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A era dos carros de combate – como prova a guerra na Ucrânia – ainda não acabou

 

1. Introdução

As imagens da guerra atualmente em curso na Ucrânia, de carros de combate (CC) destruídos por armas anticarro e por “drones camicases”, divulgadas à exaustão na imprensa e nas mídias sociais, criaram no grande público, pouco afeito às táticas, técnicas e procedimentos do combate blindado, a impressão de que os CC tinham se tornado alvos fáceis, e por isso mesmo, obsoletos. Dessa forma, estavam dadas as condições para que analistas apressados e normalmente com pouco conhecimento de causa decretassem a “morte dos carros de combate”.

Não foi a primeira vez que isso aconteceu. Ao fim da Primeira Guerra Mundial, autoridades de defesa britânicas anunciaram que o carro de combate estaria morto ou morrendo, e que os CC nunca mais seriam usados. Os britânicos dissolveram suas unidades blindadas em 1928. O Ministério da Guerra, explicando a decisão, declarou que “tanques não eram mais uma ameaça[1]”.

Em 1936, as instruções de blindados do Exército francês afirmavam: “Na ofensiva, deve-se enfatizar que hoje a arma antitanque é, para o tanque, o que a metralhadora foi para a infantaria durante a Guerra Mundial”. Três anos depois, um livro best-seller de um general da reserva do exército francês argumentou que o CC havia falhado como uma arma inovadora, já que “uma arma anticarro de 75 ou 77 milímetros, que custava 150 francos, poderia destruir um CC que custava um milhão de francos.” (HENKIL, 2022). Um ano se passou e, em maio de 1940, os CC alemães lideraram com enorme êxito a invasão da França.

Em 1960, ao perceber que o anuncio do fim dos CC era uma afirmação recorrente, Sir Basil Liddell Hart escreveu que, “de tempos em tempos, durante os últimos 40 anos, autoridades anunciaram que o CC estava morto ou morrendo. Mas, a cada uma dessas vezes, ele ressurgiu da sepultura que lhe haviam consignado”[2].

Esse não é um fenômeno exclusivo dos blindados. Algo semelhante ocorreu com aeronaves de combate após o primeiro míssil superfície-ar se fazer presente no campo de batalha. O general da Força Aérea de Israel Ezer Weizman, famoso piloto de combate que foi comandante durante a Guerra dos Seis Dias de 1967, disse em 1975 que “o míssil havia dobrado a asa do avião.” Sete anos depois, com o auxílio de contramedidas eletrônicas e armamento apropriado, a força aérea israelense destruiu 19 baterias de mísseis superfície-ar sírias no Líbano sem sofrer uma única baixa. (HENKIL, 2022)

Isso deveria servir como uma advertência contra declarações prematuras de que sistemas de armas estão finalmente desatualizados.

Este texto tentará demonstrar que, mais uma vez, erraram aqueles que, ao testemunharem os acontecimentos atualmente em curso na Ucrânia, anunciaram a morte dos CC. Ainda não será dessa vez.

2. As ameaças aos carros de combate

A história dos CC tem sido uma constante disputa entre sua blindagem e sua capacidade de engajar alvos a grande distância, com rapidez e precisão, de um lado, e as armas anticarro que lhes contrapõem, de outro. Quando os carros surgiram, no Somme, em 1916, suas blindagens resistiam às metralhadoras alemãs, mas não às granadas de artilharia. Rapidamente, os alemães desenvolveram um fuzil antitanque, com um projetil maior e mais pesado, que tinha a capacidade de perfurar a blindagem. Trata-se da mesma disputa de sempre, como a existente entre a espada e o escudo, entre a catapulta e a fortificação, entre o projetil e o colete balístico.

Essa competição continua desde então. À medida que as ameaças foram se aprimorando, as blindagens também se aperfeiçoaram, desde as simples chapas de aço, passando pelas blindagens compostas, chegando às reativas, até as mais modernas, as chamadas blindagens ativas.

Atualmente, o leque de ameaças ao carro de combate é enorme: helicópteros armados com armas anticarro, CC e outros blindados inimigos, mísseis, “drones camicases” (loitering munitions), projéteis de orientação terminal dispersos por bombas de aeronaves, foguetes, projéteis de artilharia, munições cluster, minas anticarro, aí se incluindo as modernas minas de efeito direcionado, e armas leves, como granadas anticarro lançadas por fuzil ou por lançadores de granadas.

Em contrapartida às ameaças, surgiram os equipamentos de defesa ativa, que são aqueles que dispõem de munições ou módulos explosivos que reagem para interferir ou destruir os projéteis que são direcionados contra o carro ou veículo blindado no qual estão instalados. (MATEOS, 2018). Um exemplo desse tipo de equipamento é o sistema Rafael Trophy Active Protection System, que foi instalado em diversos CC, tais como o Merkava israelense, a família Abrams norte-americana, o Leopard 2A8 alemão e, especula-se, também estará na próxima versão do Challenger III britânico.

De acordo com a informação do fabricante, o sistema cria “uma bolha de neutralização” ao redor do veículo. Ele detecta, classifica e engaja rapidamente todas as ameaças conhecidas, incluindo mísseis, foguetes e granadas alto-explosivas. O sistema ainda tem a capacidade de localizar a origem da ameaça, permitindo que a tripulação responda ao fogo de forma eficaz[3].

Figura 1 – Funcionamento do Sistema – Fonte Reddit, adaptado pelo autor

Vê-se, portanto, que não há nenhuma razão para se acreditar que as novas ameaças, representadas por veículos aéreos não tripulados, por exemplo, não possam ser sobrepujadas por novas e modernas alternativas de blindagens e outros tipos de defesa ativa.

3. A relevância do Carro de Combate no campo de batalha

A invasão russa à Ucrânia, desencadeada em 24 de fevereiro de 2022, demonstrou com clareza e sem qualquer margem para outra interpretação, que a guerra de alta intensidade, o confronto cinético entre massas de exércitos regulares, ainda é uma realidade inescapável. No ambiente caótico do combate, as características de poder de fogo, ação de choque e proteção blindada, além da velocidade, conferidas aos exércitos por suas tropas blindadas, ainda são essenciais.

A essência do emprego do CC está na penetração das linhas defensivas inimigas, permitindo o aprofundamento do avanço das tropas atacantes e a abertura e exploração de brechas que redundarão no desequilíbrio de seu dispositivo. O uso de uma massa de blindados se mostrou essencial nas principais batalhas de alta intensidade do século 20. E não é diferente agora, no momento em que escrevo este artigo, quando as forças ucranianas iniciam uma operação ofensiva com o objetivo de tentar expulsar o invasor russo de seu território.

Lançar-se contra uma posição fortificada, como é o caso da posição defensiva russa, com trabalhos de organização do terreno realizados durante meses, na presença de obstáculos, campo de minas, setores de tiro delimitados, tiros de artilharia amarrados, itinerários de contra-ataques definidos e ações dinâmicas de defesa treinadas, em um ambiente em que o defensor possui meios de inteligência de sinais e de imagens que lhe permitem ampla consciência situacional, não é, por óbvio, uma tarefa simples.

Os comandantes ucranianos conhecem perfeitamente essa dificuldade. E por isso sabem que não podem prescindir dos blindados. Essa é a razão pela qual o presidente da Ucrânia, Volodimyr Zelenski, tanto insistiu – e continua insistindo – junto a seus parceiros ocidentais, pelo envio de caros de combate e demais veículos blindados à Ucrânia.

Em atendimento a essas demandas, diversos países se mobilizaram. Os EUA prometeram o envio de seus carros M1 Abrams. Os britânicos enviaram seus Challenger II. Alemães, poloneses, noruegueses, finlandeses, espanhóis e portugueses enviaram seus Leopard, nas versões I e II. Além de diversos outros países europeus que ainda detinham equipamentos de origem soviética, e os estão também enviando aos ucranianos. Trata-se de um enorme esforço, visto que os próprios países europeus da OTAN, via de regra, não dispõem de grandes quantidades de CC. Isso os está obrigando a acelerar seus programas de aquisição desse tipo de equipamento, para repor seus próprios inventários e manter – e até mesmo ampliar – suas capacidades operacionais.

Assim, a Polônia firmou um acordo para comprar centenas de VBC M1A2 Abrams SEPv3, além de outros blindados da mesma família, dos Estados Unidos [5]. Na mesma direção, a Romênia divulgou a intenção de comprar 54 unidades do mesmo CC norte-americano [6].  Os alemães, por sua vez, anunciaram a compra de novos Leopard [7]. Os britânicos estão estudando a ampliação de sua frota. Os franceses, também encomendaram novos carros Leclerc para seu exército[8].

Como demonstram os exemplos acima, as potências europeias, alarmadas pela guerra no velho continente, estão investindo na ampliação e modernização de suas frotas de carros de combate. Isso sem falar nos diversos projetos de CC autônomos e semiautônomos, que já estão em fase de desenvolvimento nas principais potências militares do planeta.

4. Conclusão

A guerra, para Clausewitz, nada mais é do que “um ato de força para obrigar o inimigo a submeter-se a nossa vontade”. E, como a guerra em curso no território ucraniano nos lembra, suas características totais permanecem, pois ela é travada em alta intensidade, com toda a “violência, ódio e animosidade” que a compõe.

Travar e vencer essas guerras de alta intensidade, em nome de seus povos, é a missão primordial dos exércitos nacionais. Para isso, desde o tempo de paz, devem manter um poder de combate crível, composto das capacidades militares necessárias para, em um primeiro momento, dissuadir eventuais adversários de agirem contra suas nações. Caso tal dissuasão falhe, deverão atuar decisivamente para garantir a integridade e os interesses nacionais. Para tanto, deverão, obviamente, ter construído, desde o tempo de paz, as capacidades militares necessárias.

É nesse contexto que a manutenção de forças blindadas e mecanizadas potentes, adestradas e compostas por um núcleo de soldados profissionais adestrados e motivados, é essencial. Elas serão a espinha dorsal da Força Terrestre em operações.

Afinal, sempre que os exércitos entrarem em combate eles deverão possuir uma tropa capaz de manobrar para obter vantagem sobre o inimigo, vencê-lo e sobreviver ao encontro. Para isso sempre serão necessários meios de proteção, poder de fogo e mobilidade adequados. O principal material de emprego militar para se alcançar isso ainda é – e continuará sendo em um futuro previsível – o carro de combate.

 

ESTE ARTIGO FOI ORIGINALMENTE PUBLICADO NA REVISTA AÇÃO DE CHOQUE, EDIÇÃO 21. LEIA A REVISTA COMPLETA, COM MUITO BONS ARTIGOS SOBRE O COMBATE DE BLINDADOS: https://www.calameo.com/read/007489941ce703935a1c5 

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[1] JP Harris, Men, Ideas and Tanks, British Military Thought and Armoured Forces, 1903-1939.

[2] Stuart Crawford, “Quality or Quantity? The Tank Conundrum”, UK Defence Journal, July 27, 2022, Quality or Quantity? The Tank Conundrum (ukdefencejournal.org.uk).

[3] https://www.rafael.co.il/worlds/land/trophy-aps/ Veja o vídeo do funcionamento do sistema em https://www.youtube.com/watch?v=KVma76ZQ2dQ&ab_channel=RAFAELAdvancedDefenseSystemsLtd

[4] https://apnews.com/article/technology-poland-district-of-columbia-business-5f1681545d1bbe41ea4fb40fe719b21e

[5] https://www.romania-insider.com/romania-abrams-tanks-purchase-2023

[6] https://www.reuters.com/world/europe/germany-aims-buy-18-leopard-2-tanks-545-mln-euros-source-2023-05-12/

[7] https://ukdefencejournal.org.uk/britain-considering-expanding-tank-fleet/

[8] https://www.thedefensepost.com/2023/01/16/france-leclerc-battle-tanks/ 

REFERÊNCIAS

CLAUSEWITZ, Carl Von. Da guerra. Disponível em https://www.amigosdamarinha.com.br/wp-content/uploads/2018/04/Da-Guerra-Carl-Von-Clausewitz.pdf Acesso em 27 Jun 2023

CRAWFORD, Stuart. The age of the tank is not yet over. Disponível em https://ukdefencejournal.org.uk/the-age-of-the-tank-is-not-yet-over/ Acesso em 27 Jun 2023

GUTIERREZ, Roberto. O futuro dos Tanques. Revista Ejercitos. Disponível em https://www.revistaejercitos.com/2018/11/11/el-porvenir-de-los-carros-de-combate/ Acesso em 27 Jun 2023

HENKIN, Yagil. The “Big Three” Revisited. Initial Lessons from 200 Days of War in Ukraine. Disponível em https://www.usmcu.edu/Portals/218/EXP_Henkin_BigThreeRevisited__PDF.pdf Acesso em 27 Jun 2023

MATEOS, Francisco. Sistemas de proteção ativa. Revista Ejercitos. Disponível em https://www.revistaejercitos.com/2018/09/16/sistemas-de-proteccion-activa/ Acesso em 27 Jun 2023

 

 




Os blindados das pequenas frações no Combate Urbano

Em 2010, eu era um jovem Tenente-Coronel instrutor da Seção de Operações Ofensivas na Escola de Comado e Estado-Maior do Exército. Fui convidado e escrevi meu primeiro artigo para uma revista do EB. A Sangue Novo, da AMAN, voltada para jovens oficiais e cadetes.

O tema do artigo era o os blindados no combate urbano. Relendo, acho que o artigo envelheceu bem, com vários conceitos valendo para a guerra da Ucrânia.

Deem uma olhada!

Os blindados das pequenas frações no combate urbano




A compra dos carros de combate M1A2 Abrams pela Polônia

O ministro da defesa da Polônia, Mariusz Błaszczak, após reunião com o Secretário de Defesa norte-americano Lloyd Austin, confirmou a aquisição, pelo exército polonês, de 250 carros de combate principais Abrams M1A2 SEP v3, a mais moderna versão do veículo de combate norte-americano.

Os primeiros carros, que vão mobiliar 4 Unidades da 1ª Brigada Blindada, da cidade de Wesola, devem chegar à Polônia já no ano que vem. O valor do contrato gira em torno de 5,8 bilhões de dólares e prevê a aquisição de suprimentos, simuladores e carros de apoio, além de munição.

A aquisição dos Abrams representa a modernização da frota blindada polonesa, primeira linha de defesa da Europa Ocidental face aos russos, identificados nos mais recentes documentos estratégicos da Aliança como principal ameaça à OTAN. Essa sensação de ameaça é ainda mais palpável para os poloneses em razão da posição geográfica do país, vizinho à Ucrânia e à Belarus, em razão da anexação da Crimeia pela Rússia e da atuação do país no leste da Ucrânia e em Belarus.

Carros de combate são as armas que melhor caracterizaram o combate terrestre convencional. Conferem proteção blindada, potência de fogo, mobilidade e ação de choque às tropas. Essas características ainda são – e continuarão sendo no horizonte previsível – fundamentais para que os exércitos lutem e vençam suas batalhas. A aquisição os modernos Abrams pela Polônia é apenas mais uma confirmação dessa verdade.

Em 2019 publiquei um artigo na revista Ação de Choque, do Centro de Instrução de Blindados do Exército. Acho oportuno republicar aqui, para que aqueles que desejem possam se aprofundar no assunto.

Sugestão de leitura – compre o livro na Amazon

A ATUAL CONFIGURAÇÃO GEOPOLÍTICA GLOBAL, SUAS TENDÊNCIAS DE FUTURO E POSSÍVEIS REFLEXOS PARA O DESENHO DE NOSSAS FORÇAS BLINDADAS E MECANIZADAS

Artigo originalmente publicado na revista AÇÃO DE CHOQUE Nº 17, de 2019

A Configuração geopolítica atual

A configuração geopolítica atual desafia os pesquisadores e estudiosos, uma vez que a ordem unipolar, baseada na existência de uma única superpotência global – Os Estados Unidos da América – estabelecida após a queda do muro de Berlim e a do desmantelamento da antiga União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), está aparentemente esgotada. Uma nova ordem parece surgir, multipolar, com potências emergentes cada vez mais dispostas a alcançar seus próprios objetivos, mesmo que isto signifique desafiar os antigos detentores do poder mundial.

Assim, despontam uma série de incertezas, trazidas pelo rearranjo geopolítico que se vive. Algumas das perguntas para as quais se buscam as respostas são: Quais serão os principais polos de poder desta nova configuração da ordem mundial? A China conseguirá se firmar como uma potência militar capaz de ameaçar os interesses dos Estados Unidos, inicialmente na Ásia e depois em todo o mundo? Como o Japão reagirá ao novo status chinês? A Rússia será capaz de voltar a se impor política, econômica e militarmente sobre o leste europeu? Como os países europeus irão reagir à essa ameaça russa, e à crescente crise migratória? O Irã atingirá seu objetivo de contrapor-se à Arábia Saudita, firmando-se como maior potência do Oriente Médio e desafiando os interesses norte-americanos na Região? Como o novo status de potência nuclear da Coréia do Norte afetará o equilíbrio geopolítico da Península Coreana? Como Índia e Paquistão se comportarão face à cada vez maior influência chinesa sobre suas áreas de interesse? Será a Venezuela palco de uma disputa entre os EUA, de um lado, e China e Rússia, de outro? Os países do norte da África e do Oriente Médio conseguirão se estabilizar política e economicamente? Como os Estados Unidos se comportarão face a todas essas ameaças ao seu status de única superpotência do planeta?

Para nós, aqui no Brasil, a pergunta é: Estamos preparados para enfrentar os reflexos das crises, das instabilidades e desequilíbrios que esses rearranjos na configuração da ordem global certamente trarão?

Evidentemente, a situação acima descrita trará profundas consequências para a área de defesa. Neste artigo, tratarei dos possíveis reflexos desses novos ventos globais para as tropas blindadas brasileiras, integrantes do Exército da 8ª potência econômica do mundo.

Para qual guerra os exércitos devem se preparar?

Antes dos acontecimentos que ensejaram essa nova configuração geopolítica, ainda na primeira década do século 21, quando ainda se acreditava que o mundo poderia estar vivendo o chamado “fim da história” e também impactados pelo atentado às Torres Gêmeas do World Trade Center de 11 Set 2001 e a subsequente Guerra ao Terror travada pelos EUA e seus principais aliados, exércitos de todo o mundo começaram a discutir se ainda eram necessárias forças blindadas como as que existiam até então.

Afinal, a guerra passaria a ser travada não mais contra Estados Nacionais. Grupos terroristas não-estatais passariam a ser o inimigo. A “guerra no meio do povo” seria o novo paradigma. O livro do General britânico Rupert Smith, “A utilidade da força: A arte da Guerra no mundo moderno”, de 2008, passou a ser leitura obrigatória nas Escolas de Estado-Maior do mundo todo. A frase inicial do seu livro: “Já não existem guerras”, sintetizava o novo e surpreendente paradigma. Nessa realidade a potência de fogo, o poder de choque e a proteção blindada não pareciam ser mais tão necessárias…

A realidade brasileira acrescentava um aspecto importante àquela conjuntura. O crescente engajamento do Exército nas operações de GLO, além das missões de combate aos ilícitos trasnfronteiriços, nosso problema mais palpável e imediato, naturalmente atraíram a atenção convencendo inclusive uma porção da oficialidade – minoritária, felizmente – de que aquela era a “nossa guerra”.

Entretanto, acontecimentos da segunda década do século 21, tais como a ação russa na Criméia, a crescente assertividade militar chinesa no Mar do Sul da China e no sudeste asiático, a ascensão da Coreia do Norte ao status de potência nuclear, os novos enfrentamentos entre Paquistão e Índia na Caxemira, a crise na Venezuela, todos são fatos que relembram que a possibilidade do envolvimento dos Estados Nacionais em conflitos de alta intensidade ainda devem ser considerados por governos responsáveis como possibilidades reais. A realidade se impôs e recordou aos estrategistas que a natureza das relações humanas e das interações de poder não mudaram, e consequentemente, as disputas estatais permanecerão existindo por muitos anos ainda.

Em outras palavras, Clausewitz ainda não foi superado. A guerra, como fenômeno político, econômico e social continua uma constante, ao longo da história.

Este fato nos traz uma pergunta: se a guerra permanece um acontecimento humano e como ela ainda poderá ser manifestar como um fenômeno interestatal e de alta intensidade, em que todos os componentes do poder nacional serão empregados de forma exaustiva, como os exércitos devem se preparar? Qual o papel das Forças Blindadas nessa realidade?

Essas perguntas têm sido respondidas pelos exércitos das maiores potências militares com a readequação, dentre outros aspectos, de suas forças blindadas.

A modernização das Forças Blindadas pelo mundo

Nos Estados Unidos, o “Próxima Geração de Veículos de Combate” é uma das seis prioridades de modernização estabelecidas pela Estratégia de Modernização do Exército Norte-Americano, de 03 Out 2017. Para melhor responder às necessidades estabelecidas pela estratégia, o Exército dos EUA criou uma estrutura, o “Comando do Futuro”[2]. Espera-se que o protótipo de um novo e inovador blindado esteja pronto em 2022, para que se inicie a avaliação operacional em 2023. Assim, planeja-se que em 2035 essa nova geração de blindados e substitua tanto o Carro de Combate Principal M1 Abrams quanto as Viaturas de Combate M2/M3 Bradley e as da família M-113.

Não se trata de produzir viaturas novas baseadas nos atuais conceitos. Essa nova geração de blindados deverá agregar inovações disruptivas, ou seja, se prevê a inclusão de soluções que provoquem uma ruptura com as tecnologias, padrões ou modelos hoje estabelecidos no mercado. Busca-se blindados que possam ser pilotados remotamente, ou seja, dispensem a presença da tripulação, que possuam boa capacidade para operar em áreas urbanas, excelente proteção blindada, capacidade de agregar novas tecnologias, novas armas, novos equipamentos de comunicações que venham a ser desenvolvidos. Uma verdadeira revolução.

O Exército Francês, por sua vez, apresentou, em 2015, um Programa Estratégico denominado “Au contact” (Contato), que tem a finalidade de reestruturar e prover aquela Força de meios para fazer face às ameaças e aos desafios da primeira metade deste século. Dentre outras ações desse programa, destaque-se o Projeto Scorpion. Trata-se de proporcionar àquele Exército uma mudança geracional no que concerne às suas Forças Blindadas.

O Projeto Scorpion tem por objetivos, dentre outros:

– Otimizar a capacidade de combate da Força-Tarefa (FT) nível Batalhão (Btl) (interarmas) no contato com o oponente, por meio da melhoria da proteção blindada, mobilidade, autonomia e agilidade tática, as quais contribuirão para a eficácia operacional e otimização da preparação operacional;

– Renovar as principais plataformas da FT Btl, que passarão a ser a Viatura Blindada Multitarefa (VBMR) – GRIFFON, o Carro Blindado de Reconhecimento e Combate (EBRC) – JAGUAR e o Carro de combate pesado – LECLERC (modernizado);

– Alinhar as capacidades da FT Btl (interarmas), integrando, por meio de um Sistema de Informação e Combate SCORPION (SICS), as plataformas de combate e os combatentes, mediante o intercâmbio imediato de informações, combate colaborativo e, ainda, preparação operacional com uso da simulação embarcada; e

– Proporcionar um sistema otimizado de apoio, desenvolvendo subsistemas modulares que contribuirão para reduzir a cauda e as digitais logísticas no teatro de operações.

A Rússia também providenciou seu programa de modernização. Assinado em 2018 pelo Presidente Vladimir Puttin, o Programa Estatal de Armamento define as prioridades dos investimentos de defesa do país até 2027. Embora a revitalização das forças nucleares de emprego estratégico seja a prioridade anunciada no documento, as Forças Blindadas também receberam atenção, com a destinação de recursos para a modernização dos Carros de Combate T-72, T-80 e T-90 e das Viaturas Blindadas de Combate de Infantaria BMP-2 e BMD-2.

Além disso, o carro de combate principal de nova geração T-14 Armata, e as novas as Viaturas Blindadas de Combate de Infantaria Kurganets25, além das de transporte de tropa VPK- 7829 Boomerang já estão em testes e espera-se que, apesar de sucessivos atrasos, até 2027, uma parcela dos lotes iniciais já tenha sido incorporada ao acervo do Exército Russo.

Reflexos para o Exército Brasileiro

A conjuntura geopolítica que obrigou diversos países a adotarem medidas para retomarem o desenvolvimento de suas forças blindadas evidentemente também afetou o Brasil.

O país, que devido à sua estatura político-estratégica desempenha um papel de liderança no subcontinente e participa ativamente do cenário global, não pode abster-se de possuir capacidades militares e operativas decisivas e de difícil construção.

O Conceito Operativo do Exército de condução de operações militares no Amplo Espectro, caracterizado pela combinação simultânea ou sucessiva de operações de diversas naturezas, estabelece como premissas a necessidade de enfrentamento de novas ameaças e a aquisição e manutenção das capacidades requeridas pelos conflitos modernos.

O Catálogo de Capacidades do Exército lista tais capacidades militares terrestres e operativas, todas necessárias para que a Força Terrestre se mantenha em permanente estado de prontidão para o atendimento das demandas de segurança e defesa do país.

Dentre estas, a Superioridade do Enfrentamento, a Ação Terrestre, a Manobra Tática e o Apoio de Fogo são capacidades fundamentais e em grande parte oferecidas por Forças Blindadas eficientes e eficazes. Assim, não pode haver a menor dúvida dentre profissionais conhecedores da atual realidade da guerra, de que forças blindadas são, e continuarão sendo em um futuro previsível, a espinha dorsal de um exército moderno, preparado e em constante estado de prontidão.

Entretanto, a realidade nacional, segundo a qual os limitados recursos disponíveis devem ser judiciosamente empregados, torna desafiadora a tarefa de renovar as forças blindadas do país. Mas este não pode ser um desafio intransponível. Certamente o invicto Exército de Caxias saberá superar as dificuldades orçamentárias e continuará a possuir uma Força Blindada a altura de suas responsabilidades, capaz de fornecer as capacidades requeridas ao combate no amplo espectro, realidade neste século XXI.

BRASIL. EXÉRCITO BRASILEIRO. Catálogo de Capacidades do Exército. EB20-C-07.001. Brasília. 2015

__________. Lista de Tarefas Funcionais. EB70-MC-10.341. Brasília, 2016.

CARVALHO, Marcelo Pereira Lima. Oficial de Ligação do Exército Brasileiro junto à República Francesa (2017/2018). Entrevista, em 15 Abr 2019.

CONNOLLY, Richard e BOULÈGUE, Mathieu.  Russia’s New State Armament Programme Implications for the Russian Armed Forces and Military Capabilities to 2027. Chatam House. Disponível em https://www.chathamhouse.org/sites/default/files/publications/research/2018-05-10-russia-state-armament-programme-connolly-boulegue-final.pdf. Acesso em 14 Abr 2019

Information from the Parliamentary Commissioner for the Armed Forces. Parlamento Alemão. Disponível em https://www.bundestag.de/resource/blob/554772/e70a53c4708baed83f7ceba9e2e954f4/annual_report_2017_59th_report-data.pdf

PURTIMAN. BOB, Preparing for future battlefields: The Next Generation Combat Vehicle. Set 2018. disponível em https://www.army.mil/article/211236/preparing_for_future_battlefields_the_next_generation_combat_vehicle. Acesso em 12 Abr 19

SERRANO, Marcelo de Oliveira. Guerra: no meio do povo ou simplesmente irregular?  Coleção Meira Mattos, Rio de Janeiro, v. 8, n. 31, p. 19-28, jan./abr. 2014

TERRE INFORMATION MAGAZINE, N°276 Jun/Ago 2016. Exército da França. Disponível em http://fr.1001mags.com/parution/terre-information-magazine/numero-276-jui-aou-2016 Acesso em 15 Abr 2019

[2] O “Comando do Futuro – Army Futures Command” foi um comando criado pelo Exército dos Estados Unidos da América para assegurar que os programas de modernização caminhem na velocidade apropriada. Tem como foco garantir que as vantagens militares que hoje separam o Exército dos EUA de seus principais adversários sejam mantidas no futuro.