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A CRISE IRÃ X EUA

“A guerra não é meramente um ato de política, mas um verdadeiro instrumento político, uma continuação das relações políticas realizada com outros meios”

Clausewitz

Nem bem tínhamos terminado de desejar aos amigos um feliz 2020 quando, no terceiro dia do ano, tomamos conhecimento da ação militar dos EUA no Iraque, que causou a morte do General Qassim Suleimani, poderoso comandante da Guarda Revolucionária Iraniana. Parecia um mau presságio. O ano mal tinha começado e o mundo já estava por acabar, afinal, a 3.ª Guerra Mundial estaria por começar…

O futuro é, por definição, imprevisível. Mas a história das relações internacionais já nos ofereceu um enorme número de crises que, mal ou bem solucionadas, indicam que vamos sobreviver também a essa.

A ação militar norte-americana em que uma aeronave remotamente pilotada lançou mísseis sobre o comboio de viaturas onde estava o general Suleimani é o ponto até aqui culminante de uma série de acontecimentos na longa crise que caracteriza as relações entre Irã e EUA, desde a revolução islâmica que levou os aiatolás xiitas ao poder, em 1979.

O capítulo mais recente dessa crise foi iniciado em maio de 2018, quando os EUA se retiraram do acordo nuclear assinado em 2015 entre os dois países, Rússia, China, Reino Unido, França e Alemanha. Esse acordo relaxava as sanções econômicas impostas ao Irã em troca do compromisso do país de não desenvolver armamentos nucleares. A saída dos EUA do acordo redundou na imposição de uma nova série de sanções econômicas ao Irã, além da classificação, pelos norte-americanos, da Guarda Revolucionária Islâmica, a força militar que era comandada pelo general Suleimani, como “organização terrorista internacional”.

Os embargos afetaram seriamente a economia do Irã e o país resolveu, em 2019, adotar uma estratégia de escalada das tensões. Foi assim que, em maio desse ano, além de anunciar que retornaria a enriquecer urânio acima dos níveis permitidos pelo tratado de 2015, o Irã implementou – ou patrocinou – uma série de ações ofensivas: navios petroleiros em trânsito pelo Estreito de Ormuz foram sabotados, drones foram lançados contra oleodutos e instalações petrolíferas sauditas e, em 20 de junho, uma aeronave remotamente pilotada norte-americana foi abatida. As tensões entre os dois países se elevaram, mas os EUA evitaram uma retaliação militar.

Em julho, o Irã apreendeu um petroleiro do Reino Unido enquanto passava pelo Estreito de Ormuz. Em setembro, novamente drones atingiram instalações petrolíferas sauditas, dessa vez com grande impacto sobre a produção de petróleo do país. Ao mesmo tempo, ao longo de todo o ano de 2019 os EUA foram impondo ainda mais sanções sobre atividades econômicas específicas e também sobre pessoas físicas, no caso, os principais líderes iranianos e seus familiares.

Finalmente, no mês de dezembro se deram os fatos que seriam o estopim dos últimos acontecimentos. No dia 27, uma ação do grupo terrorista Kataib Hezbollah contra uma base militar iraquiana em Kirkuk resultou na morte de um cidadão americano, além de ferir militares e civis iraquianos. Os EUA acusaram o Irã de apoiar os terroristas. Em retaliação, os EUA atacaram posições do grupo no próprio Iraque e na Síria. Cerca de 25 terroristas foram mortos e algumas dezenas, feridos. Em 31 de dezembro a embaixada dos EUA em Bagdá foi atacada e invadida por grupos paramilitares iraquianos pró-Irã. No dia 3 os EUA desencadearam o ataque que matou o general Suleimani.

A descrição da série de acontecimentos acima serve para tentarmos desenhar a manobra de crise visualizada por cada uma das partes em conflito.

De um lado, os EUA, ao imporem os embargos, tentam em primeiro lugar dobrar o regime iraniano, obrigando-o a aceitar termos mais duros do que os que eram previstos no acordo assinado em 2015, considerados insuficientes pelo governo Trump para manter a estabilidade regional. Em segundo lugar, pela pressão econômica, busca enfraquecer um governo que é francamente contrário aos seus interesses no Oriente Médio, rival de árabes e israelenses e que busca se impor como uma potência regional. Ao eliminarem o general Suleimani, os EUA demonstram claramente o limite para as ações iranianas: a morte de norte-americanos ou o ataque a instalações do país terão como resposta uma ação militar.

De outro lado, os iranianos mostram que podem, por si próprios ou por intermédio de grupos que agem “por procuração”, causar grandes transtornos econômicos, especialmente por ações no Golfo Pérsico, no Estreito de Ormuz e no Golfo de Omã, por onde transita grande parte do petróleo mundial. Ou mesmo em ataques à Arábia Saudita, aos países do Golfo Pérsico ou a Israel. Assim esperam convencer a comunidade internacional a pressionar os EUA a abrandarem os embargos comerciais, ao mesmo tempo que ampliam sua influência no Oriente Médio.

Volto à citação de Clausewitz. A guerra só é travada quando um governo se convence de que ela é um meio eficaz para que se alcance algum objetivo político. E embora a História mostre casos em que guerras se iniciaram quase por acaso, não creio que nem EUA nem Irã tenham algum objetivo político importante a ser conquistado com um conflito de alta intensidade, ainda mais levando em consideração as graves consequências que certamente sofreriam suas populações e seus governos. Já ações pontuais e restritas, como as que vêm sendo desencadeadas até aqui, atenderiam a cada uma das partes na busca de seus objetivos estratégicos.

Assim, não creio que haja mudança significativa no panorama da crise. O Irã deve retaliar, vingando a morte de seu general, com alguma ação semelhante às até aqui praticadas. Os EUA também devem manter sua estratégia, acreditando que as sanções econômicas e a ameaça do emprego da força impeçam o Irã de prejudicar seus interesses na região.




TENSÕES NO GOLFO PÉRSICO

O Irã é um país governado, desde a Revolução de 1979, por religiosos da corrente islâmica xiita. E, especialmente após a chamada Primavera Árabe de 2011, posiciona-se em defesa dos grupos xiitas de todo o Oriente Médio, normalmente contrapondo-se à outra corrente do islamismo: os sunitas. Assim, o país apoia os Houtis no Iêmen, país que enfrenta uma guerra civil, considerada pela ONU “a maior crise humana da atualidade”. Também se posiciona em favor de reformas políticas no Bahrein, onde uma maioria xiita é governada por uma monarquia sunita. A Guarda Revolucionária iraniana apoiou decisivamente o regime de Bashar Assad na Síria, contra a oposição armada sunita, além de sustentar grupos xiitas no interior do Iraque, país que está completamente fragmentado desde a queda de Saddam Hussein.

A Arábia Saudita, país governado por uma monarquia wahabista, uma corrente sunita, disputa com o Irã a liderança regional. A relação entre os dois países se deteriorou significativamente nos últimos anos, especialmente após a execução do clérigo xiita Nimr al-Nimr, na Arábia Saudita, e em razão da guerra civil que vem sendo travada no Iêmen, uma verdadeira “guerra por procuração”, com cada um dos países apoiando um dos lados no conflito.

O governo de Israel considera que o Irã representa uma constante ameaça ao país, especialmente em razão do apoio dos iranianos ao grupo Hezbollah. O Primeiro Ministro Netanyahu já afirmou que Israel não aceitará que o Irã se torne uma potência nuclear.

Os interesses geopolíticos que cercam a região do Golfo Pérsico são enormes. Por ali, transitam as riquezas do Iraque, Kuwait e Emirados Árabes, além do Bahrein e do Catar. O território do Irã constitui-se em verdadeira ponte a unir o Mar Cáspio ao Oceano Índico.

É nesse contexto complexo e conturbado que as tensões no Golfo Pérsico mais uma vez se elevam, e o espectro da guerra volta a rondar a região. No dia 13 de maio, a Arábia Saudita denunciou a sabotagem de dois de seus navios petroleiros no Estreito de Ormuz. Apenas dois dias depois, Aeronaves Remotamente Pilotadas, carregadas com explosivos, atingiram poços de petróleo perto de Riad, a capital da Arábia Saudita. Os atos terroristas foram assumidos pelos Houtis, grupo Iemenita apoiado pelo Irã.

Reagindo aos acontecimentos, o Secretário de Estado dos EUA, Mike Pompeo, declarou que milícias xiitas no Iraque, patrocinadas pelo Irã, estariam ameaçando tropas americanas estacionadas naquele país. Disse ainda que, caso os militares fossem atacados, os EUA se sentiriam obrigados a reagir, sem necessidade de coordenar as ações com o governo iraquiano. Ao mesmo tempo, a Força-Tarefa liderada pelo porta-aviões USS Abraham Lincoln, reforçada por bombardeiros B-52, foi enviada ao Golfo Pérsico. Mesmo assim, exatamente um mês depois, no dia 13 de junho, dois navios petroleiros voltaram a ser atacados no Golfo de Omã, desta vez atingidos por minas. Mais uma vez, os EUA responsabilizaram o Irã pelo ataque.

Na última quinta-feira, ocorreu um incidente ainda mais grave do ponto de vista militar: o Irã abateu uma Aeronave Remotamente Pilotada RQ-4 Global Hawk, da Força Aérea norte-americana. Os iranianos alegam que a aeronave de reconhecimento estava no espaço aéreo do país. Os EUA negam, alegando que voava em espaço aéreo internacional.

Este fato agrava as tensões, que atingem um ponto culminante de uma escalada que já vem desde o ano passado, quando os EUA se retiraram do acordo multilateral, estabelecido em 2015, em Viena, que impunha limites ao programa nuclear iraniano em troca do alívio das sanções econômicas. Desde então, os EUA reimpuseram uma série de sanções unilaterais que afetaram transações financeiras, importações de matérias primas, inclusive petróleo, o setor automotivo e a aviação comercial. Apesar dos outros países integrantes do acordo, Reino Unido, França, Alemanha, China e Rússia, terem se negado a acompanhar as sanções norte-americanas, mantendo o respaldo ao tratado em 2015, o fato é que os embargos acabam por afetar inclusive os negócios feitos por eles, já que as empresas e países podem sofrer retaliações norte-americanas caso comerciem com Teerã.

Depois de aguardar por um ano por uma solução que contornasse os embargos americanos, no início de maio, ou seja, coincidentemente com o início dos diversos incidentes envolvendo os navios petroleiros, o Irã resolveu dar um ultimato aos europeus e chineses. Anunciou que suspenderia imediatamente o trato de limitar os estoques de água pesada e urânio enriquecido e que, se em sessenta dias os demais países signatários do acordo não encontrassem soluções para driblar as sanções norte-americanas, renunciaria a outros compromissos limitantes de suas capacidades nucleares, acordados em 2015.

Vê-se que a estratégia iraniana parece ser, por um lado, pressionar os países europeus e a China, para que estes, por sua vez, atuem no sentido de fazer os EUA voltarem ao acordo multilateral. Por outro lado, as ações contra os petroleiros também parecem ser uma tentativa de forçar os norte-americanos a se sentarem à mesa de negociações.

Mas se há um ensinamento que o estudo da história militar apresenta recorrentemente é o de que quando as tensões escalam, as coisas podem muito facilmente sair do controle. É o que parece ser o caso do ataque iraniano à ARP Global Hawk.

Imediatamente após o ataque, o Presidente Trump foi ao Twitter e escreveu que o Irã tinha cometido um “erro muito grande”. Em seguida, talvez percebendo que o cheiro de pólvora já estava perigosamente forte, atenuou a retórica afirmando que não acreditava que o ataque tivesse sido proposital.

Os próximos acontecimentos dependerão da habilidade dos envolvidos na condução da crise. O ataque à aeronave norte-americana complicou muito uma situação que já era extremamente complexa. Qualquer fagulha pode acender a fogueira da guerra.