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Vinte anos dos ataques de Onze de Setembro de 2001 aos Estados Unidos da América

Para quem tem mais de trinta anos, 11 de setembro de 2001 é um dia inesquecível. Poucos são os eventos não relacionados às nossas vidas pessoais que ficam gravados na nossa memória de tal forma que nos lembramos exatamente do que estávamos fazendo quando recebemos a notícia. No meu caso há pessoal, apenas dois eventos desse tipo: a morte de Ayrton Senna e os atentados que hoje completam vinte anos.

O impacto foi tamanho em razão dos 2.977 mortos, de 77 nacionalidades diferentes (inclusive 5 brasileiros) e cerca de 6 mil feridos, dos gigantescos prejuízos financeiros, da surpresa, do ineditismo, e porque, mesmo intuitivamente, as pessoas sabiam que a partir daquele momento, o mundo seria outro.

Afinal, os Estados Unidos da América eram, à época, a única superpotência do planeta. Vivia-se a época da unipolaridade. A guerra fria havia terminado, e o vencedor, os EUA, eram indiscutivelmente a maior potência econômica, militar, cultural e tecnológica do planeta. E, apesar disso, os EUA tinham sofrido um ataque em seu próprio território apenas pela segunda vez na história. O primeiro, em 7 de dezembro de 1941, à Base de Pearl Harbor, tinha levado o país à 2ª Guerra Mundial. O segundo, levou o país à “Guerra ao Terror”.

A máquina militar norte-americana, que sempre teve a chamada guerra convencional, ou conflito de alta intensidade, como sua primeira prioridade de emprego, a partir daquele momento passava a se dedicar a outro tipo de conflito, de baixa intensidade, prolongado, de resultados muito mais dificilmente mensuráveis: o combate ao terrorismo, muito especialmente à Rede Al Qaeda de Osama bin Laden, responsável pelos ataques de 11 de setembro.

Assim, quase imediatamente, os EUA invadiam o Afeganistão. O grupo extremista Talibã, que governava o país e permitia que a Al Qaeda operasse a partir do seu território, foi deposto. Osama fugiu de seu complexo de Comando e Controle localizado nas montanhas de Tora Bora, fronteira com o Paquistão, para ser encontrado e morto por um grupo de Forças Especiais norte-americano somente em maio de 2011, no Paquistão.

Após a invasão do Afeganistão, que recebeu o apoio da comunidade internacional e da ONU, os EUA decidiram, também no contexto da Guerra ao Terror, invadir o Iraque e derrubar o ditador Saddam Hussein, sob o pretexto de que o país produzia armas químicas de “destruição em massa”. A comunidade internacional, neste caso, não apoiou a invasão, mas os EUA a efetivaram mesmo assim, derrubando o regime iraquiano.

Nos dois casos, Afeganistão e Iraque, a queda dos governos inimigos não significou o fim da guerra e o retorno dos soldados norte-americanos ao seu país. Seguiu-se a tentativa de implantação de regimes democráticos, de modelo ocidental. Essa tentativa de state building[1] encontra amparo em um pensamento ocidental de característica missionária, descrito, dentre muitos outros, da seguinte forma por Samuel Huntington.

O Ocidente – e em especial os EUA, que sempre foram uma nação missionária – está convencido de que os povos não-ocidentais deviam se dedicar aos valores Ocidentais de democracia, mercados livres, governos limitados, direitos humanos, individualismo e império da lei, e que deveriam incorporar esses valores às suas Instituições.[2]

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Autor – Samuel Huntington

Neste aniversário de vinte anos dos atentados é desnecessário lembrar que, tanto no Iraque quanto no Afeganistão, os EUA fracassaram em sua tentativa de implementar regimes de corte ocidental. No primeiro, que assistiu no pós-guerra o nascimento do grupo terrorista Estado Islâmico, o governo se equilibra precariamente entre as tensões entre grupos sunitas, xiitas e curdos. No segundo, o Talibã está exatamente no mesmo lugar em que estava em 11 de setembro de 2001.

As falhas de segurança que permitiram a ação da Al Qaeda foram esquadrinhadas, e os EUA modificaram suas leis e ampliaram significativamente a estrutura de inteligência. A Agência Nacional de Segurança (NSA), a CIA e as demais agências de inteligência passaram a contar com ampla liberdade de ação. Qualquer pessoa, em qualquer lugar do mundo, poderia ser alvo das agências e ter sua vida monitorada. A relativização da privacidade é uma das consequências do 11 de Setembro. As prisões arbitrárias de pessoas acusadas de terrorismo, mantidas encarceradas sem julgamento, e a divulgação das imagens do tratamento desumano dispensado aos presos da prisão de Abu Ghraib, no Iraque, abalaram a imagem dos EUA, tanto no exterior quanto junto à sua própria opinião pública, tornando a guerra impopular e contribuindo significativamente para o fim das operações em ambos os países.

Ao chegar ao aniversário de 20 anos dos atentados tendo se retirado completamente do Afeganistão, os EUA viram uma página dolorosa de sua história e, dessa forma, podem se concentrar nos desafios que não existiam à época, mas que hoje conformam o tabuleiro geopolítico mundial.

A China, que em 2001 ainda era a 7ª economia do mundo, passou a ser um desafiante de muito peso, capaz de rivalizar com os EUA em todos os campos do poder e de ameaçar os interesses norte-americanos, especialmente no Pacífico. A Rússia, que em 2001 ensaiava uma aproximação do Ocidente, após a invasão da Ucrânia e da anexação da Crimeia, voltou a ser o principal antagonista da OTAN e a almejar um protagonismo em sua esfera de influência.

Assim, creio que se os EUA forem capazes de evitar um novo atentado de proporções semelhantes ao 11 de setembro, dificilmente veremos aquele país voltar a se engajar em guerras como a do Afeganistão e a do Iraque. Eles agora têm outras ameaças, talvez ainda maiores, com que se preocupar.

[1] Construção de Estado

[2] Huntington, Samuel. O Choque das Civilizações. p.228. Ed Objetiva. 1996

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As repercussões do fim da guerra no Afeganistão

As cenas das aeronaves civis e militares sendo cercadas por pessoas desesperadas para fugir do Afeganistão ficará gravada na memória dos milhões de espectadores que acompanharam pela televisão e pela internet a reconquista de Cabul pelo Talibã. Trata-se de um daqueles eventos marcantes que, por seu simbolismo, será utilizado por historiadores no futuro para explicar os acontecimentos marcantes desta segunda década do século 21.

Os custos da guerra para os Estados Unidos foram enormes. Morreram aproximadamente 2,5 mil militares norte-americanos; 1,1 mil militares dos países da coalizão e cerca de 70 mil militares afegãos. A esses números somem-se cerca de 50 mil baixas civis. Estima-se ainda que o esforço de guerra tenha custado cerca de 2 trilhões de dólares aos contribuintes norte-americanos.

Apesar desse esforço gigantesco em recursos humanos e materiais, os resultados não foram os esperados. E, ao final, os Estados Unidos da América, maior potência militar do planeta, e seus aliados da OTAN foram surpreendidos pela velocidade com que o Talibã executou sua ofensiva final, obrigando-os a uma humilhante retirada. Em meio ao caos das pessoas tentando chegar ao aeroporto para conseguir uma vaga em uma aeronave para fugir do país, atentados terroristas mataram cerca de 180 pessoas, dentre elas 13 militares norte-americanos.

Neste artigo, procurarei delinear o histórico dos acontecimentos, mostrando como  caminharam para esse desenlace e apresentarei possíveis repercussões da nova situação política do Afeganistão para o chamado “Grande Oriente Médio” e para as potências do entorno, especialmente China, Rússia, Paquistão e Irã.

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Autora – Adriana Carranca

As intervenções norte-americanas no Afeganistão e no Iraque

Em 1990, reagindo à invasão do Iraque ao Kuwait, os EUA, autorizados pela ONU, lideraram uma coalizão militar internacional que derrotou o exército iraquiano e restabeleceu a soberania do Kuwait sem, entretanto, derrubar o regime liderado por Saddam Hussein no Iraque. Naquele episódio, um fato revoltou os grupos islâmicos radicais: as tropas ocidentais empregadas na Guerra do Golfo ficaram sediadas na Arábia Saudita, país islâmico sunita e wahabista, onde se encontram duas das mais importantes cidades sagradas do Islã: Meca e Medina.

É neste contexto que radicais islâmicos – em especial a rede Al Qaeda – planejaram e executaram uma série de atentados, contra o World Trade Center, em Nova York, em 1993, contra a base militar norte-americana em Kobhar, Arábia Saudita, em 1996, contra embaixadas dos EUA no Quênia e na Tanzânia, em 1998 e, finalmente, novamente contra as Torres Gêmeas do World Trade Center e ao Pentágono, em 11 de Setembro de 2001.

Esse último ataque, por suas inéditas proporções, vitimando mais de 3 mil pessoas em solo norte-americano, ganhou imediata repercussão mundial. A rede terrorista Al Qaeda, chefiada pelo saudita Osama bin Laden, foi imediatamente acusada de ser a autora dos atentados. Abrigada no Afeganistão pelo governo do grupo islâmico Talibã, que controlava cerca de 90% do território do país naquela época e era, de facto, o governo em Cabul, a Al Qaeda contava com ampla liberdade de ação nas montanhas ao sul do país, na porosa fronteira com o Paquistão.

Os EUA exigiram que o Talibã entregasse Bin Laden, o que não aconteceu. Em consequência, os norte-americanos iniciaram sua campanha militar no Afeganistão, novamente com o beneplácito da ONU, com o objetivo de retirar o Talibã do poder, desmantelar a rede terrorista Al Qaeda e eliminar Osama bin Laden.

As operações começaram em outubro de 2001 e, em dezembro do mesmo ano, o Talibã já havia sido retirado do poder. Osama bin Laden, entretanto, conseguiu fugir do seu complexo de comando e controle, escavado nas montanhas de Tora Bora, no sul do Afeganistão, próximo à fronteira com o Paquistão. O líder terrorista que havia planejado os atentados de 11 de setembro só viria a ser morto quase uma década depois, em maio de 2011, em uma ação norte-americana que encontrou seu esconderijo no Paquistão.

Mas as ações dos EUA não ficaram restritas ao Afeganistão. Em março de 2003, o país invadiu o Iraque, ainda governado por Saddam Hussein, alegando que o regime estava produzindo e estocando armas químicas de destruição em massa. Naquela oportunidade, diferentemente das anteriores, a ação militar norte-americana foi decidida unilateralmente, sem o respaldo das Nações Unidas.

Assim, os EUA mantinham, no contexto da estratégia de “guerra ao terror” que o país adotava naquele momento, duas intervenções militares ao mesmo tempo, no Afeganistão e no Iraque. Ambas as intervenções tinham por objetivos declarados a construção de regimes democráticos naqueles países, com instituições que fossem suficientemente sólidas para impedir que eles se transformassem em santuários para o planejamento de atentados terroristas sobre o território norte-americano ou europeu.

Nenhuma das ações obteve o êxito esperado. No Iraque, as tensões entre os grupos xiitas, curdos e sunitas se intensificaram, com os dois primeiros, que assumiram o poder no país, vingando-se dos anos de repressão promovida pelo partido de Saddam Hussein, o Baath, sunita. Este ambiente propiciou o surgimento da insurgência terrorista sunita, em especial o chamado Estado Islâmico do Iraque, que recrutou inclusive ex-integrantes das forças armadas iraquianas, que haviam sido desmanteladas com a queda do regime imposta militarmente pelos EUA.

A retirada das tropas norte-americanas do Iraque em 2011 deu espaço para o início de uma verdadeira guerra civil no país. Em junho de 2014, o Estado Islâmico do Iraque e do Levante (ISIS), grupo terrorista resultado da integração do já mencionado Estado Islâmico do Iraque a facções terroristas sunitas da Síria, proclamou o chamado “Califado Islâmico”, que chegou a manter o domínio do território em importantes porções dos dois países[1]. A reação ao grupo, no Iraque, foi feita pelo governo com apoio de milícias curdas e do Ocidente. Na Síria, o governo contou com forte apoio russo. No final de 2017, o ISIS finalmente foi derrotado.

Já as tratativas formais entre o governo dos EUA e o grupo Talibã no Afeganistão remontam ao ano de 2018. As conversas estavam baseadas em quatro premissas: os EUA retirariam todas as suas tropas; em contrapartida, os afegãos assumiriam o compromisso de que o país não se tornaria um santuário para grupos terroristas; deveria haver um amplo cessar fogo e um diálogo dentre todos os grupos afegãos na busca de um governo de consenso. Para que esse plano desse certo, o governo afegão, presidido por Ashraf Ghani, e o grupo Talibã, além das outras facções existentes no país deveriam conseguir chegar a um mínimo grau de entendimento. Ou, pelo menos, o governo afegão deveria ter condições de conter o grupo Talibã por tempo suficiente, após a retirada das tropas norte-americanas, para forçar o grupo Talibã a negociar. Nada disso aconteceu. Em uma ofensiva fulminante de cerca de dez dias, praticamente sem enfrentar resistências, o Talibã tomou para si o poder e o Presidente Ashraf Ghani fugiu do país.

A constatação inescapável é a de que as tentativas norte-americanas de instalar governos democráticos no Iraque e no Afeganistão não alcançaram o êxito esperado. O Afeganistão hoje é governado pelo Talibã, o mesmo grupo que estava no poder no início da guerra em 2001, e o Iraque vive grande instabilidade política.

Por outro lado, houve êxitos no nível tático. Osama bin Laden foi morto e o terrorismo da rede Al Qaeda e do ISIS foram muito enfraquecidos. Além disso, nesses últimos vinte anos, nenhum grande atentado terrorista ocorreu em território norte-americano.

O que pode acontecer no Afeganistão a partir de agora?

O desenrolar dos acontecimentos no Afeganistão, a partir de agora, deverá ser observado com atenção, para que se possa tentar antever os desdobramentos para o próprio país e para seu entorno.

Um primeiro ponto a se observar é se o país mergulhará em uma guerra civil ou se o Talibã será capaz de derrotar os demais grupos que tentarão disputar o poder, em especial a chamada “Aliança do Norte”, grupo que ainda controla do Vale do Panjshir, única área do país que não foi conquistada pelo Talibã em sua ofensiva final, e que é liderado por Ahmad Massoud, filho de Ahmad Shah Massoud, um comandante veterano da campanha contra os soviéticos na década de 1980.

Outro aspecto a ser acompanhado é a produção de papoula, base para a fabricação do ópio. O Talibã já se comprometeu publicamente a acabar com a produção da planta. Ocorre que ela é a principal fonte de financiamento do grupo. De acordo com um relatório do Escritório das Nações Unidas para as Drogas e o Crime (UNDOC), em 2020, houve um aumento de 37% da área de cultivo da papoula no Afeganistão, se comparada com 2019. Nesse mesmo estudo, o UNDOC afirma que mais de um terço dos fazendeiros entrevistados informaram que pagam impostos da ordem de 6% das vendas do ópio, principalmente, para o Talibã[2]. A transformação do território afegão em uma espécie de “zona livre” para a produção de drogas seria fator altamente desestabilizador para a região.

Um terceiro foco da atenção deve ser a possibilidade de aumento do terrorismo. Há um grande temor na comunidade internacional de que o território afegão volte a ser uma área livre para homizio, concentração e planejamento de ações terroristas. Embora o Talibã afirme que não permitirá que tais ações se desenvolvam, o atentado terrorista perpetrado pelo Estado Islâmico Khorasan, conhecido como ISIS-K, na região do aeroporto de Cabul, no momento em que os EUA e demais países do Ocidente faziam a retirada de suas tropas, serviu como um alerta de que o Talibã, mesmo que (e se) realmente quiser combater o terrorismo, talvez não tenha essa capacidade. É interessante notar que, em suas bases, o Talibã também possui militantes fanatizados, que podem muito bem servir de fonte de terroristas para o ISIS-K e outros grupos, caso acreditem que o governo Talibã tenha deixado de ser suficientemente rígido na sua interpretação dos valores pelos quais lutaram. E isso não é difícil de ocorrer, visto que as atuais lideranças do grupo, no governo, certamente terão que fazer concessões em favor da governabilidade, naturais do processo político e das relações internacionais.

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Autor – Patrick Cockburn

Repercussões da retirada norte-americana do Afeganistão

Vistos alguns possíveis rumos dos acontecimentos no Afeganistão, vejamos as possíveis repercussões para os principais atores internacionais envolvidos.

Os ecos da retirada serão fortemente sentidos nos Estados Unidos, tanto no campo interno quanto no campo externo. A sociedade norte-americana cobrará, especialmente por intermédio de seus congressistas e da imprensa, as razões para o fracasso da intervenção. A palavra “fracasso” aqui é usada propositalmente, porque essa será a percepção dominante na sociedade, mesmo que os eventuais sucessos táticos sejam apresentados ao grande público. E tal cobrança será grandemente potencializada caso ocorra algum atentado terrorista contra alvos norte-americanos em um futuro próximo. O atual governo, do presidente Joe Biden, sofrerá grande pressão e tenderá a responder com ações pontuais contra alvos identificados com o terrorismo no Oriente Médio e no norte da África.

No campo militar, os EUA fecham definitivamente a página da “Guerra ao Terror” e passam a se concentrar em uma nova era de competição estatal, conforme inclusive já preconiza a Estratégia de Defesa dos EUA[3], de 2018. O foco sai definitivamente do Oriente Médio e vai para a Ásia. Se no curto prazo, como se vê, a saída do Afeganistão é traumática para os EUA pelo inegável gosto de derrota, por outro lado, nos médio e longo prazos, os recursos economizados com o fim da guerra estarão disponíveis para serem empregados na Ásia, na contenção à China, e mesmo na Europa, na contenção à Rússia.

No campo externo, os EUA sofrerão um abalo em sua reputação. Adversários explorarão a narrativa de que o país abandona seus aliados, como teria feito com o governo afegão, deixado à mercê do Talibã. Esta é, inclusive, a narrativa que a China propagandeia, com o foco nos taiwaneses, indicando que estes igualmente seriam deixados sós contra a própria China em caso de um conflito entre chineses e separatistas taiwaneses.

Isso nos traz para as repercussões para a China. A potência asiática, vale a pena lembrar, faz fronteira com o Afeganistão através do Corredor Wakhan, em uma estreita faixa de terra de cerca de 70 quilômetros de largura. Do lado chinês da fronteira está Xinjiang, região autônoma habitada principalmente pela etnia uigur, um grupo majoritariamente islâmico. Xinjiang também é a base do grupo terrorista Movimento Islâmico do Turquestão Oriental, grupo separatista responsável, segundo o governo chinês, por mais de 200 ataques, com mais de uma centena de vítimas no país.

A China teme que o vizinho Afeganistão se torne um santuário para os terroristas, fortalecendo o movimento que atualmente se encontra enfraquecido.

A instabilidade no Afeganistão, caso o país entre em guerra civil, por exemplo, também seria muito ruim para a China, que possui uma série de interesses econômicos nos vizinhos Paquistão e países da Ásia Central. Os investimentos da Iniciativa Cinturão e Rota (Belt and Road Initiative) são fundamentais na estratégia de desenvolvimento econômico chinês e qualquer instabilidade que os ameace seria frontalmente contra os interesses chineses.

Assim, se à primeira vista o fracasso dos EUA no Afeganistão pode ser compreendido como vantajoso para a China, por outro lado a nova situação obrigará o país a assumir um protagonismo na segurança da região que antes era exercido pelos EUA, com todos os possíveis ônus que isso pode causar.

O governo chinês já está atuando para estreitar os laços com o governo talibã. A embaixada do país em Cabul foi mantida em funcionamento e espera-se que a China ofereça suporte financeiro ao país em troca da garantia de que não haverá nenhum tipo de apoio aos separatistas uigures.

Russos também têm motivos para se preocupar com o novo status afegão. A onda de refugiados afegãos em direção aos países fronteiriços de norte – Turcomenistão, Uzbequistão e Tadjiquistão – é uma grande preocupação para aquelas frágeis economias, e uma eventual instabilidade nesses países afeta diretamente os grandes interesses russos na Ásia Central. O Tadjiquistão já acionou a Organização do Tratado de Segurança Coletiva, aliança militar regional liderada pela Rússia, para auxiliar em uma eventual crise provocada por um grande afluxo de refugiados.

Para o Irã, as primeiras consequências podem ser econômicas. Em razão do isolamento imposto pelo ocidente, o Irã e o Afeganistão aumentaram suas relações econômicas nos últimos anos. Atualmente, o Afeganistão é um dos maiores destinos das exportações iranianas de não derivados do petróleo, em um volume de cerca de 2 bilhões de dólares ao ano. Uma crise econômica no Afeganistão traria, portanto, consequências bastante negativas para o Irã. Outra causa de preocupação é o afluxo de refugiados, que já são contados na casa das centenas de milhares de pessoas.

O Paquistão, vizinho de sul que compartilha com o Afeganistão uma fronteira porosa habitada pelos Pachtuns, etnia de origem do Talibã, certamente sentirá rapidamente os reflexos dos acontecimentos no Afeganistão. O país era, formalmente, um aliado norte-americano na guerra. Suas forças armadas, em razão disso, receberam bilhões de dólares dos EUA nos últimos vinte anos. Acontece que o Talibã, que muitos analistas afirmam ter sido uma criação do próprio serviço secreto paquistanês, encontra um grande apoio dentro do Paquistão. O país pretende evitar a todo custo que o Afeganistão caia na esfera de influência de seus arqui-inimigos, os indianos. Para os paquistaneses, o Afeganistão provê profundidade estratégica para um eventual conflito contra a Índia. Além disso, a proximidade do governo de Ashraf Ghani com os indianos era vista com muita desconfiança pelo governo de Islamabad. Assim, quando os diplomatas indianos foram um dos primeiros a abandonar Cabul quando da chegada do Talibã, isso foi comemorado como uma vitória pela imprensa paquistanesa.

Conclusão

O fim da guerra do Afeganistão pode ser considerado um marco nas disputas geopolíticas globais. Os EUA, por ora, se retiram da Ásia Central, como já tinham feito no Oriente Médio e no norte da África, caracterizando um provável pivô em direção à Ásia, na contenção da China, e mesmo um retorno de sua atenção à Europa, com o fortalecimento da OTAN na contenção da Rússia. Em consequência, o país perderá influência no Oriente Médio e na Ásia Central, o que alimentará certa narrativa de que vive momentos de declínio e perda de poder em sua disputa com a China.

A saída dos EUA dessas regiões abre espeço para uma atuação mais incisiva de Rússia e China, com as vantagens e desvantagens que acompanham este fato. A China passa a ter uma preocupação maior na sua fronteira oeste, somada às preocupações que ela já tinha em Xinjiang. Em compensação, se conseguir trazer o Afeganistão para sua área de influência, poderá fortalecer sua presença na Ásia Central e no Oriente Médio.

O Paquistão, embora comemore secretamente a vitória do Talibã, talvez perca muito apoio dos EUA, que poderão acabar cada vez mais alinhados com a Índia na busca da contenção da China.

Finalmente, o Afeganistão, transformado em “Emirado Islâmico do Afeganistão”, estará sob escrutínio da opinião pública internacional. O tratamento que dispensar às mulheres e às minorias, sua atitude face ao terrorismo internacional e ao tráfico de drogas e a sua capacidade de unificar o país evitando uma guerra civil serão os fatores que definirão se o país se integrará à comunidade internacional ou se será um pária, mais uma vez sujeito a intervenção das grandes potências. De qualquer forma, a retirada dos Estados Unidos permanecerá reforçando o mito da invencibilidade do Afeganistão em seu próprio território.

 

[1] Importante recordar que a Síria estava em guerra civil, com o Presidente Bashar al-Assad enfrentando diversos grupos, dentre eles, o ISIS.

[2] Disponível em https://www.unodc.org/unodc/en/frontpage/2021/May/afghanistan_-37-per-cent-increase-in-opium-poppy-cultivation-in-2020–while-researchers-explore-novel-ways-to-collect-data-due-to-covid-19.html

[3] Saiba mais em https://paulofilho.net.br/2018/04/18/nova-estrategia-de-defesa-dos-eua-e-ataque-a-siria/ e https://paulofilho.net.br/2021/06/27/a-otan-e-as-mudancas-no-equilibrio-do-poder-mundial/

 

REFERÊNCIAS

BARMAK, Pazhwak; ASMA, Ebadi; BELQUIS, Ahmadi. After Afghanistan Withdrawal: A Return to ‘Warlordism? United States Institute for Peace.  Disponível em https://www.usip.org/publications/2021/06/after-afghanistan-withdrawal-return-warlordism . Acesso em 30 de agosto de 2021.

CASTRO VIEIRA, Danilo. Política Externa norte-americana no Oriente Médio e o Jihadismo. Editora Appris. Curitiba, PR. 2019.

__________. Irmandade Muçulmana. Editora Appris. Curitiba, PR. 2021.

GOMES FILHO, Paulo. Vinte anos de Guerra no Afeganistão. Blog do Paulo Filho. Brasília, DF. 2021. Disponível em https://paulofilho.net.br/2021/08/09/vinte-anos-de-guerra-no-afeganistao/. Acesso em 28 de agosto de 2021.

__________.  Cemitério de Impérios. Blog do Paulo Filho. Brasília, DF. Disponível em https://paulofilho.net.br/2021/08/21/cemiterio-de-imperios/ . Acesso em 26 de agosto de 2021.

HELF, Gavin e BARMAK Pazhwak. Central Asia prepares for Taliban takeover. United States Institute for Peace.  Disponível em https://www.usip.org/publications/2021/07/central-asia-prepares-taliban-takeover . Acesso em 30 de agosto de 2021.

UNITED NATIONS OFFICE ON DRUGS AND CRIME. Afghanistan Opium Survey 2020 Cultivation and Production ‒ Executive Summary. Disponível em https://www.unodc.org/unodc/en/frontpage/2021/May/afghanistan_-37-per-cent-increase-in-opium-poppy-cultivation-in-2020–while-researchers-explore-novel-ways-to-collect-data-due-to-covid-19.html




Cemitério de Impérios

A cena pareceu familiar aos norte-americanos. Um helicóptero de suas Forças Armadas sobrevoou a Embaixada dos EUA num país distante, recolheu passageiros para uma evacuação às pressas, enquanto o inimigo se aproximava por todos os lados. As tropas, depois de longa guerra, estão retornando para casa sem poder comemorar a vitória. As semelhanças entre a retirada de Saigon, ao fim da Guerra do Vietnã, e a retirada de Cabul no último domingo, 15 de agosto, marcando o fim da Guerra do Afeganistão, são óbvias e inescapáveis.

Tudo aconteceu numa velocidade espantosa. Numa ofensiva de cerca de dez dias, o Taleban conquistou todas as capitais provinciais e chegou à capital do Afeganistão, Cabul. O presidente Ashraf Ghani fugiu para o Usbequistão e o grupo reconquistou o poder praticamente sem encontrar resistência em sua ofensiva final.

Trinta e seis dias antes da cena do helicóptero na embaixada norte-americana em Cabul, no último dia 8 de julho o presidente Biden foi questionado por um repórter se era inevitável que o Taleban reconquistasse o Afeganistão. Biden foi firme: “Não! Não é (inevitável)!”. E prosseguiu: “Você tem no Afeganistão 300 mil militares bem equipados (…) e Força Aérea. Contra cerca de 75 mil taleban. Não é inevitável!”. Na mesma entrevista, o presidente negou que a inteligência de seu país lhe tivesse apresentado dados de que o governo afegão entraria em colapso. “Eles claramente têm a capacidade de manter o governo”.

E numa pergunta que se mostrou preditiva dos acontecimentos, uma repórter questionou: “O senhor vê algum paralelo entre esta retirada (das tropas dos EUA do Afeganistão) e o que aconteceu no Vietnã?”. Biden mais uma vez foi firme: “De jeito nenhum! O Taleban não é o exército do Vietnã do Norte. (…) Não há possibilidade de você ver cenas de pessoas sendo resgatadas do telhado da embaixada dos EUA no Afeganistão… A possibilidade de o Taleban tomar o controle de todo o país é muito remota”.

A entrevista do presidente Biden, se vista novamente, mostra como a liderança norte-americana estava equivocada acerca das capacidades das Forças Armadas do Afeganistão. Depois de 20 anos de treinamento e reequipamento que custaram bilhões de dólares aos EUA e à Otan, o dispositivo militar afegão desmoronou como um castelo de cartas, deixando muito armamento e equipamento militar nas mãos do Taleban. As razões para isso ainda serão estudadas e apresentadas, pois certamente a sociedade norte-americana cobrará respostas de seus políticos e militares.

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Autora – Adriana Carranca

A decisão de retirar todas as tropas norte-americanas do Afeganistão já vinha sendo ensaiada há vários anos, desde a Presidência Obama, passando por Donald Trump, que até abriu as negociações com o Taleban. Mas coube a Joe Biden tomar a decisão e marcar uma data: 11 de setembro de 2021. Exatamente 20 anos após os atentados de 2001, planejados no Afeganistão pela rede terrorista Al-Qaeda, de Osama bin Laden, havia chegado o momento de deixar o Afeganistão.

Entretanto, o anúncio do porta-voz do Taleban, no final do dia 15 de agosto, de que a “guerra no Afeganistão tinha terminado” e a imagem dos dirigentes do grupo sentados à mesa do presidente, na sede do governo, demonstram claramente que as coisas não ocorreram da maneira que Washington previra. Vinte anos, milhares de baixas militares e bilhões de dólares depois, o Taleban está no mesmo lugar onde estava em 11 de setembro de 2001: no governo do Afeganistão.

O fracasso dos EUA é indisfarçável. E trará consequências não só para norte-americanos e afegãos, mas também para toda a Ásia Central e o Oriente Médio, com reflexos em diversos outros países.

Uma primeira consequência, já visível, será o aumento exponencial no número de refugiados. As cenas caóticas das pessoas no aeroporto de Cabul em busca de uma maneira de deixar o país servem para ilustrar o desespero com que centenas de milhares de afegãos buscam asilo em outros países, o que pode causar tensões e desequilíbrios na região, especialmente para o Irã e países da Ásia Central.

Outra consequência, no campo geopolítico, será o aumento da presença chinesa no Afeganistão. A China, sempre é bom lembrar, faz fronteira com o Afeganistão, justamente na província de Xinjiang, berço do separatismo uigur e do grupo Movimento Islâmico do Turquestão Oriental, que já praticou dezenas de ações terroristas na China. Antevendo a ascensão do Taleban, o governo chinês já recebera suas lideranças. E deve trocar pesados investimentos econômicos no Afeganistão pela garantia de que o Taleban não apoiará grupos islâmicos uigures, garantindo tranquilidade nas suas fronteiras.

Ao retomar o controle do Afeganistão, o Taleban alimentou o mito da invencibilidade afegã, que tornou o país conhecido como “cemitério de impérios”. Afinal, os afegãos venceram Alexandre, o Grande, os britânicos por duas vezes no século 19 e os soviéticos no século 20. Certamente, agora, os taleban festejam a entrada dos norte-americanos nessa lista.




O que Sun Tzu tem a ensinar sobre a Guerra no Afeganistão?

A surpreendente ofensiva final do Talibã, que varreu o país em poucos dias, vencendo o Exército afegão praticamente sem luta, será exaustivamente estudada pelos principais exércitos do mundo, muito especialmente, pelos norte-americanos.

É evidente que neste momento os dados para uma análise fidedigna estão indisponíveis. Pode-se apenas inferir e especular sobre as causas do fracasso dos norte-americanos e do governo afegão de um lado, e de outro, a acachapante e vitoriosa ofensiva final talibã.

Apesar disso, para estudiosos de estratégia, história militar e operações militares, é irresistível fazer algumas conjecturas.

Resolvi fazer as minhas, tendo como referência os ensinamentos de Sun Tzu, em “A Arte da Guerra”. Escolhi cinco máximas do grande general chinês, escritas há 2500 anos, que podem ser aplicadas ao Afeganistão atual. Muitas outras poderiam ser encontradas no magistral livro. Convido o leitor a fazer esse exercício.

1. Logo na primeira frase do livro, Sun Tzu escreve algo que o presidente norte-americano Joe Biden certamente está sentindo na pele: “A guerra é de vital importância para o Estado. É uma questão de vida ou morte, uma estrada tanto para a segurança, quanto para a ruína. Portanto, é um tema de estudos que não pode ser negligenciado.” Ainda no primeiro, capítulo se lê: O general que perde a batalha faz apenas poucos cálculos de antemão. Assim, muitos cálculos levam à vitória e poucos cálculos, à derrota. As repercussões do fracasso no Afeganistão, embora evidentemente não ameacem a existência do Estado norte-americano, podem ser de vital importância para o projeto político de Joe Biden. Será que os estudos sobre as repercussões da retirada foram negligenciados? Será que foram feitos todos os cálculos necessários, ou seja, as possibilidades do Talibã foram corretamente confrontadas com as capacidades do exército afegão, no “jogo da guerra” que precede todas as decisões militares?

2. No segundo capítulo, um ensinamento valioso:se a campanha for prolongada, os recursos do Estado não serão proporcionais ao esforço. Assim, uma vitória rápida deve ser o principal objetivo. Se a duração da guerra for excessiva, o exército ficará fatigado e a moral, baixa. Líderes de países vizinhos despontarão para tirar vantagem tuas dificuldades. Em resumo, na guerra, faze com que teu grande objetivo seja a vitória, e não campanhas prolongadas. Os vinte anos de guerra cobraram um preço altíssimo, em recursos financeiros e, principalmente, em vítimas, em sua maioria, afegãos. Mas também norte-americanas e da OTAN. Fatigados pela guerra interminável, e sem alcançar a vitória, os EUA e a OTAN decidiram se retirar. A China e a Rússia, “os vizinhos” apontados por Sun Tzu, já correm para ocupar o vácuo deixado pela saída dos EUA e de seus aliados.

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Autor – Sun Tzu

3. “Lutar e vencer todas as batalhas não é a suprema vitória. A excelência suprema consiste em quebrar a resistência do inimigo sem lutar”, é um dos conselhos existentes no terceiro capítulo. De alguma maneira, que ainda será esclarecida, foi exatamente o que o Talibã conseguiu em sua fulminante ofensiva de cerca de dez dias para conquistar as principais cidades do Afeganistão. As tropas do governo foram vencidas sem lutar. Logo, os talibãs conseguiram atingir a “excelência suprema” descrita por Sun Tzu.

4. Também no terceiro capítulo está aquela que talvez seja a mais famosa passagem de A Arte da Guerra:Se conheceres o inimigo e a ti mesmo, não temas o resultado de cem batalhas. Se conheceres a ti mesmo, mas não ao inimigo, para cada vitória, também sofrerás uma derrota. Se não conheceres nem o inimigo, nem a ti mesmo, sucumbirás a todas as batalhas.” Esta é uma premissa básica. Conhecer possibilidades e limitações do seu exército, de seus aliados, e do inimigo. Incrivelmente, parece que os EUA desconheciam as reais possibilidades das tropas do governo afegão, que eles mesmos treinaram e armaram por duas décadas. Esta é uma falha tão inacreditável para uma Força Armada como a norte-americana que chego a duvidar que possa ter ocorrido. Então, resta a possibilidade de que as capacidades e limitações das tropas afegãs deixadas para enfrentar o Talibã não tenham sido informadas adequadamente aos níveis de comando. Também acho difícil que isso tenha ocorrido. Restam, portanto, duas opções: os comandantes militares sabiam e não informaram corretamente ao nível político ou, o nível político sabia e nada fez, jogando com a sorte. Certamente saberemos o que aconteceu quando a história dessa guerra for contada, nos próximos anos.

5. No capítulo 4, Sun Tzu ensina:Os bons guerreiros primeiro colocam-se além da possibilidade da derrota, então, aguardam pela oportunidade de derrotar o inimigo. Assegurarmo-nos de não sermos derrotados está em nossas mãos. Mas a oportunidade de derrotar o inimigo e dada por ele mesmo.” Essa lição parece ter sido executada com maestria pelo Talibã. Durante os vinte anos de permanência dos EUA no Afeganistão, o grupo de manteve, evitando a derrota final. Quando os EUA deram a oportunidade de agir, passaram à ofensiva com grande velocidade e determinação.




Vinte anos de guerra no Afeganistão

Em 11 de setembro de 2001, terroristas da Al Qaeda sequestraram quatro aviões comerciais e os lançaram contra as torres gêmeas do World Trade Center, em Nova York, e contra o Pentágono, em Washington. Uma das aeronaves caiu na Pensilvânia, sem chegar ao seu alvo, que era o prédio do congresso norte-americano. Cerca de três mil pessoas morreram nos ataques.

Em resposta, o governo norte-americano exigiu que o governo afegão, conduzido à época pelos talibãs, extraditasse Osama Bin Laden, o líder da Al Qaeda responsável pelos ataques. Ante a recusa dos talibãs, os EUA, apoiados por seus aliados britânicos, iniciaram a operação “Enduring Freedom”, bombardeando posições do Talibã e da Al Qaeda em território afegão. Por terra, elementos de forças especiais dos EUA apoiavam grupos contrários ao Talibã, em especial da chamada “Aliança do Norte”. Em 9 de dezembro, menos de três meses depois dos ataques aos EUA, o regime talibã foi deposto. Em 16 de dezembro, entretanto, Osama Bin Laden consegue escapar em direção ao Paquistão, fugindo do seu complexo de comando e controle localizado nas montanhas de Tora Bora.

Ainda em dezembro de 2001, em uma conferência realizada em Bonn, na Alemanha, as facções afegãs vitoriosas, em especial a Aliança do Norte, concordaram em estabelecer um governo interino, liderado por Hamid Karzai. Ao mesmo tempo, a ONU estabeleceu uma operação de paz para a segurança de Cabul.

Em 2002, os EUA, na sua estratégia de “Guerra ao terror”, voltam sua atenção ao Iraque de Saddam Hussein, apontado pelos EUA como uma grande ameaça à sua segurança.

Em 2003, ao mesmo tempo em que o presidente Bush declara que a missão “foi cumprida” no Iraque, o Secretário de Defesa norte-americano Donald Rumsfeld declara que os combates mais importantes no Afeganistão estão encerrados. O país mantém apenas 8 mil soldados no terreno e a OTAN substitui a ONU na missão de estabilização do Afeganistão.

Em 2004, após a aprovação de uma nova constituição, Karzai é eleito presidente da república na primeira eleição democrática da história do Afeganistão. Três semanas após as eleições, Osama Bin Laden reaparece para o mundo, em uma declaração em vídeo transmitida pela rede Al Jazeera, na qual zomba dos norte-americanos e assume a autoria dos ataques de 11 de setembro.

Em 2005, os presidentes Bush e Karzai assinam um acordo, firmando uma parceria estratégica, que permite que os EUA tenham acesso às instalações militares afegãs na luta contra “o terror e o extremismo”. Além disso, o país firma acordos para que os EUA possam treinar, equipar, modernizar e suprir as forças militares afegãs. No mesmo ano, 6 milhões de afegãos votam nas eleições legislativas, celebradas como um marco em direção à democratização do país.

Em 2006 a violência ressurge, com um grande aumento de ataques suicidas e detonações de explosivos a distância. Os países da OTAN divergem sobre a necessidade de se mandar mais tropas para o Afeganistão.

Em 2009, o presidente Obama, recém-eleito, reafirma a centralidade do Afeganistão na guerra contra o terror e anuncia o envio de mais 17 mil soldados para o país. No final daquele ano, ao lançar uma grande ofensiva contra o Talibã, as forças norte-americanas já contam com cerca de 60 mil militares.

Em 2010, em uma conferência em Lisboa, a OTAN decide estabelecer um plano de retirada do Afeganistão. O prazo-limite para a presença das tropas da Aliança é estabelecido como sendo o ano de 2014.

Em 1º de maio de 2011, Osama Bin Laden, o líder da Al Qaeda responsável pelos ataques de 11 de setembro, é morto no Paquistão por tropas norte-americanas. A morte do causador do envio de tropas ao Afeganistão alimenta um acalorado debate nos EUA sobre a continuação de uma guerra que já durava dez anos. Obama anuncia planos para retirar 33 mil soldados até o verão de 2012, mas há sérias dúvidas sobre a capacidade do governo afegão de manter o controle do país face a uma insurgência tão resiliente. O presidente norte-americano também anuncia estar mantendo “conversas preliminares de paz” com o Talibã.

Em março de 2012 o Talibã se retira das negociações, acusando os EUA de não cumprir promessas de trocas de prisioneiros. Ao mesmo tempo, diversos incidentes envolvendo militares norte-americanos, como a queima acidental de alcorões e acusações de assassinatos de aldeões golpeiam a credibilidade dos militares ocidentais perante a população afegã.

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Em 2013, as tropas afegãs assumem a responsabilidade pela segurança da maior parte do país, enquanto a OTAN se mantém responsável por 95 distritos. O Talibã abre uma representação no Catar, o que desagrada o presidente Karzai, que acredita que este movimento confere legitimidade ao Talibã. Em resposta, ele suspende as negociações com os EUA.

Em 2014, Obama anuncia a retirada da maioria das tropas norte-americanas do Afeganistão, que deveria acontecer até o final de 2016. Ashraf Ghani é eleito presidente, em substituição a Karzai, e assina um acordo de divisão de poder com seu principal oponente, Abdullah Abdullah.

Em 2017, o presidente Trump declara que, embora sua intenção inicial fosse recuar, manteria as tropas no país para evitar um “vácuo de poder”.

Em 2018, o Talibã aumenta a ousadia dos ataques terroristas a Cabul, matando 115 pessoas na capital. Os ataques acontecem enquanto o governo Trump implementa seu plano para o Afeganistão, destacando tropas para a zona rural do país e lançando ataques aéreos contra laboratórios de ópio para tentar dizimar as finanças do Talibã.

Em 2019, as negociações entre os EUA e o Talibã avançam, até que, em 2020, um acordo de paz é assinado. De um lado, os EUA assumem o compromisso de retirar todas as tropas, de outro, o Talibã se compromete a não permitir que o país seja usado por terroristas.  O acordo diz que as negociações intra-afegãs devem começar no mês seguinte, mas o presidente afegão, Ghani, diz que o Talibã deve atender às condições de seu governo antes de entrar em negociações.

Em 12 de setembro de 2020, pela primeira vez depois de quase 20 anos de guerra, representantes do governo afegão, do Talibã e da sociedade civil se encontram, em Doha, no Catar. As negociações ocorreram depois que o governo libertou 5 mil talibãs que estavam presos. Todos os lados disseram desejar restabelecer a paz no país após a retirada das forças norte-americanas. O governo afegão pressionou por um cessar-fogo, enquanto os talibãs exigiam o estabelecimento de um governo religioso islâmico.

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Autor – Mark Owen

Em 14 de abril de 2021, o presidente Biden anuncia a retirada completa das tropas até 11 de setembro, data que marca os 20 anos dos atentados de 2001.  “É hora de encerrar a guerra mais longa da América”, ele diz. A retirada acontecerá independentemente de haver progressos nas negociações de paz. As tropas da OTAN também abandonarão o país. Os EUA prometem continuar a “ajudar as forças de segurança afegãs e apoiar o processo de paz”.

Assim, os vinte anos de operações militares norte-americanas no Afeganistão estão prestes a se encerrar.

A maior parte do território afegão já está novamente sob o domínio do Talibã. Em três dias neste início de agosto, pelo menos três capitais de províncias também caíram sob o domínio do grupo. Muitas autoridades simplesmente abandonaram seus cargos e fugiram.

Muitos analistas consideram apenas uma questão de tempo até que o Talibã volte a dominar completamente o país. Essa parece ser também a opinião do governo chinês que, preocupado com a questão – não se pode esquecer que o Afeganistão faz fronteira com a China e que os asiáticos têm seus próprios problemas com o terrorismo islâmico na província de Xinjiang – já entabula suas próprias negociações com o Talibã, a despeito de ainda haver um governo em Cabul. O mulá Abdul Ghani Baradar, chefe do Comitê Político do Talibã, foi recebido pelo Ministro das Relações Exteriores da China, Wang Yi, na cidade chinesa de Tianjin.

Planejadores militares têm sempre em mente, ao iniciar uma operação, um objetivo político e uma “situação final desejada” a ser atingida ao término das operações militares. Vinte anos depois do início das operações que retiraram o Talibã do poder, o grupo está prestes a reavê-lo enquanto as tropas da OTAN e dos EUA estão completando sua retirada. É inescapável se constatar que a situação final alcançada é bastante diferente da situação final desejada no início da guerra.

Esse fracasso advém de múltiplas causas, que passam pela dificuldade tática de se enfrentar um inimigo perfeitamente adaptado ao terreno, ideologicamente comprometido com sua causa e decisivamente engajado nos combates. Também advém das consequências econômicas da crise de 2008, que tornaram os custos da guerra muito pesados para os contribuintes ocidentais. Podem também, de alguma forma, ser creditados à dificuldade dos próprios afegãos de compreenderem como benéficas as mudanças políticas introduzidas pelo Ocidente, que no final das contas, poucas melhorias trouxeram às suas condições de vida.

A saída dos EUA deixa um vácuo que provavelmente será preenchido pela China. Inicialmente, é provável que ela apoie fortemente a reconstrução do país por intermédio de investimentos econômicos, com objetivo de dar estabilidade ao regime e, com isso, tenha uma ferramenta para pressionar o regime a impedir qualquer apoio aos separatistas uigures de Xinjiang.  Em um segundo momento, embora não seja provável, caso ocorra algum recrudescimento nas atividades terroristas no interior da China, é possível que o país se engaje militarmente no Afeganistão, o que seria um passo inédito por parte dos chineses.

O Afeganistão é conhecido como “cemitério dos impérios”. A fama se deve aos reveses que Alexandre, o Grande, o Império Britânico por duas vezes no século 19 e os soviéticos, no século 20, colheram nas áridas montanhas do país. O retorno do Talibã ao poder, neste século, reforçará ainda mais o mito da invencibilidade dos afegãos diante dos grandes impérios da história.




A retirada das tropas dos EUA do Afeganistão

Os EUA se comprometeram, em acordo firmado com o grupo Talibã no ano passado, a retirar completamente suas tropas do Afeganistão. O prazo final acordado era hoje, 01 de maio de 2021. E as tropas permanecem por lá. Mas, antes de nos debruçarmos sobre esse acordo, vamos entender por que as tropas americanas estão há quase 20 anos no Afeganistão.

Os ataques de 11 de setembro de 2001 às torres gêmeas do World Trade Center e ao Pentágono vitimaram quase três mil pessoas, causando dor, revolta, perplexidade e raiva aos norte-americanos. Rapidamente, os EUA identificaram Osama Bin Laden, chefe da Al Qaeda, como sendo o responsável pelos atentados terroristas que mudariam a história.

Os EUA, superpotência econômica e militar dominante à época, iniciaram praticamente de imediato a chamada “Guerra ao Terror”, definindo o Afeganistão, território que dava abrigo à Al Qaeda, como primeiro teatro de operações.

Apenas 15 dias depois do atentado, em 26 de setembro, uma equipe da CIA se infiltrou clandestinamente no país e iniciou os contatos com a Aliança do Norte, um grupo contrário ao regime fundamentalista islâmico dos Talibãs, que governava o país. Iniciava-se o planejamento para derrubar o regime que havia se recusado a entregar Bin Laden aos norte-americanos. Em 7 de outubro, os EUA, com o apoio dos britânicos, desencadearam uma intensa campanha aérea de bombardeios à alvos militares no Afeganistão, desarticulando os campos de treinamento da Al Qaeda no país. Em 13 de novembro, a Aliança do Norte conquistava Cabul, a capital do país. Em 6 de dezembro, Kandahar, maior cidade do sul e sede espiritual do regime, também era conquistada pela Aliança do Norte. O regime Talibã havia sido apeado do poder, refugiando-se, juntamente com integrantes da Al Qaeda, nas regiões tribais do norte do Paquistão.

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Osama Bin Laden não havia sido encontrado, mas em abril de 2002, o presidente George Bush anunciava um “Plano Marshall” para o Afeganistão, com o investimento “substancial” de recursos para a reconstrução do país. Mas a atenção dos EUA havia se voltado para o Iraque, que seria invadido em março de 2003. Assim, entre 2001 e 2009, os EUA investiram pouco mais de 38 bilhões de dólares em ajuda humanitária e em apoio à reconstrução do Afeganistão. Mais da metade desse valor foi investida nas forças de segurança do país. A OTAN, representada por tropas de mais de 20 países, também enviou contingentes ao Afeganistão, em seu primeiro desdobramento fora da Europa.

Mas os enfrentamentos de baixa intensidade nunca cessaram. Em 2010, os EUA já tinham perdido mais de mil soldados na campanha. Britânicos, trezentos. Canadenses, cento e cinquenta. Baixas ocorreram ainda em todos os contingentes, o que foi tornando a presença no Afeganistão cada vez mais impopular nos países europeus e nos EUA.

Em 2009, o Presidente Obama assumiu o governo dos EUA e passou a dedicar mais atenção ao Afeganistão, enviando 17 mil soldados para se somarem aos já 36 mil norte-americanos e aos 32 mil de outras nações da OTAN, que já estavam no Afeganistão. Obama também trocou o comandante militar norte-americano, enviando o General  Stanley McChrystal, com a tarefa de modificar a estratégia militar da operação.

O novo comandante, em relatório enviado ao governo norte-americano, concluía que a guerra seria perdida em um ano se ele não recebesse um considerável reforço. Assim, os EUA decidem enviar mais 30 mil soldados ao Afeganistão.

Em junho de 2010, descontente com declarações de McChrystal à imprensa, Obama novamente troca o comandante, nomeando o General David Petraeus para o comando. Petraeus era conhecido no Exército como o arquiteto da doutrina de contrainsurgência em vigor à época.

Finalmente, em 02 de maio de 2011, quase dez anos após os atentados terroristas que deram origem à guerra, Bin Laden foi morto por uma equipe das Forças Especiais da Marinha dos EUA na cidade de Abbottabad, no Paquistão.

Em junho do mesmo ano, o presidente Obama anuncia um plano para a retirada de tropas do Afeganistão, que deveria ocorrer totalmente até 2014. A missão de combate da OTAN foi formalmente encerrada em dezembro daquele mesmo ano, mas as tropas norte-americanas continuariam no país para “treinar as tropas afegãs e fornecer apoio às operações contra o terror”. Ashraf Ghani, presidente eleito em 2014, iniciou conversações para a paz com o Talibã e outros grupos armados.

 

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Entre idas e vindas, que resultaram inclusive em um aumento dos efetivos militares norte-americanos no país em 2017, as conversações para a paz continuaram. Em dezembro de 2018, já na presidência de Trump, EUA, Arábia Saudita e Paquistão se reuniram com representantes do Talibã em Abu Dhabi. Alguns dias depois, os EUA anunciaram a retirada de mais uma significativa parcela de suas tropas. Até que, em 29 de fevereiro de 2020, EUA e Talibã anunciaram um acordo pelo qual os EUA se retirariam completamente em 14 meses. Por outro lado, o Talibã se comprometia a continuar as conversações de paz com o governo e a não permitir a operação da Al Qaeda ou do Estado Islâmico em território Afegão.

Este prazo se encerra exatamente hoje, dia 01 de maio de 2021. Entretanto, ainda há tropas norte-americanas no Afeganistão. O presidente Joe Biden já havia declarado que o prazo não seria cumprido, por razões de segurança, estabelecendo um novo prazo: 11 de setembro, exatamente 20 anos depois dos atentados que originaram a guerra.

O Talibã evidentemente não gostou do descumprimento do acordo, e já declarou que isto abriria o caminho para “ações que se julguem adequadas contra as tropas de ocupação”. As forças de segurança do país estão no mais elevado nível de alerta após o recrudescimento da violência nos últimos dias.

A retirada das tropas estrangeiras do Afeganistão exige um considerável esforço logístico para que seja feita com um adequado nível de segurança. Essa é a principal razão alegada pelos EUA para mais esse adiamento. Mas, depois de reiteradas promessas de retirada não serem cumpridas, é natural que exista certa desconfiança.

Não deixa de ser irônico que, 20 anos após o início da guerra, após dezenas de milhares de mortos entre as forças regulares afegãs e alguns milhares de vidas perdidas dentre as forças da coalizão, as negociações estejam sendo feitas com o Talibã, mesmo grupo que foi retirado do poder ainda em 2001. A sensação de fracasso é indisfarçável. E deixa uma lição para todos os envolvidos, acerca da grande dificuldade de se travar um combate dessa natureza.

Assim, apesar dos indícios indicarem que dessa vez há um firme propósito dos EUA em realmente encerrar a guerra, há uma grande incerteza sobre os destinos do Afeganistão, devastado por 20 anos de conflitos. É bastante provável que a China, país que inclusive faz fronteira com o Afeganistão, venha a ocupar o espaço deixado pelos EUA, como principal fiadora e financiadora da reconstrução do país. Afinal, para a China não interessa um vizinho instável, que possa oferecer abrigo aos grupos terroristas uigures da Região autônoma de Xinijiang. Vamos acompanhar.