A ação militar israelense contra o Irã à luz do pensamento de um velho general francês
André Beaufre (1902–1975) foi um general e teórico militar francês, cujas formulações tiveram grande impacto sobre os estudos estratégicos do século XX, com grande influência, inclusive, sobre o pensamento estratégico do Exército Brasileiro. Formado na Escola Militar de Saint-Cyr, Beaufre participou de vários conflitos importantes, incluindo a Segunda Guerra Mundial, a Guerra da Indochina e a Guerra da Argélia. Sua carreira militar foi marcada por uma combinação de experiência prática no campo de batalha e reflexões teóricas profundas sobre o uso da força e a natureza da guerra.
Sua obra mais influente foi “Introdução à Estratégia”, de 1963. Nessa obra, Beaufre ultrapassa simples considerações acerca de forças militares ou sobre táticas de combate, para tratar do que ele considerava a finalidade da Estratégia, qual seja, atingir os objetivos fixados pela política, utilizando da melhor maneira os meios à disposição do Estado.
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Para Beaufre, o modelo estratégico a ser escolhido para o atingimento dos objetivos políticos dependia de alguns fatores essenciais: a liberdade de ação, as forças materiais, as forças morais, e o tempo disponível.
A Liberdade de Ação (K) diz respeito à capacidade do Estado de agir com independência estratégica, sem ser bloqueado ou limitado por fatores políticos, diplomáticos ou operacionais. Isso está ligado à capacidade de manobra, tanto militar, quanto política e diplomática.
As forças materiais (F) referem-se aos recursos tangíveis disponíveis para a execução da estratégia, como armamentos, infraestrutura militar, logística, mão de obra, entre outros.
Por sua vez, as Forças Morais (Y) são os fatores intangíveis que incluem a vontade, a motivação e a capacidade de uma nação ou de uma força militar em manter o esforço de guerra, mesmo em face de adversidades. Esses podem incluir a coesão nacional, a moral das tropas, a legitimidade de uma causa e a resiliência psicológica da população.
Finalmente, o tempo disponível (T) para a execução da estratégia deve ser confrontado com o necessário para o atingimento dos objetivos. O passar dos dias, das semanas, dos meses e dos anos pode causar mudanças significativas no cenário estratégico, criando urgências que interferem na escolha do modelo estratégico.
Os fatores acima podem ser, portanto, delineados em uma “Fórmula Geral da Estratégia”, na qual o impulso estratégico (S) é diretamente proporcional aos fatores liberdade de ação, forças materiais, forças morais e tempo disponível.
S = K.F.Y.T
Um impulso estratégico elevado favorece a adoção de um modelo estratégico que privilegie ações diretas, como o conflito violento. Um impulso estratégico menor, indica a adoção de estratégias indiretas, na qual o essencial da decisão é obtido por outros meios à disposição do Estado, que não o meio militar, como os econômicos ou diplomáticos.
As ferramentas oferecidas por Beaufre ajudam a compreender as opções estratégicas adotadas pelo Estado de Israel na crise em andamento entre aquele país e o Irã. Vejamos cada um dos fatores.
A liberdade de ação do governo israelense para atuar contra o Irã é alta. Ao se analisar o sistema internacional, observa-se que os países ou organismos internacionais que poderiam exercer alguma pressão que diminuísse tal liberdade de ação, por diferentes razões, não estão em condições de exercê-la. Os EUA, envoltos na acirrada campanha eleitoral do próximo mês e a Rússia, em guerra, não têm, no momento, o poder de influência/coerção que já tiveram no passado. A ONU, que está com seu Conselho de Segurança completamente paralisado, é incapaz de chegar a qualquer consenso que pudesse limitar as ações israelenses. Do ponto de vista interno, apesar de enfrentar uma oposição forte, no que concerne ao Irã, o governo tem total liberdade de executar suas estratégias conforme planejadas.
As forças de defesa de Israel possuem forças materiais, ou seja, capacidades militares, suficientes para fazer face ao desafio imposto pelo Irã, contando com equipamentos modernos, uma força bem treinada e com larga experiencia de combate. Além disso, sempre pode contar com o apoio norte-americano, especialmente para complementar sua defesa antiaérea e com preciosas informações de inteligência.
As forças morais, representadas pela coesão nacional em torno das decisões tomadas pelo governo israelense em relação à crise com o Irã talvez seja o aspecto mais controverso da análise. Sabidamente, o governo dirigido pelo Primeiro-ministro Benjamim Netanyahu enfrenta uma forte oposição interna, que antecede à presente crise e se agrava em relação ao confronto com o Hamas, na Faixa de Gaza, em razão da incapacidade em resgatar os reféns que, um ano depois de terem sido sequestrados, continuam nas mãos dos terroristas. Entretanto, as espetaculares e muito exitosas ações contra a liderança do grupo Hezbollah, bem como o desejo de reagir ao ataque iraniano, que lançou cerca de 200 mísseis balísticos contra o território israelense, acabam por criar um quase consenso entre os israelenses de que chegou a hora de uma ação mais contundente contra o Irã. Além disso é sempre bom lembrar que, apesar das divisões, Israel historicamente é capaz de unir-se quando confrontado com ameaças externas, como é o caso atualmente.
O tempo disponível, último aspecto levantado por Beaufre, não é, atualmente, limitante para as ações israelenses contra o Irã. Entretanto, caso a crise se prolongue no tempo, certamente a pressão internacional pelo fim das hostilidades aumentará. Isso certamente poderá criar um sentimento de urgência que tende a aumentar o impulso estratégico israelense.
Assim, pode-se concluir que todos os aspectos levantados pelo general francês indicam que Israel tem um alto impulso estratégico para a resposta ao ataque iraniano. Isso pressupõe, conforme indica Beaufre, uma tendência pela opção de um modelo de ação que privilegie uma ação direta, com a utilização das ferramentas militares disponíveis, em um conflito de alta intensidade e, se possível, de curta duração.
À luz da teoria de Beaufre, Israel parece reunir todos os elementos para justificar uma ação direta e decisiva contra o Irã, uma vez que sua liberdade de ação, forças materiais, e tempo disponível estão claramente a seu favor. Embora existam tensões internas que possam impactar as forças morais, o desejo de responder aos recentes ataques pode gerar o consenso necessário para uma estratégia militar de curto prazo. Contudo, os desdobramentos diplomáticos e as pressões internacionais também terão um papel crucial na manutenção desse impulso estratégico caso o conflito perdure longo do tempo.
Os principais pontos de tensão geopolítica em 2023
O novo ano traz muitos desafios para a paz mundial. Na Europa, a guerra de alta intensidade provocada pela invasão russa da Ucrânia continua longe de um final. Na Ásia, a China reafirma seus interesses no Indo-Pacífico com crescente assertividade, enquanto a Coreia do Norte prossegue em seus programas nuclear e de mísseis e o Japão anuncia um amplo programa de modernização de suas forças armadas, que prevê que o país passará a ser o terceiro do mundo em investimentos militares até 2027. No Oriente Médio, o Irã exporta armas para a Rússia em guerra e mantém seu programa nuclear ao mesmo tempo que, em Israel, Netanyahu está de volta ao poder, liderando um governo nacionalista que tenderá ao confronto, não à acomodação, com os palestinos e iranianos. O continente africano segue sendo palco de dezenas de conflitos armados. Na América Latina, apesar da ausência de conflitos formais, a atuação de grupos criminosos e narcoterroristas, especialmente na Colômbia e no México, se mantém como um fator de instabilidade.
Em 2023, a guerra na Ucrânia prosseguirá, com alguns cenários possíveis. O primeiro é aquele em que a Rússia, que reforçou seus efetivos pela mobilização de centenas de milhares de soldados, retoma a iniciativa e inicia uma ofensiva para tentar controlar inteiramente as províncias de Kherson e Zaporizhzhia, no Sul da Ucrânia, e Lugansk e Donetsk, no Leste do país, todas anexadas ilegalmente ao território russo em 2022. O segundo cenário contempla a Ucrânia, fortemente apoiada financeira e materialmente pelos EUA e países europeus, prosseguir no esforço de retomar os territórios perdidos. Um terceiro cenário seria a Rússia novamente tentar conquistar a capital, Kiev, atacando por Norte, a partir do território bielorrusso. Um quarto cenário, menos provável, mas mais perigoso, seria o transbordamento da guerra para fora do território ucraniano, para a Transnístria, na Moldávia, ou para Belarus, ou mesmo para um país membro da Otan, como a Polônia. Esta última possibilidade poderia provocar uma escalada acentuada do conflito, com repercussões inimagináveis.
Nenhum dos cenários acima contempla a possibilidade de paz em curto prazo, uma vez que nem Rússia, nem Ucrânia, possuem poder militar/econômico suficiente para atingir os objetivos descritos nos cenários acima, especialmente em curto prazo. Uma guerra termina quando um dos contendores desiste da luta, concordando com termos que lhe são desvantajosos para celebrar a paz. Essa não parece ser uma opção para os ucranianos, que como o presidente Zelensky repetidas vezes afirmou, não aceita ceder territórios ao invasor. Como retirar as tropas para celebrar a paz também não é uma opção para o presidente Putin, que não teria como justificar para o povo russo uma invasão que não redundasse em nenhum ganho para a Rússia, o impasse prosseguirá.
Assim, é certo que até que se encontre uma saída para essa encruzilhada, a guerra prosseguirá na Europa, e com ela todas as repercussões sociais, políticas, econômicas e comerciais, como a escassez energética, a inflação e o aumento do fluxo de refugiados servindo como exemplos. Tal situação provavelmente levará a uma diminuição do apoio da opinião pública europeia à Ucrânia, e a uma consequente pressão pelo fim das hostilidades, o que colocará os líderes europeus diante de uma escolha entre duas opções, ambas ruins. A primeira seria pressionar a Ucrânia a buscar imediatamente a paz, o que levaria os europeus a admitir que a Rússia ampliasse seus territórios pela conquista em uma guerra, um fato inadmissível para as potências ocidentais. A segunda seria apoiar ainda mais a Ucrânia com armas, equipamento e dinheiro, tentando desequilibrar a balança da guerra em seu favor, o que poderia levar a Rússia a uma escalada, não se descartando o uso de artefatos nucleares táticos, com repercussões ainda mais graves.
Dado o exponencial crescimento da conflitividade do ambiente, é certo que os investimentos em defesa continuarão a crescer na Europa, em ritmo que não era visto desde o fim da Guerra Fria. Os países da comunidade europeia já concordaram em aumentar seus gastos, de modo que em 2027 se somem cerca de 70 bilhões de dólares aos pouco mais de 200 bilhões atualmente aplicados. A Polônia se destaca nesse quesito, devendo passar a ter o mais poderoso exército europeu nos próximos anos. Por outro lado, apesar dos embargos econômicos impostos pelo Ocidente e em boa medida driblados pelo incremento das relações comerciais russas com parceiros como a Índia e a China, o presidente Putin tem reiterado que continuará a incrementar os investimentos em defesa do país.
Na Ásia, o presidente da China, Xi Jinping, após garantir um terceiro mandato inédito, enfrenta dificuldades sociais e econômicas. O fim da política da Covid Zero, após a pressão de protestos ocorridos em diferentes regiões do país, ocasionou um exponencial aumento dos casos e das mortes, que colocam em risco o sistema de saúde e a confiança do povo no gerenciamento da pandemia por parte do Partido Comunista. Isso ocorre ao tempo em que a economia desacelera, a crise no setor imobiliário persiste e o desemprego, especialmente dentre os mais jovens, atinge níveis elevados. Ainda no campo interno, uma questão bastante sensível é a que envolve a minoria uighur da província de Xinjiang, onde o governo chinês é acusado de violações graves dos direitos humanos.
Ao mesmo tempo, a China coleciona situações de potencial conflito com seus vizinhos. Há a questão da ilha de Taiwan, que possui um governo autônomo, mas é considerada uma província rebelde que deverá ser reincorporada à soberania chinesa. Há também disputas fronteiriças com a Índia, que volta e meia retornam à baila em razão de incidentes entre as tropas de fronteira e a disputa com o Japão pelas ilhas Senkaku, chamadas pelos chineses de Diaoyu Dao, além dos embates no Mar do Sul da China, com diversos países vizinhos.
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A acirrada competição geopolítica e comercial entre os Estados Unidos e a China se manterá em 2023. Os EUA sustentarão sua presença no Indo-Pacífico, fortalecendo parcerias e alianças naquela região com o objetivo de garantir sua influência. Tal atitude certamente provocará reação chinesa, uma vez que os interesses das duas potências em vários momentos serão conflitantes.
Na península da Coreia, o ditador Kim Jong un continua a acelerar os programas nuclear e de mísseis, com um recorde de lançamentos e testes em 2022. A guerra na Ucrânia ofereceu uma oportunidade ao país, que enfrenta há anos embargos econômicos, para a venda de armamentos. Há notícias de venda de armas para a Rússia e o prolongamento da guerra deverá constituir oportunidade para intensificação dessas vendas, ainda que de forma velada.
A Coreia do Sul, por sua vez, divulgou sua estratégia para a região do Indo-Pacífico, destacando que a capacidade nuclear, assim como o programa de mísseis da Coreia do Norte, são uma forte ameaça à paz na região.
A movimentação militar da China e da Coreia do Norte provocou a reação do Japão, que após aprovar uma nova estratégia nacional de segurança, divulgou um amplo programa de modernização de suas forças armadas, com um substancial incremento de seus investimentos em defesa, que deverão duplicar até 2027, o que colocará o país em terceiro lugar no mundo no quesito investimentos militares.
No Oriente Médio, o Irã prossegue no desenvolvimento de suas capacidades nucleares, que voltaram a ser desenvolvidas com o fim do acordo nuclear, em 2018. O país já enriquece urânio a níveis próximos dos necessários à fabricação da bomba nuclear, mas nega a intenção de possuir tal tipo de armamento. O Irã vem sendo palco de uma série de manifestações populares, desde a morte de uma jovem da minoria curda, após ser presa pela polícia dos costumes do país. O regime vem reprimindo as manifestações com violência, já tendo, inclusive, condenado manifestantes à morte, sendo pouco provável que os protestos venham a ameaçar a estabilidade do governo. Mas, a guerra na Ucrânia se mostrou uma oportunidade para os iranianos venderem material de emprego militar aos russos, especialmente sistemas de aeronaves remotamente pilotadas e as loitering munitions, conhecidas como “drones kamikazes”. Especula-se que, em troca, os russos poderiam auxiliar os iranianos em seu programa nuclear.
Em Israel, Benjamin Netanyahu reassumiu o governo, formando uma coalizão nacionalista e escalando alguns ministros com um histórico de ações anti-palestinas. Ele afirmou, em diversas oportunidades, que Israel não admitirá que o Irã alcance o status de potência nuclear, de modo que as tensões entre os dois países deverão se elevar ainda mais na gestão do novo primeiro-ministro israelense.
Além disso, a rivalidade entre Arábia Saudita e Irã permanece alta. Os dois países estão com as relações diplomáticas rompidas desde 2016 e apoiam lados contrários nas guerras civis do Iêmen e da Síria, além de disputarem a proeminência geopolítica na região.
A África e a América Latina, que convivem há anos com conflitos que, embora causem muito sofrimento às populações locais, são crônicos e considerados de baixa intensidade, apresentam pontos locais de tensão que merecerão a atenção dos governos e dos organismos multilaterais regionais sem, entretanto, afetar significativamente a geopolítica global.
Nas relações entre os países, o chamado Dilema de Segurança surge como um paradoxo inerente ao próprio Sistema de Estados. Afinal, uma razão fundamental para a existência do Estado é proporcionar segurança aos seus cidadãos em relação a ameaças externas e internas. Para isso, ao identificar ameaças, o Estado investe em sistemas de armas para sua defesa, mas isso faz com que ele próprio passe a representar uma ameaça aos outros Estados, que também passam a se armar. É o que popularmente se chama “corrida armamentista”.
Como procurei demonstrar, em 2023 o mundo observará a instalação desses dilemas de segurança em três regiões ao mesmo tempo: na Europa, em razão da guerra da Ucrânia, na região do Indo-Pacífico, em razão da crescente tensão nas relações entre os principais atores regionais e entre a China e os Estados Unidos, e no Oriente Médio, motivada pela desconfiança mútua entre Irã, Israel e Arábia Saudita. Esses três serão, portanto, os principais focos de tensão geopolítica do mundo em 2023.
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A viagem de Joe Biden ao Oriente Médio
O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, acaba de encerrar uma viagem a Israel, Cisjordânia, e Arábia Saudita. As visitas ocorreram em um momento conturbado, em que a guerra na Ucrânia desorganiza o mercado mundial de gás natural, petróleo e derivados; o Irã caminha a passos largos para a fabricação da arma nuclear e Israel está sendo governado por um gabinete interino, após a renúncia do Primeiro-Ministro Naftali Bennett. A região também vive um momento de acirramento da disputa geopolítica, em que o Irã, a Turquia e a Arábia Saudita disputam primazias e esferas de influência; o Afeganistão está mergulhado no caos econômico após o retorno do Talibã ao poder; e o Líbano passa por grave crise econômica, assim como a Síria, país que enfrenta uma guerra civil há mais de 11 anos. No Iêmen, a guerra civil, que na verdade é travada por procuração entre iranianos e árabes desde 2014, com os primeiros financiando os rebeldes Houthis e os últimos apoiando o governo, está assistindo a um momento de trégua, negociado pela ONU.
Biden iniciou sua viagem por Israel, país que vive mais um momento político conturbado, com a renúncia do Primeiro-Ministro Naftali Bennett, em junho. Com isso, Biden se reuniu com Yair Lapid, que acabou de assumir um governo interino, até que sejam realizadas novas eleições, no final do ano. O presidente norte-americano também se reuniu com Mahmoud Abbas, líder da Autoridade Palestina. As relações entre israelenses, palestinos e norte-americanos encontra-se ainda mais tensionada do que de costume, em razão do assassinato, por tropas israelenses, da jornalista palestino-americana Shireen Abu Akleh, em maio.
Em Israel, um dos principais focos das conversas de Biden foi o programa nuclear iraniano, que tem alcançado significativos avanços. O país acaba de anunciar que enriqueceu Urânio a 20% utilizando as novas e avançadas centrífugas IR-6 da instalação nuclear de Fordo, construída por razões de segurança no subterrâneo das montanhas da cidade de Qom, ao Sul de Teerã. A Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) informou no mês passado que o Irã já teria 43 quilos de urânio enriquecido com 60% de pureza – um importante passo para chegar aos 90% necessários para a produção da arma nuclear. Especialistas em não proliferação alertam que se trata de uma quantidade de material físsil suficiente para a fabricação da bomba.
É grande a preocupação israelense com o fato de o Irã estar cada vez mais próximo de alcançar o status de potência nuclear. Existe no país a percepção de que sua própria existência pode ser ameaçada, uma vez que os iranianos não reconhecem a legalidade ou a legitimidade do Estado israelense.
Essa preocupação ficou muito clara na declaração conjunta, divulgada pelos governos dos EUA e de Israel, denominada “Declaração de Jerusalém” ¹. Nela, os EUA reafirmam sua parceria estratégica com os israelenses e seu compromisso com a segurança de Israel, declarando que ela é, também, de interesse da própria segurança dos EUA. Em um trecho especialmente importante da declaração, os EUA enfatizam o compromisso de nunca permitir que o Irã adquira armas nucleares, dizendo-se, inclusive, preparado para usar todos os elementos de seu poder nacional para garantir esse resultado. Tal afirmação refere-se, evidentemente, ao poder militar, em uma clara delimitação de uma “linha vermelha” que não pode ser ultrapassada pelo Irã: tornar-se detentor de armamentos nucleares.
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Joe Biden também esteve na Cisjordânia, onde se encontrou com Mahmoud Abbas, presidente da Autoridade Palestina. No encontro, reiterou o compromisso norte-americano com uma solução para a questão palestina que contemple a existência de dois Estados, o israelense e o palestino, embora tenha dito que este encaminhamento não está maduro “no momento”. Abbas, por sua vez, disse que a chave da paz para a região seria a saída dos israelenses dos territórios ocupados.
A chegada de Biden à Arabia Saudita foi marcada por um gesto simbólico: a viagem do avião presidencial diretamente de Israel à Arábia Saudita, rota até então interditada pelos árabes. Significativamente, em medida simultânea à presença de Biden no país, os sauditas informaram que tal proibição seria retirada, abrindo seu espaço aéreo à chegada de voos comerciais vindos de Israel.
A presença de Biden na Arábia Saudita causou reações desfavoráveis em sua própria base de apoio, os integrantes do Partido Democrata. Ainda durante a campanha eleitoral, Biden declarou que aquele seria um “país pária”. E expressão foi usada em razão do assassinato, em território turco, do jornalista árabe Jamal Khashoggi. A inteligência norte-americana responsabilizou diretamente o príncipe herdeiro, e homem-forte do regime saudita, Mohammed bin Salman, pelo assassinato. Assim, o encontro entre MBS, como Salman é conhecido, e Biden causou constrangimentos a ambas as partes.
Mas o pragmatismo falou mais alto porque, neste momento, a Arábia Saudita é um parceiro ainda mais importante para os EUA. E isso ficou caracterizado pela declaração conjunta ²emitida após o encontro. Nela, se destacam a questão energética, na qual a Arábia Saudita tem um papel fundamental na estabilização do mercado profundamente afetado pela guerra na Ucrânia, uma vez que é o segundo maior produtor de petróleo do mundo, e a questão de segurança, com ambos os países afirmando que é importante impedir que o Irã “interfira em assuntos internos de outros países, patrocine o terrorismo e atue para desestabilizar a região”.
Ainda em território saudita, Biden aproveitou uma reunião do Conselho de Cooperação do Golfo para se encontrar com os demais líderes dos países do Golfo Pérsico: Omã, Kuwait, Bahrein, Catar e Emirados Árabes Unidos (EAU). Além dos países do Golfo, também compareceram à reunião os líderes do Egito, Iraque e Jordânia. Nesse encontro, Biden disse que os EUA não abandonariam o Oriente Médio à China ou à Rússia, em referência à disputa que essas potências travam por influência na região.
A viagem de Biden ao Oriente Médio foi cheia de significados. Mostrou que dois antagonistas históricos, israelenses e árabes, possivelmente deixarão suas diferenças de lado para enfrentar um adversário comum, cada vez mais poderoso: o Irã. Deixou claro também que o Oriente Médio, quer por sua produção petrolífera, quer por sua posição geográfica privilegiada, ainda é uma área de fundamental importância para o jogo geopolítico das grandes potências, razão pela qual os norte-americanos continuarão a tentar fazer valer sua influência na região.
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O Irã e o acordo nuclear
Enquanto o mundo está com suas atenções voltadas para a escalada de tensões na Ucrânia, em razão da concentração de tropas russas na fronteira entre os dois países, as negociações para a retomada do acordo nuclear entre o Irã e as potências globais, retomadas em maio de 2021, continuam em andamento.
Reino Unido, China, França, Alemanha e Rússia tentam negociar a retomada de um acordo que limite as atividades nucleares iranianas. Os EUA não participam diretamente das reuniões, mas acompanham os trabalhos de perto. Após oito rodadas de negociações, os países foram incapazes de chegar a um acordo.
Para entender como a situação chegou ao ponto atual, é necessário relembrar o desenrolar dos acontecimentos. Em 14 de julho de 2015, Irã, EUA, Rússia, China, Reino Unido, França e Alemanha celebraram um acordo, o Joint Comprehensive Plan of Action (JCPA). O pacto foi ratificado pelo Conselho de Segurança da ONU e suas disposições passaram a ser verificadas pela Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA).
O acordo previa que o Irã reduziria em 98% suas reservas de urânio enriquecido, além de limitar o nível de enriquecimento do metal a 3,67%, o suficiente para ser usado nas usinas termonucleares, para geração de energia elétrica. Essa limitação se deve ao fato de que, para ser utilizado para a fabricação da bomba atômica, por exemplo, o Urânio-235 deve ser enriquecido a níveis superiores a 90%, em centrifugas organizadas em série, numa espécie de cascata, especificamente destinadas a esse fim.
O JCPOA impôs ainda diversas outras limitações na área de pesquisa e desenvolvimento nuclear ao Irã. Em contrapartida, foram levantadas todas as sanções econômicas que eram impostam ao país na época, que haviam custado cerca de US$ 160 bilhões ao país, apenas em receitas de petróleo. Assim, todas as sanções foram suspensas e o país pôde retomar a venda de petróleo nos mercados internacionais, reavendo o acesso a ativos no valor de US$ 100 bi, que estavam congelados no exterior.
Entretanto, em 2018, o presidente Trump abandonou o JCPOA, reimpondo todas as sanções norte-americanas ao Irã, em uma estratégia de “pressão máxima”, exigindo que o Irã reduzisse seu programa de mísseis balísticos e sua participação em conflitos regionais.
Mas o Irã se recusou a ceder e sua economia sofreu um duro golpe, com sua moeda atingindo o menor valor em décadas e a inflação subindo a níveis recordes. Em 2019, o Irã passou a violar o acordo, usando o argumento de que, como uma das partes havia violado antes, o país não estava mais obrigado a cumprir suas obrigações.
Além disso, o país adotou uma estratégia de escalar as tensões. Assim, naquele ano o Irã implementou – ou patrocinou – uma série de ações, como a sabotagem de navios petroleiros no Estreito de Ormuz, ataques a oleodutos e empresas petrolíferas na Arábia Saudita, apreensão de um petroleiro britânico e a derrubada de uma Aeronave Remotamente Pilotada norte-americana.
Em janeiro de 2020, foram os EUA que atuaram de forma impactante, eliminando o General Qassim Suleimani, poderoso comandante da Guarda Revolucionária Iraniana, quando este se encontrava em visita ao Iraque.
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A difícil condição econômica do Irã deu ainda maior impulso à aproximação com a China, que remonta a década de 1980, durante a guerra contra o Iraque. Assim, em 2021 os persas foram aceitos na Organização para Cooperação de Xangai, além de ampliarem a participação do país em investimentos relacionados à Iniciativa Cinturão e Rota , ou nova Rota da Seda. No último dia 14 de janeiro, em uma reunião realizada na China, os ministros das Relações Exteriores da China, Wang Yi e do Irã, Hossein Amirabdollahian afirmaram que um acordo de cooperação nas áreas de energia e infraestrutura, válido por 25 anos, assinado no ano passado, estava sendo oficialmente implementado. Tal aproximação é vista como uma das razões pelas quais a China já não se sente tão pressionada pelas sanções comerciais do ocidente como no passado. Afinal, a China, não aderindo às sanções, serve como uma válvula de escape para a combalida economia iraniana.
Ignorando as limitações impostas pelo JCPOA, o Irã, em novembro de 2021, já havia acumulado um estoque de urânio enriquecido que era muitas vezes maior do que o permitido, estocando pelo menos 17,7 kg de metal enriquecido com 60% de pureza, aproximando-se do nível necessário para a fabricação da bomba. Também havia instalado mais centrífugas, de um tipo mais avançado e produzido uma liga de urânio metálico enriquecido, um material chave para a fabricação de armas nucleares. Além disso, o país também restringiu significativamente o acesso de inspetores internacionais às instalações do país, ao interromper o cumprimento do previsto pelo Protocolo Adicional de seu Acordo de Salvaguardas da AIEA.
Desta forma chegamos à situação atual, na qual as negociações para a retomada de um acordo nuclear se arrastam, com o Ocidente alertando que o prazo final, aquele depois do qual as condições necessárias ao desenvolvimento da arma atômica pelos iranianos já terá sido alcançado, se aproxima rapidamente.
Resta saber qual será a postura a ser adotada por EUA, Israel, Arábia Saudita e demais potências regionais e mundiais caso tal condição se estabeleça. A questão nuclear iraniana está em aberto, e será um dos maiores focos de tensão geopolítica no decorrer de 2022.
O Irã e os desafios para a paz mundial em 2022
A julgar pela quantidade de crises já instaladas nos últimos dias de 2021, não faltará assunto nos campos da política internacional, da geopolítica e dos assuntos de Defesa em 2022.
Afinal, 2021 foi o ano em que as tensões entre europeus e russos atingiram níveis só comparáveis aos da Guerra Fria, os EUA protagonizaram uma retirada caótica no Afeganistão, as tensões entre China e EUA cresceram, Iêmen e Etiópia continuaram enfrentando graves guerras em seus territórios. Houve ainda o assassinato do presidente do Haiti, quatro golpes de estado exitosos em países da África (Sudão, Mali, Guiné e Chade), além do golpe em Mianmar e da crise dos refugiados, que continua a afetar todos os continentes, apenas para citar os eventos mais significativos. Isso tudo em meio à continuidade da pandemia da Covid-19.
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Não faltam, portanto, focos de tensão a desafiar as lideranças mundiais a encontrarem soluções que preservem a paz. Neste artigo vou tratar apenas de um caso, em razão da sua potencialidade em se transformar em uma crise de enormes proporções: a questão nuclear no Irã. Em 2015, o Irã e um grupo de países formado por EUA, Rússia, China, França, Alemanha e Reino Unido, além da União Europeia, assinaram um acordo, o Joint Comprehensive Plan of Action (JCPOA). Naquele momento, em troca de suavizações de sanções que estavam impostas pela comunidade internacional ao país, o Irã concordava em reduzir significativamente suas atividades na área nuclear, dentre outras medidas, pela limitação de sua produção de urânio enriquecido, em quantidades e nível de enriquecimento, além de aceitar submeter-se às inspeções internacionais em suas instalações nucleares. Esta era uma medida fundamental para que a comunidade internacional pudesse se assegurar de que o Irã não desenvolveria tecnologia nuclear para fins militares, uma vez que o urânio é um dos elementos químicos que, quando enriquecido a níveis superiores a 90%, se torna componente fundamental para a fabricação de bombas atômicas.
Em 2018, o presidente Trump retirou os EUA do acordo nuclear e reimpôs uma série de sanções ao Irã. Em 09 de janeiro de 2020, neste Espaço Aberto[1], escrevi sobre as consequências dessa decisão. Mas, ao se analisar os resultados, parece claro que as medidas adotadas pelo presidente Trump, ao reimpor as sanções, não surtiram o efeito que se esperava, pelo contrário, o Irã se sentiu desobrigado a cumprir os termos do acordo e hoje o país está muito mais próximo do desenvolvimento do armamento nuclear do que estava em 2018.
Durante 2021, as negociações entre os países que se mantiveram no JCPOA e o Irã foram retomadas, mas os avanços têm sido bastante limitados. Os europeus exigem velocidade nas negociações, em razão dos rápidos avanços obtidos pelo Irã em seu programa nuclear. De acordo com um relatório de 17 de novembro último, da Agência Internacional de Energia Atômica, o estoque de urânio enriquecido a 20% do Irã é de 114 Kg, acima dos 85 Kg documentados no relatório anterior da agência, publicado em 7 de setembro. Já a 60% de enriquecimento, seriam 17,7 kg, também acima dos 10 kg apontados no relatório anterior. O mesmo documento informa que o país instalou centrífugas mais avançadas, que podem enriquecer urânio de forma mais eficiente.
Os iranianos, acusados de estarem deliberadamente ganhando tempo nas negociações, afirmam que não têm o objetivo de utilizar a tecnologia nuclear para fins bélicos. Mas o fato é que, após alcançar o nível de 60% de enriquecimento, chegar aos 90% que permitiria a fabricação da bomba parece ser apenas uma questão de (cada vez menos) tempo.
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O governo de Israel tem manifestado preocupação com a aceleração do programa nuclear iraniano. Segundo os serviços de inteligência do país, o Irã teria material para construir 3 bombas e, em um mês, terminaria o processo de enriquecimento do urânio. A partir daí, levaria entre 18 e 24 meses para fabricar as bombas. Além disso, se divulgou que o país começou a fabricar placas de urânio, material utilizado na fabricação do armamento nuclear.
Israel não confirma, mas o país é apontado como o autor de diversos ataques cibernéticos a instalações nucleares, e mesmo a cientistas e lideranças iranianas, ao longo dos últimos anos, ações que atrasaram, mas, como se vê, não impediram o progresso do programa nuclear persa.
As autoridades israelenses têm subido o tom das declarações. Durante uma visita aos Estados Unidos, o ministro da Defesa, Benny Gantz, anunciou publicamente que havia ordenado ao Exército israelense que se preparasse para um possível ataque militar ao Irã.
Um eventual ataque israelense provocaria uma resposta iraniana e dos grupos Hezbollah, no Líbano, e Hamas, em Gaza, ambos aliados do Irã, forçando Israel a travar uma guerra em várias frentes simultaneamente. Seria, sem dúvida, um rastilho de pólvora que incendiaria o Oriente Médio. A ameaça cada vez mais real de um conflito de alta intensidade, que poderia envolver outros países, e mesmo as grandes potências, é somente mais um dos fantasmas que ameaçam a paz e o sistema internacional no ano que se inicia na próxima semana.
[1] https://paulofilho.net.br/2020/01/09/a-crise-ira-x-eua
Os desafios da política externa do Governo Joe Biden
Ao completar seu primeiro mês no cargo, o Presidente Joe Biden se defronta com vários desafios na política internacional. O manejo desses desafios começa a revelar os novos rumos da política externa norte-americana.
O enfrentamento das múltiplas questões que envolvem o relacionamento EUA/China é desafiado pela incrível complexidade das questões, além da falta de consenso no governo e no Partido Democrata sobre qual deve ser o foco da relação dos EUA com o gigante asiático. Há uma maioria que defende o fim da confrontação política permanente e do esforço de desassociação das economias (decoupling, no termo em inglês), posição defendida por poderosos grupos econômicos que mantém enormes interesses na China. Ao mesmo tempo, muitos integrantes do partido Democrata defendem maior assertividade norte americana na defesa dos direitos humanos na China e maior cooperação no enfrentamento das causas do aquecimento global, o que pressionaria a China também no campo da preservação ambiental, em razão de sua matriz energética altamente poluente.
No campo militar, a completa liberdade de ação norte-americana no Oceano Pacífico, conquistada no pós-guerra, continuará a ser desafiada pela crescente capacidade militar chinesa, especialmente sua marinha de guerra. Nesse sentido, o cumprimento de mais uma das chamadas “Operações de Liberdade de Navegação” pelo Contratorpedeiro (Destroyer) USS John S McCain, logo na primeira semana do governo Biden, navegando pelo Estreito de Taiwan e pelo Mar do Sul da China, costeando as disputadas Ilhas do Arquipélago Paracel, mostra a disposição norte-americana de manter inabalada sua influência militar na região.
Mas, encontrar o tom adequado da retórica e das ações militares exigirá habilidade. Por um lado, um aumento no tom de confrontação militar poderá deixar os aliados norte-americanos na área emparedados pela armadilha da neutralidade, uma vez que seus laços econômicos com Beijing são cada vez mais profundos. Por outro lado, qualquer ênfase em um “reset” na relação entre os dois países, que resulte em acomodações e concessões excessivas, acenderá um alerta em Tóquio, Seul, Canberra e Nova Déli, sem falar em Taipei, que poderão concluir que eles estão por sua própria conta, acelerando ainda mais a já existente corrida armamentista na região.
Os problemas a enfrentar no Oriente Médio não são menores. Biden acaba de retirar o apoio norte-americano à ofensiva saudita contra os Houthis no Iêmen, interrompendo a venda de armas aos árabes, além de revogar o ato do governo Trump, de janeiro deste ano, que designava aquele grupo como uma entidade terrorista. O governo norte-americano alegou razões humanitárias para isso, uma vez que tal designação bloqueava uma série de ajudas à população iemenita, terrivelmente castigada pelo conflito que já se arrasta há seis anos e que já causou mais de 100 mil mortes. A ONU classifica a crise no Iêmen como sendo a pior crise humanitária do planeta, com cerca de 80% de sua população de 24 milhões de habitantes necessitando de ajuda, incluindo-se 12 milhões de crianças.
É claro que os sauditas não ficaram satisfeitos com a retirada do apoio. É interessante notar que a ação militar do Reino no Iêmen começou em 2015, contando com a aprovação do governo Obama, de quem Biden era vice-presidente. Mas, oficialmente, o Reino declarou estar comprometido na busca de uma solução política para o conflito, que na verdade é mais um campo de sua disputa geopolítica regional com o Irã, patrocinador dos Houthis.
Isso nos remete ao Irã, e sua complicadíssima relação com os EUA. A Agência Internacional de Energia Atômica acaba de divulgar relatórios alertando que o país aumentou seus esforços de enriquecimento de urânio, instalando centrífugas novas e mais modernas em duas instalações nucleares diferentes. Este fato mostra que o Irã se afasta ainda mais do que havia sido pactuado no Acordo Nuclear de 2015, do qual o governo Trump se retirou em 2018. Com a volta das sanções econômicas que haviam sido levantadas pelo acordo, o Irã se sentiu liberado para descumprir abertamente os limites de enriquecimento de urânio previstos no pacto.
E esse é o nó górdio que a administração Biden tem que desatar. Retomar o pacto nas condições anteriores talvez seja impossível no momento. Já um pacto em novas bases, mais favorável aos interesses iranianos, deixariam os EUA em uma difícil situação com seus principais aliados na região, especialmente Israel.
Com tantos e tão complexos desafios, um desponta como preferencial em razão da facilidade de atuação, dado seu apelo mundial: a promoção da agenda ambiental, de enfrentamento das mudanças climáticas e do aquecimento global. Creio ser por aí que a administração Biden vai iniciar suas mais importantes ações no campo internacional.
O que esperar da política internacional em 2021?
O ano que se encerrou demonstrou da forma mais difícil que o inesperado está a nos espreitar, modificando a realidade, interrompendo planos, provocando adaptações, causando perplexidades, trazendo medo e exigindo reação.
Apesar de vários alertas e estudos predizerem a possibilidade e os efeitos potencialmente catastróficos de uma pandemia, ninguém estava prestando atenção nisso e a Covid-19 pegou a todos de surpresa.
Bem, 2021 começou e as surpresas continuaram. Não ultrapassamos ainda a primeira quinzena do ano e o Congresso norte-americano foi invadido por uma turba e o Presidente Trump sofre um inédito segundo processo de impeachment a uma semana de passar o cargo.
Tudo isso demonstra que tentar antecipar acontecimentos é uma tarefa arriscada. Mas, baseados nos indícios disponíveis é possível, pelo menos, selecionar alguns assuntos internacionais sobre os quais devemos concentrar nossa atenção.
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Nesse cenário, os rumos que serão dados à política externa norte-americana merecem destaque. No governo Biden, espera-se um retorno ao multilateralismo, com o país buscando legitimar suas ações sob o respaldo de entidades como a ONU, OTAN, OMC etc. Mas, para isso, o país terá que reconquistar muito espaço perdido nesses organismos, como o caso da Organização Mundial de Saúde, claramente sob influência preponderante da China, demonstra.
Aliás, o relacionamento dos EUA com a China deveria ser um foco primordial de atenção. Nesse caso, não se espere grandes modificações no ambiente de confrontação geopolítica, com os EUA tentando conter a crescente influência da China, enquanto os chineses buscam expandir seu poder e prestígio em escala mundial. Um exemplo interessante dessa tentativa de expansão será notada na maior presença de produtos culturais chineses disponíveis para consumo no ocidente, como produções cinematográficas, livros, reportagens e exposições divulgando a cultura do país. Seremos definitivamente apresentados ao softpower chinês.
Será, ainda, interessante observar a assertividade de sua política externa e, no campo interno, o completo domínio de Xi Jinping sobre a máquina partidária. É provável que acompanhemos o acelerado fim da política um país dois sistemas, com Hong Kong tendo cada vez menos autonomia. A independência de facto de Taiwan continuará sendo um grande aborrecimento para Beijing, mas também uma oportunidade para o governo estimular o crescente nacionalismo chinês. As questões referentes ao tratamento que o país concede a minoria étnica dos uigures, na província de Xinjiang, e aos tibetanos, certamente aparecerá nos noticiários. As questões fronteiriças com a Índia, que em 2020 levaram a confrontos com mortes de militares que redundaram em uma ainda maior militarização dos dois lados da fronteira, além da expansão chinesa em direção ao Mar do Sul da China, são questões que também possuem o potencial de iniciar crises.
O Irã é outro foco de atenção. Joe Biden declarou, em campanha, que seu governo retornaria ao acordo nuclear de 2015, do qual Trump retirou os EUA em 2018. Entretanto, essa retomada não será simples. A realidade hoje é outra, com as tensões entre os dois países em um nível muito mais elevado, especialmente em razão da morte do general iraniano Qassem Soleimani, e da recente decisão do país de voltar a enriquecer urânio ao nível de 20%. A realidade geopolítica regional também se modificou: os iranianos rivalizam cada vez mais com árabes e israelenses, tornando quaisquer negociações muito mais complicadas. Aliás, um ataque a algum alvo norte-americano, árabe ou israelense, por iranianos ou seus proxies, em vingança pela morte de Soleimani, não seria uma surpresa em 2021.
As mudanças climáticas também se manterão no foco em 2021, com repercussões para a pauta ambiental. As pressões da comunidade internacional e da opinião pública, especialmente sobre países em desenvolvimento como o Brasil, se manterão. O derretimento do Oceano Ártico intensificará a disputa geopolítica naquela área, em razão da crescente utilização comercial e militar das rotas marítimas naquele oceano. 2020 foi o ano em que foi batido o recorde de viagens atravessando a Rota Norte, que encurta consideravelmente as distâncias entre o norte da Europa e o Oceano Pacífico. A Rússia, em razão disto, voltou suas atenções para o Ártico.
Mas a atenção dos russos não estará voltada somente para o Norte. Espera-se a continuidade de sua atuação na África e na Síria, além do leste da Europa, Cáucaso e Ásia Central. Putin manterá sua política externa voltada para reconstruir o que ele considera ter sido perdido com o desmoronamento da antiga União Soviética. Para isso o país manterá sua forte atuação também no ambiente cibernético. Em 2021 veremos muitos casos de ataques cibernéticos a empresas e governos do ocidente, que serão atribuídos a “hackers russos”.
Muitos outros pontos de atenção poderiam ser levantados: a Coreia do Norte e seus lançamentos provocativos de mísseis; o Brexit e suas consequências para o Reino Unido e a Europa; a crise venezuelana a afetar o cenário sul-americano; e, finalmente, o desenlace da crise mundial da Covid-19 e a efetividade das vacinas, com todas as suas repercussões sociais e políticas.
Não vai faltar assunto em 2021.
UM ANO INTENSO NO ORIENTE MÉDIO
O ataque que matou Qassim Suleimani foi o ápice de uma escalada de tensões entre os dois países, que se desenrolaram ao longo dos dois anos anteriores. Em 2018, os Estados Unidos retiraram-se do Joint Comprehensive Plan of Action (JCPA), acordo assinado em 2015 com o Irã, a Rússia, a China, o Reino Unido, a França e a Alemanha, sob a alegação de que os iranianos desrespeitavam os termos do acordo que havia sido celebrado justamente para regular a atividade nuclear iraniana. A partir de então os Estados Unidos intensificaram suas sanções econômicas contra o Irã, que, em retaliação, promoveu uma escalada das tensões no Golfo Pérsico, com uma série de ações militares de pequeno porte contra navios petroleiros de diferentes nacionalidades que passavam pelo Estreito de Ormuz e com ataques e ações de sabotagem contra alvos árabes e norte-americanos no Oriente Médio.
Em agosto e setembro os israelenses normalizaram as relações diplomáticas com os Emirados Árabes Unidos e com o Bahrein, por meio dos chamados Acordos de Abraão, para grande frustração dos palestinos. Assim, os dois países se juntaram ao Egito e à Jordânia, compondo um grupo de nações árabes que formalmente aceitam a presença de Israel como um igual no sistema internacional.
Esse movimento em prol da paz entre árabes e israelenses, que já foram à guerra em quatro oportunidades entre 1948 e 1973, foi uma vitória para a política externa norte-americana, uma vez que isola os iranianos, que veem os países do Golfo se aproximarem de seus inimigos israelenses. Mas, evidentemente, beneficia mutuamente tanto os países árabes quanto Israel.
As vantagens para os Emirados Árabes Unidos e o Bahrein se concentram principalmente nas trocas comerciais e nas relações diplomáticas. Mas para a Arábia Saudita as vantagens vão muito além. São um xeque no xadrez geopolítico regional. Ao se aproximarem de Israel, os árabes passam a contar com um poderoso aliado regional contra o Irã, país com quem disputam a posição de liderança dentre os países islâmicos e contra os quais esse país atualmente trava uma guerra por procuração no Iêmen. Israel, por sua vez, sai de um isolamento regional que persiste há décadas, isola os palestinos e ganha aliados contra o inimigo Irã, além de novas oportunidades comerciais e mercados.
No último dia 22 de novembro, um domingo, mais um movimento de aproximação entre árabes e israelenses surpreendeu a região e o mundo. O primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, encontrou-se secretamente com o príncipe herdeiro e atual homem forte da Arábia Saudita, Mohammad bin Salman. O encontro não foi confirmado por nenhum dos participantes, mas o pouco esforço para escondê-lo denota claramente a intenção de que ele se tornasse público.
Nos dias seguintes, 23 e 25 de novembro, a milícia houthi do Iêmen – facção apoiada pelo Irã na guerra civil daquele país – realizou ataques contra dois alvos na cidade costeira saudita de Jidá: um ataque com mísseis Quds-2 contra instalações da petroleira Aramco e outro que teve como alvo um petroleiro grego que carregava num terminal da mesma empresa.
Até que, na sexta-feira, dia 27, o principal cientista nuclear iraniano, Mohsen Fakhrizadeh, foi emboscado e morto na cidade de Absard, 70 km a leste de Teerã, mesmo estando acompanhado por vários guarda-costas. Imediatamente os iranianos acusaram israelenses e norte-americanos de serem os responsáveis pelo assassinato. Mohsen Fakhrizadeh era uma espécie de símbolo do programa nuclear iraniano. Apesar disso, é pouco provável que o assassinato de um único cientista tenha efeito significativo em retardar um programa que já está em andamento há vários anos.
Mas uma retaliação iraniana já foi anunciada e pode ser esperada. Ela poderá vir por intermédio de seus proxies, as milícias houthis ou o Hezbollah, em ações no Golfo Pérsico ou mesmo em atentados contra alvos israelenses ou norte-americanos em outras partes do mundo.
O próximo ano será definidor para os rumos geopolíticos do Oriente Médio. Israel, Arábia Saudita e Irã estarão muito atentos ao novo governo norte-americano, que prometeu na campanha eleitoral retornar ao JCPA. Esse movimento será decisivo para uma aproximação definitiva entre a Arábia Saudita e Israel, contra o Irã. No Golfo Pérsico, é provável que 2020 não termine em 31 de dezembro…
MUDANÇAS NA GEOPOLÍTICA DO ORIENTE MÉDIO
Árabes e israelenses já foram à guerra várias vezes desde 1948, ano da criação de Israel. A recorrência dos conflitos armados e a chamada Questão Palestina mantiveram a rivalidade entre eles como a principal questão geopolítica do Oriente Médio na segunda metade do século 20 e no início deste século 21. Entretanto, acontecimentos recentes indicam que essa situação começa a mudar.
No intervalo de cerca de um mês, em acordos intermediados pelo governo norte-americano, que foram batizados de “Acordos de Abraão”, os governos de Israel, Emirados Árabes Unidos e Barein celebraram tratados de normalização das relações diplomáticas entre os dois países árabes e Israel. As duas nações juntaram-se, dessa forma, ao grupo que até então era composto por apenas outros dois países: Egito e Jordânia, como nações árabes que mantém relações diplomáticas normais com os israelenses.
É evidente que um acordo desse tipo pode ser comemorado, afinal, é mais uma oportunidade para a paz na região. Além da troca de embaixadores, da ativação de voos diretos e da intensificação das trocas comerciais, há vários outros campos onde pode haver oportunidades de integração com benefícios mútuos, como turismo, agricultura, ensino e pesquisa, cultura, tecnologia, telecomunicações e muitos outros.
Mas, nem todos compartilham dessa opinião. Os mais insatisfeitos são os palestinos, que consideraram o acordo uma traição à sua causa. O ministro das relações exteriores da Autoridade Palestina, Riad Malki, declarou que o acordo desconsiderava a decisão da Iniciativa Árabe para a Paz, segundo a qual a normalização das relações árabe-israelenses somente seria aceitável em troca do retorno das fronteiras à situação anterior à Guerra dos Seis Dias, de 1967, ou seja, com a desocupação israelense dos territórios ocupados na Cisjordânia e com a capital da Palestina em Jerusalém Oriental.
O fato de a Liga Árabe ter se recusado a condenar os acordos também frustrou os palestinos, porque indica que outros países do Golfo Pérsico, como Omã, ou mesmo a Arábia Saudita, podem, no futuro, tomar o mesmo caminho. Aliás, é certo que os Emirados Árabes Unidos e o Barein só decidiram por aceitar o acordo com Israel por contarem com a anuência da Arábia Saudita, potência regional com muita influência sobre os governos de ambos os países.
O Irã também declarou forte contrariedade, chamando os Acordos de Abraão de “ato vergonhoso que permanecerá para sempre na memória dos palestinos e das nações livres do mundo”. Gigante regional não árabe, cuja maioria da população é persa, o Irã trava uma guerra por procuração contra a Arábia Saudita no Iêmen desde 2015, apoiando a milícia xiita Houthi contra o governo iemenita que, por sua vez, é apoiado pelos sauditas. Além disso, a assertividade iraniana na região, caracterizada pelo apoio ao governo xiita do Iraque, ao governo do Catar, ao grupo Hezbollah, no Líbano, ao governo de Bashar al Assad, na Síria, ao Hamas, na Faixa de Gaza, bem como à diversas milícias regionais xiitas, é motivo de desconfiança da parte dos sauditas, que veem sua posição de liderança no mundo árabe cada vez mais ameaçada.
Assim, fica claro que a disputa entre Arábia Saudita e Irã pela liderança regional contribuiu, com grande peso, para que os acordos acontecessem. Do ponto de vista dos sauditas, contar com o apoio político, militar e de inteligência, mesmo que velado, dos israelenses, pode ser decisivo.
Os israelenses, por sua vez, ao se aproximarem dos sauditas, obtêm uma grande vitória geopolítica, pois tiram do centro do palco a questão palestina e empurram para a ribalta a rivalidade entre Irã e Arábia Saudita, que passa a ser considerada, pela comunidade internacional e, principalmente, pelos países da região, o principal problema de segurança do Oriente Médio.
Os palestinos sentiram imediatamente o enfraquecimento do apoio árabe à sua causa. A normalização das relações diplomáticas entre Israel, Emirados Árabes Unidos e Barein serviu de estímulo para que as duas facções palestinas rivais, o Fatah, que controla a Cisjordânia, e o Hamas, que controla a Faixa de Gaza, buscassem um entendimento. Em uma reunião realizada em Istambul, na Turquia, seus representantes decidiram realizar eleições nos territórios palestinos em um prazo de seis meses, para escolha do presidente da Autoridade Palestina, bem como dos integrantes do legislativo e do Comitê Central da Organização para a Libertação da Palestina. Trata-se de uma tentativa de se buscar o consenso no âmbito dos próprios palestinos, que depois de mais de uma década de disputas internas, veem sua causa enfraquecida.
O Oriente Médio passa por aceleradas transformações, com os atores regionais ganhando cada vez mais proeminência. O frágil equilíbrio geopolítico regional, construído com base nas linhas fronteiriças desenhadas pelas potências europeias, está sendo desafiado. Sua reconstrução, em bases diferentes, não será fácil.