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A TURQUIA E OS CURDOS. OS RUSSOS, OS IRANIANOS E A SIRIA. E OS EUA COM ISSO

O Presidente Trump ordenou a retirada das tropas norte-americanas que estavam na Síria. Talvez esta tenha sido a decisão de política externa mais criticada de seu período como presidente, tanto por integrantes da oposição quanto por membros do seu próprio partido, por vários motivos. O mais evidente foi o fato de a retirada das tropas servir como senha para a invasão do norte da Síria pela Turquia, em uma ofensiva contra os Curdos, que dominam a região desde 2012. Curdos esses que, aliados aos próprios norte-americanos, foram os grandes responsáveis por combater com êxito o grupo terrorista Estado Islâmico, na Síria.

Para entender a confusa situação da Síria, é preciso consultar a história da formação das fronteiras dos países do Oriente Médio. Essas fronteiras inexistiam até as potências vencedoras da 1ª Guerra Mundial dividirem o território que antes fora o Império Otomano. Pelo acordo Sykes-Picot, celebrado entre Reino Unido e França, confirmado pela Conferência de San Remo, em 1920, os europeus traçaram linhas em mapas, linhas que não existiam na realidade e que criaram algumas das fronteiras mais artificiais da história. Antes, não havia nenhuma Síria, nem Líbano. Tampouco Israel, ou Palestina, Iraque, Kuait, Arábia Saudita, Jordânia. Esses e outros países foram criados, de um lado, unindo pessoas e povos que não estavam habituados a conviver e, de outro, separando etnias e povos de origens e costumes comuns.

Assim, a área onde hoje é a Síria, logo após a I Guerra Mundial, tornou-se um protetorado francês. Essa condição só foi modificada com a independência, em 1946. Em 2011, na esteira da chamada Primavera Árabe, teve início a Guerra Civil que se prolonga até hoje.

Bashar al-Assad, ditador sírio, esteve a ponto de ser derrubado, mas graças ao apoio de russos e iranianos, o regime se manteve. O apoio russo tem forte motivação geopolítica. Após a queda de Kadafi, na Líbia, na Primavera Árabe, os russos viram sua influência na região ser ameaçada. E o risco de perder um governo amigo também na Síria era intolerável. É neste país que, desde 1971, os russos mantêm a base naval de Tartus, um porto de águas profundas. A base é fundamental para garantir a presença naval russa no Mediterrâneo.

O Irã é outro forte ponto de apoio do regime de Assad. Isso se deve a alguns fatores, políticos e religiosos. O principal é que os sunitas, principais opositores de Bashar al-Assad, são também rivais dos xiitas iranianos. A eventual troca de governo na Síria, e a consequente ascensão sunita, aproximaria a Síria da esfera de influência da Arábia Saudita, significando um forte revés para a influência iraniana na área.

A Turquia aproveitou a retirada das tropas norte americanas da Síria para lançar uma ofensiva contra os curdos, que detêm o controle da posição nordeste do país, mantendo-se em uma situação de semiautonomia. O motivo alegado é o de criar uma “faixa de segurança” na fronteira, do lado sírio, para onde seriam enviados de volta parte dos 3,6 milhões de refugiados que estão no país, em fuga da guerra civil síria. Para um país de economia frágil e de 80 milhões de habitantes, esse é um problema de dificílima resolução. O presidente turco Recep Erdogan acusa as autoridades europeias e norte-americanas de não cumprirem acordos, deixando de enviar ao país 3 bilhões de euros que foram prometidos pela União Europeia em 2016. Ameaça também, caso não consiga enviar os sírios de volta ao seu país, “abrir as portas” para que os refugiados entrem Europa adentro.

Os curdos são um povo originário da região que hoje engloba a parte sudeste da Turquia, norte do Iraque, noroeste do Irã e sudoeste da Armênia. Estima-se que hoje sejam entre 25 e 35 milhões de pessoas.

Curdistão

Na Turquia, os curdos são vistos como uma ameaça. Desde a década de 1980, o grupo PKK, ou Partido dos Trabalhadores do Curdistão, fez uma opção pela luta armada, em busca da independência do Curdistão. Mais de 40 mil pessoas já morreram em atentados terroristas e em enfrentamentos com o Exército Turco desde então. Para os turcos, os curdos que estão na Síria nada mais são do que um dos braços de apoio ao PKK.

E, em meio a esse cenário conturbado, a decisão do presidente Trump afeta fortemente o equilíbrio das forças, redundando em um reequilíbrio que dificilmente será favorável aos interesses dos proprios norte-americanos na região. Em primeiro lugar, os curdos se sentiram traídos e abandonados, imediatamente entrando em acordo com o Presidente Bashar al-Assad. A fama de “parceiro não confiável” dos norte-americanos será espalhada pela máquina de propaganda dos seus inimigos no Oriente Médio, e exigirá um grande esforço futuro para que essa narrativa seja revertida. Em segundo lugar, o aforismo “o poder não deixa vácuo” foi comprovado pela enésima vez. Quase imediatamente, o presidente russo Vladimir Putin intermediou o acordo entre o presidente sírio e os curdos, e iniciou contatos com o presidente turco. Posicionou tropas em locais estratégicos no norte da Síria e tenta mediar o conflito. A Rússia assume o papel que até então era desempenhado pelos EUA na região.

O presidente norte-americano talvez ampare a decisão de retirar as tropas da Síria na premissa de que os cidadãos do seu país desejem uma política exterior mais isolacionista. Uma em que os EUA não se metam em “problema dos outros”. Afinal, o país tem enviado tropas para combater em lugares distantes já há um bom tempo. O que talvez essa postura não considere, é que os EUA só chegaram a ocupar o lugar de única superpotência do planeta porque, a partir da 2ª Guerra Mundial, souberam defender seus próprios interesses no xadrez geopolítico global. Decisões implicam em consequências. Somente o tempo indicará quais as repercussões geopolíticas das decisões do Presidente Trump.




TAIWAN E A VINGANÇA DA GEOPOLÍTICA


“Taiwan é um porta-aviões que não se pode afundar”. Atribui-se esta frase ao General Douglas McArthur, comandante das tropas norte-americanas no Teatro de Operações do Pacífico durante a II Guerra Mundial. Os navios-aeródromo (porta-aviões) capitaneiam as forças navais utilizadas para o controle de áreas marítimas. Assim, a metáfora de McArthur resume a importância geopolítica atribuída àquela ilha: sua posse garante o controle dos mares ao seu redor, os mares da China Oriental, do Sul da China e das Filipinas.

As tensões na região voltaram a se elevar em razão da decisão do Departamento de Estado dos EUA de aprovar uma venda de material de emprego militar para Taiwan, no valor de 2,2 bilhões de dólares. A venda ainda tem que ser aprovada pelo congresso norte-americano, mas parece improvável que venha a ser desautorizada. A transação incluiria 150 carros de combate (tanques) Abrams M1A2T, 250 unidades de tiro do míssil antiaéreo Stinger, além de diferentes tipos de metralhadoras e veículos de manutenção, dentre outros equipamentos. Trata-se de material moderno, capaz de aumentar substancialmente a capacidade militar de Taiwan.

O governo chinês reagiu imediatamente. A agência de notícias oficial Xinhua transcreveu um comunicado do governo informando que as vendas de armas dos EUA para Taiwan são uma “grave violação do direito internacional, de normas básicas das relações internacionais, do princípio de uma única China e de três comunicados conjuntos entre os dois países…”. O comunicado ainda informou que a China considera que sua soberania e sua segurança nacional seriam afetadas pela venda e que o governo chinês imporia sanções às empresas que negociassem material de emprego militar com Taiwan.

Em 1949, depois de quase vinte anos de combates, Mao Tse Tung tomou o poder na China, saindo vitorioso em sua revolução comunista. O governante derrubado, Chiang Kai-Shek, fugiu com seu governo para a ilha de Taiwan. Desde então estabeleceram-se, de facto, dois governos. A República Popular da China, comunista, e a República da China (Taiwan), capitalista. O reconhecimento internacional de Taiwan foi escasseando na medida em que o tempo passava e o regime comunista chinês se consolidava. Em 1971, a ONU passou a reconhecer a China, ao invés de Taiwan. Em 1974, foi a vez do Brasil. Os EUA reconheceram a China em 1979. Todos esses atos formais de reconhecimento significaram que, para estes países e organismos internacionais, a China é única e Taiwan não constitui um país independente. Atualmente, apenas dezessete países no mundo, além do Vaticano, reconhecem Taiwan como um estado soberano. Na América do Sul, o Paraguai é o único dentre esses países.

Assim, para os chineses, como os EUA não reconhecem e não mantêm relações formais com o governo de Taiwan, o fato de eles fornecerem armamentos para a ilha é inadmissível. Tal apoio é considerado uma grave afronta e a China julga estar amparada pelo direito internacional ao condenar veementemente a atitude norte-americana.

Mas, na disputa de interesses entre as potências, as coisas não são tão simples. No mesmo dia em que as relações entre EUA e China foram normalizadas, em 01 de janeiro de 1979, os EUA promulgaram a Lei de Relações com Taiwan que, dentre outras coisas, estabelece que “para ajudar a manter a paz, a segurança e a estabilidade no Pacífico Ocidental”, mesmo não mantendo relações diplomáticas oficiais ou não reconhecendo Taiwan como um país soberano, é política dos EUA fornecer armamentos para que Taiwan possa prover sua autodefesa. Além disso, a lei estabelece que qualquer tentativa de se determinar o futuro de Taiwan pelo uso da força, incluindo-se aí embargos e boicotes, será considerada pelos EUA uma “séria ameaça à paz e a segurança do Pacífico Ocidental” e, consequentemente, uma “grave preocupação” para os EUA.

“Geopolítica é destino”, alguém poderia dizer, brincando com o título de um dos livros do General Meira Mattos (Brasil: Geopolítica e Destino) para iniciar uma explicação sobre porque a questão de Taiwan permanece tão complexa e sem solução




TENSÕES NO GOLFO PÉRSICO

O Irã é um país governado, desde a Revolução de 1979, por religiosos da corrente islâmica xiita. E, especialmente após a chamada Primavera Árabe de 2011, posiciona-se em defesa dos grupos xiitas de todo o Oriente Médio, normalmente contrapondo-se à outra corrente do islamismo: os sunitas. Assim, o país apoia os Houtis no Iêmen, país que enfrenta uma guerra civil, considerada pela ONU “a maior crise humana da atualidade”. Também se posiciona em favor de reformas políticas no Bahrein, onde uma maioria xiita é governada por uma monarquia sunita. A Guarda Revolucionária iraniana apoiou decisivamente o regime de Bashar Assad na Síria, contra a oposição armada sunita, além de sustentar grupos xiitas no interior do Iraque, país que está completamente fragmentado desde a queda de Saddam Hussein.

A Arábia Saudita, país governado por uma monarquia wahabista, uma corrente sunita, disputa com o Irã a liderança regional. A relação entre os dois países se deteriorou significativamente nos últimos anos, especialmente após a execução do clérigo xiita Nimr al-Nimr, na Arábia Saudita, e em razão da guerra civil que vem sendo travada no Iêmen, uma verdadeira “guerra por procuração”, com cada um dos países apoiando um dos lados no conflito.

O governo de Israel considera que o Irã representa uma constante ameaça ao país, especialmente em razão do apoio dos iranianos ao grupo Hezbollah. O Primeiro Ministro Netanyahu já afirmou que Israel não aceitará que o Irã se torne uma potência nuclear.

Os interesses geopolíticos que cercam a região do Golfo Pérsico são enormes. Por ali, transitam as riquezas do Iraque, Kuwait e Emirados Árabes, além do Bahrein e do Catar. O território do Irã constitui-se em verdadeira ponte a unir o Mar Cáspio ao Oceano Índico.

É nesse contexto complexo e conturbado que as tensões no Golfo Pérsico mais uma vez se elevam, e o espectro da guerra volta a rondar a região. No dia 13 de maio, a Arábia Saudita denunciou a sabotagem de dois de seus navios petroleiros no Estreito de Ormuz. Apenas dois dias depois, Aeronaves Remotamente Pilotadas, carregadas com explosivos, atingiram poços de petróleo perto de Riad, a capital da Arábia Saudita. Os atos terroristas foram assumidos pelos Houtis, grupo Iemenita apoiado pelo Irã.

Reagindo aos acontecimentos, o Secretário de Estado dos EUA, Mike Pompeo, declarou que milícias xiitas no Iraque, patrocinadas pelo Irã, estariam ameaçando tropas americanas estacionadas naquele país. Disse ainda que, caso os militares fossem atacados, os EUA se sentiriam obrigados a reagir, sem necessidade de coordenar as ações com o governo iraquiano. Ao mesmo tempo, a Força-Tarefa liderada pelo porta-aviões USS Abraham Lincoln, reforçada por bombardeiros B-52, foi enviada ao Golfo Pérsico. Mesmo assim, exatamente um mês depois, no dia 13 de junho, dois navios petroleiros voltaram a ser atacados no Golfo de Omã, desta vez atingidos por minas. Mais uma vez, os EUA responsabilizaram o Irã pelo ataque.

Na última quinta-feira, ocorreu um incidente ainda mais grave do ponto de vista militar: o Irã abateu uma Aeronave Remotamente Pilotada RQ-4 Global Hawk, da Força Aérea norte-americana. Os iranianos alegam que a aeronave de reconhecimento estava no espaço aéreo do país. Os EUA negam, alegando que voava em espaço aéreo internacional.

Este fato agrava as tensões, que atingem um ponto culminante de uma escalada que já vem desde o ano passado, quando os EUA se retiraram do acordo multilateral, estabelecido em 2015, em Viena, que impunha limites ao programa nuclear iraniano em troca do alívio das sanções econômicas. Desde então, os EUA reimpuseram uma série de sanções unilaterais que afetaram transações financeiras, importações de matérias primas, inclusive petróleo, o setor automotivo e a aviação comercial. Apesar dos outros países integrantes do acordo, Reino Unido, França, Alemanha, China e Rússia, terem se negado a acompanhar as sanções norte-americanas, mantendo o respaldo ao tratado em 2015, o fato é que os embargos acabam por afetar inclusive os negócios feitos por eles, já que as empresas e países podem sofrer retaliações norte-americanas caso comerciem com Teerã.

Depois de aguardar por um ano por uma solução que contornasse os embargos americanos, no início de maio, ou seja, coincidentemente com o início dos diversos incidentes envolvendo os navios petroleiros, o Irã resolveu dar um ultimato aos europeus e chineses. Anunciou que suspenderia imediatamente o trato de limitar os estoques de água pesada e urânio enriquecido e que, se em sessenta dias os demais países signatários do acordo não encontrassem soluções para driblar as sanções norte-americanas, renunciaria a outros compromissos limitantes de suas capacidades nucleares, acordados em 2015.

Vê-se que a estratégia iraniana parece ser, por um lado, pressionar os países europeus e a China, para que estes, por sua vez, atuem no sentido de fazer os EUA voltarem ao acordo multilateral. Por outro lado, as ações contra os petroleiros também parecem ser uma tentativa de forçar os norte-americanos a se sentarem à mesa de negociações.

Mas se há um ensinamento que o estudo da história militar apresenta recorrentemente é o de que quando as tensões escalam, as coisas podem muito facilmente sair do controle. É o que parece ser o caso do ataque iraniano à ARP Global Hawk.

Imediatamente após o ataque, o Presidente Trump foi ao Twitter e escreveu que o Irã tinha cometido um “erro muito grande”. Em seguida, talvez percebendo que o cheiro de pólvora já estava perigosamente forte, atenuou a retórica afirmando que não acreditava que o ataque tivesse sido proposital.

Os próximos acontecimentos dependerão da habilidade dos envolvidos na condução da crise. O ataque à aeronave norte-americana complicou muito uma situação que já era extremamente complexa. Qualquer fagulha pode acender a fogueira da guerra.

 




TRUMP E A DEFESA DOS EUA

“Em 2024, a China realiza um ataque surpresa, para impedir Taiwan de declarar independência. As forças chinesas desencadeiam ataques aéreos e de mísseis, e realizam desembarques anfíbios na ilha, tornando clara a necessidade de intervenção norte-americana. Infelizmente, os EUA não podem mais intervir a um custo aceitável. As capacidades militares chinesas referentes aos domínios aéreos, marítimos e de superfície continuaram a se desenvolver, enquanto as dos EUA estagnaram. Áreas do oeste do Pacífico se tornaram proibidas para as forças dos EUA. O Pentágono informa ao presidente americano que os EUA podem derrotar a China numa guerra de longa duração, em que toda a capacidade nacional seja mobilizada, com perda de grande número de navios e aeronaves, milhares de vidas e grandes transtornos econômicos – tudo isso sem garantias de que haja um impacto decisivo antes de Taiwan ser invadida. Permitir que Taiwan seja incorporada pela China seria um golpe terrível para a credibilidade norte-americana e para a sua posição na região. Mas impedir que isto aconteça agora exigirá assumir perdas horrendas.”

Da mesma fonte de onde se extrai o texto acima podem ser retiradas outras situações hipotéticas que envolvem desafios ao poderio norte-americano: uma situação de escalada de tensões nucleares envolvendo a Coreia do Norte; uma situação de caos doméstico ocasionada por ações russas contra satélites, cabos interoceânicos de fibra ótica e ataques cibernéticos; a proibição do acesso dos navios comerciais e de guerra dos Estados Unidos ao Mar do Sul da China.

Nenhuma dessas situações foi retirada de livros de ficção. Elas foram extraídas de relatório elaborado pela Comissão da Estratégia Nacional de Defesa. Trata-se de um painel suprapartidário instituído pelo Congresso dos EUA com a missão de avaliar a Estratégia de Defesa desse país e de fazer as sugestões que julgasse adequadas. Os especialistas da comissão encerraram seu trabalho em novembro de 2018.

A comissão, em seu relatório – disponível na internet -, concorda com as conclusões da Estratégia de Defesa Norte-Americana, publicada também em 2018 e sobre a qual tratei neste espaço em 18 de abril do ano passado. Ambos inferem que a competição estratégica entre estados nacionais, e não a chamada guerra ao terror, é a primeira prioridade da segurança nacional dos EUA.

E como se pode claramente aduzir da situação hipotética do ataque chinês a Taiwan, os estrategistas e consultores, tanto do Congresso quanto do Pentágono, concordam que a superioridade da capacidade militar norte-americana em relação a seus possíveis adversários, especialmente a China, vem sendo reduzida ano a ano.

Dentro desse cenário, destaca-se a preocupação com a disponibilidade orçamentária. Os especialistas alertam para o fato de que em 1996, para cada dólar gasto por Rússia e China em pesquisa e desenvolvimento científico, os EUA gastavam US$ 8,21. Vinte anos mais tarde os gastos dos EUA na mesma área superam os de seus adversários em apenas seis centavos.

Ao mesmo tempo, a China sob a liderança de Xi Jinping adota uma postura cada vez mais incisiva em relação a Taiwan. No início deste ano Jinping reafirmou que a “China deve ser – e será – reunificada”. Dirigindo-se ao Comitê Central Militar do Partido Comunista, instância máxima das Forças Armadas do país, ele alertou que “o mundo está passando por uma era de mudanças drásticas” e que “riscos previsíveis e imprevisíveis” estavam aumentando.

Por outro lado, Tsai Ing-wen, presidente de facto de Taiwan, repetidas vezes tem conclamado a comunidade internacional a reafirmar “os valores de democracia e liberdade, com a finalidade de conter a China e minimizar a expansão de sua influência hegemônica.”

O presidente Donald Trump, por sua vez, emite sinais contraditórios. Ao mesmo tempo que reforça o orçamento de defesa e endurece a posição comercial dos EUA, travando uma verdadeira batalha no campo econômico contra a China, anuncia a retirada das forças norte-americanas da Síria, ação que enfraquece a posição dos EUA no Oriente Médio, área de enorme importância estratégica. O gesto causou o imediato pedido de demissão de Jim Mattis, respeitadíssimo general fuzileiro naval que era secretário de Defesa e assinou a Estratégia de Defesa de 2018. Não havia forma mais clara de Mattis demonstrar a sua insatisfação.

Confirmando-se a saída dos EUA da Síria, abre-se um vácuo que será necessariamente preenchido. Irã e Rússia, países citados como adversários estratégicos nos documentos de defesa, ganham espaço e os alertas feitos pela Comissão da Estratégia Nacional de Defesa tornam-se mais evidentes, com o enfraquecimento ainda maior das posições relativas dos EUA em mais uma área de importância vital para seus interesses estratégicos.

Mattis não foi o primeiro militar a sair do governo Trump por discordância na condução dos rumos estratégicos da defesa. Em março do ano passado, apenas um ano após sua nomeação como assessor de segurança nacional, outro militar respeitadíssimo, o general H. R. McMaster foi demitido. Assim como Mattis, McMaster dificilmente teria concordado com a retirada das tropas norte-americanas da Síria neste momento.

Alguns analistas internacionais têm definido a política externa de Trump, especialmente em assuntos de defesa, como “errática e cambiante”. Ao mesmo tempo que aprovou a nova Estratégia de Defesa, indicando a necessidade de maior assertividade e alertando para o crescente enfraquecimento da posição estratégica de seu país em várias regiões de interesse vital, Trump toma decisões que vão exatamente na contramão do que seria esperado para a efetivação daquela estratégia. Os aliados e rivais dos EUA acompanham, entre surpresos e incrédulos, para onde caminhará a maior potência militar do planeta.




O ENCONTRO DE CÚPULA DE HELSINQUE

Um dia após premiar os franceses, campeões da Copa da Rússia, perante uma audiência global de mais de 1 bilhão de pessoas, Vladimir Putin viajou a Helsinque, capital da Finlândia, para encontrar-se com o presidente dos EUA, Donald Trump.

O encontro ocorreu após uma intensa movimentação diplomática de ambos os presidentes. Putin vinha de encontrar-se na semana anterior com Ali Akbar Velayati, ex-ministro das Relações Exteriores do Irã, homem de confiança e conselheiro do presidente Ali Khamenei. Antes disso, em 11 de julho, reunira-se com o primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu. A guerra civil na Síria certamente esteve na pauta das conversas.

Trump encerrou com o encontro de Helsinque uma atribulada viagem à Europa, que se iniciou em Bruxelas, com a reunião dos países-membros da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan). Foi um encontro tenso, no qual Trump exigiu que países-membros da aliança militar aumentassem seus gastos com defesa. Ao mesmo tempo, criticou fortemente a Alemanha por, no seu entender, depender excessivamente do fornecimento de gás natural russo. De Bruxelas, seguiu para Londres, para encontrar-se com a primeira-ministra Thereza May. Lá, concedeu uma entrevista em que criticou May pela forma como está conduzindo a saída do Reino Unido da União Europeia. Trump ainda encontrou tempo para chocar os líderes europeus declarando que a União Europeia seria “inimiga comercial” dos EUA.

A semana que antecedeu a reunião de Helsinque contextualiza o encontro e mostra como é o momento dos dois presidentes. Putin vive fase de grande visibilidade, surfando a onda positiva de ter sido o anfitrião de uma Copa do Mundo. Trump, bastante criticado no seu país e na Europa, acusado de tratar melhor os russos, inimigos históricos, do que os próprios aliados europeus. Como se não bastasse, no dia do encontro uma sequência inacreditável de publicações no Twitter expôs Trump a uma onda de críticas ainda maior. Ele escreveu que o relacionamento entre os EUA e a Rússia nunca tinha estado tão ruim quanto atualmente graças a muitos anos de “tolices e estupidez” dos próprios EUA. Imediatamente depois, a conta oficial do Ministério das Relações Exteriores russo respondeu simplesmente: “Nós concordamos”. Talvez seja um caso único na história em que um presidente publicamente e algumas horas antes de se encontrar com o maior adversário reconhece que os problemas que existem entre seus países são de sua própria culpa.

Os problemas a que o presidente Trump se refere e que colocaram as relações entre Rússia e EUA num nível alto de tensão são variados e complexos. Há a questão da interferência dos russos, acusados de atuar por meio de ações de guerra cibernética nas eleições americanas de 2016. Há, também, a guerra civil na Síria, com toda a sua complexidade, que opõe nos campos de batalha sírios coalizões lideradas, de um lado, pelos EUA e, de outro, pelos russos. Outro ponto de grande sensibilidade são a anexação da Crimeia e a ação militar russa (encoberta, mas nem tanto) na Ucrânia, que é a causa das sanções econômicas impostas à Rússia pelos EUA e por seus aliados.

Como se vê, assuntos a serem resolvidos – ou pelo menos que merecessem alguma tentativa de encaminhamento de soluções futuras – não faltavam. Entretanto, na entrevista coletiva concedida ao término da reunião, Trump focou suas respostas na política interna, preocupado em tentar demonstrar que os russos não interferiram nas eleições que o conduziram ao poder. Afinal, admitir tal interferência, tida como certa pelas próprias autoridades das agências de inteligência norte-americanas, seria de alguma forma admitir uma sombra de ilegitimidade no processo eleitoral que o conduziu à presidência. Para isso, disse que Putin negara peremptoriamente tais ações e que ele não tinha nenhum motivo para desconfiar de que isso não fosse verdade. Evidentemente, Putin disse o mesmo. Quanto à crise da Ucrânia/Crimeia, nenhuma novidade. Quanto à Síria, a reafirmação de que ambos os países estão combatendo os terroristas. Ou seja, quanto aos assuntos que realmente importam do ponto de vista geopolítico, nada de relevante.

Ou quase nada. Putin e Trump afirmaram que a era de desconfianças da guerra fria não deveria existir mais, que o mundo hoje mudou e que não deveria haver razão para tensões entre Rússia e EUA.

Essa afirmação não encontra amparo na realidade e é negada pelos próprios documentos de nível político/estratégico de ambos os países. A Estratégia Nacional de Defesa dos EUA, documento de janeiro deste ano, portanto da administração Trump, identifica que os EUA enfrentam uma era em que a competição estratégica entre os Estados é a maior ameaça à segurança e cita a Rússia como um país que viola fronteiras e pressiona diplomática e economicamente seus vizinhos.

Já os russos, em sua Estratégia de Segurança Nacional, publicada em 31 de dezembro de 2015, citam que os EUA e aliados, a fim de manter a atual dominância sobre os assuntos internacionais, adotam uma “política de contenção” que se opõe à implementação de uma política externa russa independente. Expressa, ainda, que a Otan atua em violação às normas do Direito Internacional, expandindo as atividades militares em direção às fronteiras da Rússia, sendo uma ameaça à segurança daquele país.

Ou seja, o discurso de Trump foi focado em seus problemas internos e não levou em consideração os graves desafios geopolíticos identificados nos documentos produzidos por sua própria administração. Já Putin, para aproveitar a metáfora futebolística, entrou em campo e nem precisou se defender. O adversário cedeu o terreno e ele jogou solto, fez embaixadinhas para a torcida e correu para o abraço. A torcida adversária e os comentaristas não entenderam nada…




A CÚPULA DE CINGAPURA

Se não houver nenhuma surpresa – e isso sempre é possível em se tratando de Kim Jong-un e Donald Trump –, terça-feira, 12/6, às 9 horas locais, no Hotel Capella, em Cingapura, será realizada a aguardada reunião de cúpula entre os presidentes dos Estados Unidos e da Coreia do Norte.

O encontro é inédito, pois pela primeira vez vão se reunir presidentes desses países. Esse fato certamente será explorado por ambos como uma vitória. Trump poderá apresentar-se ao público como um estadista, capaz de negociar como nunca um presidente americano conseguiu. Kim Jong-un se fortalecerá perante os cidadãos de seu país como o líder que obrigou a superpotência a negociar. A vitória para ambos será ainda maior se for anunciada alguma ação concreta em favor da paz. Nesse aspecto, não se descarte a possibilidade da celebração de um tratado de paz entre as Coreias. Há notícias de que o presidente da Coreia do Sul, Moon Jae-in, estaria trabalhando nesse sentido e poderia juntar-se a Trump e Kim para fazer esse anúncio. Seria um grande troféu a ser exibido pelos três líderes e um significativo passo em favor da paz na Península Coreana.

Quando se concretizar, a formalização do fim da Guerra da Coreia, mais de 60 anos depois do fim dos combates, certamente será um acontecimento a ser comemorado. Será politicamente relevante e encerrará uma página triste da História, sendo um primeiro passo em direção da normalização da relação entre as Coreias e entre a Coreia do Norte e os Estados Unidos. Infelizmente, contudo, terá pouquíssimo peso na solução definitiva da atual questão coreana.

Isso porque a chave do problema é a “desnuclearização” da Península Coreana. Essa é a exigência da comunidade internacional e será essa a cobrança que os Estados Unidos farão. Uma “completa, verificável e irreversível” desnuclearização. A Coreia do Norte dirá que também deseja uma península livre de armamento nuclear. Entretanto, para Kim Jong-un isso significa a retirada dos cerca de 24 mil soldados, a maior parte integrantes do 8.º Exército norte-americano, que estão na Coreia do Sul desde o fim das hostilidades, em 1953. Além disso, Kim exigirá o fim da ameaça de emprego de armamento nuclear pelos Estados Unidos.

Bem, sobre esse aspecto fundamental, a chance de um acordo é remotíssima. Em primeiro lugar, o próprio presidente da Coreia do Sul recentemente declarou que a presença de tropas americanas no país é resultado da aliança militar com os Estados Unidos e deverá ser mantida, mesmo com a celebração da paz. Jim Mattis, secretário de Defesa dos Estados Unidos, também declarou que a manutenção das tropas na Coreia do Sul é inegociável.

Neste ponto devemos lembrar que a Península Coreana não é o único foco de tensão na Ásia. Ao contrário. A atitude cada vez mais desafiadora da China, as tensões que envolvem as disputas territoriais no Mar do Sul da China, a questão de Taiwan, a rivalidade sino-japonesa, que envolve até mesmo disputas territoriais, tudo isso são fatores que exigem, do ponto de vista dos Estados Unidos, mais presença militar na região, não menos.

Além disso, uma menor presença militar norte-americana na área afetaria profundamente o Japão, que provavelmente se sentiria forçado a rever sua postura, modificar sua Constituição – chamada pacifista – e ampliar sensivelmente sua capacidade militar, trazendo ainda mais tensão à área.

A Coreia do Norte, por sua vez, alegará que a presença das tropas norte-americanas estacionadas no vizinho do sul são uma ameaça e que não pode abrir mão de seu armamento nuclear, que seria exclusivamente utilizado para a “autodefesa”. Assim, estará dado o motivo para não proceder a uma “completa, verificável e irreversível” desnuclearização.

Mas a pressão dos embargos econômicos é muito grande e o caos econômico poderia ter consequências graves para a sobrevivência do próprio regime. Em razão disso, muito provavelmente os norte-coreanos serão obrigados a fazer algumas concessões. Tentarão uma solução faseada, com a assunção de compromissos vagos, ao longo de anos, para ganhar tempo e obter o levantamento dos embargos e vantagens econômicas.

Não se pode tratar da questão coreana sem falar da China. País-chave na geopolítica asiática e fundamental para o encaminhamento da solução do caso, a China é a fiadora da estabilidade política e econômica da Coreia do Norte. Dessa forma evita um desastre humanitário de proporções enormes em suas fronteiras, ao mesmo tempo que contrabalança a influência norte-americana no nordeste da Ásia.

O governo chinês comemoraria um acordo selado na cúpula de Cingapura. Xi Jinping certamente trabalhou nesse sentido nas recentes reuniões que teve com Kim Jong-un, uma vez que isso iria ao encontro de seus interesses, pois contribuiria para a estabilidade político-econômica da Coreia do Norte e para o aumento da sensação de segurança na Coreia do Sul. A diminuição do temor de guerra entre os sul-coreanos contribuiria para uma gradual mudança da percepção dos cidadãos quanto à necessidade da presença das tropas norte-americanas em seu território. E a retirada das tropas dos Estados Unidos da Península Coreana seria uma vitória estratégica para a China.

Como se vê, não há muitas razões para otimismo. Mas pode-se esperar um acordo entre Donald Trump e Kim Jong-un que atenda, ainda que por diferentes motivos, aos objetivos de quase todos os países envolvidos ou interessados na solução do problema. E algum entendimento provavelmente virá. Não um definitivo, que resolva de vez a questão. Mas um que ao menos alivie as tensões e atenda aos interesses imediatos de todos os envolvidos. Que seja, ao menos, o muito esperado acordo de paz que porá um ponto final formal e definitivo na Guerra da Coreia.




NOVA ESTRATÉGIA DE DEFESA DOS EUA E ATAQUE À SIRIA

Na sexta-feira 13 de março, EUA, Reino Unido e França lançaram um ataque contra instalações governamentais sírias que seriam locais de produção e armazenamento de armas químicas. As potências ocidentais justificaram a ação como sendo uma retaliação pelo emprego desse tipo proibido de armamento pelo governo de Bashar Assad contra rebeldes na localidade de Douma.

Analistas apressam-se a encontrar explicações e justificativas para o ataque. Neste texto pretendo mostrar que uma leitura da nova Estratégia de Defesa dos EUA, tornada pública em janeiro, pode auxiliar no entendimento global da situação.

A nova Estratégia de Defesa é assinada por Jim Mattis, atual secretário de Defesa. Mattis é general fuzileiro naval da reserva. Trata-se de um secretário de Defesa respeitado entre os profissionais militares, experiente e experimentado em combate.

Logo no primeiro parágrafo do documento está escrito que o emprego das Forças Armadas dos EUA são opção para, reforçando as tradicionais ferramentas diplomáticas do país, o presidente e os diplomatas negociarem em posição de força. A estratégia reconhece claramente que a superioridade militar que os EUA ainda têm sobre seus possíveis adversários está diminuindo. Isso confere ao texto um sentido de urgência na busca do restabelecimento de uma superioridade militar que volte a ser ampla e incontestável.

A edição marca uma nova visão norte-americana em relação à defesa. A chamada guerra ao terror perde importância. A competição entre Estados nacionais passa a ser (novamente, a exemplo dos tempos de guerra fria) a primeira preocupação dos EUA no que se refere à segurança nacional.

Os adversários nominalmente citados são China, Rússia, Coreia do Norte e Irã. O primeiro é acusado de militarizar o Mar do Sul da China e de usar o poder econômico para intimidar vizinhos. Ao segundo se atribui violação de fronteiras e intimidação de países lindeiros. A Coreia do Norte é listada pela busca do desenvolvimento de tecnologia nuclear para fins militares e pelo programa de desenvolvimento de mísseis intercontinentais. Ao Irã se atribui a instabilidade no Oriente Médio, especialmente pela busca de hegemonia regional e pelo patrocínio de atividades terroristas.

Neste momento em que o governo sírio parece estar cada vez mais próximo de retomar o controle sobre todo o país, dois dos adversários citados na Estratégia de Defesa, Rússia e Irã, aliados de Assad, desempenham papel cada vez mais influente na Síria e no Oriente Médio. Na ação realizada na Síria os EUA demonstram mais uma vez aos dois antagonistas que o país ainda detém inegável superioridade militar e não vai ficar inerte vendo seus adversários ampliarem a influência política naquela região.

Voltando à leitura do documento, encontra-se a afirmação de que um ambiente internacional muito mais complexo, de mudanças tecnológicas e de crescentes desafios à segurança exige Forças Armadas mais letais, resilientes e inovadoras. Determina ainda o fortalecimento das alianças e a atração de novos parceiros internacionais. Ora, o que se viu na ação da última sexta-feira foi a reafirmação da aliança das maiores potências militares da Otan e do Ocidente, não por acaso membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU: EUA, Reino Unido e França.

A Estratégia de Defesa mostra ainda outros pontos que merecem atenção. Afirma que a construção de uma Força Armada preparada para vencer a guerra exige que se atribua alta prioridade à sua preparação e ao seu adestramento. Assim, cita-se a necessidade de uma suficiente e contínua dotação orçamentária. Da mesma forma, capacidades-chave devem ser modernizadas. As forças nucleares, o espaço e o ciberespaço, os sistemas de comando e controle e de comunicações, as defesas antimísseis, inteligência artificial, robótica e logística, dentre outros, são aspectos que devem merecer atenção e modernização.

É uma espécie de reencontro das Forças Armadas com sua vocação primária. Após uma fase em que a guerra ao terror enfatizava técnicas, táticas e procedimentos adequados ao combate de contrainsurgência, completamente diferentes dos destinados ao combate convencional, retorna-se agora com toda a ênfase ao clássico inimigo identificado como sendo um ente estatal. Isso certamente trará grandes e profundas consequências no preparo e no emprego das tropas norte-americanas. Apenas um exemplo dessas mudanças: forças sobre rodas e com blindagens leves deverão gradativamente ser substituídas por forças pesadas e de maior blindagem.

No campo das relações internacionais, o documento enfatiza a importância de reforçar alianças e atrair novas parcerias. Enfatiza as regiões do Indo-Pacífico, da Europa e do Oriente Médio, sem deixar de citar a importância de um Hemisfério Ocidental estável. Chamam a atenção, pelo claro desafio aos interesses chineses e russos, as diretrizes de expandir as alianças na região do Indo-Pacífico, especialmente pelo estabelecimento de relações bilaterais e multilaterais de segurança com os países daquela área, e de fortalecer a Otan, com o objetivo de dissuadir ações russas e de controlar o arco de instabilidade na periferia da Europa.

Ao anunciar claramente suas novas prioridades estratégicas, o documento marca a firme tomada de decisão da superpotência global pela manutenção do seu status. Resta saber quais serão os movimentos das potências militares (re)emergentes que terão seus interesses político-estratégicos diretamente afetados, especialmente China e Rússia. As regiões do Mar do Sul da China e o Leste Europeu, além da Península Coreana e o Oriente Médio, devem ser as mais afetadas pelo nova posição norte-americana.




MUDANÇAS NAS PRIORIDADES DE DEFESA NORTE-AMERICANAS

No último dia 19 de janeiro, o Departamento de Defesa dos Estados Unidos da América publicou uma sinopse da sua Estratégia de Defesa – o texto completo não foi disponibilizado por ser secreto. A versão tornou públicos os aspectos ostensivos daquela Estratégia e significa uma guinada nos rumos das Forças Armadas daquela superpotência, capaz de influenciar bastante as relações entre EUA, China e Rússia.

O documento é assinado por Jim Mattis, atual Secretário de Defesa. Mattis é General Fuzileiro Naval da reserva. Sua última função na ativa, como general de exército, o mais alto posto da carreira militar, foi a de Comandante do US Central Command, um dos seis Grandes Comandos Conjuntos dos Estados Unidos. No posto de tenente-coronel, em 1991, comandou um Batalhão na Guerra do Iraque. Como coronel, em 2001, liderou um Regimento de Fuzileiros na Guerra do Afeganistão e, promovido a general em 2003, comandou uma Divisão dos Marines na invasão do Iraque. Trata-se, portanto, de um Secretário de Defesa respeitado entre os profissionais militares, experiente e experimentado em combate.

A Estratégia reconhece, claramente, que a superioridade militar dos EUA sobre seus possíveis adversários está diminuindo. Isto confere ao texto um sentido de urgência na busca do restabelecimento de uma superioridade militar que volte a ser ampla e incontestável.

A edição marca nova visão norte-americana em relação à defesa. A chamada “Guerra ao terror” perde importância. A competição entre Estados Nacionais passa a ser (novamente, a exemplo dos tempos de Guerra Fria) a primeira preocupação dos EUA em relação à Segurança Nacional.

Os adversários nominalmente citados são China, Rússia, Coréia do Norte e Irã. O primeiro é acusado de militarizar o mar do Sul da China e de usar o poder econômico para intimidar vizinhos. Ao segundo, atribui-se violação de fronteiras e intimidação de países lindeiros. A Coréia do Norte é listada pela busca do desenvolvimento de tecnologia nuclear para fins militares e pelo programa de desenvolvimento de mísseis intercontinentais. Ao Irã é conferida a instabilidade do Oriente Médio, especialmente pela busca de uma hegemonia regional e pelo patrocínio de atividades terroristas.

Um ambiente internacional muito mais complexo, de mudanças tecnológicas e de crescentes desafios à segurança, exige, na visão apresentada pelo documento, forças armadas mais letais, resilientes e inovadoras. Determina, ainda, o fortalecimento das alianças e a atração de novos parceiros internacionais.

Além disso, de acordo com o documento, a construção de uma força armada preparada para vencer a guerra exige que se atribua alta prioridade para a sua preparação e o seu adestramento. Assim, cita-se a necessidade de uma suficiente e contínua dotação orçamentária. Da mesma forma, capacidades-chave devem ser modernizadas. As forças nucleares, o espaço e o ciberespaço, os sistemas de comando e controle e as comunicações, as defesas antimísseis, a inteligência artificial, a robótica e a logística, entre outras capacidades, são aspectos que devem merecer atenção e modernização.

É uma espécie de reencontro das forças armadas com a sua vocação primária. Após uma fase em que a guerra ao terror enfatizava técnicas, táticas e procedimentos adequados ao combate de contra-insurgência, completamente diferentes daqueles destinados ao combate convencional, retorna-se, agora, com toda ênfase ao clássico inimigo identificado como sendo um ente estatal. Isto certamente trará grandes e profundas consequências no preparo e no emprego das tropas norte-americanas. Apenas um exemplo dessas mudanças: forças sobre rodas e com blindagens leves deverão, gradativamente, ser substituídas por forças pesadas e de maior blindagem.

O documento também se dedica à formação dos recursos humanos das forças armadas. Afirma, com todas as letras, que a educação militar profissional está estagnada, mais preocupada com o cumprimento dos currículos previstos do que com a letalidade ou a engenhosidade. Reafirma a importância da iniciativa em combate e da capacidade dos líderes de decidirem por si mesmos e com grande iniciativa, na eventualidade cada vez mais provável de as comunicações serem afetadas pela guerra cibernética das potências inimigas.

No campo das relações internacionais, o documento enfatiza a importância de reforçar alianças e atrair novas parcerias. Destaca as regiões do Indo-Pacífico, da Europa e do Oriente Médio, sem deixar de citar a importância de um hemisfério ocidental estável. Chamam atenção, pelo claro desafio aos interesses chinês e russo, as diretrizes para se expandirem as alianças na região do Indo-Pacífico, sobretudo pelo estabelecimento de relações bilaterais e multilaterais de segurança com os países daquela região, e para se fortalecer a OTAN, com o objetivo de dissuadir ações russas e de controlar o arco de instabilidade na periferia da Europa.

A nova Estratégia de Defesa norte-americana deve ser estudada não só pelos interessados nos assuntos de defesa, mas também por todos os observadores da cena internacional. Ao anunciar claramente suas novas prioridades estratégicas, o documento marca a firme tomada de decisão da superpotência global pela manutenção do seu “status”. Resta saber quais serão os movimentos das potências militares (re) emergentes que terão seus interesses político-estratégicos diretamente afetados, principalmente as mencionadas China e Rússia. As regiões do Mar do Sul da China e do Leste Europeu, além da Península Coreana e do Oriente Médio, devem ser as mais afetadas pelo novo posicionamento norte-americano.

Oxalá a nova realidade internacional exposta claramente na Estratégia de Defesa dos EUA desperte estudiosos e acadêmicos brasileiros para um maior interesse pelo estudo dos assuntos de defesa.