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A Europa desperta: a ameaça de Trump e o renascimento da Defesa europeia

O ex-presidente e virtual candidato à presidência pelo Partido Republicano nas próximas eleições dos Estados Unidos, Donald Trump, provocou uma onda de choque política entre os aliados europeus da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN). Em um discurso de campanha, Trump declarou ter advertido o líder de “um importante país europeu” que, caso falhasse no pagamento de suas obrigações financeiras para com a Aliança, ele, na qualidade de presidente dos EUA, recusaria defender o país europeu contra uma potencial invasão russa. Trump inclusive sugeriu que, nesse caso, poderia incentivar a Rússia a “fazer o que bem entendesse”.

Ao mencionar o descumprimento das obrigações financeiras, Trump se refere à diretriz da Aliança, criada em uma reunião de cúpula realizada no País de Gales, em 2014, que estabelece a meta de 2% do PIB para os investimentos de Defesa de cada um dos 31 membros da organização. O acordo de 2014 previa que os países deveriam se esforçar para atingir a meta em dez anos, ou seja, até este ano de 2024. Em 2014, apenas três Estados alcançavam aquele patamar. Em 2023, esse número já havia subido para onze. Jens Stoltenberg, Secretário Geral da OTAN, lamentou as palavras de Trump, afirmando que “qualquer sugestão de que os aliados não se defenderão mutuamente mina toda a nossa segurança, incluindo a dos EUA, e aumenta os riscos para os soldados americanos e europeus”. Disse ainda que, ao que tudo indica, no final deste ano, dezoito países terão atingido a meta de investimento em Defesa.

A ameaça de Trump reverberou ainda mais porque neste final de semana aconteceu a conferência anual de segurança de Munique, reunindo os ministros da defesa da Europa. A repercussão foi parar na capa da revista semanal alemã Der Spiegel, que pergunta se, dada a ameaça de Trump – e a real possibilidade de sua eleição – não estaria na hora dos europeus, especialmente a Alemanha, considerarem desenvolver a sua própria bomba nuclear.

Capa da Revista Der Spiegel. Edição de 17 Fev 2024

A promessa de assistência recíproca é a pedra angular da Aliança Atlântica. Está fundamentada no famoso artigo 5º, que determina que o ataque a um dos membros da organização “será considerado um ataque contra todos eles” e que, consequentemente, cada um deles tomará “as ações que julgar necessárias, inclusive o uso da força armada para restaurar e manter a segurança do Atlântico Norte”.

Ironicamente, na única vez em que o artigo 5º foi acionado nos 75 anos de existência da Aliança, não o foi por nenhum membro europeu, mas sim pelos EUA, após os ataques de 11 de setembro de 2001. Isso resultou no apoio efetivo da Aliança à guerra ao terror, incluindo às invasões do Iraque e do Afeganistão.

Entretanto, é inegável que Trump trouxe à tona uma realidade preocupante: os europeus se acostumaram a contar com o guarda-chuva dissuasório dos EUA, relegando perigosamente suas próprias capacidades de defesa a um segundo plano. Isso ficou especialmente patente no desabafo do general Alfons Mais, comandante do exército alemão, expressado no Linkedin, no dia em que os russos invadiram a Ucrânia. Disse o general[1]: “No meu 41º ano de serviço em tempos de paz, não teria pensado que teria de passar por uma guerra”. “E o Bundeswehr, o exército que tenho a honra de comandar, está mais ou menos de mãos vazias. As opções que podemos oferecer ao governo em apoio à aliança são extremamente limitadas.”

As palavras do general Alfons completarão dois anos no dia 24 de fevereiro. A guerra na Europa serviu como um duríssimo aviso e os europeus estão se mobilizando. Na conferência de Munique, várias declarações foram dadas nesse sentido. O chanceler alemão, Olaf Scholz, disse que a ameaça da Rússia à Europa é real e os países do continente precisam fazer muito mais para garantir a sua própria segurança. O primeiro-ministro dos Países Baixos, Mark Rutte, afirmou que a Europa deveria parar de reclamar de Trump, e se concentrar em aumentar os investimentos em defesa e “aumentar maciçamente a produção de armas”. O ministro da Defesa da Alemanha, Boris Pistorius, afirmou que seu país atingirá a meta este ano, pela primeira vez desde o fim da Guerra Fria, embora reconhecendo que isso pode não ser suficiente para a construção das capacidades de defesa necessárias.

A Europa vive um momento crucial em sua história. A crise de segurança no continente, representada pela ameaça russa e a possível escalada da guerra para outros países europeus convive com a perspectiva da eleição de Donald Trump à presidência dos EUA, que pode significar que o maior aliado pode vir a faltar em um momento crítico.

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Diante dessa conjuntura, é imperioso que a Europa reavalie sua dependência estratégica dos EUA e invista decisivamente na construção de suas próprias capacidades de defesa. Isso não significa abandonar a OTAN. Pelo contrário, a construção de uma autonomia europeia fortalecerá a Aliança.

Então, é de se esperar que assistamos, já em 2024 e nos próximos anos, a um aumento significativo dos investimentos europeus em Defesa, a um maior desenvolvimento de suas capacidades militares combinadas, ao fortalecimento da cooperação em inteligência e à promoção da indústria de Defesa, com a ampliação da produção de armas e munições, bem como o desenvolvimento de novas tecnologias bélicas.

Tudo isso vai trazer repercussões para os outros continentes, com o provável desencadeamento de uma corrida armamentista, no chamado Dilema de Segurança. Mas isso é assunto para um próximo artigo.

[1] https://www.linkedin.com/feed/update/urn:li:activity:6902486582067044353/

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O BREXIT E A SEGURANÇA DA EUROPA

A novela do BREXIT finalmente chegou ao seu final. Desde o dia 31 de janeiro, o Reino Unido não faz mais parte da União Europeia. Em uma análise superficial, o BREXIT não afetaria a segurança do continente. Porém, creio que ele é mais um fato que se soma ao crescente protagonismo russo, às ameaças terroristas, à crise imigratória, à ascensão chinesa e à presidência de Donald Trump nos EUA, conformando uma nova realidade para a segurança daquela região.

A arquitetura da segurança europeia baseia-se na Organização para o Tratado do Atlântico Norte (OTAN). O coração do tratado é o seu Art 5º: “Um ataque armado contra um ou mais países membros será considerado uma agressão contra todos”. Para os países europeus, desde a criação da Aliança, em 1949, a presença dos EUA serve como um seguro valioso. Afinal, é bastante reconfortante saber que uma agressão ao seu território equivale a uma agressão ao território norte-americano e, em razão disto, ensejará uma reação da maior potência militar do planeta. Essa situação confortável, aliada ao fim da guerra fria e à sensação de que as ameaças à Europa estavam bastante minimizadas, levou muitos países europeus a diminuírem drasticamente seus investimentos de defesa. A Alemanha, por exemplo, desde 1998 não gasta 2% do PIB com defesa. O mesmo ocorre com Itália, Espanha e outros 17 (de um total de 29) países da aliança.

Entretanto, a realidade atual é bastante diferente daquela do pós-guerra, que motivou a criação da Aliança, ou mesmo do “pós-guerra fria”, até a primeira década do século 21, antes das ações militares russas na Geórgia e na Ucrânia, com a anexação da Criméia, ou do crescimento exponencial da importância da Ásia na geopolítica mundial, ou da postura mais isolacionista, do “America First”, adotada pelo Presidente Donald Trump.

Uma série de acontecimentos alertam os estrategistas e líderes europeus, a ponto de o Presidente francês ter declarado, por ocasião da cúpula dos 70 anos da OTAN, que a Aliança vivia uma “morte cerebral”. Em primeiro lugar, o crescimento de forças centrífugas na Europa, à exemplo do BREXIT, dificultando a definição de objetivos, ações, estratégias e políticas comuns e em proveito de todo o continente. Em segundo lugar, o crescimento do protagonismo russo, demonstrado pela crescente desenvoltura em atuar, inclusive militarmente, de acordo com os seus interesses, no leste europeu, no norte da África e no Oriente Médio. Acrescente-se em terceiro lugar a desconfiança em relação à postura dos EUA, que age cada vez mais unilateralmente, como quando denunciou o tratado nuclear com o Irã, à revelia de França, Alemanha e Reino Unido, ou quando o país abandonou o tratado firmado com os russos, para eliminação de mísseis nucleares de curto e médio alcance, o que levou os russos a também denunciarem o acordo. Este fato é especialmente desfavorável aos Europeus, que se veem repentinamente obrigados a encarar a realidade de que a vizinha Rússia está novamente à vontade para produzir mísseis nucleares que alcancem a Europa. Uma quarta razão para o desconforto europeu é a pressão exercida pelos EUA para que os demais países da OTAN aumentem seus gastos em defesa, deixando implícita a mensagem de que eles devem caminhar com suas próprias pernas, dependendo menos dos norte-americanos.

Os EUA, percebendo a desconfiança aliada, age por intermédio de seu estamento militar procurando reafirmar seu compromisso com os Europeus. O país executa, a partir deste mês e até julho, o maior exercício de desdobramento de tropa em continente europeu, partindo dos EUA, dos últimos 25 anos. O terceiro maior em toda a história. É o “Defender Europe”. Cerca de 20 mil homens e equipamentos cruzarão o Atlântico para participar das manobras.  Outros 17 países europeus participarão do exercício, inclusive o Reino Unido, que enviará cerca de 2,5 mil homens. A presença britânica, com um efetivo significativo, também deve ser lida como uma mensagem de manutenção do compromisso do país com a OTAN, apesar da separação da União Europeia.

Governos tendem a se preocupar com defesa somente quando impelidos pela necessidade. Especialmente em sociedades democráticas, que tendem a priorizar necessidades mais prementes do que manter dispendiosas forças armadas. Ocorre que capacidades militares, quando perdidas, levam muito tempo para serem restabelecidas. Os europeus terão que decidir, em breve, se continuarão a basear grande parte de sua segurança nas capacidades militares norte-americanas, ou se partirão para o desenho de um modelo mais genuinamente europeu.

E se for essa a escolha, caberá ainda mais um enorme desafio. A segurança será baseada em um “exército da comunidade europeia”, de uma Europa politicamente integrada de fato, ou o BREXIT indicará uma tendência centrífuga de retorno à valorização das soberanias nacionais, onde cada Estado volte a gerar suas próprias capacidades de defesa? A resposta virá, inevitavelmente, nos próximos anos.




OS SETENTA ANOS DA OTAN

Chefes de Estado e de Governo dos 29 países que compõem a Organização para o Tratado do Atlântico Norte reuniram-se recentemente em Londres para comemorar os 70 anos da Organização. Na cobertura da imprensa, ganhou destaque o desconforto causado pelas divergências nas visões de alguns dos presidentes dos países da Aliança, especialmente as dos Presidentes Trump, dos EUA, e Macron, da França. O francês reafirmou uma declaração anterior que havia causado desconforto no presidente americano, de que a Aliança estava em “morte-cerebral” em razão da falta de coordenação estratégica e liderança.

A OTAN foi criada em 1949, inicialmente composta por doze países, dentre os quais EUA, Reino Unido, França, Itália e Canadá. Na década de 1950, mais 3 países se juntaram ao grupo: Alemanha, Grécia e Turquia. Nenhum outro país se juntou à Aliança até a década de 1980, quando a Espanha foi incorporada.

Assim, quando a União Soviética se dissolveu, em 1991, a OTAN era composta por 16 membros. A partir de 1999, vários países do leste europeu, região que era tradicional área de influência dos soviéticos, foram sendo incorporados à Aliança. Em 2004, apenas 15 anos depois de 1989, todos os países do antigo Pacto de Varsóvia, com exceção da própria Rússia e da maioria dos Estados que compunham a antiga URSS, estavam na OTAN ou na União Europeia.

A Rússia considerou que essa expansão da OTAN em direção ao Leste caracterizava claramente uma estratégia de contenção e cerco. Na visão dos russos, a OTAN já havia se expandido além do aceitável quando incorporou os países bálticos – Estônia, Letônia e Lituânia – à Aliança. E definiu um limite: a Ucrânia. Esse país, que em 2008 havia solicitado à OTAN sua incorporação ao grupo, é a própria origem da “mãe Rússia”, a antiga Rus Kievana. Além disso, o porto de Sebastopol e as riquezas minerais do país são de grande importância para os russos. A intervenção militar, de um ponto de vista puramente geopolítico, passou a ser praticamente inevitável.

As ações militares russas na Geórgia, em 2008 e na Ucrânia, em 2014, acenderam uma luz vermelha nas salas de planejamento da OTAN.  A Aliança, que na primeira década do século 21 considerava a guerra ao terror a sua principal hipótese de emprego, retirou das gavetas os antigos planejamentos de um enfrentamento militar de alta intensidade contra a Rússia. E ao verificar seus planos, descobriu que não estava preparada para tal tipo de conflito. A razão para isso é simples de se explicar. Sem dinheiro, não se preparam Forças Armadas.

Os gastos dos europeus com defesa caíram substancialmente a partir do desmantelamento da União Soviética. A Alemanha, por exemplo, desde 1998 não gasta 2% do PIB com defesa. O mesmo ocorre com Itália, Espanha e outros 17 países da aliança.

Desde que assumiu a presidência dos EUA, o presidente Trump tem insistido na necessidade de os países-membros da OTAN investirem ao menos 2% de seus PIB em defesa. Os EUA investiram cerca de 3,2% em 2018. A mensagem implícita na exigência é a de que os europeus, maiores interessados na própria segurança, deveriam gastar mais e depender menos dos EUA.

Ao mesmo tempo em que a geopolítica alerta os países europeus, especialmente os do Leste e do Centro da Europa, para o ressurgimento da ameaça russa, a França e os EUA concentram suas atenções em outras partes do mundo. Os EUA passaram a considerar sua principal hipótese de emprego uma confrontação com a China, no Oceano Pacífico. Os franceses estão envolvidos nas crises de suas antigas colônias na África. O país mantém mais de dez mil militares desdobrados entre Senegal, Costa do Marfim, Gabão e Djibuti, além dos 5 países do chamado Sahel: Burkina Faso, Chade, Mali, Mauritânia e Níger. Além disso, os franceses mantêm tropas na Síria e no Iraque.

Assim, fica claro que a Aliança se defronta com 3 situações distintas, cada uma delas atraindo a atenção dos países membros em diferentes graus de intensidade: a ameaça russa, a ameaça chinesa e a ameaça do terrorismo. Não bastasse isso, há ainda uma inédita fonte de tensão interna. Um dos países membros enfrenta militarmente um grupo que atua como aliado de outros países membros. Estou tratando da Turquia, país de vital importância geoestratégica, que está combatendo os curdos na Síria, curdos esses que são aliados de norte-americanos e franceses no enfrentamento do governo de Bashar al-Assad. Além disso, a Turquia se aproxima da Rússia, inclusive com a aquisição de material de defesa.

Dessa forma, a OTAN passa por um momento desafiador na definição de seus destinos. Seu principal integrante, os EUA, está mudando seu foco para priorizar o Teatro de Operações do Pacífico, no Leste Asiático. A postura do atual governo, anunciada pelo slogan “America first” (América em 1º lugar), gera desconfiança dentre os aliados sobre se os norte-americanos realmente estariam dispostos a cumprir o pacto de defesa mútua em caso de agressão a um dos países membros da OTAN. Os franceses, por sua vez, continuam concentrados na contra-insurgência e no contraterrorismo na África e Oriente Médio. Em razão disso, reclamam que o foco estratégico voltado para a Rússia e para a guerra de alta intensidade está errado, daí a afirmação de Macron da “morte cerebral” da organização.

A OTAN não é apenas uma aliança militar. É sobretudo uma aliança política, que usa seu enorme poderio militar para dissuadir adversários e consubstanciar a máxima de Clausewitz, de que a “guerra é a continuação da política por outros meios”. Nesse sentido, é exitosa pois conseguiu, ao longo de seus 70 anos de história, atingir os interesses políticos de seus integrantes, inclusive o mais importante deles: vencer a Guerra Fria. Foi justamente essa vitória que levou à sua expansão e, paradoxalmente, torna cada vez mais difícil a definição de objetivos comuns.