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A LIDERANÇA DO GENERAL JIM MATTIS

O General Fuzileiro Naval norte-americano Jim Mattis publicou recentemente um livro, em coautoria com Bing West: Call Sign Chaos – Learning to lead[1]. A obra ainda não foi traduzida para o português. Espero que alguma editora se interesse, porque a leitura realmente vale a pena.

James Mattis nasceu em 1950. Em 1971, formou-se em História na Universidade Central de Washington. Ao mesmo tempo em que cursava a Universidade, alistou-se nos Fuzileiros Navais, frequentando o ROTC, um programa que forma oficiais para as Forças Armadas norte-americanas.

Assim, ao formar-se, Mattis foi declarado oficial Fuzileiro Naval e, em 1972, iniciou sua carreira, comandando pelotões de fuzileiros. É por essa fase de sua vida que o autor inicia o livro, narrando a experiência de sua vida militar.

A obra é dividida em três partes. A primeira, que trata da liderança direta, é o relato das experiências mais importantes de sua carreira até o posto de Brigadier General[2]. Essa fase inclui o comando de um Batalhão na Guerra do Golfo, em 1991 e de uma Brigada na campanha do Afeganistão, em 2001.

A segunda parte do livro trata da liderança organizacional[3]. Nela, Mattis descreve o período que vai de sua promoção a Major General[4], em 2002, passando por seu retorno ao Iraque, na 2ª Guerra do Golfo, no comando da 1ª Divisão dos Fuzileiros Navais[5], até o período em que esteve à frente do Comando Conjunto Norte-americano (JFCOM), já como General de 4 estrelas, o mais alto posto da hierarquia militar.

Na última parte do livro, tratando da liderança estratégica, o autor descreve sua experiência à frente do Comando Central (CENTCOM), comando conjunto norte-americano que é responsável, na organização daquele país, por uma área que vai do Egito ao Paquistão, Afeganistão e repúblicas centro-asiáticas, englobando 20 países. Essa é a parte do livro na qual o autor se debruça sobre o terceiro nível de liderança: o nível estratégico.

Os primeiros anos no Corpo de Fuzileiros ensinaram a Mattis que a liderança está baseada em três fundamentos. Três “C”: competência, cuidado e convicção.[6] Ao tratar da competência, o general recomenda ao líder que seja brilhante no básico. Analise seu próprio desempenho. Identifique suas deficiências e trabalhe para melhorar. Não corre 3 milhas em 18 minutos? Treine mais. Não é um bom ouvinte? Discipline-se. Não consegue solicitar um tiro de artilharia com facilidade? Adestre-se. Seus homens contam com a sua competência. O segundo fundamento é: cuide de seus subordinados. Conheça-os individualmente. Eles são jovens e cada um tem seus próprios objetivos. Quando seus subordinados souberem que você verdadeiramente se importa com eles, então você poderá falar francamente quando eles te desapontarem. Acerca desse “cuidado”, no livro há uma citação do Marechal Slim, feita durante a Segunda Guerra Mundial, que Mattis assinaria: “Como oficiais, vocês não vão comer, nem beber, nem dormir ou tampouco se sentar até que vocês tenham pessoalmente se assegurado de que seus homens tenham feito tais coisas. Se vocês fizerem isso, eles os seguirão até o fim do mundo. E se vocês não fizerem, terão que se explicar para mim.” O Terceiro fundamento é a convicção. Seus pares e subordinados perceberão rápido quais são suas convicções. Crie suas regras e – mais importante – cumpra-as. Lembre-se que como oficial você deve vencer apenas uma batalha: pelos corações de seus subordinados. Ganhe seus corações e eles irão vencer as batalhas.

O livro está recheado de citações que vão de Homero ao General Grant, passando por Napoleão e inúmeros outros. Mattis é um leitor voraz e em diversas passagens reforça a importância de uma sólida e vasta cultura militar. “Se você não leu centenas de livros, é funcionalmente analfabeto e será incompetente, porque apenas suas experiências pessoais não são amplas o suficiente para sustentá-lo”. Ele afirma ainda que o homem luta há dez mil anos e seria uma tolice não tirar proveito dessa experiência acumulada.

Mattis ressalta ainda a importância de se evitar um estilo de liderança demasiadamente centralizador, que defina as ações dos subordinados até os detalhes. O ideal seria que o líder em combate estabelecesse com clareza a sua intenção e o “estado final desejado”, o seja, quais os objetivos devem ser atingidos e com qual finalidade. Já o “como fazer”, deve ser deixado a cargo dos comandos subordinados. Caso contrário, a iniciativa será tolhida e os subordinados hesitarão, solicitando orientações a cada percalço ou mudança de situação. Mas, para que isso funcione, comandantes e subordinados devem possuir um entendimento comum de como deverá se cumprir a missão. E isso só se obtém com o compartilhamento das informações relevantes. O líder deve constantemente se perguntar: O que eu sei? Quem precisa saber? Eu já lhes disse?

A experiência internacional de várias campanhas no Oriente Médio, depois na OTAN e no CENTCOM deram ao General Mattis uma visão clara da grande importância do trabalho harmonioso entre as diferentes Forças e entre diferentes aliados. Ele cita Churchill a esse respeito: “Só há uma coisa pior do que combater com aliados, que é lutar sem aliados.” Nesse sentido, há outra passagem interessante: “Eu não me importo em quão brilhante operacionalmente você é. Se você não cria um ambiente harmonioso, baseado na confiança entre as diferentes Forças Armadas, entre aliados estrangeiros e corpos diplomáticos, você precisa ir para casa, porque seu estilo de liderança é obsoleto.”

Muitas passagens, experiências e citações tornam a leitura do livro muito agradável, indispensável mesmo, na minha opinião, para o profissional da carreira das armas. Mas o livro termina com a despedida do General Mattis do serviço ativo, em 2013. Nada fala acerca de sua experiência como Secretário de Defesa, no Governo Trump, entre novembro de 2016 e janeiro de 2019, quando pediu demissão após a decisão do presidente norte-americano de retirar as tropas do Afeganistão. Ainda assim, quem ler o livro entenderá perfeitamente seus motivos.

[1] Indicativo CHAOS – Aprendendo a Liderar. (Indicativo é o codinome usado por alguém para ser identificado quando fala ao rádio, em uma rede militar de comunicações.

[2] Nos EUA, Brigadier General, é o Oficial General de uma estrela. Não há equivalência nas Forças Armadas Brasileiras.

[3] Executive leadership, em inglês. Escolhi a tradução “organizacional” por ser o termo equivalente na doutrina do Exército Brasileiro.

[4] General de duas estrelas. General de Brigada, no Brasil.

[5] 1st Marine Division

[6] Competence, caring, conviction.




UM MUNDO MULTIPOLAR

O general fuzileiro naval James Mattis, secretário de Defesa dos Estados Unidos, esteve em visita à Escola Superior de Guerra, no Rio de Janeiro, em 14 de agosto. Foi apenas uma das escalas do militar da reserva em sua viagem à América do Sul, que também incluiu a Argentina, o Chile e a Colômbia. Em sua palestra para os alunos do Curso de Altos Estudos, Política e Estratégia (Caepe), o experiente soldado, comandante de tropas nas guerras do Iraque e do Afeganistão, destacou que selecionara três prioridades no desempenho de sua função, equivalente à de Ministro da Defesa na estrutura brasileira.

A primeira prioridade seria aumentar a letalidade dos militares americanos, de modo a aumentar também a dissuasão em face de possíveis agressores. A segunda seria ampliar e fortalecer o relacionamento das Forças Armadas norte-americanas com as forças dos países aliados. E a terceira prioridade, melhorar as práticas gerenciais e o trato com o dinheiro público no âmbito do Departamento de Defesa.

Neste artigo, vou me ater às duas primeiras prioridades citadas. A primeira alinha-se perfeitamente com o movimento feito pelos EUA no sentido de redirecionar sua estratégia de defesa e reestruturar suas Forças Armadas. Após um período em que se dedicou quase que exclusivamente à guerra assimétrica, enfrentando oponentes que de forma alguma poderiam contrapor-se ao poderio econômico, bélico e industrial norte-americano, os EUA agora reconhecem que, na atual realidade de distribuição multipolar do poder, podem ser desafiados por oponentes com capacidade militar equivalente ou mesmo, em alguns aspectos, superior. Estamos falando da Rússia e da China.

Para fazer face a esse desafio os EUA reestruturam suas Forças Armadas. Recentemente foi criado um Comando para o Exército do Futuro, focado no desenvolvimento de novas capacidades e na adoção de novas tecnologias para o Exército. Isso para não falar na anunciada e ainda não muito clara criação da chamada Força Espacial, que seria mais uma força armada norte-americana.

Quando falou da segunda prioridade, o general Mattis deixou clara a finalidade de sua visita. Estava tratando justamente de tentar “ampliar e fortalecer o relacionamento com os países aliados”. Fez referência a um valor caríssimo aos militares de todo o mundo: a camaradagem e a amizade forjada nos campos de batalha. Citou o fato histórico da aliança que uniu brasileiros e americanos nos campos de batalha da Itália durante a 2.ª Guerra Mundial e lembrou o fato de sermos, Brasil e Estados Unidos, as duas maiores democracias do Ocidente. Elogiou a Escola Superior de Guerra e lembrou a presença constante de estudantes americanos na instituição.

Falou ainda sobre o que entende ser o objetivo de nações que têm “valores comuns” e “interesses compartilhados”: a construção de um hemisfério que seja uma “ilha de democracia e prosperidade num mundo instável”. A transcrição do discurso do general Mattis pode ser encontrada no site da ESG.

O movimento da diplomacia militar norte-americana em direção aos principais países sul-americanos coincidiu com um fato diplomático significativo. Como se sabe, a China considera Taiwan uma província rebelde e não aceita que os países mantenham relacionamento diplomático com o governo da ilha. Fazer essa escolha implica necessariamente abrir mão de ter relações diplomáticas com a China.

Pois bem, praticamente ao mesmo tempo que Mattis visitava a América do Sul, na América Central, El Salvador, que mantinha relacionamento diplomático com Taiwan, mudou de posição e passou a reconhecer a República Popular da China. Atualmente, apenas 16 países no mundo, além do Vaticano, ainda optam por se relacionar com Taiwan, ao invés da China, a grande maioria da América Central e do Caribe – Belize, Guatemala, Haiti, Honduras, Nicarágua, Santa Lúcia e São Vicente e Granadinas são exemplos. O movimento de El Salvador foi feito pouco tempo depois de o Panamá e a República Dominicana terem feito o mesmo. É desnecessário salientar quão significativo do ponto de vista geopolítico é a balança mudar de lado justamente nesses países localizados geograficamente tão perto dos EUA.

O aumento da influência econômica chinesa nas Américas do Sul e Central é evidente. As trocas comerciais entre o gigante asiático e a América Latina e o Caribe chegaram a US$ 244 bilhões ano passado, duas vezes mais que uma década antes, de acordo com o Global Development Policy Center, da Boston University. Desde 2015 a China é o principal parceiro comercial da América do Sul. As vendas de equipamentos militares também são crescentes. Destaca-se a Venezuela, mas várias outras nações das América do Sul e Central e do Caribe têm adquirido diversos tipos de materiais de defesa dos chineses.

Isso ao mesmo tempo que do outro lado do mundo a “Nova Rota da Seda” (Belt and Road Initiative, na tradução chinesa para o inglês), a principal ação de relações exteriores do governo Xi Jinping, ganha impulso. Trata-se de uma iniciativa que visa a fortalecer os laços econômicos com os países da Ásia, África e Europa, o que poderia, em tese, criar uma dependência econômica que alinharia esses países à China e aos seus interesses geopolíticos.

O mundo vive uma era de crescentes riscos para a segurança e nós deveríamos estar atentos aos “tombos dos dados” que podem afetar-nos como país, conforme bem destacou o professor Celso Lafer em artigo neste espaço, em 19 de agosto. E como ele lembrou, citando Hanna Arendt, “somos do mundo, e não apenas estamos no mundo”.

As disputas geopolíticas estão sendo travadas à luz do dia e nos afetam. O Brasil, por seu tamanho, sua importância, sua História e seu destino, não pode ficar a reboque dos acontecimentos.