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Cáucaso em Transformação: Nagorno-Karabakh e suas Implicações Regionais

Em apenas dois dias, com rápidos movimentos de tropas apoiadas por fogos de artilharia, o exército do Azerbaijão retomou o controle sobre toda a região de Nagorno-Karabakh, forçando as lideranças da minoria armênia que controlavam aquele enclave montanhoso, localizado entre os territórios da Armênia e do Azerbaijão, a se renderem. Os azerbaijanos reconquistaram, assim, uma grande porção de territórios, que embora internacionalmente fossem reconhecidos como pertencentes ao Azerbaijão, na prática eram uma região autônoma mantida pelos separatistas, com apoio militar armênio, há cerca de três décadas, desde as guerras que se seguiram ao esfacelamento da antiga União Soviética.

Em 2020, foi travada uma guerra de seis semanas em que o Azerbaijão, fortemente apoiado pela Turquia, derrotou uma Armênia que reclamou não ter recebido o apoio que esperava de seus aliados russos. Como resultado, os azeris reconquistaram porções importantes do enclave, derrotando as forças separatistas e armênias, o que lhes permitiu cercar completamente a região.

As posições operacionalmente vantajosas conquistadas em 2020 permitiram que o Azerbaijão estrangulasse o fluxo logístico para Nagorno-Karabakh, em um cerco que se intensificou no final do ano passado e causou uma grave crise humanitária. O chamado “corredor Lachin”, por onde passa a principal via de transporte que liga o enclave à Armênia, e por intermédio dessa, ao resto do mundo, passou a ser rigorosamente controlado pelas tropas azerbaijanas, causando uma grave escassez de alimentos, medicamentos, produtos de higiene e combustível, o que redundou em uma grave crise humanitária na região.

Figura 1 – Corredor Lachin

Fonte – BBC

É importante destacar que o cessar-fogo de 2020, mediado pela Rússia, e cujo acordo estabeleceu a permanência de forças russas na região, como uma espécie de “tropas de paz”, estabelecia que era das forças russas a responsabilidade pelo controle do tráfego no corredor Lachin. Entretanto, os russos foram incapazes de impedir que o exército do Azerbaijão assumisse esse controle.

Esse é também um indício de que, para fazer valer sua vontade e reconquistar Nagorno-Karabakh em uma operação de apenas 48 horas, os azerbaijanos souberam escolher um momento que lhes favorecia. A guerra na Ucrânia atrai todos os esforços e atenções da Rússia. Assim, a “tropa de manutenção da paz” daquele país, que tinha por finalidade garantir o cessar-fogo acordado sob sua liderança após a guerra de 2020, foi incapaz de qualquer ação que impedisse a ofensiva do Azerbaijão. Houve, inclusive, baixas fatais dentre os militares russos que foram surpreendidos pelo fogo cruzado durante a ofensiva.

A incapacidade da Rússia de impedir a ofensiva do Azerbaijão também pode ser considerada um indicador do declínio da influência russa no sul do Cáucaso. Afinal, a mediação da questão entre a Armênia e o Azerbaijão concedia aos russos uma posição de relevância geopolítica, que eles perdem com o desenlace da crise.

As consequências políticas dos acontecimentos também estão sendo fortemente sentidas em Yerevan, capital da Armênia. Centenas de manifestantes saíram às ruas, furiosos com o governo, em especial com o primeiro-ministro Nikol Pashinyan, acusado de trair os habitantes de etnia armênia de Arstakh, o nome pelo qual Nagorno-Karabakh é conhecido naquele país. Embora o presidente do Azerbaijão, Ilham Aliyev, tenha afirmado que os direitos dos habitantes da etnia armênia seriam garantidos, dadas as circunstâncias históricas, muitas dessas pessoas se opõem veementemente a ficar sob governo azerbaijano, o que cria mais um problema humanitário com os deslocados pela guerra. A solução mais óbvia para essas pessoas deverá ser fugir para a Armênia. Não se descarta o agravamento da crise política naquele país, inclusive com a queda do governo de Pashinyan.

Outros dois países da região têm interesse nos acontecimentos de Nagorno-Karabakh: Turquia e Irã. Os turcos comemoram o resultado do Azerbaijão, um aliado histórico. O lema “dois países, uma nação”, enfatizado pelo presidente da Turquia, Recep Erdogan, é anterior ao seu mandato, e relembra a origem étnica comum das duas nações. Além de acordos na área militar, também são importantes as relações econômicas entre os dois parceiros. Um aspecto muito relevante dessa relação é o energético. O Azerbaijão é o maior fornecedor de gás natural para a Turquia. Os dois países operam em conjunto o gasoduto Transanatólio, que leva gás do Azerbaijão para a Europa via Turquia. Há planos para expansão da rede de gasodutos, incluindo uma iniciativa de trazer gás do Turcomenistão, aproveitando a necessidade de gás europeia, que aumentou muito em razão da guerra na Ucrânia e dos consequentes embargos europeus ao gás russo.

Figura 2 – Gasodutos

Fonte JAM News

O Irã, por sua vez, que possui uma rivalidade histórica com o Azerbaijão, tem visto com grande desconfiança o estreitamento das relações entre aquele país e Israel. Por outro lado, a crescente influência turca no sul do Cáucaso também preocupa os iranianos. É provável que o país tente salvaguardar seus interesses geopolíticos na região com uma postura ainda mais assertiva.

Como se vê, o sul do Cáucaso vive um momento de mudanças geopolíticas. E, como a história ensina, muitas vezes esses momentos são acompanhados por enorme turbulência.

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FIM DA GUERRA (por enquanto) EM NAGORNO KARABAKH

Armênia e Azerbaijão assinaram, no último dia 10 de novembro, um acordo para cessar as ações militares e pôr fim a este capítulo do conflito que envolve os dois países já há duas décadas.

Com a intermediação do presidente russo Vladimir Putin, o Primeiro-Ministro da Armênia, Nikol Pashinyan, e o Presidente do Azerbaijão, Ilham Aliyev, concordaram em congelar a situação tal como ela se encontrava no dia 10 de novembro; ou seja, os avanços de tropas cessariam e a posse das regiões de Nagorno-Karabakh passariam a ser das tropas que controlassem o território naquela data.

Além disso, ficou acordado que os armênios deverão se retirar de sete províncias em território azerbaijano, as quais estavam controladas pelos armênios desde a guerra de 1991-94, e que tropas russas – em torno de dois mil homens – seriam desdobradas na região para separar os lados em conflito e garantir os termos do acordo.

O mapa abaixo facilita o entendimento do tratado.

Mapa adaptado pelo autor com base no existente em https://www.dhakatribune.com/

 

Em verde, no mapa, pode-se observar a área retomada pelas forças do Azerbaijão, que em uma manobra estratégica de flanco, pelo o Sul, conseguiram conquistar a cidade de Shusha, importantíssima do ponto de vista estratégico, uma vez que domina o corredor de Lachin, por onde os armênios abasteciam Nagorno-Karabakh com toda a sorte de suprimentos. Ao Norte, em terreno montanhoso e de progressão muito mais difícil, os ganhos territoriais azerbaijanos foram muito menores.

Foi uma vitória militar do Azerbaijão, sem dúvidas. Mas não uma vitória completa, visto que 2/3 do território de Nagorno-Karabakh permanecem sob controle da minoria armênia. Por alguma razão ainda não totalmente clara, os azerbaijanos não prosseguiram para a conquista da cidade de Stepankert, mais importante de toda a região, a apenas 11 quilômetros de Shusha. Certamente, esse prosseguimento estava no planejamento operacional, porque seria o natural objetivo para o aproveitamento do êxito decorrente da conquista de Shusha. Especula-se que a derrubada acidental, pela artilharia antiaérea do Azerbaijão, de um helicóptero russo sobre território armênio, no mesmo dia da conquista de Shusha, com a morte da tripulação, tenha desencadeado uma resposta mais assertiva dos russos no sentido de que poderiam entrar ao lado da Armênia se o conflito não fosse imediatamente interrompido.

De qualquer forma, o Azerbaijão comemora uma vitória pelas armas, que resulta no retorno à sua soberania de áreas de seu território perdidas na guerra de 1991/94 e que, por quase trinta anos, tentou recuperar por vias diplomáticas, sem sucesso. Isso aconteceu, em grande parte, por uma conjunção de fatores.

O primeiro deles foi o apoio decisivo da Turquia, tanto em recursos materiais quanto diplomáticos. Além disso, suspeita-se do envio pelos turcos de combatentes, recrutados na Síria para lutar ao lado das tropas azeris.

O segundo aspecto foi a neutralidade russa. A Armênia sempre contou com o apoio russo, com quem possui um acordo militar de segurança mútua, para dissuadir o Azerbaijão de uma aventura militar. Entretanto, desde que o Primeiro-Ministro Nikol Pashinyan assumiu o governo da Armênia, em 2018, o país adotou uma postura pró-ocidente, de aproximação da Europa, que contrariou os interesses russos. A neutralidade foi uma maneira bastante clara de a Rússia manifestar sua insatisfação.

O terceiro aspecto foi a inação dos EUA e da Europa. Enquanto os norte-americanos estavam totalmente concentrados em seu processo político interno de eleições presidenciais, os europeus mantinham-se completamente incapazes de atuar como um bloco coeso e permaneceram hesitantes em intrometer-se em problemas na área de influência russa.

Dada a conjunção de fatores acima, o Azerbaijão se sentiu à vontade para atuar militarmente, colocando em prática a máxima clausewitzniana de que a guerra é a continuação da política por outros meios.

Mas essa guerra travada no Cáucaso serve de alerta para uma realidade que poderá ser observada em outras partes do mundo. A emergência de uma ordem global multipolar, ao mesmo tempo em que há um enfraquecimento dos organismos multilaterais, multiplica os riscos de conflitos. Novas potências globais ou mesmo potências regionais em ascensão passam a ter seus interesses político-ideológicos, militares e econômicos ampliados e encontram a liberdade para agir que antes lhes era negada pelos freios que eram impostos pelas potências hegemônicas ou pelos organismos internacionais.

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Assim, é possível se observar interesses dos EUA e da China colidirem na Ásia, na África e mesmo na América do Sul. Disputas também ocorrem entre turcos e russos no Cáucaso, na Síria e na Líbia. Diversos outros exemplos podem ser encontrados em outros locais, com outros atores, como na região da Caxemira, do Mar do Sul da China, Península da Coreia, Mar da China Oriental, Norte da África, Oriente Médio, Região do Magreb africano, Leste Europeu, Norte da América do Sul e Caribe, e Chifre da África, dentre outros.

Como se vê, a ordem multipolar que caracteriza o início do século 21 é notadamente mais instável e fomentadora de disputas. Por isso mesmo, ela exige o aperfeiçoamento de instâncias internacionais capazes de resolver pacificamente as controvérsias entre diferentes Estados e povos. No conflito de Nagorno-Karabakh tais instâncias falharam completamente.

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GUERRA NO CÁUCASO

Azerbaijão e Armênia estão em guerra. O conflito de alta intensidade explodiu há seis dias, mas na verdade trata-se da continuidade de uma disputa que tem suas origens na independência dos países da antiga União Soviética, no final dos anos 1980.

Para entender as causas da guerra, suas repercussões regionais e possíveis desdobramentos, é fundamental entender o contexto político, histórico e geográfico das duas partes em conflito.

O Cáucaso é a área geográfica que divide a Europa oriental da Ásia. Trata-se de uma faixa de terra espremida entre o Mar Negro, à Oeste e o Mar Cáspio, a Leste. Seu nome é emprestado da grande cordilheira que atravessa toda a região, de leste para oeste, separando a Rússia, ao Norte, da Georgia e do Azerbaijão, ao Sul.

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Cáucaso. Fonte – http://www.asia-turismo.com/mapas/caucaso-mapa.htm

 

Na região, existem três países independentes: Geórgia, Armênia e Azerbaijão. Os dois primeiros são considerados, normalmente, europeus, enquanto o último normalmente é vinculado ao continente asiático. Além dos três países, as partes vizinhas mais próximas de Rússia, Turquia e Irã também podem ser consideradas como parte do Cáucaso.

Armênia, Azerbaijão e Geórgia eram repúblicas da antiga União Soviética (URSS). A independência desses países ocorreu no final da década de 1980, durante o processo de esfacelamento soviético. Após a independência, o impasse sobre a região de Nagorno-Karabakh explodiu. O enclave tem sua população majoritariamente armênia mas localiza-se em território reconhecido internacionalmente como sendo azerbaijano. Esta é uma situação herdada do tempo em que toda aquela área era URSS, quando o governo central entregou o enclave ao Azerbaijão.

O descontentamento da maior parte dos moradores da região, que não se consideram azerbaijanos, levou ao conflito, travado entre 1988 e 1994 e que foi interrompido com um saldo de 30 mil mortes, por meio de um acordo de cessar-fogo que não resolveu politicamente a questão. Desde então diversas escaramuças fronteiriças vêm ocorrendo, com o Azerbaijão tentando retomar o controle sobre o autodeclarado (mas que não reconhecido por nenhum país, nem mesmo a Armênia) Estado de Nagorno-Karabakh.

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Conflito em Nagorno Karabakh. Fonte – BBC

 

Dessa forma, há cerca de uma semana, o conflito ressurgiu, desta vez com alta intensidade. As imagens divulgadas por todas as mídias mostram colunas de blindados, artilharia, aviação, sistemas de aeronaves remotamente pilotadas (SARP), enfim, o pleno emprego dos meios militares à disposição das partes em conflito. Como em qualquer guerra, como já disse Clausewitz, “as notícias que nos chegam da guerra são quase sempre contraditórias, na maior parte, também falsas. As mais numerosas são em grande quantidade sofrivelmente suspeitas.” Assim, no calor do momento e entre as campanhas de desinformação e de operações psicológicas de ambos os lados, o mundo vai tomando conhecimento das operações militares no terreno. Entretanto, pelo que se pode vislumbrar através da bruma da guerra, e em uma avaliação bastante preliminar, o emprego dos SARP e o apoio decisivo dos turcos aos azerbaijanos talvez desequilibre o poder de combate em favor dos últimos.

As potências regionais e globais vão se alinhando às partes em conflito, sempre na defesa de seus próprios interesses. A Turquia e a Rússia são os principais atores externos envolvidos e, mais uma vez, assim como na Líbia e na Síria, estão em lados opostos. Os turcos apoiam abertamente os azerbaijanos, com quem possuem grande identificação histórica, linguística e cultural. Mas também há fortes interesses econômicos. O Azerbaijão é parceiro da Turquia na operação do gasoduto Transanatoliano, uma alternativa de fornecimento energético que reduz a dependência turca em relação ao gás russo.

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Gasoduto TANAP. Fonte – https://www.researchgate.net/figure/The-TANAP-TAP-and-Nabucco-pipelines_fig1_322927029

 

Já os russos, que integram juntamente com Bielorrússia, Cazaquistão, Quirguistão e Tadjiquistão uma aliança militar com a Armênia, a Organização do Tratado de Segurança Coletiva (OTSC), e já têm problemas na Líbia, Síria, Ucrânia e Bielorrússia, não parecem muito dispostos a se engajar decisivamente em um conflito no Cáucaso.

Assim, vê-se que a resposta calculada da Rússia frustra a Armênia, cuja solicitação formal de apoio militar à OTSC não foi atendida até o momento, em contraste com o decisivo apoio turco aos Azerbaijanos.

Os EUA, completamente concentrados em suas questões internas e nas eleições presidenciais, não passaram de exortações protocolares pela paz. A Europa, com o presidente Macron à frente, assim como as Nações Unidas, também fizeram declarações em favor da paz que não alcançaram qualquer resultado prático.

Assim, parece que a solução do conflito dependerá de as partes envolvidas chegarem a um acordo, ou da ação da Turquia e Rússia. Mais exatamente de até onde os russos tolerarão a expansão da influência turca, também naquela região.

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