As mudanças climáticas e a disputa pelo Ártico
As mudanças climáticas causam grande apreensão nos pequenos países insulares que, devido à elevação dos níveis dos oceanos, veem seus territórios diminuírem aceleradamente, ao mesmo tempo em que a água potável se torna cada vez mais escassa[1]. Essa grave realidade por um lado se apresenta como uma ameaça à própria existência daqueles Estados, por outro, não mobiliza as grandes potências globais para além de discursos e declarações de boas intenções, ou ajudas econômicas pontuais.
No Ártico, entretanto, as mudanças climáticas vem ensejando uma série de movimentos das grandes potências, em especial Rússia, China e Estados Unidos, que correm para se posicionar de forma vantajosa na competição pela exploração dos recursos minerais e rotas comerciais que surgem em razão da diminuição do gelo e da neve no Oceano Glacial Ártico.
Oceano Ártico
A Rússia naturalmente parte na frente. O litoral ártico do país é de mais de 24 mil quilômetros. Apenas para que se possa ter uma ideia dessa dimensão, trata-se de uma extensão maior do que o triplo do litoral atlântico do Brasil. Para tentar explorar comercialmente essa vantagem, os russos inauguraram, em 1935, de forma regular, a chamada Rota Norte, em que os navios trafegavam do Oceano Atlântico para o Pacífico, e vice-versa, costeando o litoral ártico russo. A rota encurtava em milhares de milhas náuticas o caminho entre a Europa Ocidental e os portos japoneses e chineses, tradicionalmente feita pelo sul da África e pelo canal de Suez. Mas, o gelo e as condições muito difíceis de navegação aumentavam muito os riscos de transporte e a rota funcionava quase exclusivamente entre os meses de agosto e outubro de cada ano.
O colapso da União Soviética, ao qual se seguiu uma grave crise econômica na Rússia, fez com que a Rota fosse praticamente abandonada. Somente a partir da segunda década deste século, a rota voltou a ser explorada pelos russos. Contribuíram para isso o desenvolvimento de modernas ferramentas de apoio à navegação, que aumentaram em muito a segurança da rota, navios quebra-gelo mais modernos, inclusive com propulsão nuclear e, sobretudo, o aquecimento das águas do Oceano Ártico, que passou a ser navegável em uma área cada vez maior e por um período mais largo a cada ano até que, em fevereiro de 2021, um grande navio comercial de carga completou a rota em pleno inverno. Em 2020, cerca de 33 milhões de toneladas de carga foram transportadas pela Rota Norte, quase seis vezes mais do que em 2015. Os russos pretendem aumentar esse volume para 80 milhões de toneladas até 2024 e 130 milhões até 2035.
Comparação entre a Rota Norte (vermelho) e a Rota por Suez (Azul)
Mas a exploração da Rota Norte não é o único interesse econômico no Ártico. Estima-se que a região contenha reservas de 90 bilhões de barris de petróleo e cerca de 1/5 de todo o gás natural do planeta, além de metais preciosos e terras-raras, essas últimas usadas na produção de equipamentos de alta tecnologia.
No campo militar, os russos têm aumentado significativamente sua presença e os exercícios militares na região. Em março de 2021, três submarinos russos quebraram simultaneamente o gelo perto do Polo Norte. Os submarinos logo se juntaram a duas aeronaves MiG-31 e tropas terrestres que participavam do Umka-2021[2] , um exercício militar russo.
Tudo isso atrai a atenção não só de russos e canadenses, os dois maiores países árticos, mas também de norte-americanos que, pelo Alaska, também fazem parte do clube, além de dinamarqueses, islandeses, noruegueses, finlandeses, suecos e… chineses.
Em janeiro de 2018, a China divulgou sua “Política para o Ártico”[3]. Nela, a China afirma que a região tem uma importância estratégica e econômica global, tendo uma “influência vital nos interesses de Estados de fora da região e na comunidade internacional como um todo, bem como na sobrevivência, no desenvolvimento e no futuro compartilhado de toda a humanidade”.
No documento, os chineses reconhecem que seu país, por não ser um “Estado Ártico”, não possui soberania territorial na região. Lembram, entretanto, que de acordo com tratados internacionais todos os países têm direitos em relação à pesquisa científica, navegação, sobrevoo, pesca, colocação de cabos submarinos e oleodutos no alto mar e outras áreas marítimas relevantes no Ártico, além de direitos de exploração e aproveitamento de recursos na área.
A China propõe o estabelecimento de uma “Rota da Seda Polar”, que se integraria aos projetos da Iniciativa Belt and Road de financiamento de obras de infraestrutura de transportes, além de manifestar interesse em participar das rotas marítimas, da exploração dos recursos minerais, participar da pesca na região, do turismo e da própria governança do Ártico.
Em 2019, um ano após os chineses divulgarem sua política, foi a vez do Departamento de Defesa dos EUA divulgar sua Estratégia para o Ártico[4]. O documento identifica na crescente competição estratégica com China e Rússia, o principal desafio à segurança e à prosperidade dos EUA. O país demonstra como principais preocupações dissuadir qualquer ataque militar aos EUA vindo da região ártica e impedir que a China ou a Rússia tornem-se hegemônicas na região, impondo suas regras à comunidade internacional no que se refere ao Ártico.
Em complemento ao documento do Departamento de Defesa, Exército[5], Marinha[6] e Força Aérea[7] elaboraram suas próprias estratégias. O exército, por exemplo, divulgou em janeiro de 2021 o documento Regaining Artic Dominance no qual apresenta uma série de medidas para “mobiliar com pessoal, treinar, equipar, e organizar suas forças para vencer no Ártico.” Dentre essas medidas, está o desdobramento de uma “Força Tarefa Multidomínio”, de valor Divisão de Exército, com cerca de 15 mil soldados, no Alaska, como forma de reorganizar suas forças dedicadas especificamente àquela região.
A competição estratégica que tem se intensificado nos últimos anos entre EUA, Rússia e China é travada em diferentes campos, desde o econômico até o militar, mas também no científico/tecnológico, espacial, cibernético ou mesmo no cultural, na busca pela conquista da simpatia e da liderança, tentando atrair os demais membros da comunidade internacional para sua esfera de influência.
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A disputa ocorre com maior ou menor intensidade em diversas regiões do globo, como Ucrânia, Taiwan, Mar do Sul da China ou Oriente Médio. Nesse grande jogo, Rússia e China tem estado normalmente do mesmo lado, quer como parceiros declarados, quer ocupando uma posição de neutralidade que seja benéfica a ambos. Sempre, porém, antagonizando os EUA.
Entretanto, no caso do Ártico, é bastante provável que os interesses russos e chineses sejam divergentes e que esses atores caminhem de forma independente na busca de salvaguardar seus próprios interesses. Nesse caso, as mudanças climáticas responsáveis pelo derretimento da calota polar ártica terão disparado o gatilho de uma acirrada disputa geopolítica entre as três maiores potências militares do planeta.
[1] Veja o caso emblemático de Tuvalu, em reportagem da BBC – https://www.bbc.com/portuguese/internacional-59480079
[2] Saiba mais em https://www.navalnews.com/naval-news/2021/04/arctic-exercise-umka-2021-shows-russian-ssbn-can-deliver-massive-strike/
[3] Disponível em http://english.www.gov.cn/archive/white_paper/2018/01/26/content_281476026660336.htm
[4] Disponível em https://media.defense.gov/2019/Jun/06/2002141657/-1/-1/1/2019-DOD-ARCTIC-STRATEGY.PDF
[5] Disponível em https://api.army.mil/e2/c/downloads/2021/03/15/9944046e/regaining-arctic-dominance-us-army-in-the-arctic-19-january-2021-unclassified.pdf
[6] Disponível em https://media.defense.gov/2021/Jan/05/2002560338/-1/-1/0/ARCTIC%20BLUEPRINT%202021%20FINAL.PDF/ARCTIC%20BLUEPRINT%202021%20FINAL.PDF
[7] Disponível em https://www.af.mil/Portals/1/documents/2020SAF/July/ArcticStrategy.pdf