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Os gastos mundiais com Defesa continuam crescendo, apesar da pandemia.

O Presidente Biden acaba de enviar ao Congresso norte-americano sua proposta de orçamento de Defesa para 2022[1]. O documento propõe um orçamento de US$ 752,9 bilhões, um aumento em cerca de 1,5% em relação aos gastos previstos para o corrente ano.

Em perfeito alinhamento com o previsto na Estratégia de Defesa[2] do país, lançada em 2018, na qual a guerra ao terror perdeu importância e a competição entre Estados passou a ser a principal preocupação da segurança nacional norte-americana, a proposta orçamentária pretende dotar as forças armadas dos recursos necessários para se contrapor às ameaças representadas por China e Rússia.

A contenção à China recebeu especial prioridade. A iniciativa chamada “Pacific Deterrence Initiative”, ou Inciativa de Dissuasão do Pacífico, recebe investimentos específicos, da ordem de 5,1 bilhões de dólares. Trata-se de uma rubrica especial, destinada a dotar o Comando do Indo-Pacífico de “recursos para capacidades militares vitais para conter a China”.

A área de Ciência & Tecnologia também foi priorizada. Estão previstos recursos para inteligência artificial, 5G, microeletrônica, cibernética, além da modernização do arsenal nuclear. Há recursos para aquisição ou modernização de diversos sistemas de armas, navios, submarinos, aeronaves, mísseis balísticos intercontinentais, sistemas de armas autônomos e remotamente pilotados e veículos blindados. Quanto aos blindados, merece destaque a destinação de 1 bilhão de dólares para o prosseguimento da modernização dos Carros de Combate Principais M-1 Abrams.

O documento ainda prevê recursos para o enfrentamento às mudanças climáticas e à COVID-19, além da previsão de aumento salarial ao pessoal civil e militar das Forças Armadas.

O esforço orçamentário norte-americano na área de defesa, mesmo em pleno enfrentamento da crise provocada pela pandemia, não é isolado. China, Reino Unido e Japão são outros exemplos.

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Autor – Napoleão Bonaparte. Edição e organização – Bruno Colson. Tradução – Clóvis Marques

O Instituto de Pesquisas da Paz de Estocolmo (SIPRI) divulgou recentemente os dados de seu levantamento anual sobre os gastos militares dos países. Trata-se de uma pesquisa consistente, internacionalmente reconhecida, que baliza os mais variados estudos sobre orçamentos de defesa por pesquisadores de todo o mundo.

A pesquisa concluiu que os gastos com defesa do mundo cresceram quase US$ 2 bilhões em 2020, um incremento de 2,6%, em termos reais, quando comparado com 2019. Esses números chamam ainda mais atenção porque foram alcançados em um ano em que o PIB global despencou 3,3%, em razão da pandemia da COVID-19. E ocorreram apesar de alguns países com gastos militares importantes, como Brasil e Rússia, terem gastado em 2020 consideravelmente menos do que o inicialmente previsto em seus orçamentos.

Cinco países somados correspondem a 62% dos gastos mundiais com defesa: EUA, China, Índia, Rússia e Reino Unido. Em 2020, os gastos norte-americanos, que respondem por 39% do total global, cresceram pelo 3º ano consecutivo. Os gastos chineses, subiram pelo 26º (!) ano consecutivo. Esta série ininterrupta de aumentos jamais foi alcançada por outro país no longo histórico de pesquisas do SIPRI.

É claro que a escolha de onde investir seus orçamentos reflete as prioridades conferidas pelos governos às inúmeras necessidades que devem ser cobertas por recursos invariavelmente insuficientes, para o atendimento das múltiplas necessidades governamentais. A defesa compete com a saúde, educação, segurança pública, obras de infraestrutura e um sem-número de outras necessidades que, geralmente, são muito mais demandadas e urgentes para o dia-a-dia dos cidadãos.

Assim, é forçoso acreditar que os governos – especialmente os das principais potências militares – veem motivos suficientes para ampliarem os gastos, mesmo em uma conjuntura tão adversa. E os motivos estão todos os dias nas manchetes dos jornais. A competição geopolítica está sendo travada à luz do dia, não podendo ser desconsiderada por planejadores nos níveis político e estratégico, estejam esses em cargos públicos ou na iniciativa privada, uma vez que interfere nas relações internacionais e nos negócios de todos os países. E o Brasil, mesmo que geograficamente distante das principais disputas, também não consegue escapar dos efeitos dessa realidade.

 

[1] Acesse os documentos em https://paulofilho.net.br/2021/05/30/proposta-orcamentaria-de-defesa-dos-eua-para-2022/

[2] Leia o artigo em https://paulofilho.net.br/2018/04/18/nova-estrategia-de-defesa-dos-eua-e-ataque-a-siria/

 




Proposta orçamentária de defesa dos EUA para 2022

O documento propõe os gastos de defesa dos EUA para 2022, com um acréscimo de 1,5% em relação ao ano de 2021.

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FY2022_Budget_Request_Overview_Book

FY2022_Weapons




A retirada das tropas dos EUA do Afeganistão

Os EUA se comprometeram, em acordo firmado com o grupo Talibã no ano passado, a retirar completamente suas tropas do Afeganistão. O prazo final acordado era hoje, 01 de maio de 2021. E as tropas permanecem por lá. Mas, antes de nos debruçarmos sobre esse acordo, vamos entender por que as tropas americanas estão há quase 20 anos no Afeganistão.

Os ataques de 11 de setembro de 2001 às torres gêmeas do World Trade Center e ao Pentágono vitimaram quase três mil pessoas, causando dor, revolta, perplexidade e raiva aos norte-americanos. Rapidamente, os EUA identificaram Osama Bin Laden, chefe da Al Qaeda, como sendo o responsável pelos atentados terroristas que mudariam a história.

Os EUA, superpotência econômica e militar dominante à época, iniciaram praticamente de imediato a chamada “Guerra ao Terror”, definindo o Afeganistão, território que dava abrigo à Al Qaeda, como primeiro teatro de operações.

Apenas 15 dias depois do atentado, em 26 de setembro, uma equipe da CIA se infiltrou clandestinamente no país e iniciou os contatos com a Aliança do Norte, um grupo contrário ao regime fundamentalista islâmico dos Talibãs, que governava o país. Iniciava-se o planejamento para derrubar o regime que havia se recusado a entregar Bin Laden aos norte-americanos. Em 7 de outubro, os EUA, com o apoio dos britânicos, desencadearam uma intensa campanha aérea de bombardeios à alvos militares no Afeganistão, desarticulando os campos de treinamento da Al Qaeda no país. Em 13 de novembro, a Aliança do Norte conquistava Cabul, a capital do país. Em 6 de dezembro, Kandahar, maior cidade do sul e sede espiritual do regime, também era conquistada pela Aliança do Norte. O regime Talibã havia sido apeado do poder, refugiando-se, juntamente com integrantes da Al Qaeda, nas regiões tribais do norte do Paquistão.

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Osama Bin Laden não havia sido encontrado, mas em abril de 2002, o presidente George Bush anunciava um “Plano Marshall” para o Afeganistão, com o investimento “substancial” de recursos para a reconstrução do país. Mas a atenção dos EUA havia se voltado para o Iraque, que seria invadido em março de 2003. Assim, entre 2001 e 2009, os EUA investiram pouco mais de 38 bilhões de dólares em ajuda humanitária e em apoio à reconstrução do Afeganistão. Mais da metade desse valor foi investida nas forças de segurança do país. A OTAN, representada por tropas de mais de 20 países, também enviou contingentes ao Afeganistão, em seu primeiro desdobramento fora da Europa.

Mas os enfrentamentos de baixa intensidade nunca cessaram. Em 2010, os EUA já tinham perdido mais de mil soldados na campanha. Britânicos, trezentos. Canadenses, cento e cinquenta. Baixas ocorreram ainda em todos os contingentes, o que foi tornando a presença no Afeganistão cada vez mais impopular nos países europeus e nos EUA.

Em 2009, o Presidente Obama assumiu o governo dos EUA e passou a dedicar mais atenção ao Afeganistão, enviando 17 mil soldados para se somarem aos já 36 mil norte-americanos e aos 32 mil de outras nações da OTAN, que já estavam no Afeganistão. Obama também trocou o comandante militar norte-americano, enviando o General  Stanley McChrystal, com a tarefa de modificar a estratégia militar da operação.

O novo comandante, em relatório enviado ao governo norte-americano, concluía que a guerra seria perdida em um ano se ele não recebesse um considerável reforço. Assim, os EUA decidem enviar mais 30 mil soldados ao Afeganistão.

Em junho de 2010, descontente com declarações de McChrystal à imprensa, Obama novamente troca o comandante, nomeando o General David Petraeus para o comando. Petraeus era conhecido no Exército como o arquiteto da doutrina de contrainsurgência em vigor à época.

Finalmente, em 02 de maio de 2011, quase dez anos após os atentados terroristas que deram origem à guerra, Bin Laden foi morto por uma equipe das Forças Especiais da Marinha dos EUA na cidade de Abbottabad, no Paquistão.

Em junho do mesmo ano, o presidente Obama anuncia um plano para a retirada de tropas do Afeganistão, que deveria ocorrer totalmente até 2014. A missão de combate da OTAN foi formalmente encerrada em dezembro daquele mesmo ano, mas as tropas norte-americanas continuariam no país para “treinar as tropas afegãs e fornecer apoio às operações contra o terror”. Ashraf Ghani, presidente eleito em 2014, iniciou conversações para a paz com o Talibã e outros grupos armados.

 

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O Afeganistão depois do Talibã: Onze histórias afegãs do 11 de Setembro e a década do terror: Onze histórias afegãs do 11 de Setembro e a década do terror

 

Entre idas e vindas, que resultaram inclusive em um aumento dos efetivos militares norte-americanos no país em 2017, as conversações para a paz continuaram. Em dezembro de 2018, já na presidência de Trump, EUA, Arábia Saudita e Paquistão se reuniram com representantes do Talibã em Abu Dhabi. Alguns dias depois, os EUA anunciaram a retirada de mais uma significativa parcela de suas tropas. Até que, em 29 de fevereiro de 2020, EUA e Talibã anunciaram um acordo pelo qual os EUA se retirariam completamente em 14 meses. Por outro lado, o Talibã se comprometia a continuar as conversações de paz com o governo e a não permitir a operação da Al Qaeda ou do Estado Islâmico em território Afegão.

Este prazo se encerra exatamente hoje, dia 01 de maio de 2021. Entretanto, ainda há tropas norte-americanas no Afeganistão. O presidente Joe Biden já havia declarado que o prazo não seria cumprido, por razões de segurança, estabelecendo um novo prazo: 11 de setembro, exatamente 20 anos depois dos atentados que originaram a guerra.

O Talibã evidentemente não gostou do descumprimento do acordo, e já declarou que isto abriria o caminho para “ações que se julguem adequadas contra as tropas de ocupação”. As forças de segurança do país estão no mais elevado nível de alerta após o recrudescimento da violência nos últimos dias.

A retirada das tropas estrangeiras do Afeganistão exige um considerável esforço logístico para que seja feita com um adequado nível de segurança. Essa é a principal razão alegada pelos EUA para mais esse adiamento. Mas, depois de reiteradas promessas de retirada não serem cumpridas, é natural que exista certa desconfiança.

Não deixa de ser irônico que, 20 anos após o início da guerra, após dezenas de milhares de mortos entre as forças regulares afegãs e alguns milhares de vidas perdidas dentre as forças da coalizão, as negociações estejam sendo feitas com o Talibã, mesmo grupo que foi retirado do poder ainda em 2001. A sensação de fracasso é indisfarçável. E deixa uma lição para todos os envolvidos, acerca da grande dificuldade de se travar um combate dessa natureza.

Assim, apesar dos indícios indicarem que dessa vez há um firme propósito dos EUA em realmente encerrar a guerra, há uma grande incerteza sobre os destinos do Afeganistão, devastado por 20 anos de conflitos. É bastante provável que a China, país que inclusive faz fronteira com o Afeganistão, venha a ocupar o espaço deixado pelos EUA, como principal fiadora e financiadora da reconstrução do país. Afinal, para a China não interessa um vizinho instável, que possa oferecer abrigo aos grupos terroristas uigures da Região autônoma de Xinijiang. Vamos acompanhar.




As tensões entre as maiores potências militares do planeta

Neste exato momento, é bastante provável que dois contratorpedeiros, o USS Donald Cook e USS Roosevelt, da marinha norte-americana, estejam em deslocamento para o Mar Negro. A informação foi divulgada pela Turquia, não sendo oficialmente confirmada pelos EUA. O acesso dos países sem costa para o Mar Negro é livre, conforme a Convenção de Montreal, de 1936. Entretanto, o trânsito pelo Estreito de Bósforo, que dá acesso àquele mar, deve ser informado à Turquia com duas semanas de antecedência. Os EUA teriam informado o trânsito dos dois navios, que cruzariam o Estreito nos dias 14 e 15 de abril e permaneceriam no Mar Negro até os primeiros dias de maio. A Rússia já anunciou que, no mesmo período, estará com sua frota fazendo exercícios na mesma região.

Mar Negro

 

A presença de navios da marinha norte-americana no Mar Negro não é uma novidade. Mas desta vez, a notícia é divulgada em pleno momento de grave acirramento de tensões entre Rússia e Ucrânia, com reflexos óbvios para uma escalada de tensões entre a Rússia e a OTAN. Os russos concentraram a maior quantidade de tropas nas proximidades da fronteira com a Ucrânia desde 2014, ano em que o país anexou a península da Crimeia. Desde então, as forças ucranianas têm travado combates contra separatistas patrocinados pela Rússia na região de Donbass, na porção mais oriental do país. Há poucos dias, em 26 de março, a Ucrânia anunciou a morte de mais quatro soldados do seu exército naqueles combates. Ao mesmo tempo, o presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, fez declarações expressando a sua intenção de integrar seu país à OTAN, o que desagrada profundamente as autoridades russas.

Além dessa questão, uma série de outras notícias envolvendo os EUA, Rússia e China demonstram que as relações entre as principais potências militares do planeta vivem um momento de tensionamento bem acima da normalidade.

A primeira notícia é a entrevista do presidente Biden ao jornalista George Stephanopoulos, na rede de televisão ABC. Biden concordou com a assertiva de Stephanopoulos de que o presidente russo Vladimir Putin seria um assassino. Disse ainda que Putin “pagará o preço” por interferir nas eleições do país, o que teria acontecido, segundo um relatório da inteligência norte-americana recentemente divulgado, em favor do ex-presidente Trump.

A resposta russa foi imediata e o embaixador do país nos Estados Unidos foi chamado à Moscou “para consultas”. Como se sabe, no balé da diplomacia, este é um gesto que demonstra profundo descontentamento. A explicação da chancelaria russa foi a de que o embaixador seria consultado de modo a “não permitir que a relação entre os dois países se deteriore de maneira irreparável”. O presidente Putin, em declaração imediatamente posterior, desejou “vida longa” ao presidente Biden para depois dar a entender que o presidente dos EUA identificava em outras pessoas características de sua própria personalidade.

Um chefe de Estado chamar outro de assassino, em tempo de paz, é algo extremamente incomum. O presidente Biden é um político experiente, que já foi vice-presidente da república e senador por décadas. É claro que sabia perfeitamente da repercussão que teria sua fala. Se fez isso só se pode crer que tenha sido com o objetivo de escalar as tensões com os russos.

Mas, esse não foi o único evento recente e estressar a relação entre as duas potências. A empresa russa Gazprom lidera a construção do Gasoduto Nord Stream 2, que duplicará a quantidade de gás natural que os russos vendem à Alemanha. Trata-se de um projeto de 1200 Km, que já teve 94% de sua construção terminada, e que ligará os dois países pelo Mar Báltico. O projeto recebe forte oposição dos EUA, que consideram que a obra visa, na verdade, a “dividir a Europa e enfraquecer sua segurança energética”, como declarou o Secretário de Estado Antony Blinken no último dia 18 de março. Isto porque o gasoduto contorna a Ucrânia, que desta forma não recebe os royalties devidos pela passagem do gás por seu território. Na mesma declaração, os norte-americanos reiteram as sanções que já são aplicadas às empresas que trabalham na construção do gasoduto e afirmam que estas podem ser estendidas caso novas empresas venham a ser identificadas. Trata-se de uma questão delicada por envolver a aliada Alemanha, que defende a construção do gasoduto.

Para completar as recentes rusgas nas relações entre EUA e Rússia, o embaixador russo em Sarajevo escreveu um artigo dizendo que “a Rússia terá que reagir” caso a Bósnia e Herzegovina ingresse na OTAN, aliança militar ocidental liderada pelos EUA. Assim como os ucranianos, os bósnios movimentam-se para se juntar à aliança. O país, além da Sérvia e de Kosovo, cuja soberania ainda está em aberto, são os únicos países dos Balcãs que não aderiram à OTAN. Montenegro juntou-se à aliança em 2017, enquanto a Macedônia do Norte se tornou membro no ano passado.

Ao mesmo tempo, no Alasca, acontecia um “diálogo de alto nível”, entre EUA e China. O Secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken se encontrou com o Ministro das Relações Exteriores da China, Wang Yi e com Yang Jiechi, principal diplomata chinês. Embora tenham terminado em tom ameno, com as trocas de boas intenções de praxe, as conversas começaram em um tom muito duro, com Blinken afirmando que os EUA defendem uma ordem internacional baseada em regras, sem o que o mundo seria muito mais violento. Disse que os EUA consideravam que as ações chinesas no trato da minoria étnica uigur, na região de Xinjiang, e em relação a Taiwan e Hong Kong, além de ataques cibernéticos aos EUA e coerção econômica da China em relação a países aliados dos EUA, violavam essa ordem internacional baseada em regras.

Yang Jiechi respondeu no mesmo tom, afirmando que a China se opõe firmemente à interferência em seus assuntos internos, como seria o caso de Taiwan, Xinjiang e Hong Kong, e que os EUA, além de não estarem em posição de “dar lições” à China, deveriam se concentrar em seus próprios problemas em relação ao respeito aos direitos humanos.

Russos e chineses têm se aproximado bastante, inclusive militarmente. As sanções econômicas que norte-americanos e europeus impuseram aos russos em razão da anexação da Crimeia e da ação militar russa na Ucrânia acabaram por incentivá-los a se aproximar da China, que por sua vez ampliou significativamente seu comércio com os russos e, pela Iniciativa Belt and Road, tem oferecido vários projetos ao enorme vizinho de norte.

Os momentos de crise e de acirramento de tensões exigem estadistas hábeis na escolha dos momentos de escalar e de arrefecer as tensões. Esperemos que este seja o caso de todos os envolvidos.




A ascensão da China, a hegemonia norte-americana e a Armadilha de Tucídides

“A ascensão de Atenas e o temor

instilado em Esparta tornaram a guerra inevitável.”

Tucídides, História da Guerra do Peloponeso

A impressionante ascensão econômica ocorrida na China, especialmente nas três últimas décadas, causou um desequilíbrio no poder global com uma rapidez sem precedentes na história. Em um piscar de olhos, os ocidentais e, em particular, os norte-americanos, foram apresentados a uma nova realidade: os Estados Unidos da América não estavam mais isolados na posição de potência hegemônica no concerto das nações. A China, agora, tornara-se um desafiante capaz de ameaçar a liderança dos norte-americanos, primeiro economicamente e, em seguida, em se mantendo o ritmo atual, militarmente.

Embora a velocidade dos acontecimentos que envolvem a atual competição entre China e EUA seja inédita, a dinâmica de uma potência em ascensão desafiar uma potência dominante não é. Isso já aconteceu muitas vezes na história. Quando ocorreu pela primeira vez, essa disputa culminou em uma guerra cujo desenrolar ficou registrado para a posteridade na magistral obra de Tucídides.

Tucídides

O ateniense Tucídides foi um importante historiador da Grécia antiga, autor de “História da Guerra do Peloponeso” [1]. Nascido entre os anos de 460 e 455 a.C, relatou os acontecimentos da guerra entre Esparta e Atenas como testemunha da história, de forma objetiva e imparcial. Como um analista crítico, ao relatar objetivamente os acontecimentos, buscou interpretar suas motivações e esclarecer as circunstâncias nas quais os fatos narrados estavam inseridos. Além desses aspectos políticos, como conhecedor da arte da guerra praticada à época, tinha capacidade técnica para descrever com precisão as operações militares, tal como elas ocorriam.

A Guerra do Peloponeso durou 27 anos (de 431 a 404 a.C.) e envolveu todo o mundo helênico. Tucídides não conseguiu contar a história completa, em razão de sua morte, que interrompeu seu relato no ano de 410. Entretanto, a obra, em oito livros, foi mais do que suficiente para deixar “um patrimônio sempre útil”, intenção expressa pelo autor, uma vez que, “sendo a natureza humana imutável, se determinadas circunstâncias se reproduzirem em épocas diferentes, os fatos se repetirão de maneira idêntica ou semelhante”.

E foram as repetições das circunstâncias nas quais uma potência em ascensão desafiou uma potência dominante ao longo da história que levaram o Professor Graham Allison, diretor do Belfer Center for Science and International Affairs, da Universidade de Harvard, a cunhar a expressão “Armadilha de Tucídides”. Ela apareceu pela primeira vez em 2015, em um artigo na revista Atlantic: “The Thucydides Trap: Are the US and China headed for war?”[2]

No artigo, Allison analisa dezesseis situações em que um poder nacional emergente desafiou um poder estabelecido ao longo dos últimos 500 anos, e conclui que, em doze delas, o resultado foi a guerra.

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Autor – Graham Allison

O questionamento que motiva os estudos do autor e de sua equipe é o de saber se a atual geração será capaz de evitar a guerra, escapando da sina demonstrada pela esmagadora maioria das vezes em que as circunstâncias que envolvem a atual ascensão chinesa se repetiram ao longo da história.

Mais do que isso, o estudo de Allison fornece as lentes adequadas, ou seja, uma perspectiva histórica e geopolítica para se analisar a atual confrontação entre China e Estados Unidos, entendendo-a de forma mais ampla do que uma simples competição econômica ou militar.

Em 2017, as ideias apresentadas no artigo foram expandidas no livro “A Caminho da Guerra – Os Estados Unidos e a China conseguirão escapar da Armadilha de Tucídides?”, editado no Brasil pela Editora Intrínseca, com tradução de Cássio de Arantes Leite. Neste estudo, com a profundidade que um livro permite, o autor se debruça mais amiúde sobre as circunstâncias que levaram à guerra nos conflitos apresentados no seu artigo de 2015. Discorre sobre as dúvidas, temores e pressões que assaltavam os líderes daqueles momentos, suas opções estratégicas e suas motivações finais. Para o leitor de hoje, sabedor dos resultados de cada uma daquelas decisões, é muito interessante comprovar que, como Tucídides constatou, a imutabilidade da natureza humana leva homens de diferentes épocas e culturas a tomar decisões semelhantes, por motivações similares, arrastando seus povos à guerra.

Mas voltemos à disputa atualmente em curso. A ascensão chinesa não é simplesmente econômica. Especialmente sob a presidência de Xi Jinping, o atual líder chinês, ela representa também uma aspiração de readquirir a supremacia perdida, um sonho de “tornar a China grande outra vez”[1].

Esse desejo está fortemente baseado no modo de pensar chinês, na crença arraigada de que a China constituiu uma civilização perene com destino manifesto à grandeza e à liderança, condições que sempre existiram ao longo dos seus quatro mil anos de história e que, por um acidente conjuntural, deixaram de ser realidade somente a partir do século 19.

Henry Kissinger abre seu livro “Sobre a China”, tratando dessa perspectiva singular: “Uma característica especial da civilização chinesa é a de que ela parece não ter um início. Perante a história, ela assoma mais como um fenômeno natural permanente do que como um Estado-nação convencional”.

É nesse contexto que Xi Jinping propõe construir uma nação com “uma sociedade modestamente confortável e a transformação da China em um país socialista moderno, próspero, poderoso, democrático, civilizado e harmonioso – e concretizar o sonho chinês de grande revitalização da nação chinesa.”[2]

Graham Allison traduz essa intenção da seguinte forma: a China deseja ter o papel predominante na Ásia, aquele que tinha antes da intromissão ocidental do século 19. Deseja restabelecer o pleno controle dos territórios que julga serem seus, como Taiwan e Hong Kong, e não admite movimentos que considera separatistas, em Xinjiang e no Tibete. Almeja recuperar sua esfera de influência histórica ao longo das fronteiras e mares adjacentes e obter o respeito de outras grandes potências nos principais fóruns e nas discussões dos temas mundiais.

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É claro que, no caminho para alcançar esses objetivos, os chineses esbarrariam nos interesses de outros povos e outras nações. O restabelecimento da soberania plena sobre Taiwan e Hong Kong contraria os interesses de grande parte dos cidadãos daqueles locais, acostumados ao seu modo de vida, no qual desfrutam de liberdades democráticas inexistentes no sistema político chinês. O mesmo tipo de consideração, com uma maior ênfase nas liberdades religiosas, pode ser feito em relação aos uigures, uma minoria étnica majoritariamente islâmica que habita a distante província chinesa de Xinjiang, na Ásia Central, e dos tibetanos budistas, na fronteira com a Índia.

O controle dos mares adjacentes à China esbarra nos interesses japoneses e dos países do sudeste asiático, além dos insulares do Pacífico ocidental, na disputa pelo controle de recursos energéticos, áreas pesqueiras e das rotas comerciais.

E todos esses possíveis pontos de atrito de alguma forma impactam os interesses norte-americanos na região. Os EUA estão comprometidos com a manutenção do regime taiwanês, política prevista em lei específica[3], promulgada em 1979, e defendem sem vacilações seus interesses na região. O país mantém contingentes militares na Coreia do Sul, Japão, Guam, Filipinas, Cingapura e Austrália, além de manter uma frota voltada especificamente para operações no Oceano Pacífico, dentre elas as chamadas “Operações de liberdade de navegação”, quando seus navios de guerra transitam pelo Estreito de Taiwan e pelo Mar do sul da China, para grande irritação dos chineses.

Mas, além das questões que envolvem a China e terceiros países, nas quais os EUA podem acabar envolvidos, há também a disputa direta entre chineses e norte-americanos. Um bom exemplo é o do comércio internacional. No início da década de 1980, os EUA eram o principal parceiro comercial da maior parte dos países. Atualmente, essa situação se inverteu completamente, em favor da China. As figuras abaixo ilustram essa mudança, entre 1981 e 2018, e o atual domínio chinês em termos de comércio exterior.

Evolução do comércio global da China

Entretanto, a principal disputa entre os dois países, que tende a se acirrar nos próximos anos, será pela supremacia tecnológica. Campos como o da inteligência artificial, internet das coisas, robótica, blockchain e  internet de 5ª geração são alguns exemplos. E por serem todas tecnologias com potencial disruptivo, que conferem aos seus detentores grande vantagem competitiva, são potencialmente geradoras de imensos conflitos de interesses, que podem evoluir para crises internacionais.

Após todos esses aspectos terem sido levantados, voltemos à pergunta feita no início deste texto: o caminho para a guerra é inevitável? Estariam EUA e China destinados pela Armadilha de Tucídides a um confronto que traria terríveis consequências, não só para os dois países como também para todo o restante da comunidade internacional?

Um primeiro aspecto a se considerar é o grau inédito de interligação econômica existente entre as duas economias. Os EUA e a China possuem um fluxo comercial de aproximadamente US$ 2 bilhões ao dia. Apenas como comparação, esse era o volume do comércio entre EUA e URSS, durante a guerra fria, ao ano. Suas cadeias de produção estão interligadas. Milhares de empresas norte-americanas produzem na China e miram seu mercado consumidor. O maior mercado consumidor da Apple fora dos EUA é a China, país onde a gigante da tecnologia concentra 95% de sua produção. A rede de cafeterias Starbucks possui na China seu maior mercado fora dos EUA, onde chegou a inaugurar uma nova loja a cada 15 horas. A General Motors, junto com suas afiliadas locais, vende mais carros na China do que nos EUA.

Tal grau de interdependência econômica, apesar de aumentar muito o custo de uma guerra, o que diminui sua possibilidade, por si só, não impede a guerra, como comprovam vários casos do passado, em especial a Primeira Guerra Mundial. É oportuno relembrar que nas décadas que antecederam a grande guerra, as economias do Reino Unido e da Alemanha ficaram tão intimamente entrelaçadas que um lado não podia infligir dificuldades econômicas ao outro sem sofrer prejuízos.

Outro aspecto fundamental a ser considerado é a possibilidade de destruição mútua assegurada. EUA e China possuem arsenais nucleares tão substanciais e sofisticados que uma guerra total entre os dois países não seria uma opção justificável. Esta afirmação, que serviu de base para a lógica da paz armada, que vigorou na Guerra Fria, está profundamente inserida na mentalidade de segurança dos países ocidentais. Mas será que também estaria entre os estrategistas chineses? Não custa lembrar a afirmação de Mao Zedong, da década de 1960, de que não temia uma guerra nuclear porque, ainda que perdesse 300 milhões de vidas, a China ainda sobreviveria.

Os aspectos acima mencionados são apenas alguns dos mais evidentes, dentre uma miríade de outros que poderiam ser levantados utilizando-se as lentes fornecidas por Tucídides. Eles alertam que o risco de uma guerra entre EUA e China pode ser maior do que gostam de admitir a maior parte dos analistas.

Mas, apesar de tudo, Graham Allison não considera a guerra inevitável. Ele acredita que a paz pode ser mantida, mas isso exigirá esforço de ambas as partes. Acomodação, negociação, estratégia de longo prazo, definição correta dos interesses vitais de ambas as nações, priorização dos desafios internos, todas essas são estratégias que devem nortear o comportamento das lideranças de ambos os países na busca de se evitar a repetição do flagelo da guerra, que acometeu tantas nações que enfrentaram o Desafio de Tucídides ao longo da história.

Caso tenham sucesso, terão honrado o legado do autor de História da Guerra do Peloponeso:

“Se minha história for considerada útil por aqueles que desejam um conhecimento exato do passado como ajuda para compreender o futuro – que no curso os acontecimentos humanos, deve se assemelhar a ele, quando não refleti-lo – dar-me-ei por satisfeito.”

Tucídides

[1] Neste ponto, faço um chamado aos profissionais da guerra, especialmente aos mais jovens. Se ainda não leram a História da Guerra do Peloponeso, não percam mais tempo e leiam. É um exercício fundamental ao militar profissional. A obra está disponível em: <http://funag.gov.br/biblioteca/download/0041-historia_da_guerra_do_peloponeso.pdf>. Acesso em 22 Fev 2021.

[2] GRAHAM, Allison. The Thucydides Trap: Are the U.S. and China Headed for War? The Atlantic, 24 Set 2015. Disponível em: <https://www.theatlantic.com/international/archive/2015/09/united-states-china-war-thucydides-trap/406756/>. Acesso em 22 Fev 2021.al, em 17 de março de 2013. In Governança da China, de Xi Jinping

[3] Disponível em: <https://www.ait.org.tw/our-relationship/policy-history/key-u-s-foreign-policy-documents-region/taiwan-relations-act/>. Acesso em 23 Fev 2021.

[1] Aqui há uma brincadeira com o lema do ex-presidente Donald Trump, que prometeu, eu sua campanha presidencial “to make America great again”. Como veremos, a intenção de Xi Jinping é rigorosamente a mesma.

[2] Discurso de posse de Xi Jinping, na 1ª Sessão da 12ª Assembleia Popular Nacion




Os desafios da política externa do Governo Joe Biden

Ao completar seu primeiro mês no cargo, o Presidente Joe Biden se defronta com vários desafios na política internacional. O manejo desses desafios começa a revelar os novos rumos da política externa norte-americana.

O enfrentamento das múltiplas questões que envolvem o relacionamento EUA/China é desafiado pela incrível complexidade das questões, além da falta de consenso no governo e no Partido Democrata sobre qual deve ser o foco da relação dos EUA com o gigante asiático. Há uma maioria que defende o fim da confrontação política permanente e do esforço de desassociação das economias (decoupling, no termo em inglês), posição defendida por poderosos grupos econômicos que mantém enormes interesses na China. Ao mesmo tempo, muitos integrantes do partido Democrata defendem maior assertividade norte americana na defesa dos direitos humanos na China e maior cooperação no enfrentamento das causas do aquecimento global, o que pressionaria a China também no campo da preservação ambiental, em razão de sua matriz energética altamente poluente.

No campo militar, a completa liberdade de ação norte-americana no Oceano Pacífico, conquistada no pós-guerra, continuará a ser desafiada pela crescente capacidade militar chinesa, especialmente sua marinha de guerra. Nesse sentido, o cumprimento de mais uma das chamadas “Operações de Liberdade de Navegação” pelo Contratorpedeiro (Destroyer) USS John S McCain, logo na primeira semana do governo Biden, navegando pelo Estreito de Taiwan e pelo Mar do Sul da China, costeando as disputadas Ilhas do Arquipélago Paracel, mostra a disposição norte-americana de manter inabalada sua influência militar na região.

Mas, encontrar o tom adequado da retórica e das ações militares exigirá habilidade. Por um lado, um aumento no tom de confrontação militar poderá deixar os aliados norte-americanos na área emparedados pela armadilha da neutralidade, uma vez que seus laços econômicos com Beijing são cada vez mais profundos. Por outro lado, qualquer ênfase em um “reset” na relação entre os dois países, que resulte em acomodações e concessões excessivas, acenderá um alerta em Tóquio, Seul, Canberra e Nova Déli, sem falar em Taipei, que poderão concluir que eles estão por sua própria conta, acelerando ainda mais a já existente corrida armamentista na região.

Os problemas a enfrentar no Oriente Médio não são menores. Biden acaba de retirar o apoio norte-americano à ofensiva saudita contra os Houthis no Iêmen, interrompendo a venda de armas aos árabes, além de revogar o ato do governo Trump, de janeiro deste ano, que designava aquele grupo como uma entidade terrorista. O governo norte-americano alegou razões humanitárias para isso, uma vez que tal designação bloqueava uma série de ajudas à população iemenita, terrivelmente castigada pelo conflito que já se arrasta há seis anos e que já causou mais de 100 mil mortes. A ONU classifica a crise no Iêmen como sendo a pior crise humanitária do planeta, com cerca de 80% de sua população de 24 milhões de habitantes necessitando de ajuda, incluindo-se 12 milhões de crianças.

É claro que os sauditas não ficaram satisfeitos com a retirada do apoio. É interessante notar que a ação militar do Reino no Iêmen começou em 2015, contando com a aprovação do governo Obama, de quem Biden era vice-presidente. Mas, oficialmente, o Reino declarou estar comprometido na busca de uma solução política para o conflito, que na verdade é mais um campo de sua disputa geopolítica regional com o Irã, patrocinador dos Houthis.

Isso nos remete ao Irã, e sua complicadíssima relação com os EUA. A Agência Internacional de Energia Atômica acaba de divulgar relatórios alertando que o país aumentou seus esforços de enriquecimento de urânio, instalando centrífugas novas e mais modernas em duas instalações nucleares diferentes. Este fato mostra que o Irã se afasta ainda mais do que havia sido pactuado no Acordo Nuclear de 2015, do qual o governo Trump se retirou em 2018. Com a volta das sanções econômicas que haviam sido levantadas pelo acordo, o Irã se sentiu liberado para descumprir abertamente os limites de enriquecimento de urânio previstos no pacto.

E esse é o nó górdio que a administração Biden tem que desatar. Retomar o pacto nas condições anteriores talvez seja impossível no momento. Já um pacto em novas bases, mais favorável aos interesses iranianos, deixariam os EUA em uma difícil situação com seus principais aliados na região, especialmente Israel.

Com tantos e tão complexos desafios, um desponta como preferencial em razão da facilidade de atuação, dado seu apelo mundial: a promoção da agenda ambiental, de enfrentamento das mudanças climáticas e do aquecimento global. Creio ser por aí que a administração Biden vai iniciar suas mais importantes ações no campo internacional.




O que esperar da política internacional em 2021?

O ano que se encerrou demonstrou da forma mais difícil que o inesperado está a nos espreitar, modificando a realidade, interrompendo planos, provocando adaptações, causando perplexidades, trazendo medo e exigindo reação.

Apesar de vários alertas e estudos predizerem a possibilidade e os efeitos potencialmente catastróficos de uma pandemia, ninguém estava prestando atenção nisso e a Covid-19 pegou a todos de surpresa.

Bem, 2021 começou e as surpresas continuaram. Não ultrapassamos ainda a primeira quinzena do ano e o Congresso norte-americano foi invadido por uma turba e o Presidente Trump sofre um inédito segundo processo de impeachment a uma semana de passar o cargo.

Tudo isso demonstra que tentar antecipar acontecimentos é uma tarefa arriscada. Mas, baseados nos indícios disponíveis é possível, pelo menos, selecionar alguns assuntos internacionais sobre os quais devemos concentrar nossa atenção.

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Nesse cenário, os rumos que serão dados à política externa norte-americana merecem destaque. No governo Biden, espera-se um retorno ao multilateralismo, com o país buscando legitimar suas ações sob o respaldo de entidades como a ONU, OTAN, OMC etc. Mas, para isso, o país terá que reconquistar muito espaço perdido nesses organismos, como o caso da Organização Mundial de Saúde, claramente sob influência preponderante da China, demonstra.

Aliás, o relacionamento dos EUA com a China deveria ser um foco primordial de atenção. Nesse caso, não se espere grandes modificações no ambiente de confrontação geopolítica, com os EUA tentando conter a crescente influência da China, enquanto os chineses buscam expandir seu poder e prestígio em escala mundial. Um exemplo interessante dessa tentativa de expansão será notada na maior presença de produtos culturais chineses disponíveis para consumo no ocidente, como produções cinematográficas, livros, reportagens e exposições divulgando a cultura do país. Seremos definitivamente apresentados ao softpower chinês.

Será, ainda, interessante observar a assertividade de sua política externa e, no campo interno, o completo domínio de Xi Jinping sobre a máquina partidária. É provável que acompanhemos o acelerado fim da política um país dois sistemas, com Hong Kong tendo cada vez menos autonomia. A independência de facto de Taiwan continuará sendo um grande aborrecimento para Beijing, mas também uma oportunidade para o governo estimular o crescente nacionalismo chinês. As questões referentes ao tratamento que o país concede a minoria étnica dos uigures, na província de Xinjiang, e aos tibetanos, certamente aparecerá nos noticiários. As questões fronteiriças com a Índia, que em 2020 levaram a confrontos com mortes de militares que redundaram em uma ainda maior militarização dos dois lados da fronteira, além da expansão chinesa em direção ao Mar do Sul da China, são questões que também possuem o potencial de iniciar crises.

O Irã é outro foco de atenção. Joe Biden declarou, em campanha, que seu governo retornaria ao acordo nuclear de 2015, do qual Trump retirou os EUA em 2018. Entretanto, essa retomada não será simples. A realidade hoje é outra, com as tensões entre os dois países em um nível muito mais elevado, especialmente em razão da morte do general iraniano Qassem Soleimani, e da recente decisão do país de voltar a enriquecer urânio ao nível de 20%. A realidade geopolítica regional também se modificou: os iranianos rivalizam cada vez mais com árabes e israelenses, tornando quaisquer negociações muito mais complicadas. Aliás, um ataque a algum alvo norte-americano, árabe ou israelense, por iranianos ou seus proxies, em vingança pela morte de Soleimani, não seria uma surpresa em 2021.

As mudanças climáticas também se manterão no foco em 2021, com repercussões para a pauta ambiental. As pressões da comunidade internacional e da opinião pública, especialmente sobre países em desenvolvimento como o Brasil, se manterão. O derretimento do Oceano Ártico intensificará a disputa geopolítica naquela área, em razão da crescente utilização comercial e militar das rotas marítimas naquele oceano. 2020 foi o ano em que foi batido o recorde de viagens atravessando a Rota Norte, que encurta consideravelmente as distâncias entre o norte da Europa e o Oceano Pacífico. A Rússia, em razão disto, voltou suas atenções para o Ártico.

Mas a atenção dos russos não estará voltada somente para o Norte. Espera-se a continuidade de sua atuação na África e na Síria, além do leste da Europa, Cáucaso e Ásia Central. Putin manterá sua política externa voltada para reconstruir o que ele considera ter sido perdido com o desmoronamento da antiga União Soviética. Para isso o país manterá sua forte atuação também no ambiente cibernético. Em 2021 veremos muitos casos de ataques cibernéticos a empresas e governos do ocidente, que serão atribuídos a “hackers russos”.

Muitos outros pontos de atenção poderiam ser levantados: a Coreia do Norte e seus lançamentos provocativos de mísseis; o Brexit e suas consequências para o Reino Unido e a Europa; a crise venezuelana a afetar o cenário sul-americano; e, finalmente, o desenlace da crise mundial da Covid-19 e a efetividade das vacinas, com todas as suas repercussões sociais e políticas.

Não vai faltar assunto em 2021.




A visão da OTAN para 2030

A Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), mais poderosa aliança militar da história, acaba de publicar um documento[1] com análises e recomendações elaboradas por um Grupo de Trabalho designado especialmente para essa tarefa pelo Secretário Geral da Organização.

Ao grupo, foi solicitado que se dedicasse a encontrar formas de aumentar a unidade, coesão, solidariedade e coordenação entre os países-membros da Aliança. Além disso, o grupo também deveria buscar maneiras de reforçar o papel político da organização, além de indicar instrumentos para enfrentar as ameaças atuais e futuras, tudo isso tendo o ano de 2030 como horizonte temporal.

De início, o relatório diagnostica que o ambiente estratégico atual é caracterizado pelo retorno à rivalidade sistêmica, com a Rússia apontada como persistentemente agressiva e a China, como potência emergente. O ambiente ainda é marcado pelo surgimento acelerado de tecnologias disruptivas e pela elevação de ameaças e riscos transnacionais de toda a ordem.

O retorno à competição geopolítica é definido como sendo a principal característica do ambiente internacional de segurança. A Rússia é mantida no posto de principal ameaça à OTAN. O país é acusado de continuada agressão à Ucrânia e à Geórgia, ao mesmo tempo em que se volta para o Atlântico Norte e para o Oceano Ártico. Além disso, os russos estariam ampliando suas ações de guerra híbrida, com o objetivo de atuar no interior dos países da Aliança, para dividi-los e erodir sua coesão social. Os russos são ainda acusados de usar proxies e mercenários para atuarem em defesa de seus interesses em países do Norte da África e Oriente Médio.

Em relação à China, o documento aponta que sua maior assertividade constitui um desafio bastante diferente daquele representado pela Rússia. Embora os chineses não sejam considerados, no presente, uma ameaça militar direta à área Euro-atlântica, sua agenda internacional se apoia cada vez mais em seu peso econômico e crescente poderio militar. Isso indicaria que, em breve, os interesses chineses poderão colidir com os dos países da Aliança. Sua estratégia de fusão civil-militar presente no desenvolvimento tecnológico nas áreas nuclear, naval e de mísseis, para dar alguns exemplos, é um fator complicador, como demonstra a disputa que a China trava com países europeus na tecnologia de internet de 5ª geração.

O terrorismo tem sido, e permanecerá sendo, uma das ameaças mais imediatas aos países da Aliança e aos seus cidadãos. Embora o combate ao grupo Estado Islâmico tenha sido exitoso ao reduzir a capacidade de atuação daquele grupo, que vinha se constituindo na principal origem das ameaças terroristas, outros atores não-estatais motivados por extremismos religiosos ou políticos permanecem atuando.

Nos próximos dez anos, as tecnologias disruptivas representarão, tanto oportunidades, quanto ameaças à segurança dos países aliados e de suas populações. Essas tecnologias mudarão a natureza da guerra, possibilitando, por exemplo, ataques com misseis hipersônicos e operações de natureza híbrida ainda mais efetivas. A guerra estará cada vez mais presente no domínio espacial.

Sempre segundo as conclusões do relatório, mudanças climáticas poderão acelerar a escassez de recursos e gerar insegurança alimentar. Maiores efetivos populacionais sofrerão com a falta de água. Os níveis dos oceanos poderão se elevar. Tudo isso poderá aumentar ainda mais os fluxos de migrantes e refugiados em direção aos países da OTAN. O derretimento da calota polar ártica aumentará as disputas geopolíticas pelo controle das rotas marítimas comerciais que passarão a ser viáveis no Norte.

Para enfrentar essa realidade, o documento faz 138 recomendações. Dentre essas, podemos citar a proposição de que a OTAN mantenha, em relação à Rússia, uma dupla abordagem, ao mesmo tempo dissuasória e aberta ao diálogo. No que se refere à China, os aliados devem devotar muito mais recursos, tempo e ações para fazer face aos desafios de segurança impostos pelo gigante asiático.

Para o enfrentamento do terrorismo a Aliança deve prover recursos adequados ao fortalecimento dos sistemas de segurança cibernética e de defesa contra ameaças hibridas.

Quanto ao armamento nuclear, ao mesmo tempo em que o relatório aponta a necessidade do fortalecimento do controle desse tipo de arsenal, indica que a dissuasão nuclear deve ser mantida.

Outra recomendação relevante do documento é a de se criar um centro de excelência em segurança climática. As ameaças não militares à segurança, tais como as oferecidas pelo clima, mas também de outros tipos, como as pandêmicas, devem receber maior atenção da organização.

Enfim, o documento alerta os países membros da Aliança acerca dos muitos, variados e complexos riscos que se apresentam no curto espaço de tempo que nos separa de 2030. Mais uma vez os estrategistas alertam para o ambiente volátil, incerto, complexo e ambíguo que caracteriza o atual momento do Sistema Internacional.

Para nós, que estamos aqui na América do Sul, a leitura do documento é interessante não somente pela análise de cenário e pelas conclusões, mas também por desnudar a maneira de pensar dos formuladores das estratégias da Aliança. Quando 2030 chegar, é provável que nem todas as previsões se confirmem. Mas há uma boa possibilidade de que algumas já tenham se tornado realidade. Como seremos afetados? Estaremos prontos? São boas perguntas, para as quais não se deve ter necessariamente respostas. O importante é que, acompanhando cenários como os descritos no documento da OTAN, sejamos capazes de conhecer melhor as ameaças e nos preparemos adequadamente para as múltiplas possibilidades que o século XXI nos reserva.

[1] Disponível em https://paulofilho.net.br/wp-content/uploads/2020/12/Relatorio-OTAN.pdf




O RELATÓRIO DO PENTÁGONO SOBRE A CHINA

Se você conhece o inimigo e conhece a si mesmo, não precisa temer o resultado de cem batalhas.
Sun Tzu

Os EUA construíram a mais poderosa máquina de guerra que o mundo já conheceu. E todo o Exército, para se manter no topo, precisa conhecer perfeitamente seus possíveis inimigos. Aliás, isso já era ensinado pelo chinês Sun Tzu, há 2,5 mil anos.

O Ministério da Defesa dos EUA acaba de enviar ao Congresso seu relatório anual sobre a China. É a 20ª edição do estudo, que analisa cuidadosamente as políticas e estratégias chinesas na área de Defesa e acompanha o desenvolvimento material e doutrinário do Exército de Libertação Popular (ELP).

Com 200 páginas, o documento constata que o ELP se fortaleceu e se modernizou em quase todas as dimensões possíveis. Há alguns aspectos, inclusive, em que as capacidades militares chinesas já superam as capacidades norte-americanas.

De início, o relatório descreve a estratégia chinesa, que tem por objetivo levar o país, no ano de 2049, centenário da revolução que levou o Partido Comunista ao poder, ao “Sonho Chinês”, descrito pelo presidente Xi Jinping: uma posição de prosperidade, força e liderança no cenário internacional.

Para atingir esse objetivo, a estratégia define que a completa “reunificação” da nação chinesa é inegociável, o que significa o retorno de Taiwan à plena soberania da China e a total reintegração de Hong Kong e Macau. O relatório também destaca uma postura crescentemente assertiva no campo da política exterior chinesa, em especial nos últimos anos, momento em que o poder militar chinês passou a ter melhores condições de respaldar as aspirações do país.

O desenvolvimento econômico chinês é central para que o país atinja seus objetivos de modernização em todas as áreas, inclusive a militar. Sempre segundo o entendimento do Pentágono, o governo chinês utilizaria como principais ferramentas de indução econômica as iniciativas “One Belt, One Road”, de investimento em infraestrutura, “Made in China 2025”, de fomento ao desenvolvimento tecnológico e industrial, bem como políticas protecionistas, além de ferramentas de “coerção econômica”.

Ao se concentrar nas forças armadas chinesas, os analistas norte-americanos destacam seus esforços de modernização, com vistas a se tornarem forças de “classe mundial”, em 2049. Isso significa ser proficiente no combate terrestre, naval, aéreo, bem como nos ambientes espacial, de guerra eletrônica e cibernética. O documento alerta que a China já teria alcançado paridade – e mesmo ultrapassado – as capacidades militares norte-americanas em várias áreas, em especial nas capacidades de construção naval, na de mísseis balísticos convencionais e de cruzeiro e nos sistemas integrados de defesa antiaérea.

São seis as forças armadas chinesas, todas elas integrantes do ELP e subordinadas diretamente ao Comitê Militar Central do Partido Comunista Chinês. Além do exército, marinha e força aérea, o país conta com a “Força de Foguetes”, responsável pelos mísseis balísticos convencionais e nucleares; com a “Força de Apoio Estratégico”, encarregada de centralizar as operações espaciais, cibernéticas, eletrônicas e psicológicas e a “Força Conjunta de Apoio Logístico”,  incumbida do apoio logístico integrado a todo o ELP.

Nos últimos anos, o esforço chinês em aumentar o nível de prontidão para o combate é evidente. Os exercícios conjuntos e em larga escala têm alcançado níveis cada vez mais altos de complexidade. Os cenários dos treinamentos são cada vez mais realistas, com utilização de tecnologias de simulação e a presença de uma “força azul” inimiga que avalia com rigor e exige cada vez mais do desempenho dos comandantes em todos os níveis.

Além disso, a China mantém uma capacidade nuclear suficiente para dissuadir qualquer ataque ao seu território. Essa capacidade está baseada na crença de que o país seria capaz de preservar seu armamento nuclear de um primeiro ataque e, em retaliação, contra-atacar com seu arsenal.

O ELP tem ampliado sua atuação global. Uma maior presença em missões de ajuda humanitária, escoltas navais de comboios mercantes, operações de paz da ONU, intercâmbios militares, venda de armamentos e exercícios militares multinacionais são as ferramentas mais visíveis dessa projeção de poder.

A análise detalhada do documento elaborado pelo Pentágono para o Congresso norte-americano é um exercício interessante para todos aqueles que se dispõem a entender a dinâmica das relações entre os dois países, em especial as preocupações do estamento de defesa dos EUA. É evidente que um documento dessa natureza sempre é redigido com a intenção de demonstrar a grande quantidade de recursos necessária para se manter as forças armadas norte-americanas na posição de liderança global em que se encontra hoje. E é o congresso daquele país que detém a chave do cofre. Mas trata-se de um estudo baseado em dados e argumentos sólidos, que desvela de forma acurada o poderio militar chinês.




A CRISE IRÃ X EUA

“A guerra não é meramente um ato de política, mas um verdadeiro instrumento político, uma continuação das relações políticas realizada com outros meios”

Clausewitz

Nem bem tínhamos terminado de desejar aos amigos um feliz 2020 quando, no terceiro dia do ano, tomamos conhecimento da ação militar dos EUA no Iraque, que causou a morte do General Qassim Suleimani, poderoso comandante da Guarda Revolucionária Iraniana. Parecia um mau presságio. O ano mal tinha começado e o mundo já estava por acabar, afinal, a 3.ª Guerra Mundial estaria por começar…

O futuro é, por definição, imprevisível. Mas a história das relações internacionais já nos ofereceu um enorme número de crises que, mal ou bem solucionadas, indicam que vamos sobreviver também a essa.

A ação militar norte-americana em que uma aeronave remotamente pilotada lançou mísseis sobre o comboio de viaturas onde estava o general Suleimani é o ponto até aqui culminante de uma série de acontecimentos na longa crise que caracteriza as relações entre Irã e EUA, desde a revolução islâmica que levou os aiatolás xiitas ao poder, em 1979.

O capítulo mais recente dessa crise foi iniciado em maio de 2018, quando os EUA se retiraram do acordo nuclear assinado em 2015 entre os dois países, Rússia, China, Reino Unido, França e Alemanha. Esse acordo relaxava as sanções econômicas impostas ao Irã em troca do compromisso do país de não desenvolver armamentos nucleares. A saída dos EUA do acordo redundou na imposição de uma nova série de sanções econômicas ao Irã, além da classificação, pelos norte-americanos, da Guarda Revolucionária Islâmica, a força militar que era comandada pelo general Suleimani, como “organização terrorista internacional”.

Os embargos afetaram seriamente a economia do Irã e o país resolveu, em 2019, adotar uma estratégia de escalada das tensões. Foi assim que, em maio desse ano, além de anunciar que retornaria a enriquecer urânio acima dos níveis permitidos pelo tratado de 2015, o Irã implementou – ou patrocinou – uma série de ações ofensivas: navios petroleiros em trânsito pelo Estreito de Ormuz foram sabotados, drones foram lançados contra oleodutos e instalações petrolíferas sauditas e, em 20 de junho, uma aeronave remotamente pilotada norte-americana foi abatida. As tensões entre os dois países se elevaram, mas os EUA evitaram uma retaliação militar.

Em julho, o Irã apreendeu um petroleiro do Reino Unido enquanto passava pelo Estreito de Ormuz. Em setembro, novamente drones atingiram instalações petrolíferas sauditas, dessa vez com grande impacto sobre a produção de petróleo do país. Ao mesmo tempo, ao longo de todo o ano de 2019 os EUA foram impondo ainda mais sanções sobre atividades econômicas específicas e também sobre pessoas físicas, no caso, os principais líderes iranianos e seus familiares.

Finalmente, no mês de dezembro se deram os fatos que seriam o estopim dos últimos acontecimentos. No dia 27, uma ação do grupo terrorista Kataib Hezbollah contra uma base militar iraquiana em Kirkuk resultou na morte de um cidadão americano, além de ferir militares e civis iraquianos. Os EUA acusaram o Irã de apoiar os terroristas. Em retaliação, os EUA atacaram posições do grupo no próprio Iraque e na Síria. Cerca de 25 terroristas foram mortos e algumas dezenas, feridos. Em 31 de dezembro a embaixada dos EUA em Bagdá foi atacada e invadida por grupos paramilitares iraquianos pró-Irã. No dia 3 os EUA desencadearam o ataque que matou o general Suleimani.

A descrição da série de acontecimentos acima serve para tentarmos desenhar a manobra de crise visualizada por cada uma das partes em conflito.

De um lado, os EUA, ao imporem os embargos, tentam em primeiro lugar dobrar o regime iraniano, obrigando-o a aceitar termos mais duros do que os que eram previstos no acordo assinado em 2015, considerados insuficientes pelo governo Trump para manter a estabilidade regional. Em segundo lugar, pela pressão econômica, busca enfraquecer um governo que é francamente contrário aos seus interesses no Oriente Médio, rival de árabes e israelenses e que busca se impor como uma potência regional. Ao eliminarem o general Suleimani, os EUA demonstram claramente o limite para as ações iranianas: a morte de norte-americanos ou o ataque a instalações do país terão como resposta uma ação militar.

De outro lado, os iranianos mostram que podem, por si próprios ou por intermédio de grupos que agem “por procuração”, causar grandes transtornos econômicos, especialmente por ações no Golfo Pérsico, no Estreito de Ormuz e no Golfo de Omã, por onde transita grande parte do petróleo mundial. Ou mesmo em ataques à Arábia Saudita, aos países do Golfo Pérsico ou a Israel. Assim esperam convencer a comunidade internacional a pressionar os EUA a abrandarem os embargos comerciais, ao mesmo tempo que ampliam sua influência no Oriente Médio.

Volto à citação de Clausewitz. A guerra só é travada quando um governo se convence de que ela é um meio eficaz para que se alcance algum objetivo político. E embora a História mostre casos em que guerras se iniciaram quase por acaso, não creio que nem EUA nem Irã tenham algum objetivo político importante a ser conquistado com um conflito de alta intensidade, ainda mais levando em consideração as graves consequências que certamente sofreriam suas populações e seus governos. Já ações pontuais e restritas, como as que vêm sendo desencadeadas até aqui, atenderiam a cada uma das partes na busca de seus objetivos estratégicos.

Assim, não creio que haja mudança significativa no panorama da crise. O Irã deve retaliar, vingando a morte de seu general, com alguma ação semelhante às até aqui praticadas. Os EUA também devem manter sua estratégia, acreditando que as sanções econômicas e a ameaça do emprego da força impeçam o Irã de prejudicar seus interesses na região.