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Comunidade Global de Futuro Compartilhado: a Grande Estratégia da China para a conformação de uma nova Ordem Internacional

Este artigo foi originalmente publicado na página eletrônica do Centro de Estudos Estratégicos do Exército

 1. Introdução

A presente análise destina-se a apresentar três documentos oficiais que, dentre outros, conformam a Grande Estratégia da República Popular da China. Foram escolhidos aqueles que mais diretamente se relacionam à área de Segurança e Defesa e que impactam a Política Externa Brasileira, consequentemente sendo de interesse para o planejamento e a execução das atividades internacionais do Exército Brasileiro. Trata-se dos documentos “Comunidade Global de Futuro Compartilhado”, “Inciativa Cinturão e Rota” e “Iniciativa de Segurança Global”.

O presidente Xi Jinping, da China, possui uma ideia muito clara da direção para onde quer levar o país sob sua liderança. Ele já sintetizou seu desejo por intermédio da formulação do “sonho chinês” representado pela “grande revitalização da nação chinesa” [1]. Trata-se de uma visão nacionalista, originada no movimento republicano que derrubou a Dinastia Qing, no início do século XX, e que tem por objetivo fortalecer o país, restaurando seu status de grande potência, uma verdadeira busca da reconquista de uma grandeza perdida. Segundo este entendimento, os cerca de cem anos que transcorreram entre a Primeira Guerra do Ópio (1839), ainda na Dinastia Qing, e a vitória da Revolução Comunista (1949) constituem o “século da vergonha” no qual a China perdeu sua grandeza em virtude da espoliação de suas riquezas pelas potências colonialistas e pelo Japão. A grande revitalização da nação chinesa é um conceito que inclui dimensões políticas, econômicas, militares, científico-tecnológicas, sociais e ambientais, todas elas voltadas para uma “reconstrução nacional”.

Trata-se de um conceito diretamente relacionado ao de “Grande Estratégia”. De acordo com Rushi Doshi (2021), Grande Estratégia é uma teoria de como o Estado atinge seus grandes objetivos relacionados à segurança de uma forma que é ao mesmo tempo intencional, coordenada, e implementada pelos múltiplos meios que o Estado dispõe: militares, econômicos e políticos. Ou seja, é uma responsabilidade do governo em todo o seu conjunto, extrapolando áreas ou setores específicos. Ainda segundo Doshi, o que faz uma estratégia “grande” não é simplesmente o tamanho dos objetivos estratégicos que estão sendo perseguidos, mas também o fato de que diferentes meios à disposição do Estado são empregados para seu atingimento. Esse tipo de capacidade de coordenação é rara, de forma que a grande maioria dos Estados não possui uma Grande Estratégia.

No peculiar sistema de governo chinês, onde o “Partido comanda tudo” (Friedberg, 2023), o Conselho de Estado da República Popular da China é o órgão máximo do poder executivo, estando este poder, tanto quanto o poder judiciário, subordinados ao legislativo liderado pelo Partido Comunista. Trata-se de uma estrutura que abarca todos os ministérios e é atualmente liderada pelo Primeiro-Ministro Li Qiang, que assumiu o cargo em março de 2023.

O Conselho de Estado possui uma página na rede mundial de computadores (english.www.gov.cn), onde se encontram publicados uma série de documentos oficiais do governo chinês. Dentre esses, estão listados noventa e sete White Papers, produzidos entre 31 de março de 2011 e 23 de janeiro de 2024. Dentre esses, destaca-se o documento A Global Community of Shared Future: China’s Proposals and Actions.[2]

É importante destacar, de início, que os documentos a seguir brevemente apresentados são declaratórios, expondo uma série de intenções que, evidentemente, devem ser cotejadas com a realidade empírica para que se possa estabelecer um juízo de valor sobre sua real aplicação em termos práticos.

2. A “Comunidade Global de Futuro Compartilhado”

Publicado em setembro de 2023, possui trinta e sete páginas, divididas em um prefácio, cinco seções e uma conclusão. Trata das propostas e ações que a República Popular da China considera serem as suas contribuições para os esforços globais para proteger a Terra – o lar compartilhado de toda humanidade – e “criar um futuro melhor e mais próspero para todos”. Em uma linguagem quase poética, o documento afirma que “para construir uma comunidade global de futuro compartilhado, todos os povos, todos os países e todos os indivíduos – nossos destinos estão interconectados – devem permanecer juntos na adversidade e não importa o quão difícil seja, navegar em direção a uma maior harmonia neste planeta que chamamos de lar”.

Segundo o texto, a ideia de uma comunidade global de futuro compartilhado, lançada pelo presidente Xi Jinping em 2013, vem ganhando apoio internacional. O documento afirma que desde a dimensão bilateral até a multilateral, e da regional à global, teriam sido alcançados resultados inovadores em todas as frentes. As quatro iniciativas que baseiam a proposta, a Iniciativa Cinturão e Rota, a Iniciativa de Desenvolvimento Global, a Iniciativa de Segurança Global e a Iniciativa Civilização Global, teriam criado raízes e frutificado, “trazendo prosperidade e estabilidade ao mundo e criando benefícios substantivos para as pessoas”.

Enfatiza-se a ideia de que a interdependência entre as nações é uma tendência predominante ao longo da história, que foi intensificada pelos avanços atuais da tecnologia da informação, levando os países a um ponto inédito de interconexão e interdependência. Mas, ao mesmo tempo que o mundo alcança tal nível de interdependência, a humanidade se depara com desafios globais que exigem uma resposta unificada de todas as nações. O documento aponta que os deficits de paz, desenvolvimento, segurança e governança somente podem ser enfrentados pelo trabalho conjunto da comunidade internacional.

Assim, reafirma-se que a China defende um novo tipo de relações internacionais, assentadas no “respeito mútuo, na equidade, na justiça e na cooperação vantajosa para todos”, com o objetivo de desenvolver parcerias globais e “construir uma comunidade com um futuro partilhado para a humanidade”.

Ao apontar os caminhos a serem seguidos para alcançar esse “futuro compartilhado”, o documento indica algumas soluções. A primeira seria a busca de um novo tipo de globalização, que superasse os problemas apontados no modelo atual das relações internacionais, no qual a globalização econômica não refletiria as demandas, nem representaria os interesses dos países em desenvolvimento. A “lei da selva, o jogo de soma zero e a mentalidade do ganhaou-perde ou de quem ganha-leva-tudo” exacerbariam a divisão entre ricos e pobres, como seria evidenciado pelo crescente fosso entre países desenvolvidos e em desenvolvimento, e dentro dos países desenvolvidos.

Ao invés disso, os países deveriam seguir uma política de abertura e se opor explicitamente ao protecionismo, à construção de cercas e barreiras e às sanções unilaterais, de modo a conectar as economias e construir conjuntamente uma economia mundial aberta.

O documento afirma que a China defende a paz, o desenvolvimento, a equidade, a justiça, a democracia e a liberdade, como sendo os valores comuns da humanidade. Entretanto – e isso é importante – destaca que diferentes civilizações têm entendimentos diferentes sobre a natureza desses valores. E faz uma comparação com a Coca-Cola, em evidente crítica aos Estados Unidos.

Democracy and freedom are the common goals of humanity. There is no single model of democracy that is universally applicable, far less a superior one. Democracy is not Coca-Cola, tasting the same across the world as the syrup is produced in one single country. Democracy is not an ornament, but a solution to real problems. Attempts to monopolize the “patent” of democracy, arbitrarily define the “standards” of democracy, and fabricate a false narrative of “democracy versus authoritarianism” to provoke confrontation between political systems and ideologies are practices of fake democracy. Promoting the common values of humanity is not about canonizing the values of any particular country, but about seeking common ground while reserving differences, harmony without uniformity, and fully respecting the diversity of civilizations and the right of all countries to independently choose their social systems and development paths. (China, 2023)

O trecho destacado acima, que usa a Coca-Cola como metáfora, expressa a visão chinesa sobre democracia e liberdade, enfatizando uma diversidade de modelos democráticos e a rejeição da imposição de um único padrão universal. Desse modo, a democracia e a liberdade são objetivos comuns para toda a humanidade. No entanto, o documento defende que não existe um modelo único de democracia que possa ser aplicado universalmente, muito menos um que seja superior aos outros. Essa afirmação sugere que cada país deve ter a liberdade de desenvolver sua própria forma de democracia, adaptada às suas condições e necessidades específicas. Essa visão está alinhada com a abordagem diplomática da China, que defende a não interferência nos assuntos internos de outros países – e, por conseguinte, a não interferência de potências estrangeiras em sua próprias questões, como Taiwan, Tibete e Xinjiang, por exemplo – e a promoção de um mundo multipolar onde diferentes sistemas políticos e modelos de desenvolvimento possam coexistir pacificamente. Através dessa declaração, a China está, ao mesmo tempo, respondendo às críticas ocidentais sobre seu sistema político e promovendo sua visão de uma ordem internacional que seria, segundo seu entendimento, mais inclusiva e diversa.

Na última seção do documento, o governo chinês lista o que considera serem as principais contribuições do país no caminho da construção de uma humanidade de futuro compartilhado.

Em seguida, passa a tratar das três iniciativas globais que foram lançadas de forma concomitante à Iniciativa da Humanidade de Futuro Compartilhado: a Iniciativa de Desenvolvimento Global, a Iniciativa de Segurança Global, e a Iniciativa de Civilização Global.

Por meio da Iniciativa de Desenvolvimento Global, a China apresenta o que diz ser seu compromisso com o desenvolvimento global. O objetivo fundamental da iniciativa seria acelerar a implementação da Agenda 2030 da ONU para o Desenvolvimento Sustentável. Dessa forma, o documento passa a apresentar iniciativas práticas, como a criação de um fundo destinado ao desenvolvimento global e à cooperação Sul-Sul, no valor de US$ 4 bilhões, além de muitas outras iniciativas bilaterais e multilaterais de cooperação.

Por meio da Iniciativa de Segurança Global, a China afirma que procura trabalhar com a comunidade internacional na defesa do espírito da Carta das Nações Unidas, abordando os riscos e desafios de segurança tradicionais e nãotradicionais com uma “mentalidade de ganha-ganha e criando um novo caminho para a segurança que caracterize o diálogo sobre o confronto, parceria sobre aliança, e resultados ganha-ganha sobre jogo de soma zero”. Nesse sentido, o documento lista uma série de iniciativas nas quais a China desempenharia um papel relevante na busca de soluções para graves questões de segurança internacional, destacando sua efetiva atuação militar nas missões de paz da ONU. Esta iniciativa será melhor detalhada mais à frente, neste documento.

Por meio da Iniciativa Civilização Global, a China defende o respeito pela diversidade das civilizações, seus valores comuns e o intercâmbio e a cooperação internacionais mais estreitos. A Iniciativa Civilização Global faz “um apelo sincero para que o mundo melhore os intercâmbios e o diálogo entre civilizações e promova o progresso humano com inclusão e aprendizado mútuo, inspirando a construção de uma comunidade global de futuro compartilhado”.

As três iniciativas acima ressoam aspectos do Realismo Moral, uma teoria de Relações Internacionais desenvolvida pelo professor chinês Yan Xuetong. Yan (2019) acredita que a China somente ultrapassará os EUA na liderança do Sistema Internacional se adotar as políticas certas, sendo um Estado “grande e responsável”. Isso não acontecerá apenas pelas ações chinesas, mas sim a partir da percepção que os outros Estados tiverem das atitudes da potência oriental. Dito de outra forma, a China somente será “grande e responsável” se assim for vista pelos outros países. Para que isso seja alcançado, o Realismo Moral enfatiza os valores morais de “retidão e benevolência” sobrepujando os valores ocidentais de “igualdade e democracia”. A teoria apela a uma política de liderança pelo exemplo, que evitaria os “padrões duplos”, que Yan identifica nas práticas ocidentais, especialmente nas dos EUA.

É também inevitável relacionar o texto ao que Amitav Acharya (2019) denomina “Idealismo Cultural” chinês. Segundo esse autor, há um modelo moral, comportamental, afetivo e cultural na identidade chinesa, oriundo de uma cultura milenar e tradicional, que seria propensa ao entendimento mútuo, e à cooperação entre as nações em busca da paz e de uma governança global.

Assim, fica claro que os estrategistas chineses buscam, por intermédio do documento, demonstrar que o futuro que imaginam para a humanidade está fortemente baseado na integração dos valores culturais e dos princípios diplomáticos chineses, promovendo uma visão que “reflete tanto a sua herança histórica como as suas aspirações globais modernas”. Trata-se, portanto, de um novo modelo de Ordem Internacional, que superaria a Ordem Liberal vigente, erigida no pós-guerra e liderada pelos Estados Unidos.

É claro que aquilo que é expresso no documento é o que o Estado chinês declara praticar. Nem sempre as políticas declaradas são as efetivamente praticadas, e a leitura sempre deve ser realizada de forma crítica e com este fato em mente.

Finalmente, o documento “A Global Community of Shared Future: China’s Proposals and Actions” apresenta vários elementos que indicam sua conexão com uma Grande Estratégia da China, conforme a definição de Rushi Doshi (2021) sobre a coordenação intencional de meios militares, econômicos e políticos para atingir objetivos estratégicos de longo prazo. Aqui estão algumas evidências nesse sentido:

  1. Coordenação de Políticas e Iniciativas Globais. O documento detalha várias iniciativas chinesas, como as já citadas Iniciativa Cinturão e Rota, Iniciativa de Desenvolvimento Global, Iniciativa de Segurança Global, e Iniciativa Civilização Global. Essas iniciativas conformam claramente esforços coordenados que integram meios econômicos, políticos e de segurança para fortalecer a influência global da China e moldar uma nova ordem internacional mais favorável aos interesses chineses.
  2. Proposição de uma Nova Ordem Internacional. O documento descreve a visão chinesa para um “futuro compartilhado”, que desafia a atual ordem internacional liderada pelo Ocidente e propõe uma nova abordagem para a governança global, a cooperação internacional e a segurança coletiva. Esta visão inclui a promoção de uma “nova abordagem para as relações internacionais”, que enfatiza o respeito mútuo, a justiça, a igualdade e a cooperação benéfica para todos.
  3. Integração de Valores Culturais e Diplomáticos. O documento também enfatiza a integração dos valores culturais chineses, as tradições diplomáticas e as lições históricas nas práticas e na estratégia exterior da China. Isso indica uma tentativa deliberada de moldar a percepção global sobre a China e posicionar suas tradições e valores como fundamentais para o futuro da governança global.
  4. Foco em Segurança e Desenvolvimento Sustentável. Há um esforço significativo para conectar as iniciativas de desenvolvimento com a segurança global e a estabilidade, refletindo uma abordagem holística que interliga o crescimento econômico com a segurança e a influência política. Isso é evidente no esforço para promover a segurança através do desenvolvimento e vice-versa, argumentando que a segurança e o desenvolvimento são indissociáveis e fundamentais para a estabilidade internacional.
  5. Resposta aos Desafios Globais com Iniciativas Chinesas. Através de várias propostas, como a Iniciativa de Segurança Global e a Iniciativa Civilização Global, a China pretende posicionar-se como uma força líder no enfrentamento de desafios globais, propondo soluções que alinham os interesses internacionais com sua visão e liderança, refletindo uma estratégia abrangente para aumentar sua influência e moldar a ordem internacional de acordo com seus interesses.

3. A Iniciativa Cinturão e Rota

O documento que trata da Iniciativa Cinturão e Rota (ICR) [3], tradução para o Português preferida pelos chineses para “Yīdài yīlù 一带一路” – “Belt and Road Initiative”, em inglês, ou, como também é conhecida no Brasil, a “Nova Rota da Seda”, foi publicado em outubro de 2023, embora a Iniciativa seja bastante anterior a isso. Trata-se de um arrazoado de vinte e três páginas, constituído por um preâmbulo, cinco capítulos e uma conclusão.

No texto, a ICR, proposta pelo presidente Xi Jinping em 2013, é apresentada como “uma plataforma para a construção de uma comunidade global de futuro compartilhado”. Nesse sentido se busca enfatizar um caráter mutuamente benéfico dos projetos da iniciativa, que seriam “propostos pela China, mas pertencentes a todo o mundo”.

 

O texto faz uma relação histórica entre o “Cinturão” e a rota da seda ancestral, que há mais de dois mil anos ligou o Oriente ao Ocidente por intermédio das caravanas que atravessavam os desertos para promover o comércio, impulsionando o desenvolvimento regional e a prosperidade e moldando o “espírito da Rota da Seda, caracterizado pela paz e cooperação, abertura e inclusão, aprendizado e benefício mútuos”. Segundo a narrativa do documento, o “Cinturão” não era apenas um empreendimento comercial, mas também uma experiência de grandes trocas culturais, que proporcionou um grande impulso para o progresso da humanidade.

A “Rota”, por sua vez, se correlaciona historicamente com as rotas marítimas singradas pelos navegadores do passado, com as mesmas finalidades e ganhos atribuídos ao “Cinturão”. Com isso, o documento busca fazer uma ligação histórica com um passado de cooperação e ganhos mútuos (uma relação “win-win”) na relação entre a China e diferentes povos.

Há um nítido esforço em se apresentar a iniciativa como sendo “aberta e inclusiva”, uma vez que os empreendimentos por ela promovidos seriam fruto de extensivas consultas, contribuições conjuntas, e benefícios compartilhados. O desenvolvimento resultante das iniciativas contribuiria para a construção de um mundo mais pacífico, mais próspero e mais aberto, com mais inovação e progresso social.

Nesse sentido, o documento afirma que, para promover uma maior conectividade através da cooperação da ICR, a China procurará “facilitar a coordenação política, a conectividade de infraestruturas, o comércio desimpedido, a integração financeira e os laços mais estreitos entre pessoas”.

Como se vê, a Iniciativa é apresentada como uma ferramenta para o desenvolvimento não só da China, mas para todo o mundo. Afirma que a globalização econômica continua a ser uma tendência irreversível, e que é impensável um mundo em que os países voltem a um estado de isolamento. Entretanto, segundo os chineses, a globalização econômica foi dominada por poucos países que não têm contribuído para um desenvolvimento comum que traga benefícios a todos. Em vez disso, sempre segundo o texto, teria aumentado a diferença entre ricos e pobres, entre países desenvolvidos e em desenvolvimento, e mesmo dentro dos próprios países desenvolvidos.

Dessa forma, os países em desenvolvimento pouco teriam se beneficiado da globalização econômica e até teriam perdido sua capacidade de desenvolvimento independente, o que dificultaria seu acesso ao caminho da modernização. Em uma crítica velada aos EUA, o texto assevera que “alguns países praticariam o unilateralismo, o protecionismo e o hegemonismo, dificultando a globalização econômica e, com essa postura, estariam ameaçando provocar a ocorrência de uma recessão econômica global”.

Atento ao espírito do tempo e às mudanças impostas pela crise climática, o documento apresenta a ICR como uma forma de a China compartilhar sua experiência em produção de energia renovável, proteção ambiental e produção limpa, empregando tecnologia, produtos e expertise na promoção do desenvolvimento verde.

O documento insiste que a Iniciativa se baseia em princípios de amplas consultas, contribuições conjuntas e benefícios compartilhados. Defende uma cooperação ganha-ganha na persecução de um bem maior e de interesses partilhados. Enfatiza que todos os países são participantes, contribuintes e beneficiários iguais, e incentiva a integração econômica, o desenvolvimento interligado e a partilha de conquistas.

Assim, um projeto que visa, na prática, ao financiamento e construção de obras de infraestrutura que beneficiarão as trocas comerciais entre diversos países e a China, é apresentado como uma verdadeira panaceia, um passaporte para um mundo muito melhor para todas as nações.

Da análise qualitativa do texto, percebem-se claramente vários indícios de que ele se alinha com uma Grande Estratégia chinesa, nos termos apresentados por Doshi (2021):

  1. Alinhamento com objetivos estratégicos chineses. O documento ressalta que a Iniciativa Cinturão e Rota é uma extensão moderna das antigas rotas da seda e visa a promover uma comunidade global de futuro compartilhado. Isso se alinha com os objetivos estratégicos chineses de estabelecer uma influência mais profunda em uma escala global, através da criação de conexões econômicas, políticas e culturais mais fortes, especialmente entre a Ásia, a Europa e a África.
  2. Promoção de uma conectividade multidimensional. A Iniciativa enfatiza o desenvolvimento de infraestrutura física e institucional para melhorar a conectividade entre os países participantes. Este esforço, apesar de proporcionar ganhos comerciais, não é apenas econômico, mas também um meio de fortalecer os laços políticos e culturais, essenciais para a expansão da influência e soft power chineses.
  3. Integração econômica e cooperação internacional. O projeto descreve a Iniciativa como uma plataforma para o desenvolvimento econômico compartilhado, promovendo investimentos e cooperação em infraestrutura, que é vista como uma forma de integrar economias de diferentes regiões mais profundamente na esfera econômica global liderada pela China.
  4. Sustentabilidade e desenvolvimento verde. A estratégia inclui um forte componente de desenvolvimento sustentável e verde, refletindo a coordenação de objetivos econômicos e ambientais com a agenda de política externa, posicionando a China como um líder em iniciativas globais de desenvolvimento sustentável.
  5. Envolvimento e benefícios compartilhados. A iniciativa é descrita como um esforço colaborativo que busca envolver múltiplos países e regiões, oferecendo benefícios mútuos, o que reforça o objetivo estratégico da China de se posicionar como uma potência benevolente e cooperativa no cenário mundial.

Pode-se perceber claramente aquilo que Doshi (2021) apresenta como aspectos constituintes de uma grande estratégia, quais sejam, a intencionalidade e a coordenação das ações, que são implementadas por múltiplos meios do Estado chinês, especialmente por intermédio de meios políticos e econômicos.

Embora no documento não sejam apresentadas ações implementadas por meios militares, aquelas diretamente relacionadas à segurança do Estado, é claro que, como mostra a teoria realista de John Mearsheimer (2014), se a China se transformar em uma potência econômica, é quase certo que vá transformar os ganhos econômicos em ganhos militares (Mearsheimer, 2014).

Dessa forma, pode-se concluir parcialmente que a presença de todos esses elementos indica que a Iniciativa Cinturão e Rota é uma valiosa ferramenta, inserida em uma estratégia chinesa muito mais ampla, para a expansão de sua influência global em persecução de objetivos que se enquadram no que pode ser compreendido como sendo uma Grande Estratégia chinesa.

4. A Iniciativa de Segurança Global

A “Iniciativa de Segurança Global” (ISG)4 foi lançada em fevereiro de 2023. Ela forma, juntamente com a Iniciativa Belt and Road, a Iniciativa de Desenvolvimento Global e a Iniciativa da Civilização Global, os quatro pilares da proposta chinesa de uma nova ordem internacional, consubstanciada na Comunidade Global de Futuro Compartilhado.

A ISG possui seis princípios fundamentais:

  1. Estar comprometido com uma visão “comum, abrangente, cooperativa e sustentável de segurança”.
  2. Respeitar a soberania e a integridade territorial de todos os países.
  3. Promover os propósitos e princípios da Carta da ONU.
  4. Levar em conta as legítimas preocupações de segurança de todos os países.
  5. Estar comprometido com a solução pacífica das controvérsias entre países.
  6. Promover a segurança, tanto contra ameaças tradicionais, quanto não tradicionais (citando explicitamente terrorismo, mudanças climáticas, cibersegurança e biossegurança).

Interessante notar que esses princípios, elaborados quando o conflito da Ucrânia já estava em curso, apresentam dois itens relacionados aos interesses, tanto chineses, quanto russos e ucranianos. Ao destacar o respeito à soberania e integridade territorial de todos os países, há um claro alinhamento com o interesse ucraniano, afinal sua soberania foi desrespeitada e seu território foi invadido. Entretanto, ao citar as “legítimas preocupações de segurança de todos os países”, se está a fazer uma ligação com a narrativa russa de que a expansão da OTAN configura um risco à segurança da Rússia.

Para atender a esses princípios, os chineses propõem 20 pontos de possível cooperação com outros países:

  1. Participar ativamente da agenda para a paz da ONU, apoiando-a e fortalecendo-a nas suas missões de paz;
  2. Promover a cooperação e a coordenação entre as grandes potências, favorecendo a estabilidade e a coexistência pacífica.
  3. Fortalecer a compreensão de que “uma guerra nuclear não pode ser vencida”.
  4. Implementar integralmente as resoluções e convenções da ONU sobre armas nucleares, químicas e biológicas.
  5. Promover a solução política de questões e diferenças regionais entre os países, destacando o respeito à não interferência em assuntos internos de outros países.
  6. Apoiar e aperfeiçoar o mecanismo de cooperação e segurança da ASEAN.
  7. Implementar a Proposta de 5 Pontos para a paz e a estabilidade no Oriente Médio.
  8. Apoiar as iniciativas dos países africanos, da União Africana e de Organismos sub-regionais em seus esforços para resolver conflitos regionais, combater o terrorismo e garantir a segurança das vias marítimas de comunicação.
  9. Apoiar os países latino americanos e do caribe no atingimento dos compromissos expressos na Proclamação da América Latina e do Caribe como uma Zona de Paz.
  10. Prestar a devida atenção às legítimas preocupações dos países insulares do Pacífico acerca das mudanças climáticas e dos desastres naturais.
  11. Fortalecer o diálogo e a cooperação para o combate aos ilícitos praticados no mar, como a pirataria.
  12. Fortalecer o papel central da ONU no combate ao terrorismo.
  13. Aprofundar a cooperação internacional no campo da segurança da informação.
  14. Fortalecer o gerenciamento de riscos na área de biossegurança.
  15. Fortalecer a governança internacional da Inteligência Artificial, regulando sua utilização com fins militares.
  16. Fortalecer a cooperação internacional acerca de questões espaciais, protegendo a ordem internacional naquele domínio de acordo com as leis internacionais.
  17. Apoiar a Organização Mundial da Saúde em seu papel de liderança global para o gerenciamento e coordenação dos esforços globais no enfrentamento de pandemias.
  18. Promover a segurança alimentar e energética no mundo.
  19. Implementar efetivamente a Convenção da ONU para o enfrentamento do Crime Organizado Transnacional.
  20. Apoiar a cooperação internacional para o enfrentamento dos efeitos das mudanças climáticas e a implementação da Agenda 2030 da ONU para o Desenvolvimento Sustentável.

Por fim, o documento propõe cinco “plataformas de engajamento e cooperação”.

  1. Trabalhar firmemente em todas as instâncias da ONU para firmar consensos para solucionar as questões de segurança existentes no mundo.
  2. Promover o papel de vários organismos regionais multilaterais – o BRICS é citado, dentre outros asiáticos – para a promoção da paz e da estabilidade regionais.
  3. Promover reuniões bilaterais e multilaterais para tratar dos assuntos tratados pela ISG.
  4. Promover fóruns para discussão de assuntos de segurança, reunindo governos, think tanks e academia para a discussão de temas de segurança. (o documento cita o fórum de Xiangshan, o equivalente chinês ao Shangri-la Dialogue).
  5. Encorajar mais trocas entre os países, para estimular a cooperação e a busca de solução para desafios de segurança. (o documento fala em abrir 5 mil vagas na China para treinamento na área de segurança).

5. Conclusão

A análise dos três documentos-chave da Grande Estratégia da China – “Comunidade Global de Futuro Compartilhado”, “Iniciativa Cinturão e Rota” e “Iniciativa de Segurança Global” – revela um esforço intencional e coordenado para moldar a ordem internacional de acordo com os interesses e valores chineses. Esses documentos refletem uma visão abrangente e ambiciosa, integrando dimensões econômicas, políticas e de segurança para promover a ascensão da China como uma potência global.

Primeiramente, a “Comunidade Global de Futuro Compartilhado” apresenta uma visão idealista e cooperativa, onde a China se posiciona como uma defensora de uma nova ordem internacional baseada na equidade, justiça e respeito mútuo. O documento enfatiza a interdependência entre as nações e propõe soluções globais para desafios comuns, promovendo uma globalização mais inclusiva e sustentável. A retórica utilizada busca atrair apoio internacional e legitimar a liderança chinesa no cenário global, propondo um novo modelo de globalização que supere as falhas do sistema atual.

A “Iniciativa Cinturão e Rota” (ICR) é uma manifestação prática dessa visão, focada na criação de infraestrutura e na promoção do comércio entre a China e outras nações. Através de investimentos massivos e cooperação internacional, a ICR busca fortalecer as conexões econômicas e políticas da China com diferentes regiões do mundo. A iniciativa é apresentada como uma plataforma para o desenvolvimento mútuo, promovendo uma narrativa de benefícios compartilhados e cooperação ganha-ganha. Contudo, é evidente que a ICR também serve como um instrumento estratégico para expandir a influência chinesa e consolidar seu poder econômico e político globalmente.

A “Iniciativa de Segurança Global” (ISG) complementa essas estratégias, abordando questões de segurança de forma abrangente e propondo um modelo de cooperação internacional que privilegia o diálogo e a resolução pacífica de conflitos. A ISG reforça os princípios da Carta da ONU e promove a segurança coletiva, enfatizando a importância de enfrentar ameaças tanto tradicionais quanto não tradicionais. Através de uma série de propostas práticas e plataformas de engajamento, a China busca posicionar-se como uma força estabilizadora e um líder responsável na arena internacional, promovendo uma visão de segurança que reflete seus próprios interesses e valores.

Em conjunto, esses documentos demonstram uma Grande Estratégia chinesa que busca moldar a ordem internacional de maneira que favoreça seus objetivos estratégicos de longo prazo. Através da coordenação intencional de meios econômicos, políticos e de segurança, a China está implementando uma estratégia abrangente para aumentar sua influência global e promover uma nova ordem internacional que reflita suas aspirações e valores. A retórica de cooperação e benefícios mútuos, embora atraente, deve ser analisada bastante criticamente, considerando as implicações estratégicas e os interesses subjacentes da China.

Especialmente para o Brasil, a adesão às propostas chinesas deve ser sopesada, uma vez que a movimentação chinesa não pode ser apartada da competição sistêmica em curso entre a China e os EUA. O Brasil, único país do hemisfério ocidental a compor os BRICS, e líder natural na América do Sul, já tem na China seu maior parceiro comercial. Caso caminhe em direção a uma maior aproximação estratégica com a China, estará sujeito a pressões diretas e indiretas e cada vez mais intensas por parte dos EUA.

A ascensão da China como uma potência global e suas tentativas de reconfigurar a ordem internacional são vistas com desconfiança por diversas nações, especialmente no Ocidente. A capacidade da China de efetivamente transformar sua visão em realidade dependerá de sua habilidade em navegar essas complexidades e construir alianças que sustentem suas iniciativas. Portanto, enquanto os documentos analisados revelam uma estratégia clara e bem articulada, a trajetória futura da China no cenário internacional permanece incerta e sujeita a múltiplas variáveis.

 

REFERÊNCIAS

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YAN, X. Leadership and the Rise of Great Powers. Princenton: Princeton University Press. 2019

[1] 1“Zhōnghuá mínzú wěidà fùxīng” – 中华民族伟大复兴. Em inglês, a tradução mais encontrada é “The great rejuvenation of the Chinese nation”. Em portugês, a tradução indicada nos próprios documentos chineses usa a palavra “revitalização”.

[2] Disponível em https://www.mfa.gov.cn/eng/zxxx_662805/202309/t20230926_11150122.html 

[3] Disponível em https://english.www.gov.cn/archive/whitepaper/202310/10/content_ WS6524b55fc6d0868f4e8e014c.html

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Diálogos e divergências em Xangrilá: as Perspectivas de EUA e China sobre a Segurança no Indo-Pacífico

Xangrilá é um lugar paradisíaco isolado nos vales montanhosos do Tibete, descrito no livro Horizonte Perdido, de James Hilton, como um lugar onde o tempo parece deter-se, no qual as pessoas vivem vidas extremamente longas em paz e harmonia, distante das turbulências do mundo exterior. Entretanto, as personagens do livro, ante a escolha de permanecer ou não por lá, vivem dilemas morais e filosóficos, o que sugere que a utopia de Xangrilá tem um preço. Mesmo o paraíso oferece complexidades e desafios.

O Hotel Sangri-la, em Cingapura, embora luxuoso, está longe de ser o paraíso. Ele é a sede de uma conferência anual de Segurança da Ásia, conhecida como “Sangri-la Dialogue”, promovida pelo International Institute for Strategic Studies (IISS). A escolha do nome da conferência é evidentemente simbólica e intencional. Se a fictícia Xangrilá de Hilton é um lugar de paz e reflexão, a conferência busca ser um fórum de discussão para a busca de soluções pacíficas para os conflitos na região asiática do Indo-Pacífico.

A conferência deste ano, que acabou de acontecer, ecoou o aumento das tensões na região, consubstanciadas pelo grande exercício militar chinês no entorno da ilha de Taiwan e pelas frequentes escaramuças entre navios chineses e filipinos no Mar do Sul da China.

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Muita gente importante esteve presente no encontro, realizado entre os dias 31 de maio e 2 de junho. Os presidentes das Filipinas, Ferdinando Marcos Junior, do Timor Leste, José Ramos Horta e da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, além da Primeira-Ministra da Lituânia Ingrid Simonyte, e do presidente eleito da Indonésia, Prabowo Subianto, fizeram seus discursos e participaram dos debates. Dentre os vários ministros da defesa presentes, destaco a participação do norte-americano, General Lloyd Austin, e do chinês, Almirante Dong Jun, que se esforçaram para convencer a plateia da validade de seus argumentos, em um ambiente em que o assunto, ao fim e ao cabo, girava em torno das relações EUA-China e seus reflexos para os países da região.

O General Austin, que fez sua décima visita ao Indo-Pacífico desde que assumiu a função de Secretário de Defesa, em 2021, fez questão de destacar que aquela é uma região de fundamental importância para os EUA. Deixou isso muito claro, dizendo que seu país estava profundamente comprometido com os países da região, e que isso não iria mudar.

Ao destacar o período conturbado que o mundo atravessa, referiu-se aos riscos para a segurança global representados pelas mudanças climáticas, pelas pandemias e pelos perigos representados pelo terrorismo e pelas armas nucleares. Lembrou da guerra e da instabilidade no Oriente Médio e da invasão russa à Ucrânia. Mas, de forma significativa, se referiu a “ações na região (do Indo-Pacífico) que erodem o status quo e ameaçam a paz e a estabilidade”. Essa última lembrança foi uma referência nada sutil à China, tanto na questão de Taiwan, quanto nas disputas em curso no Mar do Sul da China.

Austin ressaltou a importância das parcerias estratégicas que, de acordo com sua perspectiva, seriam guiadas não pela imposição da vontade de um único país, mas por uma visão compartilhada pelos EUA e seus parceiros na região em torno de princípios comuns, uma espécie de senso de mútua responsabilidade, que fortaleceria a capacidade de defesa e a interoperabilidade entre os países da região.

O ministro reafirmou que a região do Indo-Pacífico está “no coração” da Estratégia norte-americana, mesmo em um mundo em que a guerra na Ucrânia e o conflito no Oriente Médio exigem atenção do país. Para ressaltar ainda mais a sua importância, ele afirmou que seu país só pode estar seguro se a Ásia estiver segura. Essa é a razão pela qual os EUA continuarão mantendo sua presença e investimentos na região. Como exemplos, Lloyd citou a realização de diversos exercícios militares, acordos de cooperação e iniciativas conjuntas na área de desenvolvimento de sistemas e materiais de emprego militar que os EUA mantêm com vários países da área, com especial destaque para o Japão, Coreia do Sul, Índia e Filipinas.

Encerrando suas palavras, sem citar nominalmente a China, mas claramente se referindo a ela, Lloyd disse que ainda haverá quem desrespeite as leis internacionais, tentando impor sua vontade pela coerção e pela agressão, mas que os EUA e seus parceiros continuarão a buscar novos pontos de convergência para a construção de um futuro melhor para todos.

Recentemente nomeado ministro da Defesa da China, o Almirante Dong Jun, primeiro oficial da marinha a ocupar o cargo, enfatizou o compromisso dos povos da Ásia-Pacífico com a harmonia e a paz. Entretanto, segundo Dong, esses mesmos povos teriam uma memória compartilhada do sofrimento e da opressão impostos pelo colonialismo e pelo imperialismo.

Por essa razão, os países da região concedem uma grande importância à sua independência, rejeitando relações de vassalagem ou de submissão a blocos de países que levem à confrontação. Dessa forma, segundo o almirante, os países asiáticos desejariam conviver com uma ordem internacional igualitária e multipolar.

A linha de raciocínio do ministro chinês prossegue no sentido de mostrar que os países da região têm plenas condições de resolver suas questões de forma autônoma, sem receber ordens de países hegemônicos, em clara referência ao que os chineses consideram ser uma intromissão indevida dos EUA nas questões regionais.

Dong apresenta as iniciativas chinesas de “Desenvolvimento Global”, em conjunto com as iniciativas de “Segurança Global” e de “Civilização Global” como propostas de visão de um futuro compartilhado para toda a humanidade, que pode levar a um mundo de paz e desenvolvimento.

Dizendo que uma guerra nuclear não pode ser vencida e nunca deve ser travada, o ministro reafirmou o compromisso da China de nunca utilizar seu armamento nuclear a não ser como resposta a um ataque, ou seja, de nunca ser o primeiro a utilizar esse tipo de arma contra um inimigo.

Referindo-se aos conflitos da Ucrânia e do Oriente Médio, o almirante afirmou que a China se coloca de forma imparcial, na busca de uma solução pelo diálogo. Em relação aos EUA, disse que as duas partes não deveriam buscar a confrontação e deveriam valorizar a paz, promover a estabilidade e agir de boa-fé, atitudes que aumentariam a confiança mútua.

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Dong reafirmou que a questão de Taiwan é central para a China e criticou as ações do partido no poder na ilha, acusando-o de tentativas de suprimir a identidade chinesa e de minar as conexões sociais, históricas e culturais entre taiwaneses e chineses. Referindo-se de forma velada aos EUA, acusou o país vender armas e de ter contatos ilegais com o governo de Taiwan, o que eleva as tensões no Estreito, criando uma situação perigosa. Lembrou que a questão é um problema exclusivamente chinês, em relação ao qual não se admite interferência estrangeira, e que, apesar da China buscar uma reunificação pacífica, que as forças armadas do país permaneceriam em condições de impedir que a ilha busque a independência.

Em relação às disputas no Mar do Sul da China, o ministro da defesa da China disse que “um determinado país”, em clara referência às Filipinas, “encorajado por potências externas, quebrou acordos bilaterais e as suas próprias promessas, fez provocações premeditadas e criou cenários falsos para enganar o público”. Além disso, ao autorizar os EUA a desdobrarem mísseis em seu território, teria violado a carta da ASEAN, prejudicando a paz e a estabilidade da região. Nesse sentido, Dong afirmou que “a China tem exercido grande contenção face a tais infrações e provocações”, mas que havia um limite à essa restrição, esperando que as Filipinas “retornassem ao caminho correto do diálogo”.

Como se pode inferir das participações dos ministros da defesa de EUA e China na Conferência do Hotel Shangri-lá, os dois países possuem visões estratégicas concorrentes no que se refere à estabilidade, segurança e cooperação na região do Indo-Pacífico.

Enquanto Austin propõe uma rede de parcerias estratégicas liderada pelos EUA com os países da região, com o objetivo de solidificar uma postura de força coletiva, Dong promove uma visão de segurança regionalizada e autônoma, ressaltando a capacidade dos países da região de resolverem suas questões sem interferência externa.

Ambas as autoridades atribuem importância ao multilateralismo, entretanto, atribuem a seus respectivos países uma posição de liderança, nem sempre expressa com clareza, mas claramente presente nas entrelinhas dos discursos, caracterizando a disputa hegemônica em curso entre os dois países.

Nas principais questões geopolíticas envolvendo a China na região, referentes à Taiwan e ao Mar do Sul da China, enquanto Austin se posiciona de maneira velada contra ações que ele vê como ameaçadoras à paz regional por parte da China, Dong refuta essas alegações, reiterando o direito da China à soberania e à integridade territorial.

Dessa forma, fica claro que Austin e Dong representam duas abordagens distintas que refletem os interesses e as políticas externas de seus respectivos países. Conclui-se que a busca por pontos de convergência, como sugerido por Austin, e a disposição para diálogo, enfatizada por Dong, são essenciais para o desenvolvimento de uma paisagem geopolítica mais estável e pacífica no Indo-Pacífico.

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A posse do novo presidente de Taiwan aumenta as tensões na Ásia

O discurso anual do primeiro-ministro da China ao Congresso Nacional do Povo, feito em março, durante as chamadas “Duas Sessões”, é acompanhado atentamente pelos analistas, pois constitui uma rara oportunidade para se identificar as prioridades e tendências políticas que nortearão as ações do governo chinês.

Não foi diferente neste ano, ainda mais em razão de ser o discurso inaugural do primeiro-ministro Li Qiang, que assumiu suas funções no ano passado. Dentre os diversos aspectos mencionados por Li, as relações da China com a ilha de Taiwan se destacaram.

A reunificação com Taiwan, ilha que possui governo autônomo mas é vista como província rebelde pela China, é um objetivo inegociável para o governo chinês. No entanto, o tema não é frequente nesses discursos. Em uma década, só foi mencionado em 2022, pelo então primeiro-ministro Li Keqiang.

Uma diferença crucial entre os dois discursos chamou atenção. Em 2022, Keqiang fez referência à “reunificação pacífica” de Taiwan à China continental. Neste ano, as palavras de Qiang foram praticamente as mesmas, no sentido de conclamar os presentes a “promoverem resolutamente a grande causa da reunificação do país e defenderem os interesses fundamentais da nação chinesa”. Entretanto, a expressão “reunificação pacífica”, diferentemente de 2022, não apareceu.

A omissão não passou despercebida pelos analistas e repercutiu na imprensa. Ainda mais dado o contexto atual das relações entre a ilha e o continente. Hoje, 20 de maio, “William” Lai Ching-te toma posse como novo presidente de Taiwan. Considerado separatista pelos chineses, sua eleição irritou as autoridades do país, que durante a campanha alertaram os taiwaneses para que não o escolhessem. Os chineses identificam indícios de uma postura separatista nos vários contatos internacionais feitos pelas lideranças do partido de Lai com autoridades estrangeiras.

A pressão chinesa sobre a ilha de Taiwan vem aumentando, tanto pela utilização de meios ostensivamente militares quanto pela adoção de táticas dissimuladas. Assim, ao mesmo tempo em que há o constante sobrevoo de aeronaves militares e a presença de navios de guerra ultrapassando a linha mediana do Estreito de Taiwan, que, historicamente, funcionava como um limite tácito entre ambos os lados, também há um exponencial aumento da presença de barcos civis chineses no entorno da ilha, ou de balões sobrevoando seu espaço aéreo. Essa escalada visa a sobrecarregar as defesas da ilha, normalizando o que seria extraordinário, para que, quando (e se) uma invasão vier, ela não seja facilmente distinguível dos acontecimentos do dia a dia.

A importância econômica e geopolítica de Taiwan vem aumentando no contexto das mudanças em curso no sistema internacional. A produção de semicondutores é uma questão a se destacar. Na ilha, são produzidos cerca de 50% do total global de chips, além de em torno de 90% dos chips mais avançados. Uma interrupção na produção de semicondutores, mesmo breve, devido a um conflito armado, provocaria uma crise econômica grave com impacto mundial, semelhante ao auge da pandemia de covid-19. Se a produção continuasse, mas sob controle chinês, tal cenário seria estrategicamente inaceitável para os Estados Unidos.

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O general Douglas MacArthur, comandante das forças aliadas no Teatro do Pacífico durante a 2.ª Guerra Mundial, afirmou que Taiwan era “um porta-aviões que não poderia ser afundado”. A intenção do general ao usar a metáfora foi a de destacar a enorme importância geoestratégica da ilha para a dinâmica da disputa geopolítica no leste da Ásia. A ilha serviu de trampolim ao império japonês para suas conquistas em direção ao Sudeste Asiático. Depois disso, a partir de 1949, Taiwan serviu à estratégia da contenção norte-americana, uma vez que, em conjunto com a península coreana, as ilhas do Japão e as Filipinas, todas áreas sob a influência dos EUA, conforma uma linha de contenção a dificultar a saída da China para o Pacífico.

A importância de Taiwan transcende os interesses estratégicos de EUA e China, sendo também vital para outros países, como por exemplo o Japão, que tem disputas territoriais com os chineses. O reflexo da percepção japonesa do agravamento do risco geopolítico fica claro com o aumento do orçamento de Defesa de 2023 para 2024 em 16,5%, além da previsão de contínuo crescimento até 2027.

As crises internacionais, como a invasão russa à Ucrânia e o conflito entre Hamas e Israel, juntamente com outros conflitos globais, podem desviar a atenção sobre o que ocorre em Taiwan. No entanto, os desafios enfrentados pela ilha, embora sejam de extrema importância para seus habitantes, transcendem uma mera questão local. Eles constituem um equilíbrio delicado com implicações globais. A situação geopolítica em Taiwan é de vital importância e tem o potencial de se agravar rapidamente, gerando consequências em escala mundial, inclusive afetando o Brasil.

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The dispute between the United States and China and its implications for Brazil in the domains of security and defense

Este artigo foi publicado no Macau Journal of Brazilian Studies, e trata da disputa entre EUA e China, e suas implicações para a Segurança e Defesa do Brasil.

Acesse o jornal – CLIQUE AQUI 

Baixe o arquivo: CLIQUE AQUI

Leia o artigo:

Gomes Filho_Paulo THE DISPUTE BETWEEN THE UNITED STATES AND CHINA




O resultado das eleições presidenciais em Taiwan pode levar a um aumento das tensões com a China

Lai Ching-te, conhecido como William Lai, venceu as eleições em Taiwan, tendo conquistado cerca de 40% dos votos válidos. Hou Yu-ih, candidato do Partido Nacionalista (Kuomintang), obteve 33% dos votos, enquanto Ko Wen-je, candidato de uma terceira via, que se opõe aos dois partidos tradicionais, obteve uma surpreendente votação, com 26% dos votos. O resultado demonstra que os mais de dezenove milhões de eleitores da ilha decidiram manter no poder o grupo governista, do Partido Democrático Popular (DPP), para decepção do presidente Xi Jinping, da China, e de todo o Partido Comunista Chinês.

Lai Ching-te

Lai, um médico com mestrado em Harvard, é o atual vice-presidente. Com a vitória, seu partido iniciará um inédito terceiro mandato consecutivo. Desta forma, os eleitores referendaram a política da atual presidente Tsai Ing-wen, e do DPP, que busca manter Taiwan longe da influência chinesa, procurando evitar conflitos, mas fortalecendo os laços com os Estados Unidos e outros países do Ocidente. Além disso, ele promete também aumentar a capacidade militar de Taiwan e fortalecer a economia da ilha. O apoio da maioria dos eleitores à essa política fica ainda mais claro tendo-se em vista que um dos candidatos vencidos, Hou Yu-ih, do Kuomitang, fez sua campanha prometendo expandir os laços e reiniciar negociações comerciais com Pequim.

Foi o oitavo pleito eleitoral presidencial em Taiwan, que realiza eleições livres e diretas desde 1996. Os chineses não queriam a vitória de Lai, e deixaram isso bastante claro, sugerindo que sua vitória poderia levar Taiwan para mais perto da guerra. A China, que considera Taiwan uma província rebelde que deve ser reincorporada à plena soberania chinesa, vê em Lai um defensor da independência de Taiwan. Na verdade, ele mesmo, embora não tenha adotado essa retórica na campanha eleitoral, enfatizando que não planeja declarar a independência formal da ilha, chegou a declarar no passado ser um “pragmático defensor da independência” da ilha, algo que é absolutamente inaceitável para o governo chinês.

Xi Jinping tem aumentado de forma notável a atividade militar chinesa no entorno da ilha, em uma demonstração que reforça a mensagem que ele quer transmitir a Taiwan, aos chineses e ao mundo: a de que a reunificação é inevitável.

Taiwan é uma ilha de grande importância geoestratégica, posicionada em local fundamental para o comércio e a segurança regionais, já tendo sido definida pelo general norte-americano Douglas MacArthur como um “porta-aviões inafundável” ancorado eternamente em frente à China. Por isso, seu destino está ligado à competição sistêmica em curso entre Estados Unidos e China. Nesse sentido, os EUA devem manter sua postura de ambiguidade, sem reconhecer seu governo como um ente soberano, mas mantendo o apoio militar e relações próximas.

A vitória de Lai é, sem dúvida, um contratempo para Pequim. Suas políticas e atitudes no governo serão acompanhadas muito de perto por chineses e norte-americanos, bem como pelas demais potências mundiais. O mundo não pode ignorar o que acontece nessa pequena ilha, que está no centro do tabuleiro geopolítico global.

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Estados Unidos, Japão e Coreia do Sul estabelecem os Princípios de Camp David

A reunião de cúpula que reuniu os líderes de EUA, Coreia do Sul e do Japão no último dia 18 de agosto, em Camp David, nos Estados Unidos, merece atenção. O mundo vive tempos de evidente acirramento das tensões geopolíticas e os três líderes tentam, ao aproximar ainda mais seus países, ganhar algumas vantagens estratégicas para os desafios que sabem que estão por vir, especialmente no contexto da disputa em curso entre EUA e China, que tem na região do Indo-Pacífico seu principal palco.

Inicialmente, é interessante destacar que os acordos trilaterais, divulgados ao término da reunião, só puderam acontecer porque Japão e Coreia do Sul têm conseguido uma maior aproximação e alinhamento sob os atuais governos de Fumio Kishida e Yoon Suk-yeol. As desconfianças nas relações entre os dois países são históricas, remontando as feridas da ocupação japonesa da península da Coreia, entre 1910 e 1945. Mas, as tensões geopolíticas do momento atual parecem ser de tal ordem desafiadoras que os problemas do passado estão sendo deixados de lado em nome de um maior entendimento.

Afinal, não faltam desafios geopolíticos comuns a japoneses, sul-coreanos e norte-americanos no Indo-Pacífico. A Coreia do Norte é o primeiro deles. Ainda formalmente em guerra com a Coreia do Sul, detentora de armas nucleares, com uma retórica agressiva e desencadeando frequentes testes balísticos e exercícios de tiro, a ditadura de Kim Jong-un volta e meia a causa tensões, inclusive no Japão, onde populações já foram orientadas a procurar abrigo em razão de mísseis norte-coreanos voando em trajetórias potencialmente perigosas.

Os desafios impostos pela China evidentemente também estão no centro das preocupações geopolíticas dos três países. A questão de Taiwan, a maior assertividade chinesa nas disputas no Mar do Sul da China, a reação da China à implementação dos sistemas de defesa antimísseis THAAD pela Coreia, que resultou em retaliações econômicas chinesas contra os coreanos, e a disputa torno das ilhas Senkaku, que os chineses consideram suas e são hoje controladas pelo Japão são alguns exemplos questões sensíveis.

Neste cenário é que foram divulgados os “Princípios de Camp David” (íntegra aqui), que nortearão a ação trilateral. Do texto, destaco os seguintes pontos:

  1. Os três países se comprometem a promover um Indo-Pacífico livre e aberto com base no respeito ao direito internacional, normas compartilhadas e valores comuns. Declaram se opor fortemente “a qualquer tentativa unilateral de mudar o status quo pela força ou coerção”. Nesse trecho há um recado implícito à China em relação a Taiwan, na oposição à mudança do status quo, ou seja, independência de facto de Taiwan, pela força.
  2. Afirmam o compromisso de desnuclearizar a Coreia do Norte. Apoiam uma Península coreana “unificada e livre”. Trata-se de um desafio complexo, uma vez que a Coreia do Norte não renunciará a seu arsenal nuclear enquanto for governada pela dinastia dos Kim.
  3. Fazem referência ao compromisso com boas práticas econômicas, à cooperação na área tecnológica e a compromissos com a busca de soluções para os problemas relacionados às mudanças climáticas.
  4. Em outra mensagem implícita, dessa vez à Rússia e à guerra na Ucrânia, reafirmam o compromisso com a Carta da ONU, especialmente no que se refere à manutenção da soberania e da integridade territorial dos Estados, bem como com a solução pacífica de controvérsias.
  5. Afirmam que o encontro inaugura um novo capítulo no relacionamento entre os três Estados, que passarão a atuar no Indo-Pacífico “como se fossem um só”.

Fora da declaração oficial, mas em entrevistas, foram reveladas as intenções realizar reuniões de cúpula e exercícios militares anualmente, impulsionar mecanismos de comunicação entre os três países e estabelecer uma linha direta para resolução de crises regionais.

Não se trata, portanto, da criação formal de uma aliança militar, fato que certamente geraria enorme oposição de chineses, russos e norte-coreanos. Mas é, sem dúvida, mais uma iniciativa, que se soma ao QUAD e à AUKUS na clara estratégia norte-americana de construção de uma arquitetura de contenção da China no Indo-Pacífico.

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O G7, a guerra na Ucrânia e a China

O Grupo dos Sete (G7), formado por Estados Unidos, Reino Unido, Japão, França, Canadá, Alemanha e Itália, reuniu-se para sua cúpula anual, na cidade de Hiroshima, no Japão, entre os dias 19 e 21 de maio. Além dos países que compõem o grupo, alguns outros foram convidados: Brasil, Índia, Austrália, Coreia do Sul, Vietnã, Indonésia, Ilhas Cook e Comores. Além desses, um chefe de Estado foi recebido, com especial deferência: Volodymyr Zelensky, presidente da Ucrânia, país invadido pela Rússia em 24 de fevereiro do ano passado. Dois assuntos ganharam destaque no encontro: a guerra na Ucrânia e as relações dos países do G7 com a China.

O espectro da guerra em curso no território ucraniano acompanhou toda a reunião. A crise ganhou tal destaque nas conversas que é citada no comunicado final[1] do encontro como primeiro item das medidas concretas que estão sendo tomadas pelo G7: “Estamos tomando medidas concretas para apoiar a Ucrânia pelo tempo que for necessário diante da guerra de agressão ilegal da Rússia”.

A invasão da Ucrânia pela Rússia foi citada como uma séria violação do Direito Internacional, especialmente da Carta da ONU. Em face disso, o G7 se compromete a “intensificar seu apoio diplomático, financeiro, humanitário e militar à Ucrânia, aumentando os custos para a Rússia e aqueles que apoiam seu esforço de guerra e continuar a combater os impactos negativos da guerra sobre o resto do mundo”.

A região do Indo-Pacífico também recebeu destaque na declaração final do encontro. Os países do G7 se disseram comprometidos com um “Indo-Pacífico livre e aberto, que seja inclusivo, próspero, seguro, baseado no estado de direito e que proteja os princípios compartilhados, incluindo soberania, integridade territorial, resolução pacífica de disputas, liberdades fundamentais e direitos humanos”.

As relações dos países do grupo com a China também mereceram uma atenção especial. Eles afirmam que suas políticas não são projetadas para prejudicar a China ou impedir o seu progresso e o desenvolvimento econômico. Pelo contrário, o G7 afirma que uma China em crescimento, que obedeça às regras internacionais, seria de interesse global. Em seguida, entretanto, o grupo afirma que a China praticaria políticas não comerciais, que distorceriam a economia global. O país transferiria ilegalmente tecnologia e divulgaria dados descumprindo as normas internacionais. Outro foco de preocupação do G7 em relação à China é a situação no Mar do Sul da China e em Taiwan. O grupo declarou que se oporia fortemente a qualquer tentativa unilateral de mudança do status quo da região pela força ou pela coerção, em clara referência à situação taiwanesa. Também afirmou ser contrário à militarização do Mar do Sul da China, afirmando que as pretensões territoriais chinesas não encontram amparo na Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Uso do Mar. O grupo ainda se disse preocupado com a situação dos direitos humanos em Xinjiang, no Tibete e em Hong Kong.

Os chineses imediatamente reagiram, se dizendo gravemente preocupados com a declaração. Afirmaram que os países do G7 vêm, ao longo dos últimos anos, interferindo grosseiramente nos assuntos internos da China referentes à Taiwan, Hong Kong, Xijiang e Tibete. Além disso, o grupo semearia a discórdia entre os países no Mar do Sul da China. Em alerta ao Ocidente, os chineses disseram que para a manutenção da paz no Estreito de Taiwan é imperativo que os países do G7 se oponham a qualquer ato que estimule a independência do arquipélago. Os chineses, por fim, pediram ao G7 que “descarte a mentalidade da Guerra Fria e o preconceito ideológico, pare de interferir grosseiramente nos assuntos internos de outros países, pare com a prática de formar pequenos círculos para o confronto em bloco e pare de criar deliberadamente antagonismo e divisão na comunidade internacional”.

As posições apresentadas pelos países que compõem o G7 em sua reunião, que acaba de se encerrar, explicita o momento de intensa disputa geopolítica em curso. A guerra na Ucrânia é um sintoma dessa confrontação, e a troca de acusações entre os países do grupo e a China, é outro. Espera-se que as tensões no Indo-Pacífico não ultrapassem o nível da retórica e evitem a confrontação armada porque, diferentemente da guerra entre russos e ucranianos, onde a participação direta da OTAN no conflito vem sendo evitada, no Mar do Sul da China ou no Estreito de Taiwan essa contenção dificilmente seria possível, o que transformaria tais conflitos em crises muito maiores do que a atualmente em curso na Ucrânia.

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[1] https://www.whitehouse.gov/briefing-room/statements-releases/2023/05/20/g7-hiroshima-leaders-communique/




A China usará seu poder militar em Taiwan?

Mais uma vez se elevaram as tensões no Estreito de Taiwan. A China fez um grande exercício militar, com dezenas de aeronaves e navios de guerra, simulando uma operação de ataque e bloqueio naval do arquipélago.

As manobras se iniciaram imediatamente após o encontro entre a líder taiwanesa, Tsai Ing-wen, e o presidente da Câmara dos Representantes dos EUA, deputado Kevin McCarthy, em território norte-americano. Foi uma repetição do que aconteceu no ano passado, quando a reação chinesa à visita da deputada Nancy Pelosi, antecessora de McCarthy, também foi expressa por intermédio de exercícios militares de vulto em torno da ilha de Taiwan.

A reintegração de Taiwan à soberania chinesa é um ponto central e inegociável para o governo chinês. Trata-se de um objetivo permanente que o Partido Comunista Chinês se impôs atingir até o ano de 2049, data do centenário da República Popular da China.

O uso do instrumento militar para forçar o retorno de Taiwan à soberania chinesa não é descartado nos documentos de segurança de Pequim. Também não o é nos discursos do presidente Xi Jinping. Ao contrário, no discurso de abertura do 20.º Congresso do Partido Comunista, realizado em 16 de outubro do ano passado, o presidente declarou: “Continuaremos a lutar pela reunificação (com Taiwan) pacífica, com a maior sinceridade e o maior esforço, mas nunca prometeremos renunciar ao uso da força, e nos reservamos a opção de tomar todas as medidas necessárias”.

A conjuntura internacional, tensionada a níveis altíssimos pela invasão russa do território ucraniano, adiciona ainda mais complexidade à questão taiwanesa. Embora sejam questões diferentes, a guerra na Europa relembrou a todos que o instrumento militar continua disponível para ser usado pelas nações para alcançar objetivos políticos e estratégicos.

Assim, toda a modernização das forças armadas chinesas ocorrida nas últimas décadas e bastante acelerada nos últimos dez anos sob a liderança de Xi Jinping é claramente voltada para a construção de um instrumento militar capaz de realizar a conquista militar de Taiwan.

A projeção de uma força militar do mar para a terra, a chamada operação anfíbia, que necessariamente ocorre quando se tenta conquistar militarmente uma ilha, talvez seja a mais complexa entre as operações militares. Para fazer face a tal desafio, uma eventual ação militar chinesa para a conquista do arquipélago de Taiwan dependeria de uma marinha poderosa, capaz de isolar o arquipélago de forma que os taiwaneses não recebessem apoio externo de seus aliados. Os chineses já superam os norte-americanos em número de navios de guerra, somando cerca de 340 belonaves. Os submarinos, as armas mais adequadas à missão clássica das marinhas de negar ao adversário o uso do mar, fundamentais num bloqueio naval, são contados, na China, às dezenas: 6 submarinos lançadores de mísseis balísticos intercontinentais, 9 de ataque de propulsão nuclear e 56 convencionais, de motor diesel/elétrico. Quando Xi Jinping chegou ao poder, a China não possuía nenhum porta-aviões. Hoje, o país já tem dois, sendo um de fabricação própria, e há um terceiro em construção. Os navios-escolta, fragatas, corvetas, contratorpedeiros, entre outros, somam mais de uma centena.

Junte-se a isso a modernização estrutural das forças armadas, que foram reunidas por Xi Jinping em comandos conjuntos permanentemente ativados, e a transformação das demais forças, com a mecanização completa do exército e o seu desenvolvimento em múltiplos domínios, com moderna missilística, meios de guerra eletrônica e cibernética.

Ainda assim, uma opção militar seria arriscadíssima para Pequim. Suas forças armadas carecem de experiência de combate e sua cultura organizacional desencoraja a iniciativa das lideranças intermediárias, o que pode ser um problema grave numa operação altamente descentralizada como o são os assaltos anfíbios que projetariam as forças chinesas em Taiwan.

Além disso, há o possível adversário extracontinental. As forças armadas norte-americanas são a mais poderosa máquina de guerra já formada. Até que ponto haveria um decisivo engajamento do poder militar norte-americano em face de um ataque chinês à ilha é uma questão em aberto. Via de regra, países somente se envolvem diretamente em conflitos militares na defesa de seus interesses vitais. Os interesses dos EUA na manutenção do atual status quo do Estreito de Taiwan são, sem dúvida, consideráveis, mas não se tem como certeza de que sejam suficientes para fazer com que se envolvam diretamente num conflito naquela região.

A guerra é a maior de todas as adversidades. Foi o general Eisenhower, justamente o comandante da mais importante operação anfíbia da História – o assalto das tropas aliadas às praias da Normandia, no dia D –, que afirmou: “Odeio a guerra como só pode odiá-la um soldado que a vivenciou, sua brutalidade, sua estupidez”. Esperemos que os tambores da guerra não voltem a ser ouvidos Estreito de Taiwan.

Este artigo foi originalmente publicado no jorna O Estado de São Paulo, em 23 de abril de 2023

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Principais pontos da declaração conjunta entre Brasil e China

A viagem marca o 30º ano da Parceria estratégica Brasil-China. 2024 será o 50º ano das relações diplomáticas entre os dois países.

1. As duas partes reafirmaram o compromisso com valores considerados comuns, como a paz, desenvolvimento, equidade, justiça, democracia e liberdade. Salientaram a importância do direito internacional e o papel central da ONU nas relações internacionais.

2. O Brasil reiterou sua aderência ao princípio de uma só China, com Taiwan sendo parte inseparável do Estado chinês.

3. Os dois lados reconheceram a necessidade de se reformar o Conselho de Segurança da ONU. Entretanto, a China afirmou “compreender e apoiar” que o Brasil desenvolva um papel “mais proeminente” na organização, sem textualmente apoiar o pleito brasileiro de tornar-se membro permanente no Conselho de Segurança.

4. Em relação à guerra na Ucrânia, os dois países reafirmaram que o diálogo e a negociação são as únicas saídas viáveis para a crise. Nenhuma ação prática de tentativa de intermediar negociações de paz foi anunciada.

5. Brasil e China decidiram fortalecer sua cooperação na área de proteção ambiental e combate à mudança do clima. Os dois países querem trabalhar conjuntamente nas áreas de energias renováveis, transição e eficiência energética, com ênfase em bioenergia, hidrogênio e combustíveis sustentáveis para aviação, e promover investimentos recíprocos, pesquisa e inovação na área de transição energética.

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6. A China anunciou apoio à candidatura da cidade de Belém para ser a sede da COP-30, em 2025.

7. Os dois países sublinharam o papel relevante da Comissão Sino-Brasileira de Alto Nível de Concertação e Cooperação (COSBAN). O Brasil não se comprometeu em aderir à iniciativa do Cinturão e da Rota, a chamada “Nova Rota da Seda”.

8. Brasil e China deverão aumentar o intercâmbio nas áreas da cultura, turismo, educação e esporte, inclusive com a celebração de acordos para coprodução televisiva e cinematográfica. Também se afirmou a intenção de aumentar os intercâmbios acadêmicos e o ensino dos respectivos idiomas.

9. As duas partes reafirmaram o valor estratégico da cooperação bilateral em agricultura e comércio agrícola, pesca e aquicultura.

10. As duas partes concordaram em incentivar ativamente empresas dos dois países a fazer investimentos recíprocos, em particular nas áreas de infraestrutura, transição energética, logística, energia, mineração, agricultura, indústria, sobretudo de alta tecnologia, além do setor aeroespacial e de tecnologia da informação e comunicações. Nesse sentido, foi assinado o Protocolo Complementar para o Desenvolvimento Conjunto de CBERS-6 e o Plano de Cooperação Espacial 2023-2032 entre o Brasil e a China.

11. O Brasil reiterou o convite para os investidores da China ampliarem seus investimentos no Brasil, com ênfase no Programa de Parcerias de Investimentos (PPI).

12. Os dois países fortalecerão o comércio em moedas locais.

Como se vê, foi uma declaração que abrangeu um amplo espectro de assuntos. Não houve, entretanto, nenhuma surpresa ou anúncio que possa ser considerado bombástico.

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Consulte a declaração em https://www.gov.br/mre/pt-br/canais_atendimento/imprensa/notas-a-imprensa/declaracao-conjunta-entre-a-republica-federativa-do-brasil-e-a-republica-popular-da-china-sobre-o-aprofundamento-da-parceria-estrategica-global-pequim-14-de-abril-de-2023 




Xi Jinping e Putin se encontram em Moscou

O presidente da China, Xi Jinping viajou à Rússia, onde se encontrou com o presidente Vladimir Putin, pela quadragésima vez desde que se tornou presidente, em 2013. Tendo sido seu primeiro destino depois de assumir seu terceiro mandato, foi um encontro muito significativo, especialmente por ocorrer em meio à invasão russa à Ucrânia. Até por isso, foi um movimento criticado no Ocidente, onde vozes europeias e norte-americanas denunciaram a visita como uma demonstração explícita do apoio chinês à Rússia.

No documento conjunto[1] divulgado após o encontro, Xi e Putin reafirmaram a solidez da parceria entre os dois países, afirmando que “as relações russo-chinesas […] atingiram o nível mais alto de sua história e continuam a se desenvolver de forma constante”. Os dois países declararam não constituírem uma aliança político-militar nos moldes da Guerra Fria, mas uma “forma superior” de interação estatal, que não se dirige contra terceiros países. Disseram notar a grande velocidade das transformações em curso no mundo, que estaria rumando aceleradamente para um modelo multipolar, em que potências regionais teriam o legítimo direito de defender seus interesses. Para os dois líderes, entretanto, manifestações de hegemonismo, unilateralismo e protecionismo ainda seriam generalizadas no sistema internacional, em uma afirmação claramente endereçada aos EUA.

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Os dois presidentes concordaram em fornecer apoio mútuo na proteção dos interesses fundamentais de cada um de seus Estados, principalmente soberania, integridade territorial, segurança e desenvolvimento; reafirmaram o interesse em aprofundar e expandir a cooperação no processo de modernização de seus países e declararam trabalhar para promover “uma ordem mundial multipolar, a globalização econômica e a democratização das relações internacionais”, para o desenvolvimento de uma “governança global de forma mais equitativa e racional”.

Novamente tendo os EUA como alvo, o documento informa que China e Rússia “se opõem à que um Estado imponha os seus valores a outros Estados, traçando linhas ideológicas, criando uma falsa narrativa sobre o chamado confronto entre democracias e autocracias, usando a democracia e a liberdade como pretexto e instrumento político para pressionar outros Estados” e que “cada Estado tem o direito de escolher independentemente o caminho do desenvolvimento no campo dos direitos humanos”, opondo-se a interferência de forças externas em assuntos internos.

Foram fechados diversos acordos, além de promessas de maior integração nas áreas de Defesa, do comércio bilateral, do setor financeiro, apoiando a expansão do uso de moedas nacionais em suas trocas comerciais, dos setores de energia, indústria, espacial, educacional, cultural e da ciência e tecnologia. As duas partes concordaram ainda em prover a integração entre a União Econômica da Eurásia e a Iniciativa Cinturão e Rota, ou One Belt, one Road.

Em relação à segurança internacional, Putin e Xi Jinping disseram que nenhum Estado deve garantir sua segurança em detrimento da segurança de outro Estado. Essa afirmação se coaduna perfeitamente com a retórica de Putin em relação à ameaça que a aproximação da OTAN das fronteiras russas representaria ao seu país. Os dois líderes também expressaram séria preocupação com a parceria trilateral AUKUS (Austrália – Reino Unido – EUA, para fornecimento de submarinos de propulsão nuclear à Austrália), a qual acusaram de ameaçar a estabilidade estratégica na região do Indo-Pacífico.

Tendo Xi Jinping chegado à Moscou após ter divulgado seu plano de doze pontos para a celebração da paz entre Rússia e China, havia expectativa de que ocorresse algum anúncio nessa direção. Entretanto, a visita não trouxe nenhuma contribuição efetiva para a paz. Anunciou-se entretanto, que o presidente Xi Jinping pretende conversar com o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky sobre sua proposta para o fim das hostilidades.

Durante a visita houve ainda um episódio muito representativo do atual momento de transformações geopolíticas. Ao se despedirem de uma das reuniões, antes de entrar no carro, em frente aos repórteres, Xi disse a Putin que o mundo está vivendo um momento de mudanças, como não se vê há cem anos, e que são eles próprios, os dois líderes, que as estão promovendo. Putin respondeu, concordando. Ao afirmar isso perante as câmeras, Xi assume o protagonismo chinês e concede aos russos um papel relevante no processo de transição em curso no ambiente internacional, rumo a um mundo multipolar, mesmo que o papel da Rússia nessa transformação esteja sendo desempenhado preponderantemente pelo uso do poder militar, em uma guerra de conquista de territórios que contraria princípios basilares do direito internacional.

A viagem de Xi Jinping à Rússia não deixa margem para dúvida acerca do alinhamento das duas nações, acima de qualquer outra relação bilateral que ambos os países possam ter, em claro desafio aos EUA e ao Ocidente que tentam isolar a Rússia. A China, entretanto, redobra a aposta no relacionamento com aquele país. O cálculo chinês passa pela convicção de que um futuro confronto com os EUA no campo militar, se não é uma certeza, é uma possibilidade. E, nesse caso, a China precisará contar com o valioso apoio russo nos campos militar e tecnológico, bem como de seus valiosos estoques de energia.

[1] http://kremlin.ru/supplement/5920

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