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Estados Unidos, Japão e Coreia do Sul estabelecem os Princípios de Camp David

A reunião de cúpula que reuniu os líderes de EUA, Coreia do Sul e do Japão no último dia 18 de agosto, em Camp David, nos Estados Unidos, merece atenção. O mundo vive tempos de evidente acirramento das tensões geopolíticas e os três líderes tentam, ao aproximar ainda mais seus países, ganhar algumas vantagens estratégicas para os desafios que sabem que estão por vir, especialmente no contexto da disputa em curso entre EUA e China, que tem na região do Indo-Pacífico seu principal palco.

Inicialmente, é interessante destacar que os acordos trilaterais, divulgados ao término da reunião, só puderam acontecer porque Japão e Coreia do Sul têm conseguido uma maior aproximação e alinhamento sob os atuais governos de Fumio Kishida e Yoon Suk-yeol. As desconfianças nas relações entre os dois países são históricas, remontando as feridas da ocupação japonesa da península da Coreia, entre 1910 e 1945. Mas, as tensões geopolíticas do momento atual parecem ser de tal ordem desafiadoras que os problemas do passado estão sendo deixados de lado em nome de um maior entendimento.

Afinal, não faltam desafios geopolíticos comuns a japoneses, sul-coreanos e norte-americanos no Indo-Pacífico. A Coreia do Norte é o primeiro deles. Ainda formalmente em guerra com a Coreia do Sul, detentora de armas nucleares, com uma retórica agressiva e desencadeando frequentes testes balísticos e exercícios de tiro, a ditadura de Kim Jong-un volta e meia a causa tensões, inclusive no Japão, onde populações já foram orientadas a procurar abrigo em razão de mísseis norte-coreanos voando em trajetórias potencialmente perigosas.

Os desafios impostos pela China evidentemente também estão no centro das preocupações geopolíticas dos três países. A questão de Taiwan, a maior assertividade chinesa nas disputas no Mar do Sul da China, a reação da China à implementação dos sistemas de defesa antimísseis THAAD pela Coreia, que resultou em retaliações econômicas chinesas contra os coreanos, e a disputa torno das ilhas Senkaku, que os chineses consideram suas e são hoje controladas pelo Japão são alguns exemplos questões sensíveis.

Neste cenário é que foram divulgados os “Princípios de Camp David” (íntegra aqui), que nortearão a ação trilateral. Do texto, destaco os seguintes pontos:

  1. Os três países se comprometem a promover um Indo-Pacífico livre e aberto com base no respeito ao direito internacional, normas compartilhadas e valores comuns. Declaram se opor fortemente “a qualquer tentativa unilateral de mudar o status quo pela força ou coerção”. Nesse trecho há um recado implícito à China em relação a Taiwan, na oposição à mudança do status quo, ou seja, independência de facto de Taiwan, pela força.
  2. Afirmam o compromisso de desnuclearizar a Coreia do Norte. Apoiam uma Península coreana “unificada e livre”. Trata-se de um desafio complexo, uma vez que a Coreia do Norte não renunciará a seu arsenal nuclear enquanto for governada pela dinastia dos Kim.
  3. Fazem referência ao compromisso com boas práticas econômicas, à cooperação na área tecnológica e a compromissos com a busca de soluções para os problemas relacionados às mudanças climáticas.
  4. Em outra mensagem implícita, dessa vez à Rússia e à guerra na Ucrânia, reafirmam o compromisso com a Carta da ONU, especialmente no que se refere à manutenção da soberania e da integridade territorial dos Estados, bem como com a solução pacífica de controvérsias.
  5. Afirmam que o encontro inaugura um novo capítulo no relacionamento entre os três Estados, que passarão a atuar no Indo-Pacífico “como se fossem um só”.

Fora da declaração oficial, mas em entrevistas, foram reveladas as intenções realizar reuniões de cúpula e exercícios militares anualmente, impulsionar mecanismos de comunicação entre os três países e estabelecer uma linha direta para resolução de crises regionais.

Não se trata, portanto, da criação formal de uma aliança militar, fato que certamente geraria enorme oposição de chineses, russos e norte-coreanos. Mas é, sem dúvida, mais uma iniciativa, que se soma ao QUAD e à AUKUS na clara estratégia norte-americana de construção de uma arquitetura de contenção da China no Indo-Pacífico.

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Os principais pontos de tensão geopolítica em 2023


O novo ano traz muitos desafios para a paz mundial. Na Europa, a guerra de alta intensidade provocada pela invasão russa da Ucrânia continua longe de um final. Na Ásia, a China reafirma seus interesses no Indo-Pacífico com crescente assertividade, enquanto a Coreia do Norte prossegue em seus programas nuclear e de mísseis e o Japão anuncia um amplo programa de modernização de suas forças armadas, que prevê que o país passará a ser o terceiro do mundo em investimentos militares até 2027. No Oriente Médio, o Irã exporta armas para a Rússia em guerra e mantém seu programa nuclear ao mesmo tempo que, em Israel, Netanyahu está de volta ao poder, liderando um governo nacionalista que tenderá ao confronto, não à acomodação, com os palestinos e iranianos. O continente africano segue sendo palco de dezenas de conflitos armados. Na América Latina, apesar da ausência de conflitos formais, a atuação de grupos criminosos e narcoterroristas, especialmente na Colômbia e no México, se mantém como um fator de instabilidade.

Em 2023, a guerra na Ucrânia prosseguirá, com alguns cenários possíveis. O primeiro é aquele em que a Rússia, que reforçou seus efetivos pela mobilização de centenas de milhares de soldados, retoma a iniciativa e inicia uma ofensiva para tentar controlar inteiramente as províncias de Kherson e Zaporizhzhia, no Sul da Ucrânia, e Lugansk e Donetsk, no Leste do país, todas anexadas ilegalmente ao território russo em 2022. O segundo cenário contempla a Ucrânia, fortemente apoiada financeira e materialmente pelos EUA e países europeus, prosseguir no esforço de retomar os territórios perdidos. Um terceiro cenário seria a Rússia novamente tentar conquistar a capital, Kiev, atacando por Norte, a partir do território bielorrusso. Um quarto cenário, menos provável, mas mais perigoso, seria o transbordamento da guerra para fora do território ucraniano, para a Transnístria, na Moldávia, ou para Belarus, ou mesmo para um país membro da Otan, como a Polônia. Esta última possibilidade poderia provocar uma escalada acentuada do conflito, com repercussões inimagináveis.

Nenhum dos cenários acima contempla a possibilidade de paz em curto prazo, uma vez que nem Rússia, nem Ucrânia, possuem poder militar/econômico suficiente para atingir os objetivos descritos nos cenários acima, especialmente em curto prazo. Uma guerra termina quando um dos contendores desiste da luta, concordando com termos que lhe são desvantajosos para celebrar a paz. Essa não parece ser uma opção para os ucranianos, que como o presidente Zelensky repetidas vezes afirmou, não aceita ceder territórios ao invasor. Como retirar as tropas para celebrar a paz também não é uma opção para o presidente Putin, que não teria como justificar para o povo russo uma invasão que não redundasse em nenhum ganho para a Rússia, o impasse prosseguirá.

Assim, é certo que até que se encontre uma saída para essa encruzilhada, a guerra prosseguirá na Europa, e com ela todas as repercussões sociais, políticas, econômicas e comerciais, como a escassez energética, a inflação e o aumento do fluxo de refugiados servindo como exemplos. Tal situação provavelmente levará a uma diminuição do apoio da opinião pública europeia à Ucrânia, e a uma consequente pressão pelo fim das hostilidades, o que colocará os líderes europeus diante de uma escolha entre duas opções, ambas ruins. A primeira seria pressionar a Ucrânia a buscar imediatamente a paz, o que levaria os europeus a admitir que a Rússia ampliasse seus territórios pela conquista em uma guerra, um fato inadmissível para as potências ocidentais. A segunda seria apoiar ainda mais a Ucrânia com armas, equipamento e dinheiro, tentando desequilibrar a balança da guerra em seu favor, o que poderia levar a Rússia a uma escalada, não se descartando o uso de artefatos nucleares táticos, com repercussões ainda mais graves.

Dado o exponencial crescimento da conflitividade do ambiente, é certo que os investimentos em defesa continuarão a crescer na Europa, em ritmo que não era visto desde o fim da Guerra Fria. Os países da comunidade europeia já concordaram em aumentar seus gastos, de modo que em 2027 se somem cerca de 70 bilhões de dólares aos pouco mais de 200 bilhões atualmente aplicados. A Polônia se destaca nesse quesito, devendo passar a ter o mais poderoso exército europeu nos próximos anos. Por outro lado, apesar dos embargos econômicos impostos pelo Ocidente e em boa medida driblados pelo incremento das relações comerciais russas com parceiros como a Índia e a China, o presidente Putin tem reiterado que continuará a incrementar os investimentos em defesa do país.

Na Ásia, o presidente da China, Xi Jinping, após garantir um terceiro mandato inédito, enfrenta dificuldades sociais e econômicas. O fim da política da Covid Zero, após a pressão de protestos ocorridos em diferentes regiões do país, ocasionou um exponencial aumento dos casos e das mortes, que colocam em risco o sistema de saúde e a confiança do povo no gerenciamento da pandemia por parte do Partido Comunista. Isso ocorre ao tempo em que a economia desacelera, a crise no setor imobiliário persiste e o desemprego, especialmente dentre os mais jovens, atinge níveis elevados. Ainda no campo interno, uma questão bastante sensível é a que envolve a minoria uighur da província de Xinjiang, onde o governo chinês é acusado de violações graves dos direitos humanos.

Ao mesmo tempo, a China coleciona situações de potencial conflito com seus vizinhos. Há a questão da ilha de Taiwan, que possui um governo autônomo, mas é considerada uma província rebelde que deverá ser reincorporada à soberania chinesa. Há também disputas fronteiriças com a Índia, que volta e meia retornam à baila em razão de incidentes entre as tropas de fronteira e a disputa com o Japão pelas ilhas Senkaku, chamadas pelos chineses de Diaoyu Dao, além dos embates no Mar do Sul da China, com diversos países vizinhos.

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A acirrada competição geopolítica e comercial entre os Estados Unidos e a China se manterá em 2023. Os EUA sustentarão sua presença no Indo-Pacífico, fortalecendo parcerias e alianças naquela região com o objetivo de garantir sua influência. Tal atitude certamente provocará reação chinesa, uma vez que os interesses das duas potências em vários momentos serão conflitantes.

Na península da Coreia, o ditador Kim Jong un continua a acelerar os programas nuclear e de mísseis, com um recorde de lançamentos e testes em 2022. A guerra na Ucrânia ofereceu uma oportunidade ao país, que enfrenta há anos embargos econômicos, para a venda de armamentos. Há notícias de venda de armas para a Rússia e o prolongamento da guerra deverá constituir oportunidade para intensificação dessas vendas, ainda que de forma velada.

A Coreia do Sul, por sua vez, divulgou sua estratégia para a região do Indo-Pacífico, destacando que a capacidade nuclear, assim como o programa de mísseis da Coreia do Norte, são uma forte ameaça à paz na região.

A movimentação militar da China e da Coreia do Norte provocou a reação do Japão, que após aprovar uma nova estratégia nacional de segurança, divulgou um amplo programa de modernização de suas forças armadas, com um substancial incremento de seus investimentos em defesa, que deverão duplicar até 2027, o que colocará o país em terceiro lugar no mundo no quesito investimentos militares.

No Oriente Médio, o Irã prossegue no desenvolvimento de suas capacidades nucleares, que voltaram a ser desenvolvidas com o fim do acordo nuclear, em 2018. O país já enriquece urânio a níveis próximos dos necessários à fabricação da bomba nuclear, mas nega a intenção de possuir tal tipo de armamento. O Irã vem sendo palco de uma série de manifestações populares, desde a morte de uma jovem da minoria curda, após ser presa pela polícia dos costumes do país. O regime vem reprimindo as manifestações com violência, já tendo, inclusive, condenado manifestantes à morte, sendo pouco provável que os protestos venham a ameaçar a estabilidade do governo. Mas, a guerra na Ucrânia se mostrou uma oportunidade para os iranianos venderem material de emprego militar aos russos, especialmente sistemas de aeronaves remotamente pilotadas e as loitering munitions, conhecidas como “drones kamikazes”. Especula-se que, em troca, os russos poderiam auxiliar os iranianos em seu programa nuclear.

Em Israel, Benjamin Netanyahu reassumiu o governo, formando uma coalizão nacionalista e escalando alguns ministros com um histórico de ações anti-palestinas. Ele afirmou, em diversas oportunidades, que Israel não admitirá que o Irã alcance o status de potência nuclear, de modo que as tensões entre os dois países deverão se elevar ainda mais na gestão do novo primeiro-ministro israelense.

Além disso, a rivalidade entre Arábia Saudita e Irã permanece alta. Os dois países estão com as relações diplomáticas rompidas desde 2016 e apoiam lados contrários nas guerras civis do Iêmen e da Síria, além de disputarem a proeminência geopolítica na região.

A África e a América Latina, que convivem há anos com conflitos que, embora causem muito sofrimento às populações locais, são crônicos e considerados de baixa intensidade, apresentam pontos locais de tensão que merecerão a atenção dos governos e dos organismos multilaterais regionais sem, entretanto, afetar significativamente a geopolítica global.

Nas relações entre os países, o chamado Dilema de Segurança surge como um paradoxo inerente ao próprio Sistema de Estados. Afinal, uma razão fundamental para a existência do Estado é proporcionar segurança aos seus cidadãos em relação a ameaças externas e internas. Para isso, ao identificar ameaças, o Estado investe em sistemas de armas para sua defesa, mas isso faz com que ele próprio passe a representar uma ameaça aos outros Estados, que também passam a se armar. É o que popularmente se chama “corrida armamentista”.

Como procurei demonstrar, em 2023 o mundo observará a instalação desses dilemas de segurança em três regiões ao mesmo tempo: na Europa, em razão da guerra da Ucrânia, na região do Indo-Pacífico, em razão da crescente tensão nas relações entre os principais atores regionais e entre a China e os Estados Unidos, e no Oriente Médio, motivada pela desconfiança mútua entre Irã, Israel e Arábia Saudita. Esses três serão, portanto, os principais focos de tensão geopolítica do mundo em 2023.

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