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A crise entre Venezuela e Guiana está longe de ser um assunto encerrado

Em dezembro passado, a população venezuelana compareceu às urnas, para votar em um referendo promovido pelo governo de Nicolás Maduro. Como era esperado, votou de forma massiva na opção “Sim”, respondendo às perguntas sobre a incorporação da região da Guiana Essequiba à soberania da Venezuela.

A pretensão venezuelana sobre a região que se estende de sua atual fronteira com a Guiana para o leste, até o corte do rio Essequibo, remonta as origens coloniais dos dois países, havendo um consenso entre os venezuelanos acerca da legitimidade da pretensão do país de incorporar à sua soberania uma área que corresponde a cerca de 2/3 do território guianense – uma área comparável ao estado brasileiro do Ceará – rica em minérios, petróleo e diamantes.

Figura 1 – Região da Guiana Essequiba / Fonte – Stratfor (2015)

Não se trata, apenas, da porção terrestre do território. É do trecho do Mar do Caribe que defronta a região do Essequibo que a Guiana retira as riquezas petrolíferas que levaram o país a ter atualmente a economia que mais cresce no mundo, com uma taxa de aumento do PIB, em 2023, de cerca de 38%. Para se ter uma ideia do tamanho das riquezas, estima-se que a Guiana possa se tornar o quarto maior país produtor offshore do mundo em 2035, com uma média de 1,7 milhão de barris/dia – ultrapassando EUA, México e Noruega.

Essa riqueza toda, que vem sendo explorada por mais de uma dezena de companhias petrolíferas internacionais de grande porte, de norte-americanas a chinesas, certamente está entre as razões que levaram o regime autoritário venezuelano a reacender o debate sobre a posse da região do Essequibo.

Mas essa não parece ser a principal razão, ou mesmo a única. O presidente Maduro está pressionado pelas eleições presidenciais previstas para acontecer no segundo semestre de 2024, em um momento em que a oposição conseguiu se reunir em torno de uma candidata única, a liberal Maria Corina Machado que, entretanto, está impossibilitada de participar por decisão da mais ata corte judicial venezuelana. Ao propor o referendo, o governo conseguiu mudar de assunto, retirando o tema eleitoral da pauta de discussões e inserindo uma questão que unifica os venezuelanos em torno de uma causa nacionalista. Uma estratégia clássica, utilizada muitas vezes ao longo da história, por governantes em apuros.

A campanha do governo pelo voto “sim” encontrou nos militares venezuelanos um forte ponto de apoio. O General Vladimir Padrino Lopes, Vice-Presidente e Ministro da Defesa, esteve onipresente nas mídias sociais e na imprensa defendendo a causa. Às vésperas do referendo, tropas foram acionadas para participar de operações militares e adestramentos, entoando gritos de guerra e músicas que reafirmam a posse venezuelana da região contestada, tudo com o claro propósito de transmitir à população venezuelana e à opinião pública internacional a mensagem de que o país possui capacidade militar para empurrar, manu militari, a linha de fronteira até o rio Essequibo.

Desde o conflito entre Equador e Peru, na década de 1990, a América do Sul tem se mantido livre de confrontos militares entre Estados nacionais. Assim, uma operação militar de conquista de território, em plena América do Sul, parece impensável. Mas, a irrazoabilidade de uma aventura militar se assenta em premissas de respeito ao direito internacional que talvez não estejam em alta conta em Caracas.

Passada a votação, a governo venezuelano diminuiu a intensidade do discurso nacionalista. Em uma reunião na ilha de São Vicente e Granadina, pequeno país insular do Caribe que desempenha a função de presidente temporário da Comunidade de Estados Latino-Americanos e do Caribe (CELAC), os presidentes Nicolás Maduro e Irfaan Ali se comprometeram a não usar a força um contra o outro, acordando em resolver as disputas territoriais entre Venezuela e Guiana com base no direito internacional. Não houve nenhum acordo acerca da disputa propriamente dita, mas uma nova reunião entre os dois ficou agendada para ocorrer em três meses, no Brasil.

A disputa atrai para a América do Sul a atenção de potências extrarregionais, por motivos geopolíticos e econômicos.

Estados Unidos e Reino Unido fizeram movimentos militares discretos, mas suficientes para transmitir uma mensagem clara à Venezuela de que estão atentos à questão. No dia 7 de dezembro, poucos dias após o referendo, o Comando Sul das forças armadas norte-americanas divulgou a realização de “exercícios aéreos conjuntos” com a Guiana. O Reino Unido, por sua vez, enviou um de seus navios de patrulha oceânica, o HMS Trent, para a região do litoral da Guiana. O navio inclusive recebeu a bordo, no dia 29 de dezembro o Chefe do Estado-Maior de Defesa das forças armadas da Guiana, brigadeiro Omar Khan[1]. A presença do navio britânico no mar que a Venezuela considera estar em litígio reacendeu a retórica nacionalista venezuelana e provocou uma reação do presidente Maduro, que determinou que cerca de 5.600 militares fossem mobilizados em exercícios conjuntos de suas forças armadas, na região de seu litoral.

Figura 2 – Brigadeiro Omar Khan sendo recebido no HMS Trent / Fonte – Conta @HMSTrent na rede social “X”

A Rússia, um importante fornecedor de materiais e sistemas de Defesa para a Venezuela, vem mantendo um perfil discreto em relação à questão. O Ministério das Relações Exteriores do país se pronunciou por intermédio de uma nota curta[2], instando os dois países a resolverem a questão por vias pacíficas e se opondo à intervenção de terceiros países. Uma viagem do presidente Maduro à Rússia, que estava prevista para acontecer em dezembro, acabou por ser adiada.

No que concerne aos interesses econômicos envolvidos, é bom lembrar que há companhias petrolíferas norte-americanas, canadenses, catari, chinesa, inglesa, francesa e espanhola explorando os recursos energéticos no litoral guianense. Certamente as potências envolvidas estão atentas aos acontecimentos, e atuarão, se necessário, na defesa das empresas de seus países.

Assim, fica claro que referendo deu ao presidente Maduro a oportunidade de reacender a questão. O território já foi acrescentado aos mapas oficiais do país o general Alexis José Rodríguez Cabello foi designado pelo presidente venezuelano como “governante único” da Guiana Essequiba. É de se esperar que o regime venezuelano reacenda a questão de forma artificial, criando incidentes esporádicos, de forma a manter o assunto em pauta, especialmente quando as eleições presidenciais – que ainda não possuem data marcada – se aproximarem.

Figura 3 – Mapa venezuelano incorporando a região do Essequibo / Fonte – Governo da Venezuela

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[1] https://x.com/HMSTrent/status/1740870713219715281?s=20

[2] https://mid.ru/en/foreign_policy/news/1919851/




Por uma verdadeira integração sul-americana

Os líderes dos países sul-americanos estiveram em Brasília para uma reunião convocada pelo governo brasileiro. A cooperação e a integração regionais foram os assuntos discutidos. O documento divulgado após o encontro, de nove parágrafos, anuncia apenas uma decisão: a de estabelecer um grupo de contato, liderado pelos chanceleres, para avaliação das experiências dos mecanismos sul-americanos de integração e a elaboração de um “mapa do caminho” para a integração da América do Sul.

A necessidade de integração sul-americana está muito longe de ser uma questão nova. Aliás, o próprio nome dessa porção da Terra, “América do Sul”, já advém de uma tentativa de superar conceitos impostos de fora para dentro da região, como os norte-americanos “Hemisfério Ocidental”, ou “pan-americanismo”, inspiradores da Organização dos Estados Americanos (OEA), da Doutrina Monroe ou do Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (Tiar); ou como o conceito francês de “América Latina”, criado para tentar estabelecer um vínculo que integrasse a França às suas possessões e colônias nas Américas.

Geopolíticos brasileiros do século 20 dedicaram grande parte de suas obras ao estudo da integração sul-americana, considerada por eles uma necessidade imperativa para os interesses brasileiros. Os generais Mário Travassos e Carlos de Meira Mattos são dois importantes exemplos.

Mário Travassos, no livro Projeção Continental do Brasil, de 1935, identifica de início dois fatores geradores de antagonismos, logo, de afastamento ou de desunião dos países da América do Sul. O primeiro é a oposição das duas vertentes continentais, separadas pela Cordilheira dos Andes, que afasta os Estados voltados para o Atlântico dos Estados voltados para o Pacífico, “de costas”, portanto, uns para os outros. O segundo é o representado pelas duas principais bacias hidrográficas da vertente do Atlântico, a separar os Estados amazônicos dos platinos. A superação dos efeitos dissociadores desses antagonismos geográficos exigiria, na visão de Travassos, ainda na década de 1930, a construção de uma adequada infraestrutura de transportes e comunicações que integrasse o continente sul-americano. Somente assim, nas palavras de Travassos, o Brasil exprimiria sua “imensa projeção coordenadora” no cenário político e econômico sul-americano.

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Meira Mattos, já na segunda metade do século 20, desenvolveu seu pensamento geopolítico a partir dos fundamentos de Travassos, de quem se considerava discípulo. Embora ele ampliasse o foco sul-americano de Travassos, almejando uma projeção global para o Brasil, as preocupações com a integração do subcontinente permearam toda a sua obra. Em artigo publicado em 2004, já aos 91 anos, ele escreveu que uma geopolítica de integração dos países da região “não se consolidará apenas com os empenhos de uma vigorosa vontade política e de uma diplomacia esclarecida e dinâmica. É mister estruturar essa integração”. Para isso, Meira Mattos já indicava a necessidade de integrar os três acordos de integração regionais então existentes: Mercosul, Pacto Andino (hoje Comunidade Andina de Nações) e Pacto Pan-Amazônico (hoje Organização do Tratado de Cooperação Amazônica – Otca). O general concluía com uma crítica: “Está faltando um impulso diplomático unificador que os reveja, amplie seus objetivos, articulando-os e os dotando de mecanismos de incentivo econômico de interesse comum”.

No ano 2000 ocorreu a 1.ª Reunião de Presidentes da América do Sul, oportunidade em que se inaugurou a chamada Integração da Infraestrutura Regional da América do Sul (Iirsa), que, entretanto, pouco conseguiu avançar na resolução efetiva dos problemas de infraestrutura da região. É incrível – e sintomático das dificuldades de integração – que somente no alvorecer do século 21 tenha ocorrido uma primeira reunião de mandatários sul-americanos.

A União das Nações Sul-americanas (Unasul), criada em 2008, foi mais uma tentativa de integração. Ela chegou a contar com os 12 países do subcontinente, tendo, inclusive, absorvido a Iirsa. Mas a falta de consenso e as disputas ideológicas decorrentes da natural alternância de diferentes partidos no poder nos vários países sul-americanos, além da falta de pragmatismo na busca de uma verdadeira integração, infelizmente, levaram à desintegração da organização.

Ressuscitar a Unasul é, hoje, um objetivo da política externa brasileira. A integração foi tratada na reunião do dia 30 de maio passado. A ideia, entretanto, ainda não convenceu os demais parceiros, tanto que o tema não figurou na declaração final do encontro. Seria importante que a ideia vingasse. Mas, mais importante ainda, que os erros do passado fossem superados, de forma que a integração se desse em torno de objetivos estratégicos bem definidos, com foco no benefício mútuo, e não em torno de posições políticas que mudam com as trocas de governo, solapando a integração sonhada já há muitos anos, mas, infelizmente, nunca efetivada de forma adequada.

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