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O legado de Mikhail Gorbachev

Morreu Mikhail Gorbachev, aos 91 anos, no último dia 30 de agosto. O líder russo foi uma dessas pessoas cuja existência influiu direta e decisivamente no curso da história. A vida de milhões de pessoas, bem como a história de dezenas de países, mudou decisivamente em razão de sua atuação como último líder da extinta União Soviética.

Filho de camponeses do sudoeste da Rússia, na juventude Gorbachev trabalhou em uma fazenda coletiva, ingressando na Liga da Juventude Comunista aos quinze anos, em 1946. Formando-se em Direito em Moscou em 1955, progrediu na hierarquia local do Partido até tornar-se primeiro secretário do Comitê Regional do Partido Comunista, em sua cidade de Stavropol, em 1970.

Em 1980, tornou-se membro do Politburo. Durante o mandato de 15 meses de Yury Andropov (1982-1984) como secretário-geral do Partido Comunista, Gorbachev tornou-se um dos membros mais ativos do Politburo. Com a morte de Andropov e a assunção de Konstantin Chernenko como secretário-geral, em fevereiro de 1984, Gorbachev tornou-se um sucessor natural ao cargo.

O destino moveu as peças muito rapidamente. Chernenko morreu em 10 de março de 1984. No dia seguinte, Gorbachev assumia a liderança do Partido Comunista da União soviética e, em consequência, de todo o país. Os soviéticos viam a assunção do terceiro líder em três anos.

Gorbachev rapidamente entendeu que deveria transformar a economia soviética, estagnada há anos. Tentou modernizar o país tecnologicamente, aumentar a produtividade do trabalhador e tornar a pesada burocracia soviética mais eficiente.

Em 1987, teve início a “Glasnost”, política soviética de discussão aberta de questões políticas e sociais, permitindo uma maior liberdade de crítica e de opinião, inclusive na imprensa. Foi essa política que permitiu mudanças fundamentais na estrutura política da União Soviética. O poder do Partido Comunista foi reduzido e ocorreram eleições com candidaturas múltiplas. A Glasnost permitiu críticas a funcionários do governo e uma divulgação mais livre de notícias e informações pelos meios de comunicações.

A “Perestroika” foi a outra política importante implementada por Gorbachev. Tinha o objetivo de reestruturar a políticas econômica e a organização política da União Soviética. A Perestroika diminuiu o poder central do Estado soviético e incrementou o poder dos governos locais. Em 1988, um novo parlamento, tanto no governo central quanto nos locais, foi criado, com a possibilidade de se elegerem parlamentares não-comunistas.

Dessa forma, Gorbachev acabou se tornando o principal responsável pelos acontecimentos que mudaram o curso da história em 1989, culminando com a queda do muro de Berlim e o fim da Guerra Fria. Ao longo daquele ano, ele apoiou os comunistas reformistas nos países do bloco soviético da Europa Oriental e, quando os regimes comunistas desmoronaram como dominós no final daquele ano, Gorbachev concordou tacitamente com suas quedas.

Em 1990, ele concordou com a reunificação da Alemanha Oriental com a Alemanha Ocidental assentindo, inclusive, com a perspectiva de que a nação reunificada passasse a integrar a OTAN, aliança inimiga da União Soviética. Em 1990, Gorbachev recebeu o Prêmio Nobel da Paz por suas notáveis realizações nas relações internacionais. No campo interno, no mesmo ano, Gorbachev foi eleito Presidente da URSS, cargo que não existia, e o Congresso, sob sua liderança, aboliu o monopólio do poder político pelo Partido Comunista, abrindo caminho para que outros partidos chegassem ao poder.

Apesar de bem-sucedido em encaminhar seu país em direção a uma democracia representativa, Gorbachev falhou na condução da economia, ficando “no meio do caminho” entre uma economia de mercado e a antiga economia planificada. Isso levou a uma sensível piora nas condições econômicas do país em 1990.

A frustração da linha dura do Partido Comunista com os rumos do país redundou em uma tentativa de golpe de estado, em 19 de agosto de 1991, que não foi bem-sucedida pela firmeza da reação de Boris Yeltsin, presidente da República da Rússia, até aquele momento uma das repúblicas integrantes da União Soviética. Gorbachev retornou ao poder depois de dois dias de prisão domiciliar, mas sua posição estava irremediavelmente enfraquecida.

Yeltsin saiu fortalecido do episódio e, em 25 de dezembro de 1991, a União Soviética foi dissolvida, com as repúblicas soviéticas se reunindo em uma comunidade de nações sob a liderança do presidente russo. Gorbachev via as reformas que implementou provocarem um resultado que ele não esperava e nunca desejou: a implosão da União Soviética.

Gorbachev é visto, de forma geral, de maneira diametralmente oposta pelo Ocidente e pelos russos. Se no Ocidente ele é visto de forma predominantemente positiva, como um promotor da democracia e o responsável pelo fim da Guerra Fria, na Rússia ele é responsabilizado pelo desmoronamento da URSS – acontecimento que o presidente Putin considera o maior desastre geopolítico do século 20 – e pela pesada herança de uma Rússia fraca e instável nos anos 1990. Um exemplo de sua baixíssima popularidade foi o resultado de sua candidatura às eleições presidenciais de 1996, quando obteve menos de 1% dos votos.

Trata-se, portanto, de um desses personagens trágicos da história, amado e odiado, mas cuja obra individual afetou decisivamente, e como poucos, o curso da história.




A liderança política na guerra da Ucrânia

Uma boa definição de liderança é a adotada pelo Exército Brasileiro: “A liderança militar consiste em um processo de influência interpessoal do líder militar sobre seus liderados, na medida em que implica o estabelecimento de vínculos afetivos entre os indivíduos, de modo a favorecer o logro dos objetivos da organização militar em dada situação”[1].

Ou seja, o líder deve se esforçar em construir engajamento, deve levar as pessoas a quererem fazer o que deve ser feito para o atingimento dos objetivos da organização a que todos pertencem.

A guerra da Ucrânia contrapõe dois líderes políticos, os presidentes Volodymyr Zelensky e Vladimir Putin. Putin está no poder há mais de 22 anos, sendo um líder experiente e experimentado na cena internacional. Já conduziu seu país por crises e guerras. Lidera de forma autocrática, cercado por um grupo fiel de assessores que estão ao seu lado há vários anos e que, por isso mesmo, dificilmente divergem de suas decisões. Coerentemente com esse estilo de liderança, permanece afastado, cultivando uma imagem quase venerável. A foto de uma reunião, no início da guerra, com seus mais importantes generais, Shoigu e Gerasimov, sentados em uma extremidade de uma enorme mesa, à uma grande distância do líder, bem representa essa postura.

Para conduzir os russos na direção dos objetivos que ele traçou, Putin se apoia em uma narrativa que tenta transmitir aos seus concidadãos uma situação de relativa normalidade. Nesse sentido proibiu que a guerra seja chamada pelo que é – efetivamente uma guerra – determinando que ela fosse apresentada aos russos apenas como uma “Operação Militar Especial”. Coerentemente com essa narrativa, até o momento, não decretou uma mobilização geral, evitando assim reconhecer que o país necessite adotar medidas extraordinárias em razão do conflito.

Putin apela ao nacionalismo e ao orgulho russos, alegando que o país estava sendo ameaçado pela expansão da OTAN em direção às fronteiras russas e que as minorias étnicas russas na Ucrânia estavam sendo maltratadas pelo governo ucraniano. Ele recorre constantemente às imagens de grandeza do império russo e desdenha da legitimidade da própria existência da Ucrânia como nação independente. Esse discurso encontra eco na sociedade russa e as taxas de aprovação de Putin, que estavam em torno de 60% antes da guerra, passaram a ser de mais de 80%[2] depois do início do conflito.

Zelensky, por sua vez, é um outsider, novato na política, o que torna seu caso interessante de ser analisado sob o prisma dos estudos de liderança. Comediante famoso em seu país, foi guindado à presidência sem antes ter passado por qualquer cargo político. Eleito em 2019 com mais de 70% dos votos, sua aprovação pelos ucranianos, no início de 2022, estava em torno de 30%. Após o início do conflito, sua popularidade triplicou, passando de 90% de aprovação[3].

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Tal fato demonstra que, quando testado pelo conflito, Zelensky surpreendeu a todos fazendo basicamente o que se espera de um líder político nessas situações: galvanizar a vontade de lutar do povo ucraniano e angariar apoios internacionais fundamentais ao esforço de guerra de seu país.

Para efetivamente exercer a liderança, a pessoa deve reunir três qualidades fundamentais: proficiência profissional, ou seja, saber fazer o que deve ser feito no cargo que desempenha; senso moral, servindo de exemplo das virtudes morais esperadas dos liderados; e atitude, tomando as medidas adequadas, no tempo correto, em prol do atingimento dos objetivos almejados por toda a coletividade.

Zelensky soube exercer a presidência em tempos de guerra, até o momento, atendendo a esses requisitos. Mantendo-se no nível de decisão político/estratégico, delegou as decisões de nível operacional e tático aos generais ucranianos. Manteve-se na capital do país, Kiev, durante todo o tempo, mesmo na fase inicial da guerra, com a cidade sob ataque e quando se acreditava que as tropas russas conquistariam a capital rapidamente, demonstrando com isso coragem pessoal e empatia com a população.

Utilizando com maestria sua capacidade de comunicação, cultivada certamente pela profissão de ator, Zelensky passou a se dirigir diariamente à população, sempre com uma mensagem de otimismo e de união do povo ucraniano. Ao mesmo tempo, se dirigiu à comunidade das nações, falando em inúmeros fóruns por videoconferência, conversando com os mais importantes chefes de Estado, inclusive recebendo muitos deles em Kiev. Soube assim aproveitar-se da boa vontade já existente em favor da Ucrânia no Ocidente para angariar apoios importantíssimos para o esforço de guerra ucraniano.

Zelensky é visto visitando as tropas e condecorando soldados, inspecionando hospitais, indo à frente de combate. Ele se comunica diretamente ao mundo pelas redes sociais. Sua mensagem é de colaboração, objetivos compartilhados e formação de equipe.

Tal estilo de liderança, entretanto, não o constrange de tomar medidas duras, se julgar necessário. Um exemplo foi o recente afastamento de seu chefe do serviço de inteligência, um amigo de infância, além da procuradora geral, em razão de centenas de casos de servidores acusados de traição e colaboracionismo com os russos.

Ao se comparar os estilos de liderança de Zelensky e Putin, vemos as enormes diferenças entre os dois. É inegável que Zelensky se comunica muito melhor e com mais facilidade, e comunicação é uma capacidade fundamental aos líderes. Seu estilo é mais adequado aos parâmetros ocidentais modernos, de uma liderança participativa, que conta com o engajamento e as ideias dos liderados.

Putin prefere o estilo autocrático, que chama para si a responsabilidade das decisões, estabelecendo objetivos, fixando normas e avaliando resultados. Ele é o único a encontrar as soluções e espera que sua equipe cumpra seus planos e ordens sem qualquer tipo de ponderação.

É inegável que ambos os estilos apresentam resultados. Pessoalmente, prefiro o estilo participativo, mas sei que haverá momentos em que cabe somente ao comandante supremo a decisão, sendo necessária uma ação imediata, sem espaço para ponderações.

Das guerras sempre emergiram, ao longo da história, líderes que souberam conduzir povos e exércitos em face a enormes desafios. Não será diferente agora. Caso a Ucrânia venha a ser exitosa, conseguindo, se não a vitória completa, que parece ser muito distante nesse momento, pelo menos um acordo de paz digno, que mantenha o país independente e viável, não tenho dúvidas, Zelensky, um ator ucraniano desconhecido, será alçado a condição de um dos mais importantes líderes do século 21, um século até aqui bastante carente de figuras políticas inspiradoras.

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[1] Manual de Liderança Militar do Exército Brasileiro. Leia em https://bdex.eb.mil.br/jspui/bitstream/123456789/302/1/C-20-10.pdf

[2] Veja em https://www.statista.com/statistics/896181/putin-approval-rating-russia/

[3] Veja em https://www.newstatesman.com/chart-of-the-day/2022/03/how-president-zelenskys-approval-ratings-have-surged




A invasão russa à Ucrânia à luz dos ensinamentos de Sun Tzu

A Arte da Guerra é um clássico dos estudos estratégicos. O livro é atribuído a Sun Tzu, um General chinês que teria vivido na cidade de Lean (hoje Huimin, província de Shandong, China), por volta de 550 AC. Sun Wu seria seu nome. Tzu (ou Zi, como os chineses preferem) significa “Mestre”. Logo, Sun Tzu significa “Mestre Sun. Ele teria nascido no Estado de Qi, entretanto, viria a tornar-se General do Estado de Wu.

China à época de Sun Tzu

O Estado de Wu estava em guerra contra o Estado de Chu. Sun Tzu assumiu o comando das tropas após impressionar o Rei He Lu com o conhecimento militar exposto em seu tratado sobre a arte da guerra.

A Arte da Guerra é uma obra-prima do pensamento militar. Sua importância transcendeu o tempo, tornando-se um clássico obrigatório, não só para militares, mas para todos que se interessam por estratégia, no Ocidente e no Oriente.

E, em razão da incrível atualidade de seus ensinamentos, resolvi apresentar alguns fatos conhecidos sobre a invasão russa da Ucrânia, comentando-os à luz de alguns dos preceitos contidos em A Arte da Guerra.

A grande importância dos Estados se manterem preparados para a guerra

A primeira frase da obra é

Não há nenhum exemplo de um país que tenha se beneficiado de uma guerra prolongada.

Sun Tzu alerta que serão muitos os problemas se a guerra se prolongar excessivamente no tempo. Haverá problemas para financiar a campanha, as armas se desgastarão e o moral das tropas ficará abalado. E, depois disso, “quando suas forças estiverem desgastadas, suas provisões insuficientes, suas tropas desmoralizadas e seus recursos exauridos, governantes vizinhos tirarão proveito da situação para atacá-lo”.

Muitos analistas têm alertado para os grandes problemas que o exército russo enfrentará caso a campanha se estenda por muito tempo. Além de problemas logísticos e do aumento exponencial de gastos, não se pode afastar, apesar do total controle que o presidente Putin exerce sobre seu governo, que a insatisfação popular na própria Rússia cresça, ameaçando, de alguma forma, a estabilidade do governo.

Vencer sem lutar

Na arte prática da guerra, o melhor de tudo é tomar o país do inimigo inteiro e intacto; despedaçá-lo e destruí-lo não é tão bom. Portanto, lutar e vencer em todas as suas batalhas não é excelência suprema; excelência suprema consiste em quebrar a resistência do inimigo sem lutar.

Sun Tzu reconhecia a complexidade da guerra, seus muitos fatores intervenientes, as inúmeras possibilidades de ocorrência de revezes, os enormes gastos e as perdas. Assim, ele recomendava que a vitória fosse alcançada no campo da política, sem se recorrer ao campo militar. Esse é um ensinamento ao qual, suspeito, os russos não deram a devida importância nesta ação na Ucrânia, recorrendo ao campo militar antes de esgotar outros meios para alcançar seus objetivos. O andamento da campanha, até o momento, indica que este pode ter sido um grave erro.

A importância da inteligência

Aquele que conhece o inimigo e a si mesmo, lutará cem batalhas sem perigo de ser derrotado. Aquele que não conhece ao inimigo, mas conhece a si mesmo, para cada vitória terá uma derrota. Aquele que não conhece nem a si mesmo, nem ao inimigo, será derrotado em todas as batalhas.

Uma das mais famosas frases do livro A Arte da Guerra relembra a centralidade da inteligência no planejamento e na execução das operações militares. Não poderia ser diferente no conflito em curso. E, em razão do enorme acesso às informações dos tempos atuais, mesmo cidadãos comuns têm tido acesso a fotografias satelitais com a posição das forças, imagens em tempo real de ataques, análises psicológicas das lideranças etc. É claro que esse esforço de inteligência está sendo feito de forma muito intensa pelas duas partes em conflito.

Travar a batalha somente com a certeza da vitória

O que os antigos diziam que um general inteligente é aquele que não apenas vence, mas se destaca em vencer com facilidade. […]

Assim, um exército vitorioso não lutará com o inimigo até que esteja seguro das condições de vitória.

Sun Tzu destaca nesses trechos a importância de uma preparação completa para a guerra. Assim, um exército só pode se lançar à guerra quando tem a convicção de que obterá a vitória. Pelas informações até agora existentes, os russos parecem estar enfrentando dificuldades inesperadas em sua invasão. Ao fim da guerra, será possível fazer uma avaliação mais completa para se entender se essas máximas foram realmente seguidas pelo lado russo.

“Na guerra, o caminho é evitar o que é forte e atacar o que é fraco”. Esta é outra máxima de Sun Tzu acerca do cuidado que o general deve ter para se assegurar da vitória. Na invasão russa, claramente as defesas ucranianas estão centradas na defesa das cidades. A decisão de atacar a cidade, ocupando-a, muitas vezes será inescapável. Mas um planejamento adequado evitará as cidades ao máximo, restringindo-se apenas àquelas indispensáveis.1201.

Como se vê, o livro A Arte da Guerra, 2500 anos após ter sido escrito, continua incrivelmente atual, auxiliando planejadores, mas também a todos os estudiosos da guerra, a compreenderem com mais clareza os terríveis acontecimentos em curso na Ucrânia.

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Este artigo foi originalmente publicado no site Hoje no Mundo Militar




O que Sun Tzu tem a ensinar sobre a Guerra no Afeganistão?

A surpreendente ofensiva final do Talibã, que varreu o país em poucos dias, vencendo o Exército afegão praticamente sem luta, será exaustivamente estudada pelos principais exércitos do mundo, muito especialmente, pelos norte-americanos.

É evidente que neste momento os dados para uma análise fidedigna estão indisponíveis. Pode-se apenas inferir e especular sobre as causas do fracasso dos norte-americanos e do governo afegão de um lado, e de outro, a acachapante e vitoriosa ofensiva final talibã.

Apesar disso, para estudiosos de estratégia, história militar e operações militares, é irresistível fazer algumas conjecturas.

Resolvi fazer as minhas, tendo como referência os ensinamentos de Sun Tzu, em “A Arte da Guerra”. Escolhi cinco máximas do grande general chinês, escritas há 2500 anos, que podem ser aplicadas ao Afeganistão atual. Muitas outras poderiam ser encontradas no magistral livro. Convido o leitor a fazer esse exercício.

1. Logo na primeira frase do livro, Sun Tzu escreve algo que o presidente norte-americano Joe Biden certamente está sentindo na pele: “A guerra é de vital importância para o Estado. É uma questão de vida ou morte, uma estrada tanto para a segurança, quanto para a ruína. Portanto, é um tema de estudos que não pode ser negligenciado.” Ainda no primeiro, capítulo se lê: O general que perde a batalha faz apenas poucos cálculos de antemão. Assim, muitos cálculos levam à vitória e poucos cálculos, à derrota. As repercussões do fracasso no Afeganistão, embora evidentemente não ameacem a existência do Estado norte-americano, podem ser de vital importância para o projeto político de Joe Biden. Será que os estudos sobre as repercussões da retirada foram negligenciados? Será que foram feitos todos os cálculos necessários, ou seja, as possibilidades do Talibã foram corretamente confrontadas com as capacidades do exército afegão, no “jogo da guerra” que precede todas as decisões militares?

2. No segundo capítulo, um ensinamento valioso:se a campanha for prolongada, os recursos do Estado não serão proporcionais ao esforço. Assim, uma vitória rápida deve ser o principal objetivo. Se a duração da guerra for excessiva, o exército ficará fatigado e a moral, baixa. Líderes de países vizinhos despontarão para tirar vantagem tuas dificuldades. Em resumo, na guerra, faze com que teu grande objetivo seja a vitória, e não campanhas prolongadas. Os vinte anos de guerra cobraram um preço altíssimo, em recursos financeiros e, principalmente, em vítimas, em sua maioria, afegãos. Mas também norte-americanas e da OTAN. Fatigados pela guerra interminável, e sem alcançar a vitória, os EUA e a OTAN decidiram se retirar. A China e a Rússia, “os vizinhos” apontados por Sun Tzu, já correm para ocupar o vácuo deixado pela saída dos EUA e de seus aliados.

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Autor – Sun Tzu

3. “Lutar e vencer todas as batalhas não é a suprema vitória. A excelência suprema consiste em quebrar a resistência do inimigo sem lutar”, é um dos conselhos existentes no terceiro capítulo. De alguma maneira, que ainda será esclarecida, foi exatamente o que o Talibã conseguiu em sua fulminante ofensiva de cerca de dez dias para conquistar as principais cidades do Afeganistão. As tropas do governo foram vencidas sem lutar. Logo, os talibãs conseguiram atingir a “excelência suprema” descrita por Sun Tzu.

4. Também no terceiro capítulo está aquela que talvez seja a mais famosa passagem de A Arte da Guerra:Se conheceres o inimigo e a ti mesmo, não temas o resultado de cem batalhas. Se conheceres a ti mesmo, mas não ao inimigo, para cada vitória, também sofrerás uma derrota. Se não conheceres nem o inimigo, nem a ti mesmo, sucumbirás a todas as batalhas.” Esta é uma premissa básica. Conhecer possibilidades e limitações do seu exército, de seus aliados, e do inimigo. Incrivelmente, parece que os EUA desconheciam as reais possibilidades das tropas do governo afegão, que eles mesmos treinaram e armaram por duas décadas. Esta é uma falha tão inacreditável para uma Força Armada como a norte-americana que chego a duvidar que possa ter ocorrido. Então, resta a possibilidade de que as capacidades e limitações das tropas afegãs deixadas para enfrentar o Talibã não tenham sido informadas adequadamente aos níveis de comando. Também acho difícil que isso tenha ocorrido. Restam, portanto, duas opções: os comandantes militares sabiam e não informaram corretamente ao nível político ou, o nível político sabia e nada fez, jogando com a sorte. Certamente saberemos o que aconteceu quando a história dessa guerra for contada, nos próximos anos.

5. No capítulo 4, Sun Tzu ensina:Os bons guerreiros primeiro colocam-se além da possibilidade da derrota, então, aguardam pela oportunidade de derrotar o inimigo. Assegurarmo-nos de não sermos derrotados está em nossas mãos. Mas a oportunidade de derrotar o inimigo e dada por ele mesmo.” Essa lição parece ter sido executada com maestria pelo Talibã. Durante os vinte anos de permanência dos EUA no Afeganistão, o grupo de manteve, evitando a derrota final. Quando os EUA deram a oportunidade de agir, passaram à ofensiva com grande velocidade e determinação.




A serpente de Shuai Ran no livro A Arte da Guerra, de Sun Tzu

Sun Tzu narra a história da serpente de Shuai Ran, e de como ela reage aos inimigos, comparando a como os Exército devem reagir aos seus inimigos.




Você conhece o livro A ARTE DA GUERRA, de Sun Tzu?

O autor de “Arte da Guerra” na verdade se chamava Sun Wu. “Tzu”, ou “Zi”, como é mais comumente chamado na China, significa algo como “Mestre” ou “Venerável”. Logo, Sun Tzu significa “O Mestre Sun”.

Ele nasceu na cidade de Lean (hoje Huimin, província de Shandong), por volta de 550 AC, na província de Qi, mas veio a tornar-se General do estado de Wu.

A Batalha de Boju, em 506 AC, ficou conhecida como a mais importante vitória em combate dentre as obtidas por Sun Tzu.O Estado de Wu estava em guerra contra o Estado de Chu. Sun Tzu assumiu o comando das tropas após impressionar o Rei He Lu com seu conhecimento militar e seu tratado, sobre a Arte da Guerra.

A Arte da Guerra é uma obra-prima do pensamento militar. Sua importância transcendeu o tempo, tornando-se um clássico obrigatório, não só para militares, mas para todos que se interessam por estratégia, no ocidente e no oriente.

O livro está estruturado em treze capítulos:

  1. Estabelecendo planos
  2. Em combate
  3. A Estratégia de ataque
  4. Disposições táticas
  5. O uso da energia
  6. Pontos fortes e fracos
  7. Manobrando
  8. Variações táticas
  9. Em marcha
  10. Terreno
  11. As nove situações
  12. O ataque com fogo
  13. O uso de espiões

A obra pode ser dividida em duas partes. Nos seis primeiros capítulos, de “Estabelecendo planos” até “Pontos fortes e fracos”, o autor aborda principalmente aspectos do nível estratégico, enfatizando a tomada de decisão, a análise da estratégia adotada pelo inimigo e cálculos de poder de combate. Nos sete capítulos seguintes, a análise vai ao nível tático, com aspectos relacionados à ofensiva, à defensivas e ao resultado dos combates.

Logo na primeira frase primeiro capítulo, “Estabelecendo planos”, Sun Tzu alerta para a importância capital da guerra para o Estado.

A Arte da Guerra é de vital importância para o Estado. É questão de vida ou morte, uma estrada tanto para a segurança quanto para a ruína. Portanto, é um tema de estudos que não pode, de forma nenhuma, ser negligenciado.

Sun Tzu. A Arte da Guerra/Cap 1

Ainda no primeiro capítulo, são listados cinco fatores que devem ser sempre levados em consideração na tomada das decisões: a lei moral, o céu, a terra, o comandante e o método e a disciplina.

Pela lei moral, segundo Sun Tzu, os governados seguiriam seu soberano, à despeito do risco de suas vidas, em uma guerra. O soberano, para tanto, deveria reunir os predicados morais para conquistar essa confiança, sendo sábio, sensato, honesto e justo.

O céu dizia respeito ao clima, à hora da batalha, à estação do ano.

A terra está relacionada ao terreno, às distâncias, às passagens largas ou estreitas, aos campos fechados ou abertos.

O comandante deveria ser avaliado por sua sabedoria, honradez, habilidades guerreiras, confiança, benevolência, severidade e justiça.

O método e a disciplina se referem à organização do exército e seu preparo logístico.

Assim, Sun Tzu traça princípios basilares que, se atendidos, levariam os exércitos à vitória.

No encerramento do capítulo, Sun Tzu dá ênfase ao logro.

Todas as guerras são baseadas no logro. Portanto, quando capazes de atacar, devemos parecer incapazes, ao usarmos as nossas forças, devemos parecer inativos, quando estivermos próximos, devemos parecer distantes e quando distantes, devemos parecer próximos.

Sun Tzu. A Arte da Guerra/Cap 1

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No segundo capítulo, Sun Tzu alerta para as campanhas prolongadas que acabam por exaurir os recursos do Estado. O que realmente importa na guerra, é uma rápida vitória, e não campanhas prolongadas. Assim, a principal ideia do primeiro capítulo é a importância de um planejamento detalhado, que considere fatores fundamentais para uma boa decisão, que sempre deverá ser implementada com a máxima utilização da dissimulação, do logro, do engano.

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Adaptação e prefácio de James Clavell

No terceiro capítulo, Sun Tzu trata das estratégias ofensivas. É neste capítulo que se encontra a famosa frase de que “lutar e vencer todas as batalhas não é a excelência suprema; a excelência suprema é quebrar a resistência do inimigo sem lutar”.

Para Sun Tzu, o General habilidoso é aquele que sabe o momento de lutar e o de não lutar. Aquele que souber manipular suas forças, sendo inferiores ou superiores em número. Aquele cujo exército, estando preparado, souber esperar o momento em que o inimigo estiver despreparado.

Para isso, o deverá conhecer muito bem o seu exército e o exército inimigo.

Se conheceres o inimigo e a ti mesmo, não temas o resultado de cem batalhas. Se conheceres a ti mesmo, mas não ao inimigo, para cada vitória, terás uma derrota. Se não conheceres nem a ti mesmo, nem ao inimigo, sucumbirás a todas as batalhas.

Sun Tzu. A Arte da Guerra/Cap 3

No capítulo 4, Sun Tzu assevera que o guerreiro habilidoso, primeiro coloca-se em posição de não ser derrotado, para só então aguardar a oportunidade de derrotar o inimigo.

O grande guerreiro, também, não apenas vence; mas vence com facilidade. Isso acontece porque ele não comete erros e também por colocar-se em uma posição que torna a derrota impossível.

Como se vê, neste capítulo, mais uma vez Sun Tzu enfatiza a importância de um planejamento minucioso, que explore as vulnerabilidades do inimigo e respeite o momento certo de se fazer a guerra.

A ideia principal do capítulo 5 é a utilização máxima da força do exército, atacando o inimigo da forma mais eficiente possível. Sun Tzu utiliza a figura de uma pedra lançada contra um ovo para caracterizar o emprego correto da massa de um exército contra um ponto vazio ou mal defendido pelo inimigo.

Sun Tzu fala no emprego de dois tipos de tropas, as regulares (Zheng), e as extraordinárias (Qi). Essas duas devem ser empregadas em combinação, de múltiplas formas, com flexibilidade, para se alcançar a vitória. As forças regulares serão necessárias para engajar-se nas batalhas, mas as extraordinárias, para assegurar a vitória. As táticas utilizadas pelas forças extraordinárias são aquelas surpreendentes e singulares. As táticas das forças regulares são as habituais.

No capítulo 6, Sun Tzu explora a importância de se obter vantagem sobre o inimigo. Esta vantagem é obtida pela surpresa, pela velocidade, pelo sigilo.

Táticas militares são como águas que fluem, pois a água em seu curso natural precipita-se dos locais altos para os baixos. Do mesmo modo, na guerra, o caminho é evitar o forte e atacar o que é fraco. A água molda seu curso de acordo com o solo sobre o qual ela flui. Do mesmo modo, o soldado realiza sua vitória de acordo com o inimigo que está enfrentando.

Sun Tzu. A Arte da Guerra/Cap 6

Assim como a água não possui forma constante, na guerra não existem condições constantes. O bom capitão é aquele que consegue modificar suas táticas de acordo com cada oponente, obtendo assim a vitória.

A partir do capítulo 7, Sun Tzu passa a fazer considerações de um nível mais tático que estratégico. Volta a enfatizar a importância da dissimulação e do sigilo. Também enfatiza a importância das manobras desbordantes e envolventes.

Fala da dificuldade de comunicação na confusão da batalha, ressaltando a importância do uso de bandeirolas, estandartes e tambores, como instrumentos de transmissão de ordens. Nesse sentido fica clara a preocupação com o que modernamente se considera o Comando e Controle.

Lista uma série de recomendações táticas, como nunca atacar estando seu exército em parte mais baixa do terreno, com o inimigo no alto, ou nunca cercar completamente um inimigo, deixando uma rota de fuga para evitar pressionar demais um inimigo desesperado.

As recomendações eminentemente táticas continuam no capítulo 8. O Comandante deve executar seu planejamento após um minucioso estudo do terreno e do inimigo.

A arte da guerra nos ensina a não confiar na possibilidade de que o inimigo não venha, mas na nossa prontidão para recebê-lo; não na possiblidade de que ele não ataque, mas no fato de que fazemos nossa posição inexpugnável.

Sun Tzu. A Arte da Guerra/Cap 8

Nos capítulos 9, 10 e 11, Sun Tzu continua tratando de aspectos táticos. Trata da utilização do terreno em marchas e nos acampamentos. Explica como ler os indícios das próximas ações a serem executadas pelo inimigo.Sun Tzu lista 5 erros que podem arruinar um general: a imprudência, que o leva à destruição; a covardia, que o leva a captura; um temperamento irritadiço, que pode ser estimulado por insultos; a de se possuir um sentido de honra muito sensível, que o deixará suscetível à armadilha dos insultos; a de se preocupar demasiadamente com seus homens, que o fará sucumbir a preocupações e problemas.

Trata também das qualidades e defeitos dos generais, com lições de liderança. Afirma que o general que avança sem cobiçar a fama e retrocede sem temer a desonra, cujo pensamento é apenas proteger a sua terra e prestar bom serviço a seu soberano, é a “joia do reino”.

Considera teus soldados como teus filhos e eles te seguirão até o mais profundo dos vales; cuida deles como teus próprios amados filhos e eles estarão a teu lado, até mesmo para a morte. Se, no entanto, fores indulgente, mas incapaz de fazeres sentida tua autoridade, bondoso, mas incapaz de fazer cumprir teus comandos e, ademais, incapaz de reprimires a desordem, então, teus soldados devem ser comparados a crianças mimadas. Eles são inúteis para quaisquer propósitos práticos.

Sun Tzu. A Arte da Guerra/Cap 10

Por fim, lista nove tipos de terrenos onde pode haver combate, tratando de como deve se desenvolver o combate em cada um deles.

Nos capítulos 12 e 13, Sun Tzu trata de dois tópicos especiais. Como utilizar o fogo nas ofensivas e como empregar os espiões.

A Arte da Guerra é um livro espetacular, que merece uma leitura reflexiva. Não só por sua incrível abrangência, ao tratar de aspectos estratégicos e táticos, como por sua incrível atualidade, mesmo passados 2,5 mil anos de sua redação.

Ao fazer sua leitura, entretanto, há que se estar atento à tradução realizada. Via de regra, as traduções são feitas do chinês para o inglês e deste, para os demais idiomas, o que pode resultar em interpretações bem distintas da original. A língua chinesa é extremamente concisa. Diferentemente do pensador ocidental, o pensador chinês não defende discursivamente suas ideias. Assim, o pensamento de Sun Tzu foi interpretado ao longo dos séculos, por uma tradição tipicamente chinesa de comentaristas. Dessa forma, cabe ao leitor fazer sua interpretação do que foi escrito. Isso é tão importante quanto o que está redigido literalmente.

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Por que os homens lutam?

Os gregos lançavam-se contra o inimigo com inteiro desprezo pela vida, mas vendendo-a a alto preço […] Mas os bárbaros, atacando-os sem trégua uns de frente, depois de haverem posto abaixo a muralha, e os outros por todos os lados, depois de os terem envolvido, aniquilaram a todos.[1]
Heródoto

A cena, narrada por Heródoto, retrata a Batalha das Termópilas, na qual os “Trezentos de Esparta”, liderados por Leônidas, resistiram até a morte ante a invasão persa, no ano de 480 AC. A história, recontada muitas vezes, chegou ao grande público no filme “300”, de Zack Snyder, em 2006.

A imagem de um grupo de guerreiros lutando até a morte, renunciando às possibilidades de fuga e permanecendo em combate até a morte certa, intrigou e intriga a muitos pensadores que se debruçaram sobre o assunto. Militares, estrategistas, psicólogos, etnólogos e antropólogos, políticos e cidadãos comuns se perguntam desde a antiguidade até os dias atuais quais são as causas e as motivações que levam os homens a lutar. Em 401 AC, o grego Xenofonte já aludia à “força da alma” como condição para combater e vencer. Aproximadamente na mesma época, na China, Sun Tzu ressaltava a importância da “lei moral” que motivava os soldados a lutarem por seus exércitos. Napoleão Bonaparte comparava a “força moral” e a “força física” de um exército na proporção de três para um em importância para o sucesso na batalha.[2]

A partir dos séculos 19 e 20, com o desenvolvimento das ciências sociais, estudos e experimentos melhor sistematizados passaram a se debruçar sobre as motivações (ou a “força da alma”, “lei moral” ou “força moral”, referidas anteriormente) dos seres humanos, incluindo-se aí os motivos para a guerra, os elementos culturais dos conflitos e as dinâmicas que envolvem a violência. As próprias circunstâncias históricas contribuíram para esse interesse. O mundo era sacudido por revoluções e guerras, incluindo-se as duas guerras mundiais que vitimaram dezenas de milhões de pessoas e afetaram praticamente todo o planeta.

Duas figuram icônicas do século 20 chegaram a se corresponder[3] sobre o assunto: Albert Einstein e Sigmund Freud. “Existe alguma forma de livrar a humanidade da ameaça da guerra?”, perguntou o físico ao psicanalista, em 1932, apenas seis anos antes da invasão nazista à Áustria.

Em sua resposta, Freud afirma que a violência humana é inerente à condição biológica do homem, manifesta-se em todos os conflitos de relação a partir do processo mais remoto de socialização.

Além disso, recorre à sua teoria, na qual assevera que o homem é mobilizado por dois instintos ou pulsões, cujas atividades são opostas entre si: a pulsão construtiva, erótica ou Eros e a pulsão destrutiva, de morte ou Tanatos.

Assim, por serem as pulsões inerentes ao ser humano, seriam inúteis as tentativas de se eliminar as tendências agressivas do homem. Como se vê, Freud tem uma noção naturalista da violência, por conseguinte, da guerra. Lembra Leroi-Gourhan[4], segundo quem a agressão como comportamento, isto é, o uso da violência, relaciona-se à humanidade como espécie.

Na resposta à Einstein, Freud prossegue afirmando que uma comunidade humana só se mantém unida graças a duas coisas: a coação da violência e o estabelecimento de vínculos afetivos, tecnicamente chamados de “identificações”, que unem seus membros.

Dessa forma, ele concorda com o físico (que em sua missiva já havia sugerido a ideia) de que somente uma espécie de “governo mundial” que ao mesmo tempo criasse tais identificações e tivesse suficiente poder de coação, ao qual se conferiria a solução de todos os conflitos de interesses, poderia preservar a paz entre as nações.

Como observador atual, é impossível deixar de notar que a ONU, criada no pós-guerra para abolir a guerra entre as nações, falhou miseravelmente em seu intento. Talvez justamente por não conseguir criar as chamadas “identificações” e, por isso mesmo, nem de longe se colocar como uma autoridade supranacional capaz de mediar conflitos com êxito.

Outra pensadora que se dedicou ao estudo dos conflitos e da violência foi Hannah Arendt. Sua posição acerca da permanência do fenômeno da guerra descarta um desejo secreto de morte da espécie humana, ou um instinto de agressão irreprimível, ou os sérios perigos econômicos e sociais do desarmamento. Segundo a pensadora, a razão seria o simples fato de que não teria aparecido na cena política esse “árbitro final”. Ou seja, embora discorde da teoria freudiana acerca da existência, nos seres humanos, de um impulso inato à violência, Arendt concorda que a ausência de uma instância arbitral externa é a causa principal para a permanência dos conflitos armados.

Ela prossegue, exemplificando. Diz que a destruição mútua assegurada, situação de impossibilidade de existência de um vencedor em uma guerra nuclear entre as superpotências, retirou a atratividade da atividade bélica, e que a partir daquele momento, ela previa, as guerras seriam restritas aos países subdesenvolvidos, incapazes de desenvolver armamentos nucleares ou biológicos.

Neste ponto é importante destacar o momento histórico em que Arendt escreve. Era o final da década de 1960. Na França, na Tchecoslováquia, nos EUA e em outros lugares havia um clima de revolta estudantil, muitas vezes violenta. Os EUA estavam mergulhados no atoleiro da Guerra do Vietnã e vivia-se o auge da Guerra Fria, acontecimentos que, evidentemente, influenciaram sobremaneira as ideias da pensadora.

Mas, retornando à reflexão de Arendt, ela concorda com Fanon[5] e Gray[6], quando estes afirmam que em uma ação militar, como na revolucionária, o individualismo é o primeiro valor que desaparece. Em seu lugar passa a existir um tipo de coerência de grupo, de nexo mais intensamente sentido e muito mais forte, ainda que menos duradouro, que todas as variedades de amizade civis ou particulares. Está a se tratar da irmandade no campo de batalha. De todos os niveladores, a morte é o mais potente. Mas, no enfrentamento coletivo e em ação, a morte troca sua personalidade; nada parece ser mais capaz de intensificar a vitalidade dos sujeitos como sua proximidade. De alguma forma, esses passam a crer que a própria morte é acompanhada da imortalidade potencial do grupo a que eles pertencem. Essa compreensão passa a ser o centro de suas experiências.

Passados 2500 anos da Batalha das Termópilas e mais de meio século desde as reflexões de Freud e Arendt, e apesar de toda a experiência acumulada pela humanidade, o mundo permanece um lugar conflitivo. Como James Hillman[7] apontou, “a guerra é normal”, afinal é constante e universal. Na verdade, as soluções apresentadas por Einstein e Freud para o fim das guerras não se mostraram eficazes. A ONU, uma tentativa de esboçar uma “autoridade mundial”, que arbitrasse as relações interestatais e impedisse a guerra, como se vê diariamente, fracassou nesse sentido. A “mútua destruição assegurada”, descrita por Arendt, embora tenha servido de dissuasão para que a guerra final entre as superpotências nucleares não ocorresse, não impediu essas mesmas superpotências de travarem diversas outras guerras regionais.

A resposta à pergunta do título parece estar na complexidade das relações humanas, nos sentimentos de perda e de justiça, de honra e de frustração; na lealdade atávica que os seres humanos, profundamente gregários, devotam às suas comunidades, suas cidades, suas nações, suas civilizações.

Ao fim e ao cabo, somos os mesmos, seja nas Termópilas, nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial ou nas comunidades Nuer investigadas por Evans-Pritchard[8]. Consideramos estrangeiros todos os que não pertencem às nossas comunidades. E, como tais, potenciais inimigos.

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[1] Heródoto. História. Livro VII
[2] Exemplos reunidos pelo General Fernando Goulart no livro “Ação sob fogo!”
[3] Leia a carta aqui (em inglês)
[4] Citado por Pierre Clastres, em Arqueologia da violência (2004)
[5] Frantz Fanon, The wretched of the Earth (1961)
[6] J. Glenn Gray, The Warriors (Nova York, 1959)
[7] James Hillman, A terrible love of War (Nova York, 2004)
[8] Edward Evans-Pritchard, (2008). Os Nuer.



Samuel Huntington e a ética militar profissional

Samuel P. Huntington foi um cientista político norte-americano, nascido em 1927 e falecido em 2008. Formou-se em Yale e doutorou-se em Harvard, onde lecionou até 2007. É autor, coautor e editor de 17 livros e de mais de 90 artigos acadêmicos. Dedicou-se ao estudo das relações civis-militares e à geopolítica. Sua tese de maior impacto foi a que ficou conhecida como a teoria do “Choque das Civilizações”.

Huntington escreveu O Soldado e o Estado: teoria e política das relações entre civis e militares, livro que se tornaria um clássico para a análise das relações civis-militares, em 1957. A obra, republicada no Brasil pela Biblioteca do Exército em 2016, está dividida em três partes: na primeira, o autor trata das perspectivas teóricas e históricas das instituições militares e do Estado. Na segunda, analisa o poder militar nos EUA, de 1789 a 1940. Finalmente, na última parte, aborda a crise nas relações entre civis e militares nos EUA, no período de 1940 a 1955.

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Autor – Samuel Huntington

Neste artigo, faço um resumo das ideias defendidas pelo autor no terceiro capítulo da obra, que integra a primeira parte, A mentalidade militar: o realismo conservador da ética militar.

O autor sustenta que a melhor maneira de se chegar à substância da “mentalidade militar” é defini-la como uma “ética profissional”. Isso porque “as pessoas que agem igual durante um longo período de tempo tendem a desenvolver hábitos característicos e persistentes de pensamento. A singular relação que elas mantêm com o mundo lhes dá uma peculiar perspectiva dele, levando-as a racionalizar o próprio comportamento e o próprio papel.” Nesse sentido, a mentalidade militar consistiria em valores, atitudes e perspectivas inerentes ao desempenho da função militar.

A ética militar seria, segundo o autor, um padrão constante para os agrupamentos militares profissionais, pelo qual se poderia julgar o profissionalismo da oficialidade em qualquer tempo e lugar. Nesse sentido, portanto, seria universal. A partir dessa constatação, Huntington passa a listar quais seriam as características dessa ética, ou desse ethos, entendido como um conjunto de traços ou comportamentos que conformam o caráter ou a identidade de uma coletividade.

Em primeiro lugar, prossegue o autor, a ética militar considera o conflito como um padrão universal. Logo, os militares seriam, por natureza, céticos em relação à natureza humana, tendendo a considerar o conflito um padrão universal, e a violência permanentemente enraizada na natureza biológica e psicológica do homem.

A ética militar também é fundamentalmente corporativa, uma vez que, para cumprir suas responsabilidades e garantir a segurança do Estado, os militares trabalham em grupo. Assim, conceitos como espírito de grupo, unidade e comunidade são altamente valorizados, em detrimento do individualismo.

O militar profissional, por característica, acumula seus conhecimentos pelas experiências. Se tem poucas oportunidades de vivenciar experiências próprias, utiliza-se da de outros militares. Daí advém o valor que a ética militar empresta ao estudo metódico e objetivo da história, desde que este estudo possibilite o desenvolvimento de princípios capazes de futura aplicação.

Outra premissa de Huntington defende que a existência da profissão militar depende da existência de Estados-nação capazes de manter um estamento militar apto a protege-los das ameaças à sua segurança. Assim, a ética militar tenderia a considerar o Estado a forma suprema de organização política.

Além disso, se as causas da guerra estão na própria natureza humana, então é impossível abolir a guerra por completo. Essa é a razão pela qual a mentalidade militar é tão cética em relação a dispositivos destinados a evitar a guerra, tais como tratados, leis, cortes ou organismos internacionais.

O autor defende ainda que nem sempre os militares desejam a guerra. Pelo contrário, eles tendem a se julgar vítimas das fomentações de guerra dos civis. Afinal, seriam os políticos e o povo, a opinião pública e os governos que iniciariam a guerra, mas seriam os militares que teriam a obrigação de travá-la.

Quanto à profissão militar, Huntington a caracteriza como técnica e especializada. Suas competências são adquiridas mediante treinamento profissional e experiência. A política, por sua vez, se situa além do escopo da competência militar e a participação de militares na política enfraqueceria o profissionalismo por permitir que valores estranhos ao ethos militar substituam valores eminentemente profissionais.

Assim, seriam três as responsabilidades do militar perante o Estado: a primeira seria de natureza representativa, pois ao militar compete manter as autoridades governamentais informadas quanto ao que ele considera ser indispensável para a manutenção da segurança do Estado.  A segunda seria consultiva. Nesse sentido, caberia aos militares relatar os reflexos das políticas governamentais para a segurança do Estado.  Finalmente, a última responsabilidade do militar seria executiva, implementando as decisões do Estado na área de defesa.

Huntington reitera ainda que o profissionalismo militar só ocorre quando sua lealdade se dirige exclusivamente ao ideal militar. Afirma que outras lealdades são transitórias e divisoras. Reafirma que as forças mais eficientes e competentes são aquelas em que a oficialidade é motivada por seus ideais profissionais, mais do que por objetivos políticos ou ideológicos.

Encerrando o capítulo, o autor enfatiza que o controle civil é essencial ao profissionalismo militar, tecendo considerações à obediência e seus limites.

Assim, segundo Samuel Huntington, a ética militar seria pessimista, coletivista, historicamente influenciada, orientada para o poder, nacionalista, militarista mas voltada para a obtenção e manutenção da paz, e instrumentalista em sua visão da profissão militar. Em resumo, o ethos militar seria realista e conservador.

Embora escrito há mais de sessenta anos, O Soldado e o Estado continua a ser leitura obrigatória para todos os militares profissionais e para todos aqueles que queiram compreender o pensamento militar.




O pensamento crítico e criativo no combate do século 21

A mente não é uma vasilha a ser enchida, mas um fogo a ser aceso.” Plutarco

No último dia 01 de maio, os Chefes de Estado-Maior das seis Forças Armadas norte-americanas (Marinha, Exército, Força Aérea, Corpo de Fuzileiro Navais, Guarda Costeira e Força Espacial) assinaram e divulgaram um novo documento denominado “Developing today´s joint officers for tomorrow´s ways of war. The joint chiefs of staff vision and guidance for professional military education and talent management”[1]

No documento, os Chefes de Estado-Maior transmitem suas orientações e visões sobre as mudanças que devem ocorrer imediatamente nos sistemas de educação militar e de gestão de talentos das Forças Armadas norte-americanas.

No texto de doze páginas, destaco um aspecto como estímulo à nossa meditação. As expressões “pensamento crítico” e “pensamento criativo” aparecem no texto mais de uma dezena de vezes. São duas habilidades que o documento descreve como cruciais para que “os líderes de todos os níveis possam superar intelectualmente seus adversários”.

Não é sem razão que as Forças Armadas norte-americanas estão preocupadas em estimular o pensamento crítico e criativo de seus oficiais. O ambiente volátil, incerto, complexo e ambíguo no qual os líderes do século 21 atuam exige a capacidade de discernir, dentre um imenso turbilhão de dados e informações, quais são relevantes, quais verdadeiramente interessam, e quais estão ali para intencionalmente confundir e desorientar. Exige mentes treinadas na habilidade de pensar criticamente e sensibilidade para entender contextos.  Demanda, ainda, um tipo de mentalidade aberta que permita realizar saltos criativos e obter insights.

Isto ocorre porque a guerra moderna mudou a forma de tratar a informação. Nos tempos em que era escassa, até as chamadas guerras de terceira geração, a informação era tratada como uma commoditie valiosa, assim como o combustível, a munição ou o alimento. Adquirir e manter seguras as informações de alta qualidade era obter uma grande vantagem sobre o inimigo. Na medida em que uma grande quantidade de informação passou a ser digitalizada, tornou-se muito mais simples produzir, transmitir, coletar e arquivar dados e informações. O desafio passou a ser a abundância, não a escassez de dados.

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Autor Martin Cohen. Tradução de Carlos Bacci

Para lidar com essa abundância de dados e informações, separando-se o que realmente interessa do que é supérfluo ou mesmo prejudicial, aquilo que é verdadeiro do que é falso ou distorcido, exige-se um pensamento crítico, que tem por característica ser reflexivo e focado, constantemente preocupado em avaliar o processo de pensamento em si mesmo. Trata-se de uma maneira de pensar que requer boa dose de ceticismo e de capacidade de julgamento, além de habilidade para se identificar e examinar hipóteses, influências e tendências.

Quem emprega as premissas do pensamento crítico, busca entender o todo, de uma forma ampla, de modo a se assegurar de que os problemas sejam analisados a partir de uma perspectiva coerente e fundamentada. Além disso, reconhece a diferença entre resultados de curto prazo e resultados sustentáveis de longo prazo.

O Exército Brasileiro valoriza o pensamento crítico e criativo. O manual EB70-MC-10.211 – Processo de Planejamento e Condução das Operações Terrestres (PPCOT), publicado no corrente ano, dedica uma seção ao assunto em seu capítulo dedicado à Arte do Comando.

É fundamental que o comandante e seu Estado-Maior, no desenvolvimento do processo de planejamento das operações, utilizem o pensamento crítico e criativo. Tal medida contribui para a compreensão das situações, para a tomada de decisões adequadas e para a orientação da ação com precisão.
EB70-MC-10.211

As escolas do Exército Brasileiro, sempre atentas à evolução do combate, também já perceberam, desde alguns anos, a importância do assunto. Na Escola de Comando e Estado-Maior do Exército, o Pensamento Crítico está inserido nos currículos, com cargas horárias nos Curso de Altos Estudos Militares e de Política, Estratégia e Alta Administração do Exército. Dessa maneira, uma massa crítica de oficiais superiores passou a ter melhores condições de assessorar e decidir, contando com essa poderosa ferramenta.

Um dos mais frequentes erros cometidos por exércitos de todo o mundo ao longo da história, foi preparar-se para as guerras que já haviam sido travadas, ao invés de preparar-se para as guerras do futuro. O pensamento crítico e criativo é um antídoto ao dogmatismo que, em sua versão deletéria, impede a evolução do conhecimento e da arte da guerra. Por isso, é essencial aos líderes do século 21.


[1] Leia “Desenvolvendo oficiais de hoje que atuem em Operações Conjuntas para os tipos de guerra do amanhã. A visão e a orientação da Junta de Chefes de Estado-Maior para a educação profissional militar e a gestão de talentos” em tradução adaptada.

 




LIDERANÇA MILITAR EM TEMPOS DE CRISE

Qual é o papel de um líder militar em tempos de crise? Quais devem ser suas prioridades? Essas perguntas vêm à tona em virtude da exoneração do Capitão1 Brett Crozier2, que comandava o porta-aviões de propulsão nuclear USS Theodore Roosevelt. O Comandante Crozier perdeu seu comando em razão do vazamento de uma correspondência3 que ele enviara a seus superiores, com cópias para outras 20 ou 30 pessoas, e que acabou sendo publicada pela imprensa norte-americana.

Na carta, tratando dos casos de COVID-19 que ocorriam em sua tripulação, Crozier alegou que os EUA não estão em guerra e que, portanto, os marinheiros “não precisariam morrer” e que, se providencias imediatas não fossem tomadas, “a Marinha estaria falhando em proteger seu ativo mais preciso – os marinheiros”. Ele argumentou, ainda, que não podia proporcionar o isolamento necessário à prevenção da epidemia dentro do porta-aviões, solicitando o desembarque imediato dos quase 5 mil tripulantes.

A Marinha decidiu retirar Crozier do comando imediatamente. Alegou que a atitude do comandante de agir fora da cadeia de comando quebrava de maneira irreparável a confiança do escalão superior, o que não se pode admitir. O Secretário da Marinha, Tomas Modly4, alegou que nenhum dos 114 casos que tinham sido detectados até aquele momento era grave e que Crozier demonstrava uma capacidade de julgamento extremamente deficiente durante a crise.

Ao sair do navio, que está atracado na ilha de Guam, no Oceano Pacífico, destituído do comando, Crozier foi homenageado pela tripulação que gritava seu nome5, em uma manifestação pública de apreço pouco comum nos meios militares.

Retorno então às perguntas do início deste texto, contextualizando-as ao caso de Crozier. Qual era o seu papel como líder militar diante da grave situação com a qual se deparou? Quais deveriam ser suas prioridades?

O manual C20-10 Liderança Militar, conceitua: “A Liderança militar consiste em um processo de influência interpessoal do líder militar sobre seus liderados, na medida em que implica no estabelecimento de vínculos afetivos entre indivíduos, de modo a favorecer o logro dos objetivos da organização militar em uma dada situação.” (grifos nossos).

O mesmo manual acrescenta que a liderança deverá ser apoiada em três pilares: proficiência profissional (saber), senso moral e traços de personalidade característicos de um líder (ser) e atitudes adequadas (fazer).

A proficiência profissional do Cap Crozier, até este incidente, parecia indiscutível. Seu currículo era exemplar e nenhum oficial chega à posição de comandante de um porta-aviões da Marinha norte-americana sem uma brilhante carreira e sem passar por uma seleção rigorosa.

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Autor – William H. McRaven

Seu senso moral, que pode ser caracterizado pelo balizamento de seu comportamento pelos valores mais importantes de um líder militar, neste episódio, merece ser discutido. Em uma apressada análise inicial, parece demonstrar coragem ao se manifestar em favor do que acreditava ser correto para o bem-estar de seus subordinados. Porém, cabe uma consideração importante: naquele momento, a verdadeira manifestação de coragem que se espera de um comandante é a de permanecer no cumprimento da missão e do seu dever. No linguajar militar, manter a tropa galvanizada no sentido de “durar na ação”, mesmo se sujeitando a incompreensões que possam surgir em um primeiro momento. A lealdade à instituição militar a que pertence e representa como comandante, outro valor característico do senso moral, também foi fortemente abalada ao permitir que fosse tratado publicamente um assunto que deveria ser tratado exclusivamente pela cadeia de comando.

A “atitude adequada”, terceiro pilar da liderança militar, também foi comprometida no episódio. O “fazer” que caracteriza a atitude adequada se evidencia na forma como o líder emprega os valores e competências de sua personalidade no manejo das situações que sua tropa enfrenta. No caso, Crozier deveria envidar todos os esforços para que seus liderados cooperassem para o atingimento dos objetivos definidos pela Marinha norte-americana para o USS Theodore Roosevelt. E, dentre estes objetivos, certamente está o de mantê-lo como uma ferramenta militar capaz de cumprir qualquer missão que venha a lhe ser imposta, inclusive dissuadir eventuais inimigos, especialmente em se tratando de um porta-aviões de propulsão nuclear, um poderoso instrumento de combate. Ao permitir que a questão da infecção de COVID-19 ganhasse notoriedade, Crozier ajudou a escancarar uma vulnerabilidade importante da Marinha, reduzindo drasticamente, ao menos momentaneamente, sua capacidade operacional e sua prontidão para fazer frente a inúmeros e incertos desafios que poderão advir da crise da COVID-19.

Além disso, ao afirmar que os EUA “não estão em guerra” e por isso deveria priorizar a segurança da tripulação, o comandante deliberadamente optou pelos interesses da tripulação, e não pelos da instituição ou de seu país. Atuou meramente como se fosse um representante dos interesses de seus subordinados, e este não é o papel de um comandante, muito menos, de um líder. Sua intenção de interromper o serviço do navio, desembarcando toda a tripulação, somente se justificaria se manifestada exclusivamente por intermédio da cadeia de comando e apenas em caso de grave comprometimento da saúde a bordo, que de qualquer maneira inviabilizaria a operacionalidade do navio. Mas este não parece ser o caso. Até esse momento, não há notícias de que qualquer tripulante precisasse de internação hospitalar.

Não se está aqui a pregar que o Comandante seja insensível ao bem-estar de seus subordinados. Muito pelo contrário. Esta é a atitude adequada do líder, mas sempre com o foco no cumprimento da missão. A preocupação com a saúde dos comandados é obviamente da maior importância para qualquer líder militar, e todas as ações para que sua tropa permaneça saudável são necessárias nas atuais circunstâncias. Mas a atenção do Comandante Crozier deveria estar focada, tanto quanto ou ainda mais, na manutenção da prontidão de sua tropa e de sua unidade. Afinal, disponibilidade e prontidão permanente são características necessárias e inalienáveis da profissão militar, em qualquer parte do mundo.

Há ainda mais um importante aspecto a ser considerado. As instituições militares, altamente hierarquizadas, possuem comandantes em vários níveis diferentes, desde os mais elementares grupos até os de nível estratégico. Os líderes de nível mais baixo sabem que sua visão é limitada pelas informações que estão disponíveis ao seu nível de comando. Em razão disto, eles sabem que devem confiar no discernimento dos escalões superiores, que possuem outros elementos para a tomada de decisão que não são de seu conhecimento. Este entendimento também faltou ao Comandante Crozier, que achou que sua visão sobre o assunto deveria ser definitiva.

A reação da imprensa norte-americana ao caso, de maneira majoritária, foi favorável a Crozier. Destacou a coragem do comandante, que entre “a carreira e o bem estar de seus subordinados”, teria escolhido sacrificar a carreira em favor de sua tripulação.

Mas não me parece que deva ser essa a interpretação de soldados profissionais. Esses sabem que o cumprimento da missão e a manutenção da operacionalidade de suas tropas é o farol inescapável. Essa, aliás, é uma característica definidora dos homens e mulheres que abraçam a profissão das armas.

Finalmente, lembro que sem hierarquia e disciplina, não há Força Armada. E relembro as palavras do Marechal Osorio, liderança inconteste, amado por seus subordinados, mas que conhecia perfeitamente a importância da disciplina: “Se um militar tivesse o direito de aprovar os feitos de seus superiores, também teria o de censurar ou de se lhes opor; daí viriam a indisciplina e a morte do Exército”.


[1[ Na Marinha do Brasil, Capitão de Mar-e-Guerra
[2] Veja um currículo do Cap Brett Crozier, elaborado em 2018
[3] Leia a correspondência
[4] Leia a declaração do Secretário Tomas Modly 
[5] Veja o vídeo