNAMID)
Novembro 2007 – presente
19 United Nations Organization Stabilization Mission in the Democratic Republic of the Congo (MONUSCO) Julho 2010 – presente
20 United Nations Peacekeeping Force in Cyprus (UNFICYP) Fevereiro 2011 – Agosto 2014
21 United Nations Mission in South Sudan (UNMISS) Julho 2011 – presente
22 United Nations Organization Interim Security Force
for Abyei (UNISFA)
Julho 2011 – Outubro 2011
23 United Nations Supervision Mission in Syria (UNSMIS) Abril 2012 – Agosto 2012
24 United Nations Multidimensional Integrated Stabilization Mission in Mali (MINUSMA) Outubro 2013 – presente
25 United Nations Multidimensional Integrated Stabilization Mission in the Central African Republic (MINUSCA) Janeiro 2020 – presente

Tabela 1 – Participação da China em Missões de Paz

Fonte – Livro Branco das Operações de Paz 

A primeira missão para a qual os chineses enviaram um efetivo relevante foi a United Nations Transitional Authority in Cambodia (UNTAC). Tratou-se de uma operação em que, pela primeira vez na história da ONU, se estabeleceu um governo para se administrar um país independente. O mandato da missão estabelecia uma ampla variedade de responsabilidades: a administração civil do país, a preparação de eleições, a manutenção da ordem pública, garantia dos direitos humanos, a facilitação do retorno dos refugiados e a melhoria da infraestrutura básica do país.

Os chineses enviaram inicialmente 47 observadores e um Batalhão de Engenheiros com um efetivo de 400 militares, que foram substituídos, em sistema de rodízio. Dentre as missões que receberam, estava a de realizar obras de reparo e manutenção do aeroporto da capital, além de diversas estradas. De abril de 1992 a setembro de 1993, mais de 800 militares chineses participaram das operações de paz no Camboja, com duas baixas fatais.

Sugestão de leitura – adquira o ebook na Amazon (em inglês)

Autor – Marc Lanteigne e outros

Depois da participação no Camboja, os chineses somente mandariam tropas constituídas às missões de paz após o transcurso de uma década. Em abril de 2003, uma Companhia de Engenharia composta por 175 militares e um Destacamento de Saúde com o efetivo de 43 oficiais e praças, chegou ao seu destino na República Democrática do Congo para compor a MONUSCO.

No mesmo ano de 2003, o país mandou Unidades de transporte, engenharia e assistência médica à Libéria. A África, continente de grande importância geopolítica para a estratégia de inserção internacional chinesa, passa a receber grandes efetivos de capacetes azuis chineses.

Comprovando essa prioridade, em 2005 as forças de paz chinesas passam a compor a UNMISS, missão da ONU para o Sudão do Sul e, em 2007, em Darfur, região crítica no Sudão. Em 2013, chega a vez do envio de tropas ao Mali e, em 2020, à República Centro Africana.

Em setembro de 2020, o governo chinês publicou um livro branco de defesa que trata especificamente de missões de paz. Nele, fica clara a opção da liderança do Partido Comunista Chinês, especialmente a escolha feita por Xi Jinping, pelas operações de paz da ONU.

Dividido em cinco capítulos, o documento explicita a posição do país em defesa da ONU e do multilateralismo.

“China has always resolutely safeguarded the UN-centered international system and the basic norms governing international relations underpinned by the purposes and principles of the UN Charter, and worked with countries around the world to uphold multilateralism, equity and justice.”[3] (CHINA. 2020)

No primeiro capítulo, o governo chinês explica por que fez a escolha em apoiar decisivamente as missões de paz da ONU. Declara seu comprometimento com a paz, sua preocupação com o bem-estar dos demais povos da humanidade, diz ser função precípua de um “exército popular” servir às populações. O documento afirma que participar das missões de paz é honrar as responsabilidades de uma potência internacional e que o país cumpre as políticas das Nações Unidas para as operações de paz.

No segundo capítulo, o documento lista as principais tarefas cumpridas pelos chineses nas missões de paz: supervisão de cessar-fogo entre as partes beligerantes, estabilização, proteção à população civil, proteção às próprias Forças da ONU, disponibilização de capacidades militares específicas, tais como engenharia, transportes, saúde e apoio aéreo e, finalmente, “levar esperança” às populações.

No terceiro capítulo, o governo chinês apresenta suas ações em prol do sistema de missões de paz da ONU. Primeiro, apresenta as ações para manter tropas que atendam ao sistema de prontidão das Nações Unidas[4]. Os chineses se comprometem a manter um efetivo de 8 mil soldados, distribuídos por 28 Unidades de 10 diferentes especialidades. Além disso, o país se compromete a oferecer capacidades críticas para as missões de paz, como engenharia, saúde e aviação, além de treinamento para tropas de outros países e assessoramento específico aos países da União Africana. Finalmente, o documento informa sobre a disposição da China em contribuir financeiramente para as missões de paz, inclusive com a criação de um fundo específico, que já teria investido, entre 2016 e 2019, cerca de 33,6 milhões de dólares.

O quarto capítulo apresenta as ações chinesas no sentido de aumentar a cooperação internacional. O país alega estar fortalecendo a comunicação estratégica entre as nações para criar um consenso em favor das missões de paz. Isso incluiria diversas iniciativas bilaterais e multilaterais para compartilhar políticas, estratégias e planos para fortalecer as relações entre Estados e entre Forças Armadas.

No último capítulo do documento, o governo chinês reafirma o comprometimento com a construção da paz mundial. Fala novamente no compromisso com o fortalecimento do sistema de missões de paz e na necessidade de se atuar tanto nas causas como nas consequências dos conflitos.

A China está firmemente comprometida com as operações de paz da ONU. Isso se comprova não só pela efetiva participação do país com o envio de soldados e equipamentos, além do emprenho de recursos financeiros, mas também pela formulação das políticas nas áreas de defesa e relações internacionais.

As razões para isso, para além das boas intenções declaradas no livro branco, são variadas. Em primeiro lugar, pode-se citar a preocupação em participar do sistema internacional com efetividade, colhendo os lucros de apresentar-se como um país comprometido com o multilateralismo junto aos demais países do sistema internacional.

Por outro lado, é inegável que as missões de paz conferem aos militares chineses uma experiência operacional que lhes falta. A interação com militares de outros países, tanto nas atividades das missões propriamente ditas, quanto nos intercâmbios de treinamento, oferece aos chineses oportunidades de ganhos de experiência que não seriam obtidos de outra forma.

A presença dos capacetes azuis chineses na África também pode ser vista como uma oportunidade de expansão dos investimentos e de ganho de influência sobre os países daquele continente.

Assim, comprova-se que no espaço de três décadas, a participação da China nas missões de paz da ONU saiu de praticamente zero até uma posição de indiscutível liderança. As razões para isso são variadas, desde econômicas até políticas, geopolíticas e militares. Todas elas apontado para um maior protagonismo do gigante asiático no sistema internacional.

 

[1] Conheça a página oficial – https://untso.unmissions.org/

[2] Ver em https://peacekeeping.un.org/en/troop-and-police-contributors

[3] “A China sempre salvaguardou o sistema internacional centrado nas Nações Unidas e as normas básicas que regem as relações internacionais baseadas sustentadas pelos propósitos e princípios da Carta das Nações Unidas, e trabalhou com países ao redor do mundo para defender o multilateralismo, a equidade e a justiça”

[4] Peacekeeping Capability Readiness System (PCRS)english/2020-09/18/c_139376725.htm#:~:text=Over%20the%20past%2030%20years,world%20peace%20and%20common%20development Acesso em 04 de maio de 2021

 

REFERENCIAS

CHINA. China’s Armed Forces: 30 Years of UN Peacekeeping Operations. Livro Branco das Operações de Paz. Disponível em http://www.xinhuanet.com/

GOWAN, Richards. China’s pragmatic approach to UN peacekeeping. Artigo. Disponível em https://www.brookings.edu/articles/chinas-pragmatic-approach-to-un-peacekeeping/ Acesso em 03 maio 21

ROGERS, Philippe. China and United Nations Peacekeeping operations in Africa. Naval War College Review. Vol. 60, No. 2. 2007. Disponível em https://www.jstor.org/stable/26396822?seq=1#metadata_info_tab_contents. Acesso em 03 maio 2021.

SHANG, Chngyi. EPL y las operaciones de mantenimiento de paz de la ONU. China Press. 2015

 

 




Os gastos mundiais com Defesa continuam crescendo, apesar da pandemia.

O Presidente Biden acaba de enviar ao Congresso norte-americano sua proposta de orçamento de Defesa para 2022[1]. O documento propõe um orçamento de US$ 752,9 bilhões, um aumento em cerca de 1,5% em relação aos gastos previstos para o corrente ano.

Em perfeito alinhamento com o previsto na Estratégia de Defesa[2] do país, lançada em 2018, na qual a guerra ao terror perdeu importância e a competição entre Estados passou a ser a principal preocupação da segurança nacional norte-americana, a proposta orçamentária pretende dotar as forças armadas dos recursos necessários para se contrapor às ameaças representadas por China e Rússia.

A contenção à China recebeu especial prioridade. A iniciativa chamada “Pacific Deterrence Initiative”, ou Inciativa de Dissuasão do Pacífico, recebe investimentos específicos, da ordem de 5,1 bilhões de dólares. Trata-se de uma rubrica especial, destinada a dotar o Comando do Indo-Pacífico de “recursos para capacidades militares vitais para conter a China”.

A área de Ciência & Tecnologia também foi priorizada. Estão previstos recursos para inteligência artificial, 5G, microeletrônica, cibernética, além da modernização do arsenal nuclear. Há recursos para aquisição ou modernização de diversos sistemas de armas, navios, submarinos, aeronaves, mísseis balísticos intercontinentais, sistemas de armas autônomos e remotamente pilotados e veículos blindados. Quanto aos blindados, merece destaque a destinação de 1 bilhão de dólares para o prosseguimento da modernização dos Carros de Combate Principais M-1 Abrams.

O documento ainda prevê recursos para o enfrentamento às mudanças climáticas e à COVID-19, além da previsão de aumento salarial ao pessoal civil e militar das Forças Armadas.

O esforço orçamentário norte-americano na área de defesa, mesmo em pleno enfrentamento da crise provocada pela pandemia, não é isolado. China, Reino Unido e Japão são outros exemplos.

Sugestão de leitura – compre na Amazon

Autor – Napoleão Bonaparte. Edição e organização – Bruno Colson. Tradução – Clóvis Marques

O Instituto de Pesquisas da Paz de Estocolmo (SIPRI) divulgou recentemente os dados de seu levantamento anual sobre os gastos militares dos países. Trata-se de uma pesquisa consistente, internacionalmente reconhecida, que baliza os mais variados estudos sobre orçamentos de defesa por pesquisadores de todo o mundo.

A pesquisa concluiu que os gastos com defesa do mundo cresceram quase US$ 2 bilhões em 2020, um incremento de 2,6%, em termos reais, quando comparado com 2019. Esses números chamam ainda mais atenção porque foram alcançados em um ano em que o PIB global despencou 3,3%, em razão da pandemia da COVID-19. E ocorreram apesar de alguns países com gastos militares importantes, como Brasil e Rússia, terem gastado em 2020 consideravelmente menos do que o inicialmente previsto em seus orçamentos.

Cinco países somados correspondem a 62% dos gastos mundiais com defesa: EUA, China, Índia, Rússia e Reino Unido. Em 2020, os gastos norte-americanos, que respondem por 39% do total global, cresceram pelo 3º ano consecutivo. Os gastos chineses, subiram pelo 26º (!) ano consecutivo. Esta série ininterrupta de aumentos jamais foi alcançada por outro país no longo histórico de pesquisas do SIPRI.

É claro que a escolha de onde investir seus orçamentos reflete as prioridades conferidas pelos governos às inúmeras necessidades que devem ser cobertas por recursos invariavelmente insuficientes, para o atendimento das múltiplas necessidades governamentais. A defesa compete com a saúde, educação, segurança pública, obras de infraestrutura e um sem-número de outras necessidades que, geralmente, são muito mais demandadas e urgentes para o dia-a-dia dos cidadãos.

Assim, é forçoso acreditar que os governos – especialmente os das principais potências militares – veem motivos suficientes para ampliarem os gastos, mesmo em uma conjuntura tão adversa. E os motivos estão todos os dias nas manchetes dos jornais. A competição geopolítica está sendo travada à luz do dia, não podendo ser desconsiderada por planejadores nos níveis político e estratégico, estejam esses em cargos públicos ou na iniciativa privada, uma vez que interfere nas relações internacionais e nos negócios de todos os países. E o Brasil, mesmo que geograficamente distante das principais disputas, também não consegue escapar dos efeitos dessa realidade.

 

[1] Acesse os documentos em https://paulofilho.net.br/2021/05/30/proposta-orcamentaria-de-defesa-dos-eua-para-2022/

[2] Leia o artigo em https://paulofilho.net.br/2018/04/18/nova-estrategia-de-defesa-dos-eua-e-ataque-a-siria/

 




Mais uma crise na Terra Santa



Após semanas de uma escalada de tensões, está em andamento a mais grave crise envolvendo israelenses e palestinos, desde 2014.

O mundo acompanha pela imprensa e pela internet a pirotecnia das cenas de explosões de foguetes lançados pelo Hamas contra diversas cidades israelenses e dos bombardeios aéreos e de artilharia das Forças de Defesa Israelenses à Faixa de Gaza. As vítimas civis já podem ser contadas nas casas das centenas. Além das ações no campo militar, a disputa pela conquista de apoios, simpatias ou aliados é travada com ferocidade, de parte a parte, e as pessoas que observam de longe se veem em meio ao fogo cruzado da guerra de narrativas, expostos que estão a análises sérias, mas também à pura propaganda, muitas vezes sem condições de diferenciar uma da outra.

Os acontecimentos que culminaram com o violento conflito atual têm como causa imediata a ordem judicial de despejo de famílias palestinas que moram no bairro Sheikh Jarrah, em Jerusalém Oriental, e também os incidentes que ocorreram nas cercanias do Monte do Templo e da Mesquita de Al-Aqsa, no mesmo bairro.

As tensões entre judeus e palestinos, dentro do território israelense, já estavam mais altas do que o normal há algumas semanas, em razão da “intifada do TikTok”, em que vídeos com jovens israelenses árabes agredindo jovens israelenses judeus ortodoxos viralizaram no aplicativo. Esses conflitos internos, entre os próprios cidadãos de Israel, que inclusive se intensificaram e ocorreram em diferentes cidades ao longo da semana, são pouco comuns, e não ocorreram com essa intensidade marcante em outros momentos de conflito entre israelenses e palestinos.

O calendário deste ano aproximou duas datas móveis importantes para muçulmanos e judeus. Dia 08 de maio, os islâmicos comemoraram o início da revelação do Alcorão pelo anjo Gabriel a Maomé, a chamada Noite do Poder, não só a mais importante data do Ramadã, mas de todo o calendário da fé islâmica. Por outro lado, os judeus se preparavam para comemorar o “Dia de Jerusalém”, no dia 10, data em que eles rememoram o que consideram ser a reunificação da cidade, ocorrida com a conquista da porção oriental de Jerusalém na Guerra dos Seis dias, em 1967. Os grupos se encontraram no lugar que é sagrado para ambos, em Jerusalém Oriental, e o confronto foi inevitável.

Sugestão de leitura – clique aqui e compre na Amazon

Autor – James L. Gelvin

Os ânimos acirrados pela série de acontecimentos recentes acabaram em violentos confrontos entre policiais israelenses e palestinos, ocorridos nas cercanias do Monte do Templo e da Mesquita sagrada de Al-Aqsa, o que enfureceu os muçulmanos israelenses e palestinos. Assim, na segunda-feira, dia 10, o Hamas emitiu um inédito ultimato aos israelenses, informando que, caso a polícia não se retirasse das redondezas da Mesquita de Al-Aqsa e do bairro de Sheikh Jarrah até as 18h, agiriam em represália. Os israelenses não retiraram a polícia e os palestinos iniciaram o lançamento de foguetes a partir de 18:05h. Um fato importante a se destacar é que os palestinos lançaram seus foguetes contra a capital de Israel, Tel Aviv, ação que eles vinham evitando nos últimos anos. E bombardearam Jerusalém, cidade sagrada para judeus e para muçulmanos, pela primeira vez na história.

Tudo isso acontece em meio a uma crise política que ocorre simultaneamente, tanto em Israel quanto nos territórios palestinos. O Primeiro-Ministro Benjamin Netanyahu falhou em sua tentativa de estabelecer um governo de coalizão após a 4ª eleição em apenas dois anos. Ele enfrenta baixos índices de popularidade e seu governo, neste momento, carece da legitimidade do mandato popular.

Conheça a lista de livros que recomendo, na Amazon

Ao mesmo tempo, o presidente palestino Mahmoud Abbas acaba de cancelar as eleições presidenciais que estavam previstas – as primeiras desde 2006 – após perceber que seu partido, o Fatah, estava indo mal nas pesquisas eleitorais. Com os dois líderes precisando amentar suas popularidades, o risco de que eles possam tomar decisões mais duras, ou precipitadas, passa a ser mais alto. Isso é especialmente verdadeiro em relação à Israel, onde o líder oposicionista Yair Lapid estava tentando montar o governo com o apoio da extrema direita nacionalista, que havia abandonado Netanyahu, e também dos partidos árabes, uma tentativa inédita. Com a escalada das tensões esse movimento se inviabilizará, com claros benefícios para Netanyahu.

Os conflitos entre os israelenses e os Estados árabes, que já os levaram à guerra em quatro oportunidades, arrefeceram nos últimos anos, inclusive com a celebração, no ano passado, dos chamados Acordos de Abraão, entre Israel, Emirados Árabes Unidos e Bahrein, que se uniram a Egito e Jordânia, aumentando o número de países árabes que mantém relações normais com Israel.

Entretanto, como essa crise mais uma vez comprova, as relações entre israelenses e palestinos não lograram conquistar praticamente nenhum avanço. Construir um ambiente de confiança mútua que proporcione a paz e uma solução definitiva para o conflito não parece ser um objetivo próximo de ser alcançado.




A retirada das tropas dos EUA do Afeganistão



Os EUA se comprometeram, em acordo firmado com o grupo Talibã no ano passado, a retirar completamente suas tropas do Afeganistão. O prazo final acordado era hoje, 01 de maio de 2021. E as tropas permanecem por lá. Mas, antes de nos debruçarmos sobre esse acordo, vamos entender por que as tropas americanas estão há quase 20 anos no Afeganistão.

Os ataques de 11 de setembro de 2001 às torres gêmeas do World Trade Center e ao Pentágono vitimaram quase três mil pessoas, causando dor, revolta, perplexidade e raiva aos norte-americanos. Rapidamente, os EUA identificaram Osama Bin Laden, chefe da Al Qaeda, como sendo o responsável pelos atentados terroristas que mudariam a história.

Os EUA, superpotência econômica e militar dominante à época, iniciaram praticamente de imediato a chamada “Guerra ao Terror”, definindo o Afeganistão, território que dava abrigo à Al Qaeda, como primeiro teatro de operações.

Apenas 15 dias depois do atentado, em 26 de setembro, uma equipe da CIA se infiltrou clandestinamente no país e iniciou os contatos com a Aliança do Norte, um grupo contrário ao regime fundamentalista islâmico dos Talibãs, que governava o país. Iniciava-se o planejamento para derrubar o regime que havia se recusado a entregar Bin Laden aos norte-americanos. Em 7 de outubro, os EUA, com o apoio dos britânicos, desencadearam uma intensa campanha aérea de bombardeios à alvos militares no Afeganistão, desarticulando os campos de treinamento da Al Qaeda no país. Em 13 de novembro, a Aliança do Norte conquistava Cabul, a capital do país. Em 6 de dezembro, Kandahar, maior cidade do sul e sede espiritual do regime, também era conquistada pela Aliança do Norte. O regime Talibã havia sido apeado do poder, refugiando-se, juntamente com integrantes da Al Qaeda, nas regiões tribais do norte do Paquistão.

Conheça a lista de livros que sugiro, na Amazon

Osama Bin Laden não havia sido encontrado, mas em abril de 2002, o presidente George Bush anunciava um “Plano Marshall” para o Afeganistão, com o investimento “substancial” de recursos para a reconstrução do país. Mas a atenção dos EUA havia se voltado para o Iraque, que seria invadido em março de 2003. Assim, entre 2001 e 2009, os EUA investiram pouco mais de 38 bilhões de dólares em ajuda humanitária e em apoio à reconstrução do Afeganistão. Mais da metade desse valor foi investida nas forças de segurança do país. A OTAN, representada por tropas de mais de 20 países, também enviou contingentes ao Afeganistão, em seu primeiro desdobramento fora da Europa.

Mas os enfrentamentos de baixa intensidade nunca cessaram. Em 2010, os EUA já tinham perdido mais de mil soldados na campanha. Britânicos, trezentos. Canadenses, cento e cinquenta. Baixas ocorreram ainda em todos os contingentes, o que foi tornando a presença no Afeganistão cada vez mais impopular nos países europeus e nos EUA.

Em 2009, o Presidente Obama assumiu o governo dos EUA e passou a dedicar mais atenção ao Afeganistão, enviando 17 mil soldados para se somarem aos já 36 mil norte-americanos e aos 32 mil de outras nações da OTAN, que já estavam no Afeganistão. Obama também trocou o comandante militar norte-americano, enviando o General  Stanley McChrystal, com a tarefa de modificar a estratégia militar da operação.

O novo comandante, em relatório enviado ao governo norte-americano, concluía que a guerra seria perdida em um ano se ele não recebesse um considerável reforço. Assim, os EUA decidem enviar mais 30 mil soldados ao Afeganistão.

Em junho de 2010, descontente com declarações de McChrystal à imprensa, Obama novamente troca o comandante, nomeando o General David Petraeus para o comando. Petraeus era conhecido no Exército como o arquiteto da doutrina de contrainsurgência em vigor à época.

Finalmente, em 02 de maio de 2011, quase dez anos após os atentados terroristas que deram origem à guerra, Bin Laden foi morto por uma equipe das Forças Especiais da Marinha dos EUA na cidade de Abbottabad, no Paquistão.

Em junho do mesmo ano, o presidente Obama anuncia um plano para a retirada de tropas do Afeganistão, que deveria ocorrer totalmente até 2014. A missão de combate da OTAN foi formalmente encerrada em dezembro daquele mesmo ano, mas as tropas norte-americanas continuariam no país para “treinar as tropas afegãs e fornecer apoio às operações contra o terror”. Ashraf Ghani, presidente eleito em 2014, iniciou conversações para a paz com o Talibã e outros grupos armados.

 

Sugestão de leitura – clique no link e compre na Amazon

O Afeganistão depois do Talibã: Onze histórias afegãs do 11 de Setembro e a década do terror: Onze histórias afegãs do 11 de Setembro e a década do terror

 

Entre idas e vindas, que resultaram inclusive em um aumento dos efetivos militares norte-americanos no país em 2017, as conversações para a paz continuaram. Em dezembro de 2018, já na presidência de Trump, EUA, Arábia Saudita e Paquistão se reuniram com representantes do Talibã em Abu Dhabi. Alguns dias depois, os EUA anunciaram a retirada de mais uma significativa parcela de suas tropas. Até que, em 29 de fevereiro de 2020, EUA e Talibã anunciaram um acordo pelo qual os EUA se retirariam completamente em 14 meses. Por outro lado, o Talibã se comprometia a continuar as conversações de paz com o governo e a não permitir a operação da Al Qaeda ou do Estado Islâmico em território Afegão.

Este prazo se encerra exatamente hoje, dia 01 de maio de 2021. Entretanto, ainda há tropas norte-americanas no Afeganistão. O presidente Joe Biden já havia declarado que o prazo não seria cumprido, por razões de segurança, estabelecendo um novo prazo: 11 de setembro, exatamente 20 anos depois dos atentados que originaram a guerra.

O Talibã evidentemente não gostou do descumprimento do acordo, e já declarou que isto abriria o caminho para “ações que se julguem adequadas contra as tropas de ocupação”. As forças de segurança do país estão no mais elevado nível de alerta após o recrudescimento da violência nos últimos dias.

A retirada das tropas estrangeiras do Afeganistão exige um considerável esforço logístico para que seja feita com um adequado nível de segurança. Essa é a principal razão alegada pelos EUA para mais esse adiamento. Mas, depois de reiteradas promessas de retirada não serem cumpridas, é natural que exista certa desconfiança.

Não deixa de ser irônico que, 20 anos após o início da guerra, após dezenas de milhares de mortos entre as forças regulares afegãs e alguns milhares de vidas perdidas dentre as forças da coalizão, as negociações estejam sendo feitas com o Talibã, mesmo grupo que foi retirado do poder ainda em 2001. A sensação de fracasso é indisfarçável. E deixa uma lição para todos os envolvidos, acerca da grande dificuldade de se travar um combate dessa natureza.

Assim, apesar dos indícios indicarem que dessa vez há um firme propósito dos EUA em realmente encerrar a guerra, há uma grande incerteza sobre os destinos do Afeganistão, devastado por 20 anos de conflitos. É bastante provável que a China, país que inclusive faz fronteira com o Afeganistão, venha a ocupar o espaço deixado pelos EUA, como principal fiadora e financiadora da reconstrução do país. Afinal, para a China não interessa um vizinho instável, que possa oferecer abrigo aos grupos terroristas uigures da Região autônoma de Xinijiang. Vamos acompanhar.




A China vai à guerra por Taiwan?



Essa é uma pergunta que vem sendo feita com cada vez mais frequência, em razão da vertiginosa ascensão política, econômica e militar da China e de sua retórica cada vez mais assertiva no sentido da inevitabilidade da reincorporação da ilha de Taiwan – que os chineses consideram ser uma província rebelde – à plena soberania chinesa.Muitas análises já foram produzidas sobre o tema, com resultados divergentes. Há os que alertam para a grande probabilidade de um conflito armado, que inexoravelmente envolveria os Estados Unidos, e há os que apostam em uma solução pacífica, na qual todos os interesses seriam acomodados.

Gosto muito do estudo feito por Graham Allison e sua equipe, descrito no livro “A Caminho da Guerra”, publicado no Brasil pela Editora Intrínseca. Já escrevi um artigo sobre o livro, disponível aqui no blog, para os que queiram saber um pouco mais sobre aquela análise. Nele, Allison apresenta sua teoria, batizada de “Armadilha de Tucídides”, para descrever as tensões geradas pela ascensão de uma potência e o desafio que ela passa a representar para a potência estabelecida. Allison conclui que a guerra não é inevitável, mas a dinâmica de escalada de tensões pode sim, levar a um conflito de grandes proporções.

O atual comandante norte-americano no Indo-Pacífico, Almirante Philip Davidson, declarou a uma comissão do Senado de seu país, no início de março, que acreditava que a China invadiria Taiwan nos próximos seis anos. Certamente o Almirante Philip tem acesso a dados e informações que podem tê-lo levado a uma conclusão tão peremptória. Por outro lado, pode-se também considerar que o cenário apresentado pelo Almirante contribui para conscientizar o Senado do seu país da necessidade de se alocar recursos para as forças desdobradas no Oriente.

Ainda assim, as atividades militares chinesas na região estão intensas, o que reforça o cenário de guerra. No início deste mês, uma Força-tarefa aeronaval liderada pelo porta-aviões chinês Liaoning cruzou o estreito ao sul da ilha de Okinawa e ao norte de Taiwan, em seu caminho para o Pacífico. Neste exato momento, a marinha do país está realizando um exercício de tiro nas proximidades do arquipélago das Ilhas Pratas, controladas por Taiwan, mas também reclamadas pela China. O exercício se iniciou após a incursão simultânea de 25 aeronaves militares chinesas na chamada “Zona de Identificação Aérea” taiwanesa. Essas incursões, praticamente diárias no último ano, já se tornaram rotina. O que chamou atenção, desta vez, foi a quantidade de aeronaves, dentre as quais caças e bombardeiros, a maior registrada até hoje.

Conheça o curso Guerra na Ucrânia

Entretanto, uma invasão militar da Ilha de Taiwan seria uma tarefa muito difícil, mesmo para os chineses. A escolha militar mais óbvia seria por uma operação anfíbia, ou seja, os chineses teriam que conquistar uma praia no litoral de Taiwan – uma “cabeça de praia” – para, a partir dela, realizar a conquista da Ilha. Acontece que a geopolítica mais uma vez se impõe, determinando muitos fatores complicadores dentro do campo militar.

Taiwan dista cerca de 160 Km do litoral da China. Isso significa que a Força-Tarefa Anfíbia, composta pelas Unidades Navais e pela Força de Desembarque, levaria cerca de 5 horas para atravessar o Estreito de Taiwan até chegar à Área de Objetivo Anfíbio, onde ocorreria o assalto e a conquista das cabeças de praia.

Esse tempo de deslocamento aniquilaria a surpresa, um fator essencial nesse tipo de operação. Durante boa parte de seu deslocamento, as forças chinesas estariam sujeitas a um intenso bombardeio da artilharia taiwanesa, o que certamente cobraria, logo de início, um preço muito alto das forças chinesas.

Sugestão de leitura – clique aqui e compre na Amazon

Autor – Graham Allison

Outro fator muito favorável aos taiwaneses é a geografia da ilha. Em sua porção leste, o terreno é montanhoso e rochoso. As escarpas muitas vezes se aproximam bastante do mar, praticamente retirando a possibilidade de um assalto anfíbio naquela porção da ilha. Assim restariam poucos locais – estima-se em apenas 12 – passíveis de serem escolhidos pelos chineses para serem os objetivos anfíbios. É evidente que as Forças Armadas taiwanesas estão fortemente preparadas e com todos os planejamentos prontos para a defesa desses locais, o que tornaria a luta pela conquista dessas praias uma verdadeira carnificina.

Outras possibilidades militares clássicas seriam as operações aeromóveis ou aeroterrestres, nas quais a invasão seria iniciada por tropas paraquedistas ou tropas de assalto transportadas por aeronaves. De qualquer maneira, mesmo que um assalto dessa natureza seja exitoso, os suprimentos e reforços necessários à conquista da ilha exigiriam um esforço logístico tremendo, muito difícil de ser executado.

Mais um aspecto importante é a autolimitação de meios a que a China está submetida em relação à Taiwan. Seu arsenal nuclear, por exemplo, é inútil, uma vez que é impensável a utilização desse tipo de arma contra aquele que eles consideram ser seu próprio território. Além disso, o emprego de armas nucleares fatalmente retiraria a legitimidade da ação chinesa, tanto perante a comunidade internacional quanto perante sua própria população.

Restaria aos chineses a opção de ações indiretas, como a conquista dos arquipélagos de Quemoy e Matsu, sob controle de Taiwan, mas praticamente colados à China continental, e de Pescadores, a 2/3 do caminho. As primeiras conquistas (Quemoy e Matsu), poderiam causar menos reação internacional. Já a conquista do arquipélago de Pescadores causaria forte reação, mas é um objetivo bem menos complicado que a Ilha principal, possibilitaria uma progressiva aproximação dos meios, e serviria de ensaio para as operações futuras. Não se deve esquecer que as Forças Armadas chinesas não possuem experiência de combate real. Sua última campanha militar foi em 1979, contra o Vietnã, e não se pode considerar que tenha sido um sucesso. Nesse contexto, uma ação preliminar, uma espécie de ensaio, seria importante tanto para os comandantes, quanto para as forças chinesas no teatro de operações.

Uma sequência para a invasão
Fonte – Naval War College

 

Outra ação indireta seria a larga utilização da guerra híbrida, com ações na chamada “área cinzenta”, abaixo da linha da guerra. Propaganda, guerra cibernética, pressões econômicas, infiltração de agentes subversivos visando à desestabilização do governo taiwanês, todas essas são ações possíveis de serem implementadas desde já, e provavelmente algumas delas já estão em andamento. Um exemplo atual desse tipo de ação é a que a Rússia patrocina na região de Dombass, leste da Ucrânia.

Ponderadas as dificuldades militares, certamente conhecidas dos estrategistas chineses, resta saber se elas serão suficientes para conter o ímpeto político. Afinal, a decisão de ir à guerra não é dos militares e, sim, dos políticos.

Xi Jinping já divulgou, em diversos documentos, seu “Sonho chinês”, que consiste, basicamente, em devolver à China seu papel predominante na Ásia, retirado pela intromissão das potências europeias no século 19, restabelecer o controle de todos os territórios chineses, onde se inclui a questão de Taiwan, e exigir que a China seja respeitada como uma potência perante as demais potências mundiais e organismos internacionais. Como se vê, Taiwan é a principal peça que falta para a construção do sonho chinês de Xi Jinping.

Allison alerta em seu livro que potências emergentes normalmente são superconfiantes, embriagadas por sua sequência de sucessos. Tucídides, o historiador grego que escreveu “A história da Guerra do Peloponeso”, lista a “honra” como uma das principais causas daquela guerra. Esse conceito pode ser interpretado como a ideia que o Estado faz de si mesmo, suas convicções sobre o reconhecimento e o respeito que merece receber dos demais Estados, seu “orgulho nacional”.

Muitas vezes na história, sentimentos como esses levaram à guerra, superando quaisquer análises estratégicas, operacionais ou táticas dos militares. Talvez sejam esses os fatores preponderantes na análise feita pelo Almirante Philip Davidson ao prever a invasão de Taiwan para os próximos seis anos.




As tensões entre as maiores potências militares do planeta



Neste exato momento, é bastante provável que dois contratorpedeiros, o USS Donald Cook e USS Roosevelt, da marinha norte-americana, estejam em deslocamento para o Mar Negro. A informação foi divulgada pela Turquia, não sendo oficialmente confirmada pelos EUA. O acesso dos países sem costa para o Mar Negro é livre, conforme a Convenção de Montreal, de 1936. Entretanto, o trânsito pelo Estreito de Bósforo, que dá acesso àquele mar, deve ser informado à Turquia com duas semanas de antecedência. Os EUA teriam informado o trânsito dos dois navios, que cruzariam o Estreito nos dias 14 e 15 de abril e permaneceriam no Mar Negro até os primeiros dias de maio. A Rússia já anunciou que, no mesmo período, estará com sua frota fazendo exercícios na mesma região.

Mar Negro

 

A presença de navios da marinha norte-americana no Mar Negro não é uma novidade. Mas desta vez, a notícia é divulgada em pleno momento de grave acirramento de tensões entre Rússia e Ucrânia, com reflexos óbvios para uma escalada de tensões entre a Rússia e a OTAN. Os russos concentraram a maior quantidade de tropas nas proximidades da fronteira com a Ucrânia desde 2014, ano em que o país anexou a península da Crimeia. Desde então, as forças ucranianas têm travado combates contra separatistas patrocinados pela Rússia na região de Donbass, na porção mais oriental do país. Há poucos dias, em 26 de março, a Ucrânia anunciou a morte de mais quatro soldados do seu exército naqueles combates. Ao mesmo tempo, o presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, fez declarações expressando a sua intenção de integrar seu país à OTAN, o que desagrada profundamente as autoridades russas.

Além dessa questão, uma série de outras notícias envolvendo os EUA, Rússia e China demonstram que as relações entre as principais potências militares do planeta vivem um momento de tensionamento bem acima da normalidade.

A primeira notícia é a entrevista do presidente Biden ao jornalista George Stephanopoulos, na rede de televisão ABC. Biden concordou com a assertiva de Stephanopoulos de que o presidente russo Vladimir Putin seria um assassino. Disse ainda que Putin “pagará o preço” por interferir nas eleições do país, o que teria acontecido, segundo um relatório da inteligência norte-americana recentemente divulgado, em favor do ex-presidente Trump.

A resposta russa foi imediata e o embaixador do país nos Estados Unidos foi chamado à Moscou “para consultas”. Como se sabe, no balé da diplomacia, este é um gesto que demonstra profundo descontentamento. A explicação da chancelaria russa foi a de que o embaixador seria consultado de modo a “não permitir que a relação entre os dois países se deteriore de maneira irreparável”. O presidente Putin, em declaração imediatamente posterior, desejou “vida longa” ao presidente Biden para depois dar a entender que o presidente dos EUA identificava em outras pessoas características de sua própria personalidade.

Um chefe de Estado chamar outro de assassino, em tempo de paz, é algo extremamente incomum. O presidente Biden é um político experiente, que já foi vice-presidente da república e senador por décadas. É claro que sabia perfeitamente da repercussão que teria sua fala. Se fez isso só se pode crer que tenha sido com o objetivo de escalar as tensões com os russos.

Mas, esse não foi o único evento recente e estressar a relação entre as duas potências. A empresa russa Gazprom lidera a construção do Gasoduto Nord Stream 2, que duplicará a quantidade de gás natural que os russos vendem à Alemanha. Trata-se de um projeto de 1200 Km, que já teve 94% de sua construção terminada, e que ligará os dois países pelo Mar Báltico. O projeto recebe forte oposição dos EUA, que consideram que a obra visa, na verdade, a “dividir a Europa e enfraquecer sua segurança energética”, como declarou o Secretário de Estado Antony Blinken no último dia 18 de março. Isto porque o gasoduto contorna a Ucrânia, que desta forma não recebe os royalties devidos pela passagem do gás por seu território. Na mesma declaração, os norte-americanos reiteram as sanções que já são aplicadas às empresas que trabalham na construção do gasoduto e afirmam que estas podem ser estendidas caso novas empresas venham a ser identificadas. Trata-se de uma questão delicada por envolver a aliada Alemanha, que defende a construção do gasoduto.

Para completar as recentes rusgas nas relações entre EUA e Rússia, o embaixador russo em Sarajevo escreveu um artigo dizendo que “a Rússia terá que reagir” caso a Bósnia e Herzegovina ingresse na OTAN, aliança militar ocidental liderada pelos EUA. Assim como os ucranianos, os bósnios movimentam-se para se juntar à aliança. O país, além da Sérvia e de Kosovo, cuja soberania ainda está em aberto, são os únicos países dos Balcãs que não aderiram à OTAN. Montenegro juntou-se à aliança em 2017, enquanto a Macedônia do Norte se tornou membro no ano passado.

Ao mesmo tempo, no Alasca, acontecia um “diálogo de alto nível”, entre EUA e China. O Secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken se encontrou com o Ministro das Relações Exteriores da China, Wang Yi e com Yang Jiechi, principal diplomata chinês. Embora tenham terminado em tom ameno, com as trocas de boas intenções de praxe, as conversas começaram em um tom muito duro, com Blinken afirmando que os EUA defendem uma ordem internacional baseada em regras, sem o que o mundo seria muito mais violento. Disse que os EUA consideravam que as ações chinesas no trato da minoria étnica uigur, na região de Xinjiang, e em relação a Taiwan e Hong Kong, além de ataques cibernéticos aos EUA e coerção econômica da China em relação a países aliados dos EUA, violavam essa ordem internacional baseada em regras.

Yang Jiechi respondeu no mesmo tom, afirmando que a China se opõe firmemente à interferência em seus assuntos internos, como seria o caso de Taiwan, Xinjiang e Hong Kong, e que os EUA, além de não estarem em posição de “dar lições” à China, deveriam se concentrar em seus próprios problemas em relação ao respeito aos direitos humanos.

Russos e chineses têm se aproximado bastante, inclusive militarmente. As sanções econômicas que norte-americanos e europeus impuseram aos russos em razão da anexação da Crimeia e da ação militar russa na Ucrânia acabaram por incentivá-los a se aproximar da China, que por sua vez ampliou significativamente seu comércio com os russos e, pela Iniciativa Belt and Road, tem oferecido vários projetos ao enorme vizinho de norte.

Os momentos de crise e de acirramento de tensões exigem estadistas hábeis na escolha dos momentos de escalar e de arrefecer as tensões. Esperemos que este seja o caso de todos os envolvidos.




Como os britânicos veem seu papel no mundo em 2030 – e como estão se preparando para exercê-lo

O Reino Unido acaba de divulgar um documento cuja leitura considero muito importante, fundamental mesmo, para quem se dispõe a compreender o jogo que as grandes potências estão a disputar na arena internacional. Nele, são apresentadas as revisões das políticas integradas de defesa e segurança, relações internacionais e desenvolvimento da Grã-Bretanha [1].

O documento tem, na introdução, a visão do Primeiro-Ministro Boris Johnson para o Reino Unido no ano de 2030. Em resumo, trata-se de uma visão otimista sobre o papel de seu país no mundo, que enxerga o Reino Unido como uma das mais influentes nações do planeta, com uma economia forte e que, em razão da ênfase na adoção de inovações científicas e tecnológicas, estará mais bem equipada para enfrentar um mundo ainda mais competitivo.

Johnson entende que o Reino Unido deverá exercer um papel mais ativo como membro permanente do Conselho de Segurança da ONU na defesa de uma ordem internacional que ele acredita ser a mais adequada à humanidade. Enfatiza o papel do país na defesa do livre mercado internacional, na defesa dos direitos humanos e das normas internacionais. Reforça que a influência do país será amplificada pelas alianças e parcerias com outros países, dentre os quais ressalta os Estados Unidos da América.

Destaca ainda que o Reino Unido continuará a ser o principal aliado europeu dentro da OTAN. Enfatiza que, como uma nação europeia, os britânicos estarão comprometidos com a segurança Euro-Atlântica, mas que o Reino Unido deverá ter respeitada a sua soberania, fazendo as coisas de forma diferente da União Europeia, econômica e politicamente, quando isso for do interesse do país.

O Primeiro-Ministro prossegue, enfatizando a importância do Indo-Pacífico, região com a qual os britânicos estarão crescentemente engajados economicamente. Também faz referência à África, em especial ao oeste africano, citando nominalmente a Nigéria. Cita ainda o Oriente Médio e os países do Golfo Pérsico, que, segundo Johnson, receberá apoio para ser cada vez mais autossuficiente para prover sua própria segurança.

Conheça a lista de leitura que preparei na Amazon

Ainda de acordo com Johnson, em 2030, o Reino Unido liderará as economias do mundo na chamada economia verde, como parte dos esforços mundiais para lidar com as mudanças climáticas e a diminuição da biodiversidade. O país será reconhecido como uma superpotência científica e tecnológica e será vanguarda na regulação global sobre tecnologia, cibernética, e proteção de dados.

O documento, após apresentar a visão de futuro esperada pelo Primeiro-Ministro, se debruça sobre as estratégias que o país deverá adotar para que tal cenário seja construído: 1) adotar a Ciência e Tecnologia como um aspecto central para a segurança nacional e para a política internacional do país; 2) moldar a ordem internacional, criando um mundo favorável às democracias e aos valores universais (sic); 3) fortalecer a defesa e a segurança no próprio Reino Unido e no mundo; e 4) aumentar a resiliência, tanto no Reino Unido quanto no mundo, contra ameaças imprevisíveis como grandes desastres naturais ou ataques cibernéticos.

Sugestão de leitura – compre o livro na Amazon

Autor – Tim Marshall

As quatro estratégias apresentadas implicarão em algumas ações estratégicas. Uma será a busca de posições de liderança em organismos multilaterais, com o objetivo de influenciar as regulações internacionais, especialmente na governança do mundo digital. Outra será a busca pela liderança global para que o mundo atinja a marca de neutralidade nas emissões de carbono no ano de 2050. Proteger os interesses do Reino Unido no domínio espacial, inclusive com a criação de um Comando Espacial, é mais um exemplo.

A região do Indo-Pacífico e a China recebem uma grande atenção no documento. O país buscará desenvolver capacidades que sejam voltadas para lidar com um mundo em que a China ganhará cada vez mais importância em múltiplos aspectos da vida dos cidadãos britânicos.

Essas estratégias consideram que há quatro tendências principais para as mudanças no mundo na próxima década: 1) mudanças geopolíticas e geoeconômicas; 2) intensificação da competição no sistema internacional; 3) rápida mudança tecnológica; e 4) desafios transnacionais, ou seja, que afetam toda a humanidade, como as mudanças climáticas.

Assim, os britânicos reconhecem que, em 2030 o mundo será mais multipolar e que o centro de gravidade econômico e geopolítico do mundo terá se transferido para a região do Indo-Pacífico. Atores não estatais, como grandes companhias de tecnologia, terão um papel geopolítico até então inédito.

Essa multipolaridade intensificará a competição, que será ainda mais complexa pela presença de atores não estatais. Haverá a competição ideológica, entre sistemas políticos, e pela primazia na influência sobre a regulação do sistema internacional, especialmente no que concerne às novas tecnologias e ao uso do espaço.

O ambiente doméstico e internacional, de acordo com o cenário apresentado, ficará menos seguro, com a proliferação de armas químicas, biológicas, radiológicas e nucleares (QBRN); armas convencionais mais avançadas e novas tecnologias militares. O documento destaca que, entre 2016 e 2019, o mundo testemunhou a maior quantidade de conflitos armados internacionais desde 1946 e que esta tendência deve se manter até 2030.

A ciência e a tecnologia desempenharão um papel crucial no contexto estratégico. Serão críticas para o funcionamento das sociedades e da economia, sendo, por isso mesmo, arena de intensa competição interestatal e não-estatal. Também criarão vulnerabilidades representadas por ataques aos domínios espacial e cibernético. A disseminação de desinformação online continuará a minar a coesão nacional, o sentido de comunidade e a própria identidade nacional, na medida em que as pessoas estarão cada vez mais expostas ao mundo virtual. Além disso, as ameaças à privacidade das pessoas, bem como às liberdades individuais, serão crescentes.

O documento prevê que a pandemia da COVID-19 não será a única crise global da década de 2020. As mudanças climáticas e a diminuição da biodiversidade causarão instabilidade e migrações em massa. O documento afirma ainda que, se nada for feito para a redução das emissões de carbono, o mundo sofrerá um crescimento no aquecimento global da ordem de 3,5o C até o fim do século. Isso causará ainda mais efeitos extremos como tempestades, ondas de calor, inundações etc. Doenças infecciosas causadas por zoonoses tendem a aumentar na medida em a população mundial aumenta e a busca por novas áreas agrícolas causa desequilíbrios nos habitats animais. Assim, outra pandemia na década de 2020 seria, conforme a publicação, uma possibilidade realística.

O terrorismo, doméstico e internacional, será crescente, em função de diversas causas materiais e se manterá sendo uma grande ameaça para o Reino Unido e para diversos outros países do mundo. O documento considera bastante provável que até 2030 ocorra um atentado terrorista bem-sucedido utilizando armas QBRN.

Traçadas as estratégias para que, enfrentando as ameaças mundiais da próxima década, se construa o cenário desejado pelo Primeiro-Ministro, o documento passa a listar uma série de ações governamentais a serem adotadas.

Aqui, vou me concentrar apenas nas relacionadas ao campo militar que considerei mais relevantes. O documento lista muitas outras.

Os britânicos reafirmam sua presença militar não só na defesa do próprio território, mas fazem questão de enfatizar a importância dos seus territórios além-mar: Gibraltar, Ilhas Falklands (Malvinas) e suas possessões no Atlântico, Índico e Caribe.

Reafirma-se a importância da OTAN para a segurança coletiva da Europa. Para isso, os britânicos pretendem aumentar seus gastos de defesa em cerca de US$ 33 bilhões (24 bilhões de libras) nos próximos 4 anos, elevando-os para 2,2% do PIB e mantendo-se como maior contribuinte europeu para a OTAN.

O Reino Unido modernizará seu arsenal, com armas nucleares, armas de ataque de precisão, caças de 5ª geração e armas cibernéticas ofensivas. A marinha britânica aumentará sua presença no Indo-Pacífico, a começar ainda neste ano de 2021, quando o porta-aviões HMS Queen Elizabeth liderará uma Força-Tarefa aeronaval multinacional em operações no Mediterrâneo, Oriente Médio e Indo-Pacífico.

O país também investirá em sua capacidade dissuasória independente, aumentando seu arsenal nuclear. Em 2010, o Reino Unido havia decidido reduzir o total de ogivas, de 225 para 180, número que seria atingido em meados da década de 2020. Agora, o país mudou a política. Ao invés de proceder a redução, aumentará seus estoques para um total de 260 ogivas. É interessante notar que é a primeira vez que ocorre um aumento no arsenal nuclear britânico, desde o fim da Guerra Fria.

Como se vê, o documento tornado público pelo governo britânico mostra que o país compreende as mudanças globais nas quais está inserido e conclui que sua posição está sob desafio de uma nova ordem mundial que emerge do oriente. O diagnóstico, a visão de futuro e a estratégia para implementá-la mostram que o país não está disposto a ver desafiado seu status de potência regional com grande influência global.

Reafirmo a importância que atribuo à leitura do documento, para que reflitamos também sobre nosso papel no sistema internacional, sobre nossas aspirações para o futuro e sobre que lugar no palco internacional almejamos deixar nosso país para as futuras gerações de brasileiros.

[1] Disponível em https://www.gov.uk/government/publications/global-britain-in-a-competitive-age-the-integrated-review-of-security-defence-development-and-foreign-policy/global-britain-in-a-competitive-age-the-integrated-review-of-security-defence-development-and-foreign-policy 




A ascensão da China, a hegemonia norte-americana e a Armadilha de Tucídides



“A ascensão de Atenas e o temor

instilado em Esparta tornaram a guerra inevitável.”

Tucídides, História da Guerra do Peloponeso

A impressionante ascensão econômica ocorrida na China, especialmente nas três últimas décadas, causou um desequilíbrio no poder global com uma rapidez sem precedentes na história. Em um piscar de olhos, os ocidentais e, em particular, os norte-americanos, foram apresentados a uma nova realidade: os Estados Unidos da América não estavam mais isolados na posição de potência hegemônica no concerto das nações. A China, agora, tornara-se um desafiante capaz de ameaçar a liderança dos norte-americanos, primeiro economicamente e, em seguida, em se mantendo o ritmo atual, militarmente.

Embora a velocidade dos acontecimentos que envolvem a atual competição entre China e EUA seja inédita, a dinâmica de uma potência em ascensão desafiar uma potência dominante não é. Isso já aconteceu muitas vezes na história. Quando ocorreu pela primeira vez, essa disputa culminou em uma guerra cujo desenrolar ficou registrado para a posteridade na magistral obra de Tucídides.

Tucídides

O ateniense Tucídides foi um importante historiador da Grécia antiga, autor de “História da Guerra do Peloponeso” [1]. Nascido entre os anos de 460 e 455 a.C, relatou os acontecimentos da guerra entre Esparta e Atenas como testemunha da história, de forma objetiva e imparcial. Como um analista crítico, ao relatar objetivamente os acontecimentos, buscou interpretar suas motivações e esclarecer as circunstâncias nas quais os fatos narrados estavam inseridos. Além desses aspectos políticos, como conhecedor da arte da guerra praticada à época, tinha capacidade técnica para descrever com precisão as operações militares, tal como elas ocorriam.

A Guerra do Peloponeso durou 27 anos (de 431 a 404 a.C.) e envolveu todo o mundo helênico. Tucídides não conseguiu contar a história completa, em razão de sua morte, que interrompeu seu relato no ano de 410. Entretanto, a obra, em oito livros, foi mais do que suficiente para deixar “um patrimônio sempre útil”, intenção expressa pelo autor, uma vez que, “sendo a natureza humana imutável, se determinadas circunstâncias se reproduzirem em épocas diferentes, os fatos se repetirão de maneira idêntica ou semelhante”.

E foram as repetições das circunstâncias nas quais uma potência em ascensão desafiou uma potência dominante ao longo da história que levaram o Professor Graham Allison, diretor do Belfer Center for Science and International Affairs, da Universidade de Harvard, a cunhar a expressão “Armadilha de Tucídides”. Ela apareceu pela primeira vez em 2015, em um artigo na revista Atlantic: “The Thucydides Trap: Are the US and China headed for war?”[2]

No artigo, Allison analisa dezesseis situações em que um poder nacional emergente desafiou um poder estabelecido ao longo dos últimos 500 anos, e conclui que, em doze delas, o resultado foi a guerra.

Sugestão de leitura – Compre na Amazon

Autor – Graham Allison

O questionamento que motiva os estudos do autor e de sua equipe é o de saber se a atual geração será capaz de evitar a guerra, escapando da sina demonstrada pela esmagadora maioria das vezes em que as circunstâncias que envolvem a atual ascensão chinesa se repetiram ao longo da história.

Mais do que isso, o estudo de Allison fornece as lentes adequadas, ou seja, uma perspectiva histórica e geopolítica para se analisar a atual confrontação entre China e Estados Unidos, entendendo-a de forma mais ampla do que uma simples competição econômica ou militar.

Em 2017, as ideias apresentadas no artigo foram expandidas no livro “A Caminho da Guerra – Os Estados Unidos e a China conseguirão escapar da Armadilha de Tucídides?”, editado no Brasil pela Editora Intrínseca, com tradução de Cássio de Arantes Leite. Neste estudo, com a profundidade que um livro permite, o autor se debruça mais amiúde sobre as circunstâncias que levaram à guerra nos conflitos apresentados no seu artigo de 2015. Discorre sobre as dúvidas, temores e pressões que assaltavam os líderes daqueles momentos, suas opções estratégicas e suas motivações finais. Para o leitor de hoje, sabedor dos resultados de cada uma daquelas decisões, é muito interessante comprovar que, como Tucídides constatou, a imutabilidade da natureza humana leva homens de diferentes épocas e culturas a tomar decisões semelhantes, por motivações similares, arrastando seus povos à guerra.

Mas voltemos à disputa atualmente em curso. A ascensão chinesa não é simplesmente econômica. Especialmente sob a presidência de Xi Jinping, o atual líder chinês, ela representa também uma aspiração de readquirir a supremacia perdida, um sonho de “tornar a China grande outra vez”[1].

Esse desejo está fortemente baseado no modo de pensar chinês, na crença arraigada de que a China constituiu uma civilização perene com destino manifesto à grandeza e à liderança, condições que sempre existiram ao longo dos seus quatro mil anos de história e que, por um acidente conjuntural, deixaram de ser realidade somente a partir do século 19.

Henry Kissinger abre seu livro “Sobre a China”, tratando dessa perspectiva singular: “Uma característica especial da civilização chinesa é a de que ela parece não ter um início. Perante a história, ela assoma mais como um fenômeno natural permanente do que como um Estado-nação convencional”.

É nesse contexto que Xi Jinping propõe construir uma nação com “uma sociedade modestamente confortável e a transformação da China em um país socialista moderno, próspero, poderoso, democrático, civilizado e harmonioso – e concretizar o sonho chinês de grande revitalização da nação chinesa.”[2]

Graham Allison traduz essa intenção da seguinte forma: a China deseja ter o papel predominante na Ásia, aquele que tinha antes da intromissão ocidental do século 19. Deseja restabelecer o pleno controle dos territórios que julga serem seus, como Taiwan e Hong Kong, e não admite movimentos que considera separatistas, em Xinjiang e no Tibete. Almeja recuperar sua esfera de influência histórica ao longo das fronteiras e mares adjacentes e obter o respeito de outras grandes potências nos principais fóruns e nas discussões dos temas mundiais.

Conheça a minha lista de leitura de livros da Amazon!

É claro que, no caminho para alcançar esses objetivos, os chineses esbarrariam nos interesses de outros povos e outras nações. O restabelecimento da soberania plena sobre Taiwan e Hong Kong contraria os interesses de grande parte dos cidadãos daqueles locais, acostumados ao seu modo de vida, no qual desfrutam de liberdades democráticas inexistentes no sistema político chinês. O mesmo tipo de consideração, com uma maior ênfase nas liberdades religiosas, pode ser feito em relação aos uigures, uma minoria étnica majoritariamente islâmica que habita a distante província chinesa de Xinjiang, na Ásia Central, e dos tibetanos budistas, na fronteira com a Índia.

O controle dos mares adjacentes à China esbarra nos interesses japoneses e dos países do sudeste asiático, além dos insulares do Pacífico ocidental, na disputa pelo controle de recursos energéticos, áreas pesqueiras e das rotas comerciais.

E todos esses possíveis pontos de atrito de alguma forma impactam os interesses norte-americanos na região. Os EUA estão comprometidos com a manutenção do regime taiwanês, política prevista em lei específica[3], promulgada em 1979, e defendem sem vacilações seus interesses na região. O país mantém contingentes militares na Coreia do Sul, Japão, Guam, Filipinas, Cingapura e Austrália, além de manter uma frota voltada especificamente para operações no Oceano Pacífico, dentre elas as chamadas “Operações de liberdade de navegação”, quando seus navios de guerra transitam pelo Estreito de Taiwan e pelo Mar do sul da China, para grande irritação dos chineses.

Mas, além das questões que envolvem a China e terceiros países, nas quais os EUA podem acabar envolvidos, há também a disputa direta entre chineses e norte-americanos. Um bom exemplo é o do comércio internacional. No início da década de 1980, os EUA eram o principal parceiro comercial da maior parte dos países. Atualmente, essa situação se inverteu completamente, em favor da China. As figuras abaixo ilustram essa mudança, entre 1981 e 2018, e o atual domínio chinês em termos de comércio exterior.

Evolução do comércio global da China

Entretanto, a principal disputa entre os dois países, que tende a se acirrar nos próximos anos, será pela supremacia tecnológica. Campos como o da inteligência artificial, internet das coisas, robótica, blockchain e  internet de 5ª geração são alguns exemplos. E por serem todas tecnologias com potencial disruptivo, que conferem aos seus detentores grande vantagem competitiva, são potencialmente geradoras de imensos conflitos de interesses, que podem evoluir para crises internacionais.

Após todos esses aspectos terem sido levantados, voltemos à pergunta feita no início deste texto: o caminho para a guerra é inevitável? Estariam EUA e China destinados pela Armadilha de Tucídides a um confronto que traria terríveis consequências, não só para os dois países como também para todo o restante da comunidade internacional?

Um primeiro aspecto a se considerar é o grau inédito de interligação econômica existente entre as duas economias. Os EUA e a China possuem um fluxo comercial de aproximadamente US$ 2 bilhões ao dia. Apenas como comparação, esse era o volume do comércio entre EUA e URSS, durante a guerra fria, ao ano. Suas cadeias de produção estão interligadas. Milhares de empresas norte-americanas produzem na China e miram seu mercado consumidor. O maior mercado consumidor da Apple fora dos EUA é a China, país onde a gigante da tecnologia concentra 95% de sua produção. A rede de cafeterias Starbucks possui na China seu maior mercado fora dos EUA, onde chegou a inaugurar uma nova loja a cada 15 horas. A General Motors, junto com suas afiliadas locais, vende mais carros na China do que nos EUA.

Tal grau de interdependência econômica, apesar de aumentar muito o custo de uma guerra, o que diminui sua possibilidade, por si só, não impede a guerra, como comprovam vários casos do passado, em especial a Primeira Guerra Mundial. É oportuno relembrar que nas décadas que antecederam a grande guerra, as economias do Reino Unido e da Alemanha ficaram tão intimamente entrelaçadas que um lado não podia infligir dificuldades econômicas ao outro sem sofrer prejuízos.

Outro aspecto fundamental a ser considerado é a possibilidade de destruição mútua assegurada. EUA e China possuem arsenais nucleares tão substanciais e sofisticados que uma guerra total entre os dois países não seria uma opção justificável. Esta afirmação, que serviu de base para a lógica da paz armada, que vigorou na Guerra Fria, está profundamente inserida na mentalidade de segurança dos países ocidentais. Mas será que também estaria entre os estrategistas chineses? Não custa lembrar a afirmação de Mao Zedong, da década de 1960, de que não temia uma guerra nuclear porque, ainda que perdesse 300 milhões de vidas, a China ainda sobreviveria.

Os aspectos acima mencionados são apenas alguns dos mais evidentes, dentre uma miríade de outros que poderiam ser levantados utilizando-se as lentes fornecidas por Tucídides. Eles alertam que o risco de uma guerra entre EUA e China pode ser maior do que gostam de admitir a maior parte dos analistas.

Mas, apesar de tudo, Graham Allison não considera a guerra inevitável. Ele acredita que a paz pode ser mantida, mas isso exigirá esforço de ambas as partes. Acomodação, negociação, estratégia de longo prazo, definição correta dos interesses vitais de ambas as nações, priorização dos desafios internos, todas essas são estratégias que devem nortear o comportamento das lideranças de ambos os países na busca de se evitar a repetição do flagelo da guerra, que acometeu tantas nações que enfrentaram o Desafio de Tucídides ao longo da história.

Caso tenham sucesso, terão honrado o legado do autor de História da Guerra do Peloponeso:

“Se minha história for considerada útil por aqueles que desejam um conhecimento exato do passado como ajuda para compreender o futuro – que no curso os acontecimentos humanos, deve se assemelhar a ele, quando não refleti-lo – dar-me-ei por satisfeito.”

Tucídides

[1] Neste ponto, faço um chamado aos profissionais da guerra, especialmente aos mais jovens. Se ainda não leram a História da Guerra do Peloponeso, não percam mais tempo e leiam. É um exercício fundamental ao militar profissional. A obra está disponível em: <http://funag.gov.br/biblioteca/download/0041-historia_da_guerra_do_peloponeso.pdf>. Acesso em 22 Fev 2021.

[2] GRAHAM, Allison. The Thucydides Trap: Are the U.S. and China Headed for War? The Atlantic, 24 Set 2015. Disponível em: <https://www.theatlantic.com/international/archive/2015/09/united-states-china-war-thucydides-trap/406756/>. Acesso em 22 Fev 2021.al, em 17 de março de 2013. In Governança da China, de Xi Jinping

[3] Disponível em: <https://www.ait.org.tw/our-relationship/policy-history/key-u-s-foreign-policy-documents-region/taiwan-relations-act/>. Acesso em 23 Fev 2021.

[1] Aqui há uma brincadeira com o lema do ex-presidente Donald Trump, que prometeu, eu sua campanha presidencial “to make America great again”. Como veremos, a intenção de Xi Jinping é rigorosamente a mesma.

[2] Discurso de posse de Xi Jinping, na 1ª Sessão da 12ª Assembleia Popular Nacion




Os desafios da política externa do Governo Joe Biden

Ao completar seu primeiro mês no cargo, o Presidente Joe Biden se defronta com vários desafios na política internacional. O manejo desses desafios começa a revelar os novos rumos da política externa norte-americana.

O enfrentamento das múltiplas questões que envolvem o relacionamento EUA/China é desafiado pela incrível complexidade das questões, além da falta de consenso no governo e no Partido Democrata sobre qual deve ser o foco da relação dos EUA com o gigante asiático. Há uma maioria que defende o fim da confrontação política permanente e do esforço de desassociação das economias (decoupling, no termo em inglês), posição defendida por poderosos grupos econômicos que mantém enormes interesses na China. Ao mesmo tempo, muitos integrantes do partido Democrata defendem maior assertividade norte americana na defesa dos direitos humanos na China e maior cooperação no enfrentamento das causas do aquecimento global, o que pressionaria a China também no campo da preservação ambiental, em razão de sua matriz energética altamente poluente.

No campo militar, a completa liberdade de ação norte-americana no Oceano Pacífico, conquistada no pós-guerra, continuará a ser desafiada pela crescente capacidade militar chinesa, especialmente sua marinha de guerra. Nesse sentido, o cumprimento de mais uma das chamadas “Operações de Liberdade de Navegação” pelo Contratorpedeiro (Destroyer) USS John S McCain, logo na primeira semana do governo Biden, navegando pelo Estreito de Taiwan e pelo Mar do Sul da China, costeando as disputadas Ilhas do Arquipélago Paracel, mostra a disposição norte-americana de manter inabalada sua influência militar na região.

Mas, encontrar o tom adequado da retórica e das ações militares exigirá habilidade. Por um lado, um aumento no tom de confrontação militar poderá deixar os aliados norte-americanos na área emparedados pela armadilha da neutralidade, uma vez que seus laços econômicos com Beijing são cada vez mais profundos. Por outro lado, qualquer ênfase em um “reset” na relação entre os dois países, que resulte em acomodações e concessões excessivas, acenderá um alerta em Tóquio, Seul, Canberra e Nova Déli, sem falar em Taipei, que poderão concluir que eles estão por sua própria conta, acelerando ainda mais a já existente corrida armamentista na região.

Os problemas a enfrentar no Oriente Médio não são menores. Biden acaba de retirar o apoio norte-americano à ofensiva saudita contra os Houthis no Iêmen, interrompendo a venda de armas aos árabes, além de revogar o ato do governo Trump, de janeiro deste ano, que designava aquele grupo como uma entidade terrorista. O governo norte-americano alegou razões humanitárias para isso, uma vez que tal designação bloqueava uma série de ajudas à população iemenita, terrivelmente castigada pelo conflito que já se arrasta há seis anos e que já causou mais de 100 mil mortes. A ONU classifica a crise no Iêmen como sendo a pior crise humanitária do planeta, com cerca de 80% de sua população de 24 milhões de habitantes necessitando de ajuda, incluindo-se 12 milhões de crianças.

É claro que os sauditas não ficaram satisfeitos com a retirada do apoio. É interessante notar que a ação militar do Reino no Iêmen começou em 2015, contando com a aprovação do governo Obama, de quem Biden era vice-presidente. Mas, oficialmente, o Reino declarou estar comprometido na busca de uma solução política para o conflito, que na verdade é mais um campo de sua disputa geopolítica regional com o Irã, patrocinador dos Houthis.

Isso nos remete ao Irã, e sua complicadíssima relação com os EUA. A Agência Internacional de Energia Atômica acaba de divulgar relatórios alertando que o país aumentou seus esforços de enriquecimento de urânio, instalando centrífugas novas e mais modernas em duas instalações nucleares diferentes. Este fato mostra que o Irã se afasta ainda mais do que havia sido pactuado no Acordo Nuclear de 2015, do qual o governo Trump se retirou em 2018. Com a volta das sanções econômicas que haviam sido levantadas pelo acordo, o Irã se sentiu liberado para descumprir abertamente os limites de enriquecimento de urânio previstos no pacto.

E esse é o nó górdio que a administração Biden tem que desatar. Retomar o pacto nas condições anteriores talvez seja impossível no momento. Já um pacto em novas bases, mais favorável aos interesses iranianos, deixariam os EUA em uma difícil situação com seus principais aliados na região, especialmente Israel.

Com tantos e tão complexos desafios, um desponta como preferencial em razão da facilidade de atuação, dado seu apelo mundial: a promoção da agenda ambiental, de enfrentamento das mudanças climáticas e do aquecimento global. Creio ser por aí que a administração Biden vai iniciar suas mais importantes ações no campo internacional.