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As Ilhas Salomão são novo palco de disputa geopolítica no Pacífico

O recente anúncio de um de acordo entre a China e as Ilhas Salomão, um arquipélago formado por centenas de ilhas localizado a cerca de 2 mil quilômetros da Austrália causou apreensão na própria Austrália, na Nova Zelândia e nos Estados Unidos.

O acordo possibilitará que a China utilize os portos da capital Honiara para reabastecimento e ressuprimento dos navios da sua marinha. O texto ainda prevê a possibilidade de a China manter efetivos militares na ilha, com a finalidade de proteger empresas e cidadãos chineses, além de um acordo que forneceria “imunidade legal e judicial” para todo o pessoal chinês.

O aumento da influência chinesa na área acende a disputa geopolítica em curso na região do Indo-pacífico. Para se compreender melhor esse fenômeno, é necessário entender as condicionantes históricas e geopolíticas das Ilhas Salomão.

O arquipélago, constituído por seis ilhas principais e centenas de ilhas menores, localiza-se a leste de Papua Nova Guiné, a cerca de 2.000 Km da Austrália.

Figura 1 – Ilhas Salomão / Fonte – Google Maps

No ano de 1900, alemães e britânicos entraram em acordo, com os ingleses efetivando seu domínio colonial sobre o arquipélago. Durante a Segunda Guerra Mundial, as ilhas foram palco de várias batalhas entre japoneses e aliados. A vitória aliada na batalha de Guadacanal, em agosto de 1942, marcou o ponto de virada do conflito naquele Teatro de Operações, com os norte-americanos freando o avanço japonês e iniciando a contraofensiva.

Somente em 1978 as ilhas se tornaram independentes do Reino Unido, passando a integrar a Comunidade Britânica. A partir do final dos anos 1990, a violência étnica tomou grandes proporções no país, com o surgimento de movimentos nacionalistas nas ilhas de Guadacanal e Malaita. Em 2001, a crise econômica tomou graves proporções e o Estado faliu, incapaz de arcar com suas obrigações.

Em 2003, a Austrália liderou uma missão de pacificação nas ilhas, denominada Missão de Assistência Regional às Ilhas Salomão (RAMSI), que contou também com tropas da Nova Zelândia e Papua Nova Guiné, além de outras nações insulares do Pacífico. Essa missão se estendeu até 2013, quando foi encerrada, com o retraimento da maior parte das tropas. Entretanto, pequenos efetivos ainda foram mantidos em missão de “assistência policial”.

Em 2019, Manasseh Sogavare, político influente desde 2000, é eleito primeiro-ministro e Salomões muda sua política em relação à China. O país, que tinha um antigo relacionamento com Taiwan, corta relações com os taiwaneses e celebra relações com os chineses. A decisão não encontra unanimidade no país. O líder político da ilha de Malaita critica com veemência a mudança e sugere que a ilha deveria buscar independência.

Visto o contexto histórico que emoldura a atual aproximação da China com o arquipélago, passemos a algumas observações de caráter geopolítico.

A China tem sua saída para o Oceano Pacífico contida por duas cadeias de ilhas.

Figura 2 – Duas cadeias de ilhas / Fonte wikipedia

As duas cadeias de ilhas foram definidas pelos EUA e seus aliados, na década de 1940, como uma forma de conter a então União Soviética e a China Comunista. Assim, tais ilhas, se mantidas dentro da esfera de influência norte-americana, serviriam de obstáculo ao avanço dos interesses dos adversários dos EUA na região do Pacífico. A primeira cadeia de ilhas compreende as Curilas, as principais ilhas do Japão, Okinawa, Taiwan, a parte norte dos arquipélagos das Filipinas, e a Península Malaia. A segunda cadeia consiste nas ilhas do Japão que se estendem até Guam e as ilhas da Micronésia.

Os chineses sabem que para se tornar um poder dominante na Ásia precisam controlar as rotas marítimas do Oceano Pacífico. Por isso, eles têm dado prioridade à sua marinha, que tem se desenvolvido de forma impressionante nos últimos anos. Ela é, atualmente, em número de navios, a maior marinha do mundo, com cerca de 350 plataformas, dentre navios de superfície, submarinos, navios de assalto anfíbio, navios-aeródromo (porta-aviões), navios anti-minas, dentre outros.

O Livro Branco de Defesa da China, de 2019, ressalta que a marinha do país está deixando o patamar de ser uma marinha que faz a “defesa dos mares próximos” para passar a ser uma marinha que cumpre “missões de proteção em mares distantes”.

A marinha é composta por seus meios navais, sua aviação e pelo corpo de Fuzileiros Navais. Dispõe de três frotas, subordinadas aos Teatros Norte, Leste e Sul. Conta com dez submarinos nucleares, sendo quatro lançadores de mísseis intercontinentais e seis de ataque, além de outros 50 submarinos convencionais. Conta, ainda, com dois porta-aviões, um deles construído localmente.

O Corpo de Fuzileiros Navais, com 8 Brigadas, tem aumentado sua capacidade anfíbia, com foco no Mar do Sul da China e em Taiwan. Além disso, eles mobíliam a base que a China mantém no Djibuti.

Apoiada nesse poderio militar, a China vem estabelecendo instalações de comunicações, campos de pouso e portos, posições fixas de armas e guarnições militares nas Ilhas Spratly, no Mar do sul da China, desde 2018.

Figura 3 – Mar do Sul da China / Fonte wikipedia

A Guarda Costeira Chinesa, por sua vez, frequentemente assedia embarcações de pesca e pesquisa de outros Estados com os quais o país disputa a posse e a exploração econômica no Mar do Sul da China. São recorrentes episódios como aquele em que um navio de guerra chinês marcou a laser um navio da Marinha das Filipinas, ou outro, em que um navio de pesquisa chinês entrou ilegalmente na zona econômica exclusiva marítima da Malásia e perseguiu um navio contratado de uma empresa estatal de petróleo daquele país. Há também casos em que navios da Guarda Costeira chinesa assediaram navios de pesca japoneses nas Ilhas Diaoyu/Senkaku, disputadas entre os dois países (e também pelos taiwaneses, que as denominam Tiaoyutai).

Figura 4 – Ilhas Senkaku/Dyaoyu / Fonte wikipedia

O assédio de navios estrangeiros de Diaoyu/Senkaku até a Península Malaia, e a militarização das ilhas contestadas, no sul, expõe a intenção e a estratégia da China de controlar a primeira cadeia de ilhas, aspiração que somente poderá ser alcançada, de fato, com o retorno de Taiwan à soberania chinesa.

O desenvolvimento de uma presença militar forte e permanente na primeira cadeia de ilhas daria à China o controle das principais rotas marítimas na Ásia e a ajudaria a se estabelecer como uma potência global dominante. Mas não seria suficiente. Projetar poder em áreas mais distantes, e além, inclusive, da segunda cadeia de ilhas, seria um passo decisivo.

A aproximação chinesa das Ilhas Salomão, quando observada em conjunto com outras ações estratégicas recentes, como a aproximação de Vanuatu, onde já se especulou a possibilidade de o país estar preparando a construção de uma base naval[1], de Papua Nova Guiné, transformada em parceira estratégica da China em 2018[2], das obras chinesas na Base Naval de Ream, no Camboja[3], além das atividades no Oceano Índico, como a aquisição do Porto de Hambantota no Sri Lanka[4], além do Porto de Gwadar, no Paquistão[5], demonstra claramente que as ambições do país vão muito além da primeira cadeia de ilhas.

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[1] Saiba mais em  https://www.smh.com.au/politics/federal/china-eyes-vanuatu-military-base-in-plan-with-global-ramifications-20180409-p4z8j9.html

[2] Saiba mais em https://www.scmp.com/news/china/diplomacy/article/2173654/china-agrees-upgrade-relations-strategically-important-papua

[3] Saiba mais em https://amti.csis.org/changes-underway-at-cambodias-ream-naval-base/

[4] Saiba mais em https://revistacargo.pt/hambantota-sri-lanka-china/

[5] Saiba mais em https://www.revistamilitar.pt/artigo/217




A estratégia norte-americana no Indo-Pacífico

O governo dos EUA acaba de divulgar sua Estratégia para a Região do Indo-Pacífico. Logo na primeira frase do documento, os norte-americanos afirmam: “Os EUA são uma potência do Indo-Pacífico”. Tal afirmação se baseia em uma interpretação bastante elástica para definir os limites da área, muito mais ampla do que a habitualmente proposta pelos geógrafos, que restringem aquela região à bacia do Índico, ao Sul e Sudeste Asiático e à Oceania. Os EUA aproveitam o fato de serem banhados pelo Pacífico para definir a região como sendo a imensa área, estendida desde sua própria costa oeste até o Oceano Índico, lar de mais da metade da população do mundo, de quase 2/3 da economia mundial e de sete dos dez maiores exércitos do planeta.

Para os norte-americanos, o Indo-Pacífico é vital. Assim, eles resolveram reafirmar seu interesse na região, exatamente no momento histórico em que China e Rússia se posicionam como polos de poder mundial, declaram uma amizade mútua “sem limites” e desafiam abertamente o poderio norte-americano.

No documento, não só se ressalta a importância que a região tem para os EUA, mas também se afirma que os laços com os países da área remontariam a dois séculos, quando os norte-americanos teriam buscado estabelecer contatos comerciais na região. Tais laços teriam sido reforçados pela imigração asiática para os EUA. O documento ainda relembra a atuação de seus militares na 2º Guerra Mundial e as alianças do país com Japão, Coreia do Sul, Austrália, Filipinas e Tailândia.

A estratégia foca em cinco (5) objetivos principais, listados a seguir, os quais serão analisados na sequência:

1. Garantir que a região permaneça “livre eaberta”;
2. Construir conexões no interior e além da região;
3. Conduzir a região à prosperidade;
4. Fortalecer a segurança regional; e
5. Construir uma resiliência regional face às ameaças transnacionais do século 21.

Garantir que a região do Indo-Pacífico permaneça livre e aberta

O primeiro objetivo é um recado nada sutil aos chineses. Segundo o documento, os EUA garantirão aos países da região a tomada de decisões, consistentes com as leis internacionais, de forma independente e livre de coerção. Também ocorrerá o fortalecimento da liberdade de imprensa, das instituições democráticas e uma “vibrante sociedade civil”. A liberdade e a segurança da internet e do ciberespaço são listadas como prioridade, além da garantia do cumprimento das leis internacionais no que se refere aos mares do Sul da China e do Leste da China.

Construir conexões no interior e além da região

O segundo objetivo reforça a importância que os EUA atribuem às alianças com seus tradicionais parceiros na região, afirmando que se
pretende fortalecer as relações com outros países do Indo-Pacífico. Reafirma-se a importância da parceria com o Japão, a Austrália e a Índia no chamado “Diálogo Quadrilateral de Segurança – Quad” e se reforça a importância da Associação das Nações do Sudeste Asiático – ASEAN, afirmando-se o apoio à aproximação daquele grupo com o Quad e também com as nações do sul da Ásia. Os EUA afirmam, ainda, querer contribuir com a construção de pontes entre o Indo-Pacífico e a região Euro-Atlântica, além de estreitar a coordenação das ações dos países da região na Organização das Nações Unidas.

Conduzir a região à prosperidade

O terceiro objetivo reforça que a prosperidade dos americanos está diretamente ligada à região. O comércio entre os EUA e o Indo-pacífico somou US$$1,75 trilhões em 2020, gerando 5 milhões de empregos e os EUA pretendem estabelecer o “Indo-Pacific economic framework”, uma estrutura voltada para a facilitação do comércio, estabelecimento de padrões para a economia digital e tecnologia, criação de resiliência da cadeia de suprimentos, descarbonização e geração de energia limpa, infraestrutura, padrões de trabalho e outras áreas de interesse compartilhado.

Fortalecer a segurança regional

O penúltimo objetivo colimado pela Estratégia trata da segurança regional. O país está presente na região há 75 anos e lá permanecerá,
aperfeiçoando suas capacidades a fim de defender seus interesses e dissuadir agressões ou coerções feitas contra o próprio país ou contra aliados. O documento reafirma que o país continuará empenhado, junto com os parceiros e aliados regionais, na manutenção da estabilidade no Estreito de Taiwan. Afirma-se que a parceria de Defesa com a Índia será reforçada e que os EUA continuarão comprometidos com a
desnuclearização da Península Coreana.

Construir uma resiliência regional face às ameaças transnacionais do século 21

O quinto e último objetivo traçado é o de construir uma resiliência regional face às ameaças transnacionais do século 21. A ameaça destacada é a crise climática, cujo epicentro seria a própria região do Indo-Pacífico, área onde ocorrem 70% dos desastres naturais do mundo. Assim, os EUA se comprometem a estabelecer, junto com os parceiros da região, objetivos, estratégias, planos e políticas com vistas a limitar o aquecimento global a 1,5° Celsius. O enfrentamento da pandemia da Covid-19 também é destacado como um dos esforços que será apoiado pelos EUA.

Para implementar a estratégia e alcançar os objetivos mencionados, o documento lista ações que serão adotadas em até dois anos, reunidas em 10 linhas de esforço, as quais estão resumidas a seguir.

  1. Direcionar novos recursos para a região do Indo-Pacífico: abrir novos consulados e embaixadas, particularmente no sudeste asiático e nas ilhas do Pacífico, expandir a cooperação da Guarda Costeira norte-americana aos países insulares do Pacífico e aos do sudeste asiático
  2. Lançar a Indo-Pacific Economic Framework, uma nova parceria econômica que pretende promover e facilitar as transações econômicas, criar uma governança para a economia digital, melhorar a resiliência das cadeias de suprimentos, catalisar investimentos em infraestrutura e conectividade digital, de forma a dobrar os laços econômicos dos EUA com a região.
  3. Reforçar a dissuasão, de modo a defender os interesses dos EUA e de seus aliados na região, inclusive no Estreito de Taiwan, pelo incremento das capacidades militares, aumento das atividades militares e das iniciativas da Indústria de Defesa. Outro caminho mencionado é a busca do melhor formato para a parceria AUKUS, de modo que a Austrália tenha um submarino de propulsão nuclear no mais curto prazo.
  4. Fortalecer a ASEAN. Os Estados Unidos estão fortalecendo os laços EUA-ASEAN, inclusive promovendo uma Cúpula Especial EUA-ASEAN – a primeira a ser realizada em território norte-americano, em Washington.
  5. Apoiar o crescimento da Índia e sua liderança regional, desenvolvendo a parceria estratégica com o país, de modo a “promover a estabilidade no Sul da Ásia”.
  6. Fortalecer o Quad, de modo que o grupo trate das questões que importam para a região do Indo-Pacífico. O grupo estimulará o desenvolvimento de tecnologias emergentes, e fomentará a cooperação em diversas áreas.
  7. Expandir a cooperação trilateral entre EUA, Japão e Coreia do Sul, não somente nos assuntos relativos à Coreia do Norte e à segurança da península coreana, mas também na área de tecnologias críticas e questões de cadeias de suprimentos.
  8. Parceria para aumentar a resiliência das nações insulares do Pacífico, especialmente em relação aos efeitos das mudanças climáticas, além de colaboração em outros setores, como na tecnologia da informação e comunicações, transportes, navegação e pesca.
  9. Apoio à boa governança e à prestação de contas, apoiando ações dos governos que erradiquem a corrupção e também a sociedade civil e jornalistas para que se garanta que eles possam “expor e mitigar o risco de interferência estrangeira e manipulação da informação”. Os EUA continuarão a defender a democracia em Mianmar pressionando a junta militar a proporcionar um retorno do país à democracia.
  10. Apoiar a manutenção de uma estrutura tecnológica digital aberta, segura e confiável, especialmente garantindo diversidade de fornecedores de serviços de nuvem e de telecomunicações, inclusive por meio de tecnologias inovadoras, e aumentando a resiliência e a segurança cibernéticas.

Na conclusão do documento, o governo norte-americano afirma que sua política exterior entra em um novo período, que exigirá que os EUA se dediquem à região do Indo-Pacífico de uma forma que não lhes foi exigida desde o fim da 2ª Guerra Mundial. Afirma que os interesses vitais do país na região se tornaram ainda mais claros e difíceis de proteger, e que a próxima década será decisiva para o futuro da região, dos EUA e do mundo.

Como se vê, os EUA reagem ao exponencial crescimento da influência chinesa na região, que ganhou muita velocidade com a iniciativa Belt and Road (Cinturão e Rota), que injetou bilhões de dólares em obras de infraestrutura em toda a região. Também reage à maior assertividade geopolítica chinesa, que vem desenvolvendo aceleradamente suas forças armadas, em especial sua marinha, que se projeta cada vez mais para a toda a região do Indo-Pacífico.

O lançamento da Estratégia consubstancia a reação norte-americana, demonstrando que o país não pretende renunciar a sua liderança política, econômica, militar e cultural, nem mesmo na região do Indo-Pacífico, natural área de influência da China. Mais do que isso, a Estratégia indica com clareza, que a prioridade dos norte-americanos não pode ser mais identificada na Europa ou no Oriente-Médio. Ela migrou, definitivamente, para o extremo Oriente.

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Xi Jinping pavimenta o caminho para se perpetuar no poder na China

O evento de política doméstica mais relevante nos últimos tempos na China foi a reunião do 19º Comitê Central do Partido Comunista Chinês (PCC), ocorrida entre 8 e 11 de novembro. No evento, realizado a portas fechadas, foi aprovada uma “resolução histórica”, elevando Xi Jinping ao patamar ocupado apenas por Mao Zedong, o líder da revolução que fundou a República Popular da China, e Deng Xiaoping, o artífice da modernização econômica do país.

É apenas a terceira vez na centenária história do PCC que a denominação “resolução histórica” é utilizada. Nas duas primeiras, elas marcaram importantes viradas políticas. A primeira foi em 1945, antes mesmo da fundação da República Popular da China, quando o partido consolidou a autoridade de Mao Zedong e estabeleceu seu pensamento como um conjunto de crenças que guiou o partido e a própria China a partir da vitória dos comunistas em 1949.

A segunda vez foi em 1981, quando Deng Xiaoping liderou a modernização da economia do país, condenando o extremismo ocorrido durante a Revolução Cultural e os erros na condução da economia durante a política do “Grande Salto Adiante”, responsáveis pelo caos econômico que levou milhões de chineses à morte por fome, na década de 1960.

Agora, a liderança do PCC reavalia a história centenária do partido, assegurando a Xi Jinping um lugar entre as maiores lideranças da China comunista.

O movimento ocorre em um momento muito adequado às ambições do líder chinês. No próximo ano, haverá o Congresso do Partido Comunista que, muito provavelmente, consagrará o terceiro mandato de Xi, garantindo-lhe mais um período consecutivo à frente dos chineses. Um acontecimento sem precedentes desde Deng Xiaoping, e que exigiu uma mudança na constituição chinesa, feita em 2018, pelo próprio Xi Jinping.

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A reunião trouxe, no mínimo, dois fortes indícios de que Xi Jinping não pensa em deixar o poder. Normalmente, novos líderes são promovidos a posições de destaque nesses encontros, de forma a testá-los e a indicar que eles poderão ser alçados a posições ainda maiores, em substituição aos líderes que encerram seus mandatos. Foi o que aconteceu em 2010, quando o próprio Xi Jinping foi promovido a vice-presidente do Comitê Militar Permanente. Dois anos depois, em 2012, ele substituiria Hu Jintao na presidência. Nessa reunião, bem como nas anteriores, não houve nenhuma promoção digna de nota. Nenhuma nova liderança capaz de fazer sombra a Xi Jinping surgiu na China nos últimos anos. O segundo indício foi a própria divulgação de uma “resolução histórica”. Dificilmente Xi Jinping prepararia algo tão importante para ser implementado por outra pessoa, que não ele próprio.

No comunicado oficial da reunião[1], se destaca que “o pensamento de Xi Jinping sobre o socialismo com características chinesas para uma nova era é o marxismo chinês contemporâneo, o marxismo do século 21 e a essência da cultura e do espírito chineses. Ele deu um novo salto na sinicização do marxismo. O partido estabeleceu o camarada Xi Jinping como o núcleo do Comitê Central do Partido e a posição central de todo o partido, e estabeleceu a posição de liderança de Xi Jinping na nova era do socialismo com características chinesas.”

Como se vê, o culto à personalidade de Xi Jinping, que é alçado a uma condição de liderança inconteste, ganha enorme força. A mensagem a ser transmitida ao povo chinês e ao mundo é a de que ele é a única pessoa capaz de conduzir a China à condição de superpotência.

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Mesmo com seu poder praticamente absoluto, Xi Jinping precisa lidar com as lideranças do PCC. Ele vem fazendo isso desde que iniciou sua campanha anticorrupção, logo no início do primeiro mandato, afastando corruptos, mas também, segundo seus desafetos, potenciais adversários dentro do partido. E o movimento da semana passada parece ter sido o seu “xeque-mate”. Se nenhum evento imprevisível ocorrer, o mundo terá que se acostumar com a presença de Xi Jinping na liderança da China ainda por muitos anos.

 

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[1] Disponível em http://www.news.cn/politics/2021-11/11/c_1128055386.htm




A nova aliança militar entre EUA, Reino Unido e Austrália

No dia 15 de setembro, um pronunciamento feito pelo presidente Joe Biden, com a participação virtual dos primeiros-ministros britânico, Boris Johnson, e australiano, Scott Morrison, causou protestos da China e indignação na França: EUA e Reino Unido acordavam em repassar para Austrália a tecnologia necessária para a produção local de submarinos de propulsão nuclear.

Os protestos chineses são compreensíveis. Afinal, embora o nome da China não tenha sido citado em nenhum momento, é óbvio que a posse de submarinos nucleares pela Austrália tem a finalidade de conter a emergente potência asiática, detentora da maior Marinha do mundo em quantidade de meios navais e cada vez mais assertiva em suas ações no Mar do Sul da China. Aquela porção do Oceano Pacífico, que vai de Cingapura a Taiwan, é o palco da disputa entre a China e os países da região, envolvendo a exploração econômica dos recursos marinhos, a posse de centenas de pequenas ilhas e o acesso ao Oceano Índico via Estreito de Málaca.

Submarinos de propulsão nuclear são armas poderosíssimas. Enquanto um submarino convencional tem sua permanência submersa limitada, necessitando subir à superfície para recarregar suas baterias, um submarino nuclear pode ficar muito mais tempo submerso. Na prática, este tempo é limitado pela capacidade física e psicológica das tripulações e pelo estoque de víveres disponível. É muito mais rápido que o convencional e incomparavelmente mais furtivo, ou seja, de detecção muito mais difícil pelo inimigo. Uma flotilha de submarinos nucleares australianos navegando sob as águas do Mar do Sul da China seria um pesadelo para os militares chineses.

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Mas, se a reação chinesa podia ser esperada, a reação da França talvez tenha surpreendido norte-americanos, australianos e britânicos. O ministro das Relações Exteriores francês, Jean-Yves Le Drian, qualificou o acordo como “brutal” e uma “facada nas costas”. O presidente francês, Emmanuel Macron, determinou que os embaixadores franceses nos EUA e na Austrália fossem à França, “para consultas”. Como se sabe, essa é uma forma de expressar um profundo descontentamento. As razões francesas são predominantemente comerciais. O país havia firmado um acordo com os australianos para a venda de submarinos convencionais, no valor de US$ 66 bilhões. Agora, o acordo foi desfeito. Um enorme prejuízo. Mas esta não é a única causa de descontentamento. A França é uma aliada histórica dos EUA. Aliás, foi o primeiro país com quem os norte-americanos firmaram uma aliança militar, em 1778, quando os franceses com eles ombrearam contra os ingleses na guerra pela independência. Hoje, é um importante membro da Otan. Ao serem surpreendidos pelo acordo, os franceses se sentiram traídos.

O movimento de norte-americanos e britânicos, ocorrido imediatamente depois da completa e traumática retirada dos EUA e aliados do Afeganistão, emite sinais claros para toda a comunidade internacional. Os EUA mostram que o seu foco prioritário passa a ser a China e que o país não medirá esforços para conter aquele que considera ser o seu maior adversário geopolítico neste século 21. O Reino Unido, por sua vez, depois do Brexit, demonstra seu alinhamento prioritário com os EUA e reforça sua intenção de se manter relevante do ponto de vista geopolítico. Trata-se de uma ação dentro da Estratégia Global Britain, lançada por Boris Johnson, que vê o Reino Unido desvencilhado da Europa, como uma das mais influentes nações do planeta.

É interessante notar que a aliança entre EUA, Reino Unido e Austrália foi anunciada ao mesmo tempo que o Japão faz seu maior exercício militar em 30 anos, empregando cerca de 100 mil militares, em meio a um aumento das tensões com a China em torno da posse das ilhas Senkaku, que os chineses consideram suas e chamam de Diaoyu Dao. Note-se, também, que o Japão acaba de anunciar um acordo militar com o Vietnã, que envolve a realização de exercícios militares conjuntos entre os dois países e exportações de materiais de emprego militar dos japoneses para os vietnamitas.

Ao mesmo tempo que os EUA e seus maiores aliados no Indo-pacífico adotam atitudes cada vez mais assertivas no sentido de conter a China, esta se movimenta na direção contrária, projetando seu poder em direção ao Ocidente. Isso fica claro, por exemplo, quando China e Rússia aceitam o Irã como membro pleno da Organização para Cooperação de Xangai ou na assertividade com que o país se comporta em relação ao Afeganistão, ocupando o vácuo deixado por EUA e seus aliados.

“Na briga entre o mar e o rochedo, é o marisco que apanha”, diz o dito popular. O sistema internacional passa por um momento de reacomodação, no qual os movimentos de chineses e norte-americanos exigirão muita atenção dos demais países, que devem estar atentos para não verem comprometidos seus próprios interesses estratégicos. Ninguém está a salvo deste embate, nem mesmo o Brasil, na (distante) América do Sul.

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Autor – Robert Kaplan




Vinte anos de guerra no Afeganistão

Em 11 de setembro de 2001, terroristas da Al Qaeda sequestraram quatro aviões comerciais e os lançaram contra as torres gêmeas do World Trade Center, em Nova York, e contra o Pentágono, em Washington. Uma das aeronaves caiu na Pensilvânia, sem chegar ao seu alvo, que era o prédio do congresso norte-americano. Cerca de três mil pessoas morreram nos ataques.

Em resposta, o governo norte-americano exigiu que o governo afegão, conduzido à época pelos talibãs, extraditasse Osama Bin Laden, o líder da Al Qaeda responsável pelos ataques. Ante a recusa dos talibãs, os EUA, apoiados por seus aliados britânicos, iniciaram a operação “Enduring Freedom”, bombardeando posições do Talibã e da Al Qaeda em território afegão. Por terra, elementos de forças especiais dos EUA apoiavam grupos contrários ao Talibã, em especial da chamada “Aliança do Norte”. Em 9 de dezembro, menos de três meses depois dos ataques aos EUA, o regime talibã foi deposto. Em 16 de dezembro, entretanto, Osama Bin Laden consegue escapar em direção ao Paquistão, fugindo do seu complexo de comando e controle localizado nas montanhas de Tora Bora.

Ainda em dezembro de 2001, em uma conferência realizada em Bonn, na Alemanha, as facções afegãs vitoriosas, em especial a Aliança do Norte, concordaram em estabelecer um governo interino, liderado por Hamid Karzai. Ao mesmo tempo, a ONU estabeleceu uma operação de paz para a segurança de Cabul.

Em 2002, os EUA, na sua estratégia de “Guerra ao terror”, voltam sua atenção ao Iraque de Saddam Hussein, apontado pelos EUA como uma grande ameaça à sua segurança.

Em 2003, ao mesmo tempo em que o presidente Bush declara que a missão “foi cumprida” no Iraque, o Secretário de Defesa norte-americano Donald Rumsfeld declara que os combates mais importantes no Afeganistão estão encerrados. O país mantém apenas 8 mil soldados no terreno e a OTAN substitui a ONU na missão de estabilização do Afeganistão.

Em 2004, após a aprovação de uma nova constituição, Karzai é eleito presidente da república na primeira eleição democrática da história do Afeganistão. Três semanas após as eleições, Osama Bin Laden reaparece para o mundo, em uma declaração em vídeo transmitida pela rede Al Jazeera, na qual zomba dos norte-americanos e assume a autoria dos ataques de 11 de setembro.

Em 2005, os presidentes Bush e Karzai assinam um acordo, firmando uma parceria estratégica, que permite que os EUA tenham acesso às instalações militares afegãs na luta contra “o terror e o extremismo”. Além disso, o país firma acordos para que os EUA possam treinar, equipar, modernizar e suprir as forças militares afegãs. No mesmo ano, 6 milhões de afegãos votam nas eleições legislativas, celebradas como um marco em direção à democratização do país.

Em 2006 a violência ressurge, com um grande aumento de ataques suicidas e detonações de explosivos a distância. Os países da OTAN divergem sobre a necessidade de se mandar mais tropas para o Afeganistão.

Em 2009, o presidente Obama, recém-eleito, reafirma a centralidade do Afeganistão na guerra contra o terror e anuncia o envio de mais 17 mil soldados para o país. No final daquele ano, ao lançar uma grande ofensiva contra o Talibã, as forças norte-americanas já contam com cerca de 60 mil militares.

Em 2010, em uma conferência em Lisboa, a OTAN decide estabelecer um plano de retirada do Afeganistão. O prazo-limite para a presença das tropas da Aliança é estabelecido como sendo o ano de 2014.

Em 1º de maio de 2011, Osama Bin Laden, o líder da Al Qaeda responsável pelos ataques de 11 de setembro, é morto no Paquistão por tropas norte-americanas. A morte do causador do envio de tropas ao Afeganistão alimenta um acalorado debate nos EUA sobre a continuação de uma guerra que já durava dez anos. Obama anuncia planos para retirar 33 mil soldados até o verão de 2012, mas há sérias dúvidas sobre a capacidade do governo afegão de manter o controle do país face a uma insurgência tão resiliente. O presidente norte-americano também anuncia estar mantendo “conversas preliminares de paz” com o Talibã.

Em março de 2012 o Talibã se retira das negociações, acusando os EUA de não cumprir promessas de trocas de prisioneiros. Ao mesmo tempo, diversos incidentes envolvendo militares norte-americanos, como a queima acidental de alcorões e acusações de assassinatos de aldeões golpeiam a credibilidade dos militares ocidentais perante a população afegã.

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Em 2013, as tropas afegãs assumem a responsabilidade pela segurança da maior parte do país, enquanto a OTAN se mantém responsável por 95 distritos. O Talibã abre uma representação no Catar, o que desagrada o presidente Karzai, que acredita que este movimento confere legitimidade ao Talibã. Em resposta, ele suspende as negociações com os EUA.

Em 2014, Obama anuncia a retirada da maioria das tropas norte-americanas do Afeganistão, que deveria acontecer até o final de 2016. Ashraf Ghani é eleito presidente, em substituição a Karzai, e assina um acordo de divisão de poder com seu principal oponente, Abdullah Abdullah.

Em 2017, o presidente Trump declara que, embora sua intenção inicial fosse recuar, manteria as tropas no país para evitar um “vácuo de poder”.

Em 2018, o Talibã aumenta a ousadia dos ataques terroristas a Cabul, matando 115 pessoas na capital. Os ataques acontecem enquanto o governo Trump implementa seu plano para o Afeganistão, destacando tropas para a zona rural do país e lançando ataques aéreos contra laboratórios de ópio para tentar dizimar as finanças do Talibã.

Em 2019, as negociações entre os EUA e o Talibã avançam, até que, em 2020, um acordo de paz é assinado. De um lado, os EUA assumem o compromisso de retirar todas as tropas, de outro, o Talibã se compromete a não permitir que o país seja usado por terroristas.  O acordo diz que as negociações intra-afegãs devem começar no mês seguinte, mas o presidente afegão, Ghani, diz que o Talibã deve atender às condições de seu governo antes de entrar em negociações.

Em 12 de setembro de 2020, pela primeira vez depois de quase 20 anos de guerra, representantes do governo afegão, do Talibã e da sociedade civil se encontram, em Doha, no Catar. As negociações ocorreram depois que o governo libertou 5 mil talibãs que estavam presos. Todos os lados disseram desejar restabelecer a paz no país após a retirada das forças norte-americanas. O governo afegão pressionou por um cessar-fogo, enquanto os talibãs exigiam o estabelecimento de um governo religioso islâmico.

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Autor – Mark Owen

Em 14 de abril de 2021, o presidente Biden anuncia a retirada completa das tropas até 11 de setembro, data que marca os 20 anos dos atentados de 2001.  “É hora de encerrar a guerra mais longa da América”, ele diz. A retirada acontecerá independentemente de haver progressos nas negociações de paz. As tropas da OTAN também abandonarão o país. Os EUA prometem continuar a “ajudar as forças de segurança afegãs e apoiar o processo de paz”.

Assim, os vinte anos de operações militares norte-americanas no Afeganistão estão prestes a se encerrar.

A maior parte do território afegão já está novamente sob o domínio do Talibã. Em três dias neste início de agosto, pelo menos três capitais de províncias também caíram sob o domínio do grupo. Muitas autoridades simplesmente abandonaram seus cargos e fugiram.

Muitos analistas consideram apenas uma questão de tempo até que o Talibã volte a dominar completamente o país. Essa parece ser também a opinião do governo chinês que, preocupado com a questão – não se pode esquecer que o Afeganistão faz fronteira com a China e que os asiáticos têm seus próprios problemas com o terrorismo islâmico na província de Xinjiang – já entabula suas próprias negociações com o Talibã, a despeito de ainda haver um governo em Cabul. O mulá Abdul Ghani Baradar, chefe do Comitê Político do Talibã, foi recebido pelo Ministro das Relações Exteriores da China, Wang Yi, na cidade chinesa de Tianjin.

Planejadores militares têm sempre em mente, ao iniciar uma operação, um objetivo político e uma “situação final desejada” a ser atingida ao término das operações militares. Vinte anos depois do início das operações que retiraram o Talibã do poder, o grupo está prestes a reavê-lo enquanto as tropas da OTAN e dos EUA estão completando sua retirada. É inescapável se constatar que a situação final alcançada é bastante diferente da situação final desejada no início da guerra.

Esse fracasso advém de múltiplas causas, que passam pela dificuldade tática de se enfrentar um inimigo perfeitamente adaptado ao terreno, ideologicamente comprometido com sua causa e decisivamente engajado nos combates. Também advém das consequências econômicas da crise de 2008, que tornaram os custos da guerra muito pesados para os contribuintes ocidentais. Podem também, de alguma forma, ser creditados à dificuldade dos próprios afegãos de compreenderem como benéficas as mudanças políticas introduzidas pelo Ocidente, que no final das contas, poucas melhorias trouxeram às suas condições de vida.

A saída dos EUA deixa um vácuo que provavelmente será preenchido pela China. Inicialmente, é provável que ela apoie fortemente a reconstrução do país por intermédio de investimentos econômicos, com objetivo de dar estabilidade ao regime e, com isso, tenha uma ferramenta para pressionar o regime a impedir qualquer apoio aos separatistas uigures de Xinjiang.  Em um segundo momento, embora não seja provável, caso ocorra algum recrudescimento nas atividades terroristas no interior da China, é possível que o país se engaje militarmente no Afeganistão, o que seria um passo inédito por parte dos chineses.

O Afeganistão é conhecido como “cemitério dos impérios”. A fama se deve aos reveses que Alexandre, o Grande, o Império Britânico por duas vezes no século 19 e os soviéticos, no século 20, colheram nas áridas montanhas do país. O retorno do Talibã ao poder, neste século, reforçará ainda mais o mito da invencibilidade dos afegãos diante dos grandes impérios da história.




A viagem de Biden à Europa

Este artigo foi publicado no Jornal O Estado de S. Paulo em 28/06/2021

Joe Biden vem de fazer sua primeira viagem à Europa como presidente dos Estados Unidos. Durante oito dias visitou o Reino Unido, reuniu-se com o G-7, com a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) e com o presidente russo, Vladimir Putin. Foi uma viagem cheia de mensagens e significados, durante a qual as sombras da China e da Rússia estiveram sempre presentes nas conversas.

Ao chegar mais cedo ao Reino Unido, que sediaria a reunião do G-7, Biden reforçou a aliança preferencial de seu país com os britânicos. No comunicado conjunto, em 20 parágrafos Biden e o primeiro-ministro Boris Johnson reforçam a crença comum de seus países no que eles chamaram de defesa da democracia, dos direitos humanos e do multilateralismo, reforçando o papel da ONU, que eles afirmam ser central, no sistema internacional.

No prosseguimento, ainda no Reino Unido, Biden e Johnson se reuniram com os líderes dos outros cinco países que compõem o G-7: Canadá, França, Alemanha, Japão e Itália. O comunicado divulgado ao término dos trabalhos destaca seis pontos principais: tomar providências em relação à pandemia de covid-19, revigorar a economia dos países integrantes do grupo, assegurar um futuro de prosperidade, proteger o meio ambiente do planeta, fortalecer parcerias do grupo, em especial com a África, e fortalecer os valores democráticos e de liberdade, igualdade, respeito à lei e aos direitos humanos.

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Joe Biden, de Evan Osnos

O comunicado afirma ainda que para a pandemia ser vencida em 2022 cerca de 60% da população mundial terá de estar vacinada. Nesse sentido, o G-7 compromete-se a financiar mais 1 bilhão de doses de vacinas, a serem distribuídas principalmente aos países pobres, até o fim de 2022. O grupo apoia que sejam feitas investigações transparentes, lideradas pela Organização Mundial da Saúde, sobre as origens da doença, na China. Aliás, esse país foi citado mais duas vezes no comunicado, em aspectos bastante sensíveis para o gigante asiático. O G-7 alertou a China sobre as questões dos direitos humanos, especialmente no referente aos uigures, minoria islâmica que habita a região autônoma chinesa de Xinjiang, e também em relação aos habitantes de Hong Kong. Além disso, o grupo fez referência a Taiwan, clamando por uma solução pacífica das questões que envolvem a ilha e externando preocupações com o que chamou de tentativas de mudança do status quo na região dos Mares do Leste e do Sul da China.

O encontro da Otan, realizado em Bruxelas, reuniu os 30 países que compõem a aliança militar. No comunicado divulgado, a Rússia figura como a principal ameaça. O país é acusado de ações agressivas que estariam deteriorando a segurança internacional: exercícios militares de larga escala, até mesmo nas proximidades das fronteiras dos países da Otan, instalações de mísseis modernos e de uso dual em Kaliningrado, integração militar com Belarus e violações em série do espaço aéreo dos países aliados. A Rússia também é acusada de promover ações de guerra híbrida, como tentativas de interferência em eleições de países democráticos, estabelecimento de pressões políticas e econômicas com a finalidade de intimidar outros países, financiamento de campanhas de desinformação e de ataques cibernéticos. Além disso, os russos são acusados de atuar ilegalmente com suas agências de inteligência em território de países da Otan e de expandir e modernizar seu arsenal nuclear, com vista a desestabilizar o equilíbrio de forças hoje existente.

A China também não passou despercebida na reunião da Otan. O país foi acusado de se comportar de forma a desafiar a ordem internacional. O comunicado afirma que suas políticas coercitivas contrastam com os valores fundamentais da aliança e que causam preocupação a expansão e a modernização de seu arsenal nuclear, além de sua aproximação militar da Rússia, até mesmo com participação conjunta em exercícios militares.

O último evento do presidente Biden na Europa foi a reunião com o presidente Vladimir Putin, da Rússia, por três horas, em Genebra. Do encontro, a única medida prática anunciada foi o retorno dos embaixadores dos dois países aos seus postos, de onde estavam afastados havia alguns meses.

No dia seguinte ao término da viagem, o mundo assistiu às imagens em alta definição da espaçonave chinesa levando três tripulantes para a estação espacial que o país constrói na órbita terrestre. Para muitos analistas, a leitura dos comunicados do G-7 e da Otan, emoldurados pelas cenas dos chineses no espaço, escancara que o sistema internacional está assistindo, realmente, a um período de transição hegemônica. Como sempre, em momentos assim, as potências estabelecidas se esforçam na manutenção do status quo e das características sistêmicas que as conduziram à hegemonia. Ao mesmo tempo, a potência emergente tenta moldar o mundo de acordo com seus próprios interesses. O atrito resultante, como sempre, gera calor. Que os líderes mundiais saibam controlar a temperatura, manter o diálogo e favorecer a manutenção da paz.




A participação da China em Missões de Paz

Em setembro de 2020, a China publicou um documento oficial no qual relata a participação do país nas missões de paz da ONU. Neste artigo, faço uma breve análise da participação dos chineses nesse tipo de operação militar e concluo sobre as razões que levaram o país a um grande engajamento nessas ações da Organização das Nações Unidas.

A República Popular da China somente uniu-se à ONU em 1971. Até aquela data, os chineses eram representados pelo governo da República da China, dos nacionalistas de Taiwan, que tinham sido derrotados pela revolução comunista. Entretanto, o país demorou para iniciar suas participações nas missões de paz daquele organismo multinacional. Isso se deveu à sua retórica de não intervenção em assuntos internos de outros países, posição de quem defendia a não interferência internacional no seu próprio território.

Somente em maio de 1986 é que três militares chineses chegariam ao Oriente Médio para visitar a United Nations Truce Supervision Organization (UNTSO)[1], primeira e mais antiga missão de paz da Organização das Nações Unidas, destinada a supervisionar a cessação das hostilidades que deveria ter acontecido ao término da primeira guerra árabe-israelense. Era a primeira vez que ocorria esse tipo de participação de chineses em missão de paz.

Dois anos depois, em 1988, a China se incorporava oficialmente ao Comitê Especial das Nações Unidas para as Operações de Manutenção da Paz. Em abril de 1990, os primeiros cinco militares chineses designados para uma missão de paz da ONU chegam à mesma UNTSO para iniciarem suas missões de observadores militares. Estava aberto o caminho para uma importante participação militar da China nas operações que ela mesma, como um dos cinco países integrantes de forma permanente do Conselho de Segurança da ONU, detém o protagonismo de implementar.

Desde então o país enviou cerca de 40 mil militares para 25 missões, dentre as quais se destacam o Camboja, República Democrática do Congo, Costa do Marfim, Etiópia e Eritreia, Serra Leoa, Saara Ocidental, Libéria, Líbano, Sudão (Sudão do Sul e Darfur) e Mali.

Atualmente, o país está com cerca de 2500 soldados desdobrados em várias missões diferentes. Isso significa que o país tem praticamente o dobro dos efetivos de todos os outros quatro membros permanentes do conselho de segurança da ONU, somados[2]. Além disso, o país é o segundo maior contribuinte para o orçamento das missões de paz da ONU.

  Missão Período de participação
1 United Nations Truce Supervision Organization (UNTSO) Abril 1990 – presente
2 United Nations Iraq-Kuwait Observation
Mission (UNIKOM)
Abril 1991 – Janeiro 2003
3 United Nations Mission for the Referendum
in Western Sahara (MINURSO)
Setembro 1991 – presente
4 United Nations Advance Mission in Cambodia (UNAMIC) Dezembro 1991 – Março 1992
5 United Nations Transitional Authority in
Cambodia (UNTAC)
Março 1992 – Setembro 1993
6 United Nations Operation in Mozambique (ONUMOZ) Junho 1993 – Dezembro 1994
7 United Nations Observer Mission in Liberia (UNOMIL) Novembro 1993 – Setembro 1997
8 United Nations Observer Mission in Sierra
Leone (UNOMSIL)
Agosto 1998 – Outubro 1999
9 United Nations Mission in Sierra Leone (UNAMSIL) Outubro 1999 – Dezembro 2005
10 United Nations Mission in Ethiopia and Eritrea (UNMEE) Outubro 2000 – Agosto 2008
11 United Nations Organization Mission in the Democratic Republic of the Congo (MONUC) Abril 2001 – Junho 2010
12 United Nations Mission in Liberia (UNMIL) Outubro 2003 – Dezembro 2017
13 United Nations Operation in Côte d’Ivoire (UNOCI) Abril 2004 – Fevereiro 2017
14 United Nations Operation in Burundi (ONUB) Junho 2004 – Setembro 2006
15 United Nations Mission in Sudan (UNMIS) Abril 2005 – Julho 2011
16 United Nations Interim Force in Lebanon (UNIFIL) Março 2006 – presente
17 United Nations Integrated Mission in Timor-Leste (UNMIT) Outubro 2006 – Novembro 2012
18 African Union-United Nations Hybrid Operation
in Darfur (UNAMID)
Novembro 2007 – presente
19 United Nations Organization Stabilization Mission in the Democratic Republic of the Congo (MONUSCO) Julho 2010 – presente
20 United Nations Peacekeeping Force in Cyprus (UNFICYP) Fevereiro 2011 – Agosto 2014
21 United Nations Mission in South Sudan (UNMISS) Julho 2011 – presente
22 United Nations Organization Interim Security Force
for Abyei (UNISFA)
Julho 2011 – Outubro 2011
23 United Nations Supervision Mission in Syria (UNSMIS) Abril 2012 – Agosto 2012
24 United Nations Multidimensional Integrated Stabilization Mission in Mali (MINUSMA) Outubro 2013 – presente
25 United Nations Multidimensional Integrated Stabilization Mission in the Central African Republic (MINUSCA) Janeiro 2020 – presente

Tabela 1 – Participação da China em Missões de Paz

Fonte – Livro Branco das Operações de Paz 

A primeira missão para a qual os chineses enviaram um efetivo relevante foi a United Nations Transitional Authority in Cambodia (UNTAC). Tratou-se de uma operação em que, pela primeira vez na história da ONU, se estabeleceu um governo para se administrar um país independente. O mandato da missão estabelecia uma ampla variedade de responsabilidades: a administração civil do país, a preparação de eleições, a manutenção da ordem pública, garantia dos direitos humanos, a facilitação do retorno dos refugiados e a melhoria da infraestrutura básica do país.

Os chineses enviaram inicialmente 47 observadores e um Batalhão de Engenheiros com um efetivo de 400 militares, que foram substituídos, em sistema de rodízio. Dentre as missões que receberam, estava a de realizar obras de reparo e manutenção do aeroporto da capital, além de diversas estradas. De abril de 1992 a setembro de 1993, mais de 800 militares chineses participaram das operações de paz no Camboja, com duas baixas fatais.

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Autor – Marc Lanteigne e outros

Depois da participação no Camboja, os chineses somente mandariam tropas constituídas às missões de paz após o transcurso de uma década. Em abril de 2003, uma Companhia de Engenharia composta por 175 militares e um Destacamento de Saúde com o efetivo de 43 oficiais e praças, chegou ao seu destino na República Democrática do Congo para compor a MONUSCO.

No mesmo ano de 2003, o país mandou Unidades de transporte, engenharia e assistência médica à Libéria. A África, continente de grande importância geopolítica para a estratégia de inserção internacional chinesa, passa a receber grandes efetivos de capacetes azuis chineses.

Comprovando essa prioridade, em 2005 as forças de paz chinesas passam a compor a UNMISS, missão da ONU para o Sudão do Sul e, em 2007, em Darfur, região crítica no Sudão. Em 2013, chega a vez do envio de tropas ao Mali e, em 2020, à República Centro Africana.

Em setembro de 2020, o governo chinês publicou um livro branco de defesa que trata especificamente de missões de paz. Nele, fica clara a opção da liderança do Partido Comunista Chinês, especialmente a escolha feita por Xi Jinping, pelas operações de paz da ONU.

Dividido em cinco capítulos, o documento explicita a posição do país em defesa da ONU e do multilateralismo.

“China has always resolutely safeguarded the UN-centered international system and the basic norms governing international relations underpinned by the purposes and principles of the UN Charter, and worked with countries around the world to uphold multilateralism, equity and justice.”[3] (CHINA. 2020)

No primeiro capítulo, o governo chinês explica por que fez a escolha em apoiar decisivamente as missões de paz da ONU. Declara seu comprometimento com a paz, sua preocupação com o bem-estar dos demais povos da humanidade, diz ser função precípua de um “exército popular” servir às populações. O documento afirma que participar das missões de paz é honrar as responsabilidades de uma potência internacional e que o país cumpre as políticas das Nações Unidas para as operações de paz.

No segundo capítulo, o documento lista as principais tarefas cumpridas pelos chineses nas missões de paz: supervisão de cessar-fogo entre as partes beligerantes, estabilização, proteção à população civil, proteção às próprias Forças da ONU, disponibilização de capacidades militares específicas, tais como engenharia, transportes, saúde e apoio aéreo e, finalmente, “levar esperança” às populações.

No terceiro capítulo, o governo chinês apresenta suas ações em prol do sistema de missões de paz da ONU. Primeiro, apresenta as ações para manter tropas que atendam ao sistema de prontidão das Nações Unidas[4]. Os chineses se comprometem a manter um efetivo de 8 mil soldados, distribuídos por 28 Unidades de 10 diferentes especialidades. Além disso, o país se compromete a oferecer capacidades críticas para as missões de paz, como engenharia, saúde e aviação, além de treinamento para tropas de outros países e assessoramento específico aos países da União Africana. Finalmente, o documento informa sobre a disposição da China em contribuir financeiramente para as missões de paz, inclusive com a criação de um fundo específico, que já teria investido, entre 2016 e 2019, cerca de 33,6 milhões de dólares.

O quarto capítulo apresenta as ações chinesas no sentido de aumentar a cooperação internacional. O país alega estar fortalecendo a comunicação estratégica entre as nações para criar um consenso em favor das missões de paz. Isso incluiria diversas iniciativas bilaterais e multilaterais para compartilhar políticas, estratégias e planos para fortalecer as relações entre Estados e entre Forças Armadas.

No último capítulo do documento, o governo chinês reafirma o comprometimento com a construção da paz mundial. Fala novamente no compromisso com o fortalecimento do sistema de missões de paz e na necessidade de se atuar tanto nas causas como nas consequências dos conflitos.

A China está firmemente comprometida com as operações de paz da ONU. Isso se comprova não só pela efetiva participação do país com o envio de soldados e equipamentos, além do emprenho de recursos financeiros, mas também pela formulação das políticas nas áreas de defesa e relações internacionais.

As razões para isso, para além das boas intenções declaradas no livro branco, são variadas. Em primeiro lugar, pode-se citar a preocupação em participar do sistema internacional com efetividade, colhendo os lucros de apresentar-se como um país comprometido com o multilateralismo junto aos demais países do sistema internacional.

Por outro lado, é inegável que as missões de paz conferem aos militares chineses uma experiência operacional que lhes falta. A interação com militares de outros países, tanto nas atividades das missões propriamente ditas, quanto nos intercâmbios de treinamento, oferece aos chineses oportunidades de ganhos de experiência que não seriam obtidos de outra forma.

A presença dos capacetes azuis chineses na África também pode ser vista como uma oportunidade de expansão dos investimentos e de ganho de influência sobre os países daquele continente.

Assim, comprova-se que no espaço de três décadas, a participação da China nas missões de paz da ONU saiu de praticamente zero até uma posição de indiscutível liderança. As razões para isso são variadas, desde econômicas até políticas, geopolíticas e militares. Todas elas apontado para um maior protagonismo do gigante asiático no sistema internacional.

 

[1] Conheça a página oficial – https://untso.unmissions.org/

[2] Ver em https://peacekeeping.un.org/en/troop-and-police-contributors

[3] “A China sempre salvaguardou o sistema internacional centrado nas Nações Unidas e as normas básicas que regem as relações internacionais baseadas sustentadas pelos propósitos e princípios da Carta das Nações Unidas, e trabalhou com países ao redor do mundo para defender o multilateralismo, a equidade e a justiça”

[4] Peacekeeping Capability Readiness System (PCRS)english/2020-09/18/c_139376725.htm#:~:text=Over%20the%20past%2030%20years,world%20peace%20and%20common%20development Acesso em 04 de maio de 2021

 

REFERENCIAS

CHINA. China’s Armed Forces: 30 Years of UN Peacekeeping Operations. Livro Branco das Operações de Paz. Disponível em http://www.xinhuanet.com/

GOWAN, Richards. China’s pragmatic approach to UN peacekeeping. Artigo. Disponível em https://www.brookings.edu/articles/chinas-pragmatic-approach-to-un-peacekeeping/ Acesso em 03 maio 21

ROGERS, Philippe. China and United Nations Peacekeeping operations in Africa. Naval War College Review. Vol. 60, No. 2. 2007. Disponível em https://www.jstor.org/stable/26396822?seq=1#metadata_info_tab_contents. Acesso em 03 maio 2021.

SHANG, Chngyi. EPL y las operaciones de mantenimiento de paz de la ONU. China Press. 2015

 

 




Os gastos mundiais com Defesa continuam crescendo, apesar da pandemia.

O Presidente Biden acaba de enviar ao Congresso norte-americano sua proposta de orçamento de Defesa para 2022[1]. O documento propõe um orçamento de US$ 752,9 bilhões, um aumento em cerca de 1,5% em relação aos gastos previstos para o corrente ano.

Em perfeito alinhamento com o previsto na Estratégia de Defesa[2] do país, lançada em 2018, na qual a guerra ao terror perdeu importância e a competição entre Estados passou a ser a principal preocupação da segurança nacional norte-americana, a proposta orçamentária pretende dotar as forças armadas dos recursos necessários para se contrapor às ameaças representadas por China e Rússia.

A contenção à China recebeu especial prioridade. A iniciativa chamada “Pacific Deterrence Initiative”, ou Inciativa de Dissuasão do Pacífico, recebe investimentos específicos, da ordem de 5,1 bilhões de dólares. Trata-se de uma rubrica especial, destinada a dotar o Comando do Indo-Pacífico de “recursos para capacidades militares vitais para conter a China”.

A área de Ciência & Tecnologia também foi priorizada. Estão previstos recursos para inteligência artificial, 5G, microeletrônica, cibernética, além da modernização do arsenal nuclear. Há recursos para aquisição ou modernização de diversos sistemas de armas, navios, submarinos, aeronaves, mísseis balísticos intercontinentais, sistemas de armas autônomos e remotamente pilotados e veículos blindados. Quanto aos blindados, merece destaque a destinação de 1 bilhão de dólares para o prosseguimento da modernização dos Carros de Combate Principais M-1 Abrams.

O documento ainda prevê recursos para o enfrentamento às mudanças climáticas e à COVID-19, além da previsão de aumento salarial ao pessoal civil e militar das Forças Armadas.

O esforço orçamentário norte-americano na área de defesa, mesmo em pleno enfrentamento da crise provocada pela pandemia, não é isolado. China, Reino Unido e Japão são outros exemplos.

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Autor – Napoleão Bonaparte. Edição e organização – Bruno Colson. Tradução – Clóvis Marques

O Instituto de Pesquisas da Paz de Estocolmo (SIPRI) divulgou recentemente os dados de seu levantamento anual sobre os gastos militares dos países. Trata-se de uma pesquisa consistente, internacionalmente reconhecida, que baliza os mais variados estudos sobre orçamentos de defesa por pesquisadores de todo o mundo.

A pesquisa concluiu que os gastos com defesa do mundo cresceram quase US$ 2 bilhões em 2020, um incremento de 2,6%, em termos reais, quando comparado com 2019. Esses números chamam ainda mais atenção porque foram alcançados em um ano em que o PIB global despencou 3,3%, em razão da pandemia da COVID-19. E ocorreram apesar de alguns países com gastos militares importantes, como Brasil e Rússia, terem gastado em 2020 consideravelmente menos do que o inicialmente previsto em seus orçamentos.

Cinco países somados correspondem a 62% dos gastos mundiais com defesa: EUA, China, Índia, Rússia e Reino Unido. Em 2020, os gastos norte-americanos, que respondem por 39% do total global, cresceram pelo 3º ano consecutivo. Os gastos chineses, subiram pelo 26º (!) ano consecutivo. Esta série ininterrupta de aumentos jamais foi alcançada por outro país no longo histórico de pesquisas do SIPRI.

É claro que a escolha de onde investir seus orçamentos reflete as prioridades conferidas pelos governos às inúmeras necessidades que devem ser cobertas por recursos invariavelmente insuficientes, para o atendimento das múltiplas necessidades governamentais. A defesa compete com a saúde, educação, segurança pública, obras de infraestrutura e um sem-número de outras necessidades que, geralmente, são muito mais demandadas e urgentes para o dia-a-dia dos cidadãos.

Assim, é forçoso acreditar que os governos – especialmente os das principais potências militares – veem motivos suficientes para ampliarem os gastos, mesmo em uma conjuntura tão adversa. E os motivos estão todos os dias nas manchetes dos jornais. A competição geopolítica está sendo travada à luz do dia, não podendo ser desconsiderada por planejadores nos níveis político e estratégico, estejam esses em cargos públicos ou na iniciativa privada, uma vez que interfere nas relações internacionais e nos negócios de todos os países. E o Brasil, mesmo que geograficamente distante das principais disputas, também não consegue escapar dos efeitos dessa realidade.

 

[1] Acesse os documentos em https://paulofilho.net.br/2021/05/30/proposta-orcamentaria-de-defesa-dos-eua-para-2022/

[2] Leia o artigo em https://paulofilho.net.br/2018/04/18/nova-estrategia-de-defesa-dos-eua-e-ataque-a-siria/

 




A China vai à guerra por Taiwan?

Essa é uma pergunta que vem sendo feita com cada vez mais frequência, em razão da vertiginosa ascensão política, econômica e militar da China e de sua retórica cada vez mais assertiva no sentido da inevitabilidade da reincorporação da ilha de Taiwan – que os chineses consideram ser uma província rebelde – à plena soberania chinesa.Muitas análises já foram produzidas sobre o tema, com resultados divergentes. Há os que alertam para a grande probabilidade de um conflito armado, que inexoravelmente envolveria os Estados Unidos, e há os que apostam em uma solução pacífica, na qual todos os interesses seriam acomodados.

Gosto muito do estudo feito por Graham Allison e sua equipe, descrito no livro “A Caminho da Guerra”, publicado no Brasil pela Editora Intrínseca. Já escrevi um artigo sobre o livro, disponível aqui no blog, para os que queiram saber um pouco mais sobre aquela análise. Nele, Allison apresenta sua teoria, batizada de “Armadilha de Tucídides”, para descrever as tensões geradas pela ascensão de uma potência e o desafio que ela passa a representar para a potência estabelecida. Allison conclui que a guerra não é inevitável, mas a dinâmica de escalada de tensões pode sim, levar a um conflito de grandes proporções.

O atual comandante norte-americano no Indo-Pacífico, Almirante Philip Davidson, declarou a uma comissão do Senado de seu país, no início de março, que acreditava que a China invadiria Taiwan nos próximos seis anos. Certamente o Almirante Philip tem acesso a dados e informações que podem tê-lo levado a uma conclusão tão peremptória. Por outro lado, pode-se também considerar que o cenário apresentado pelo Almirante contribui para conscientizar o Senado do seu país da necessidade de se alocar recursos para as forças desdobradas no Oriente.

Ainda assim, as atividades militares chinesas na região estão intensas, o que reforça o cenário de guerra. No início deste mês, uma Força-tarefa aeronaval liderada pelo porta-aviões chinês Liaoning cruzou o estreito ao sul da ilha de Okinawa e ao norte de Taiwan, em seu caminho para o Pacífico. Neste exato momento, a marinha do país está realizando um exercício de tiro nas proximidades do arquipélago das Ilhas Pratas, controladas por Taiwan, mas também reclamadas pela China. O exercício se iniciou após a incursão simultânea de 25 aeronaves militares chinesas na chamada “Zona de Identificação Aérea” taiwanesa. Essas incursões, praticamente diárias no último ano, já se tornaram rotina. O que chamou atenção, desta vez, foi a quantidade de aeronaves, dentre as quais caças e bombardeiros, a maior registrada até hoje.

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Entretanto, uma invasão militar da Ilha de Taiwan seria uma tarefa muito difícil, mesmo para os chineses. A escolha militar mais óbvia seria por uma operação anfíbia, ou seja, os chineses teriam que conquistar uma praia no litoral de Taiwan – uma “cabeça de praia” – para, a partir dela, realizar a conquista da Ilha. Acontece que a geopolítica mais uma vez se impõe, determinando muitos fatores complicadores dentro do campo militar.

Taiwan dista cerca de 160 Km do litoral da China. Isso significa que a Força-Tarefa Anfíbia, composta pelas Unidades Navais e pela Força de Desembarque, levaria cerca de 5 horas para atravessar o Estreito de Taiwan até chegar à Área de Objetivo Anfíbio, onde ocorreria o assalto e a conquista das cabeças de praia.

Esse tempo de deslocamento aniquilaria a surpresa, um fator essencial nesse tipo de operação. Durante boa parte de seu deslocamento, as forças chinesas estariam sujeitas a um intenso bombardeio da artilharia taiwanesa, o que certamente cobraria, logo de início, um preço muito alto das forças chinesas.

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Autor – Graham Allison

Outro fator muito favorável aos taiwaneses é a geografia da ilha. Em sua porção leste, o terreno é montanhoso e rochoso. As escarpas muitas vezes se aproximam bastante do mar, praticamente retirando a possibilidade de um assalto anfíbio naquela porção da ilha. Assim restariam poucos locais – estima-se em apenas 12 – passíveis de serem escolhidos pelos chineses para serem os objetivos anfíbios. É evidente que as Forças Armadas taiwanesas estão fortemente preparadas e com todos os planejamentos prontos para a defesa desses locais, o que tornaria a luta pela conquista dessas praias uma verdadeira carnificina.

Outras possibilidades militares clássicas seriam as operações aeromóveis ou aeroterrestres, nas quais a invasão seria iniciada por tropas paraquedistas ou tropas de assalto transportadas por aeronaves. De qualquer maneira, mesmo que um assalto dessa natureza seja exitoso, os suprimentos e reforços necessários à conquista da ilha exigiriam um esforço logístico tremendo, muito difícil de ser executado.

Mais um aspecto importante é a autolimitação de meios a que a China está submetida em relação à Taiwan. Seu arsenal nuclear, por exemplo, é inútil, uma vez que é impensável a utilização desse tipo de arma contra aquele que eles consideram ser seu próprio território. Além disso, o emprego de armas nucleares fatalmente retiraria a legitimidade da ação chinesa, tanto perante a comunidade internacional quanto perante sua própria população.

Restaria aos chineses a opção de ações indiretas, como a conquista dos arquipélagos de Quemoy e Matsu, sob controle de Taiwan, mas praticamente colados à China continental, e de Pescadores, a 2/3 do caminho. As primeiras conquistas (Quemoy e Matsu), poderiam causar menos reação internacional. Já a conquista do arquipélago de Pescadores causaria forte reação, mas é um objetivo bem menos complicado que a Ilha principal, possibilitaria uma progressiva aproximação dos meios, e serviria de ensaio para as operações futuras. Não se deve esquecer que as Forças Armadas chinesas não possuem experiência de combate real. Sua última campanha militar foi em 1979, contra o Vietnã, e não se pode considerar que tenha sido um sucesso. Nesse contexto, uma ação preliminar, uma espécie de ensaio, seria importante tanto para os comandantes, quanto para as forças chinesas no teatro de operações.

Uma sequência para a invasão
Fonte – Naval War College

 

Outra ação indireta seria a larga utilização da guerra híbrida, com ações na chamada “área cinzenta”, abaixo da linha da guerra. Propaganda, guerra cibernética, pressões econômicas, infiltração de agentes subversivos visando à desestabilização do governo taiwanês, todas essas são ações possíveis de serem implementadas desde já, e provavelmente algumas delas já estão em andamento. Um exemplo atual desse tipo de ação é a que a Rússia patrocina na região de Dombass, leste da Ucrânia.

Ponderadas as dificuldades militares, certamente conhecidas dos estrategistas chineses, resta saber se elas serão suficientes para conter o ímpeto político. Afinal, a decisão de ir à guerra não é dos militares e, sim, dos políticos.

Xi Jinping já divulgou, em diversos documentos, seu “Sonho chinês”, que consiste, basicamente, em devolver à China seu papel predominante na Ásia, retirado pela intromissão das potências europeias no século 19, restabelecer o controle de todos os territórios chineses, onde se inclui a questão de Taiwan, e exigir que a China seja respeitada como uma potência perante as demais potências mundiais e organismos internacionais. Como se vê, Taiwan é a principal peça que falta para a construção do sonho chinês de Xi Jinping.

Allison alerta em seu livro que potências emergentes normalmente são superconfiantes, embriagadas por sua sequência de sucessos. Tucídides, o historiador grego que escreveu “A história da Guerra do Peloponeso”, lista a “honra” como uma das principais causas daquela guerra. Esse conceito pode ser interpretado como a ideia que o Estado faz de si mesmo, suas convicções sobre o reconhecimento e o respeito que merece receber dos demais Estados, seu “orgulho nacional”.

Muitas vezes na história, sentimentos como esses levaram à guerra, superando quaisquer análises estratégicas, operacionais ou táticas dos militares. Talvez sejam esses os fatores preponderantes na análise feita pelo Almirante Philip Davidson ao prever a invasão de Taiwan para os próximos seis anos.




As tensões entre as maiores potências militares do planeta

Neste exato momento, é bastante provável que dois contratorpedeiros, o USS Donald Cook e USS Roosevelt, da marinha norte-americana, estejam em deslocamento para o Mar Negro. A informação foi divulgada pela Turquia, não sendo oficialmente confirmada pelos EUA. O acesso dos países sem costa para o Mar Negro é livre, conforme a Convenção de Montreal, de 1936. Entretanto, o trânsito pelo Estreito de Bósforo, que dá acesso àquele mar, deve ser informado à Turquia com duas semanas de antecedência. Os EUA teriam informado o trânsito dos dois navios, que cruzariam o Estreito nos dias 14 e 15 de abril e permaneceriam no Mar Negro até os primeiros dias de maio. A Rússia já anunciou que, no mesmo período, estará com sua frota fazendo exercícios na mesma região.

Mar Negro

 

A presença de navios da marinha norte-americana no Mar Negro não é uma novidade. Mas desta vez, a notícia é divulgada em pleno momento de grave acirramento de tensões entre Rússia e Ucrânia, com reflexos óbvios para uma escalada de tensões entre a Rússia e a OTAN. Os russos concentraram a maior quantidade de tropas nas proximidades da fronteira com a Ucrânia desde 2014, ano em que o país anexou a península da Crimeia. Desde então, as forças ucranianas têm travado combates contra separatistas patrocinados pela Rússia na região de Donbass, na porção mais oriental do país. Há poucos dias, em 26 de março, a Ucrânia anunciou a morte de mais quatro soldados do seu exército naqueles combates. Ao mesmo tempo, o presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, fez declarações expressando a sua intenção de integrar seu país à OTAN, o que desagrada profundamente as autoridades russas.

Além dessa questão, uma série de outras notícias envolvendo os EUA, Rússia e China demonstram que as relações entre as principais potências militares do planeta vivem um momento de tensionamento bem acima da normalidade.

A primeira notícia é a entrevista do presidente Biden ao jornalista George Stephanopoulos, na rede de televisão ABC. Biden concordou com a assertiva de Stephanopoulos de que o presidente russo Vladimir Putin seria um assassino. Disse ainda que Putin “pagará o preço” por interferir nas eleições do país, o que teria acontecido, segundo um relatório da inteligência norte-americana recentemente divulgado, em favor do ex-presidente Trump.

A resposta russa foi imediata e o embaixador do país nos Estados Unidos foi chamado à Moscou “para consultas”. Como se sabe, no balé da diplomacia, este é um gesto que demonstra profundo descontentamento. A explicação da chancelaria russa foi a de que o embaixador seria consultado de modo a “não permitir que a relação entre os dois países se deteriore de maneira irreparável”. O presidente Putin, em declaração imediatamente posterior, desejou “vida longa” ao presidente Biden para depois dar a entender que o presidente dos EUA identificava em outras pessoas características de sua própria personalidade.

Um chefe de Estado chamar outro de assassino, em tempo de paz, é algo extremamente incomum. O presidente Biden é um político experiente, que já foi vice-presidente da república e senador por décadas. É claro que sabia perfeitamente da repercussão que teria sua fala. Se fez isso só se pode crer que tenha sido com o objetivo de escalar as tensões com os russos.

Mas, esse não foi o único evento recente e estressar a relação entre as duas potências. A empresa russa Gazprom lidera a construção do Gasoduto Nord Stream 2, que duplicará a quantidade de gás natural que os russos vendem à Alemanha. Trata-se de um projeto de 1200 Km, que já teve 94% de sua construção terminada, e que ligará os dois países pelo Mar Báltico. O projeto recebe forte oposição dos EUA, que consideram que a obra visa, na verdade, a “dividir a Europa e enfraquecer sua segurança energética”, como declarou o Secretário de Estado Antony Blinken no último dia 18 de março. Isto porque o gasoduto contorna a Ucrânia, que desta forma não recebe os royalties devidos pela passagem do gás por seu território. Na mesma declaração, os norte-americanos reiteram as sanções que já são aplicadas às empresas que trabalham na construção do gasoduto e afirmam que estas podem ser estendidas caso novas empresas venham a ser identificadas. Trata-se de uma questão delicada por envolver a aliada Alemanha, que defende a construção do gasoduto.

Para completar as recentes rusgas nas relações entre EUA e Rússia, o embaixador russo em Sarajevo escreveu um artigo dizendo que “a Rússia terá que reagir” caso a Bósnia e Herzegovina ingresse na OTAN, aliança militar ocidental liderada pelos EUA. Assim como os ucranianos, os bósnios movimentam-se para se juntar à aliança. O país, além da Sérvia e de Kosovo, cuja soberania ainda está em aberto, são os únicos países dos Balcãs que não aderiram à OTAN. Montenegro juntou-se à aliança em 2017, enquanto a Macedônia do Norte se tornou membro no ano passado.

Ao mesmo tempo, no Alasca, acontecia um “diálogo de alto nível”, entre EUA e China. O Secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken se encontrou com o Ministro das Relações Exteriores da China, Wang Yi e com Yang Jiechi, principal diplomata chinês. Embora tenham terminado em tom ameno, com as trocas de boas intenções de praxe, as conversas começaram em um tom muito duro, com Blinken afirmando que os EUA defendem uma ordem internacional baseada em regras, sem o que o mundo seria muito mais violento. Disse que os EUA consideravam que as ações chinesas no trato da minoria étnica uigur, na região de Xinjiang, e em relação a Taiwan e Hong Kong, além de ataques cibernéticos aos EUA e coerção econômica da China em relação a países aliados dos EUA, violavam essa ordem internacional baseada em regras.

Yang Jiechi respondeu no mesmo tom, afirmando que a China se opõe firmemente à interferência em seus assuntos internos, como seria o caso de Taiwan, Xinjiang e Hong Kong, e que os EUA, além de não estarem em posição de “dar lições” à China, deveriam se concentrar em seus próprios problemas em relação ao respeito aos direitos humanos.

Russos e chineses têm se aproximado bastante, inclusive militarmente. As sanções econômicas que norte-americanos e europeus impuseram aos russos em razão da anexação da Crimeia e da ação militar russa na Ucrânia acabaram por incentivá-los a se aproximar da China, que por sua vez ampliou significativamente seu comércio com os russos e, pela Iniciativa Belt and Road, tem oferecido vários projetos ao enorme vizinho de norte.

Os momentos de crise e de acirramento de tensões exigem estadistas hábeis na escolha dos momentos de escalar e de arrefecer as tensões. Esperemos que este seja o caso de todos os envolvidos.