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A Europa desperta: a ameaça de Trump e o renascimento da Defesa europeia

O ex-presidente e virtual candidato à presidência pelo Partido Republicano nas próximas eleições dos Estados Unidos, Donald Trump, provocou uma onda de choque política entre os aliados europeus da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN). Em um discurso de campanha, Trump declarou ter advertido o líder de “um importante país europeu” que, caso falhasse no pagamento de suas obrigações financeiras para com a Aliança, ele, na qualidade de presidente dos EUA, recusaria defender o país europeu contra uma potencial invasão russa. Trump inclusive sugeriu que, nesse caso, poderia incentivar a Rússia a “fazer o que bem entendesse”.

Ao mencionar o descumprimento das obrigações financeiras, Trump se refere à diretriz da Aliança, criada em uma reunião de cúpula realizada no País de Gales, em 2014, que estabelece a meta de 2% do PIB para os investimentos de Defesa de cada um dos 31 membros da organização. O acordo de 2014 previa que os países deveriam se esforçar para atingir a meta em dez anos, ou seja, até este ano de 2024. Em 2014, apenas três Estados alcançavam aquele patamar. Em 2023, esse número já havia subido para onze. Jens Stoltenberg, Secretário Geral da OTAN, lamentou as palavras de Trump, afirmando que “qualquer sugestão de que os aliados não se defenderão mutuamente mina toda a nossa segurança, incluindo a dos EUA, e aumenta os riscos para os soldados americanos e europeus”. Disse ainda que, ao que tudo indica, no final deste ano, dezoito países terão atingido a meta de investimento em Defesa.

A ameaça de Trump reverberou ainda mais porque neste final de semana aconteceu a conferência anual de segurança de Munique, reunindo os ministros da defesa da Europa. A repercussão foi parar na capa da revista semanal alemã Der Spiegel, que pergunta se, dada a ameaça de Trump – e a real possibilidade de sua eleição – não estaria na hora dos europeus, especialmente a Alemanha, considerarem desenvolver a sua própria bomba nuclear.

Capa da Revista Der Spiegel. Edição de 17 Fev 2024

A promessa de assistência recíproca é a pedra angular da Aliança Atlântica. Está fundamentada no famoso artigo 5º, que determina que o ataque a um dos membros da organização “será considerado um ataque contra todos eles” e que, consequentemente, cada um deles tomará “as ações que julgar necessárias, inclusive o uso da força armada para restaurar e manter a segurança do Atlântico Norte”.

Ironicamente, na única vez em que o artigo 5º foi acionado nos 75 anos de existência da Aliança, não o foi por nenhum membro europeu, mas sim pelos EUA, após os ataques de 11 de setembro de 2001. Isso resultou no apoio efetivo da Aliança à guerra ao terror, incluindo às invasões do Iraque e do Afeganistão.

Entretanto, é inegável que Trump trouxe à tona uma realidade preocupante: os europeus se acostumaram a contar com o guarda-chuva dissuasório dos EUA, relegando perigosamente suas próprias capacidades de defesa a um segundo plano. Isso ficou especialmente patente no desabafo do general Alfons Mais, comandante do exército alemão, expressado no Linkedin, no dia em que os russos invadiram a Ucrânia. Disse o general[1]: “No meu 41º ano de serviço em tempos de paz, não teria pensado que teria de passar por uma guerra”. “E o Bundeswehr, o exército que tenho a honra de comandar, está mais ou menos de mãos vazias. As opções que podemos oferecer ao governo em apoio à aliança são extremamente limitadas.”

As palavras do general Alfons completarão dois anos no dia 24 de fevereiro. A guerra na Europa serviu como um duríssimo aviso e os europeus estão se mobilizando. Na conferência de Munique, várias declarações foram dadas nesse sentido. O chanceler alemão, Olaf Scholz, disse que a ameaça da Rússia à Europa é real e os países do continente precisam fazer muito mais para garantir a sua própria segurança. O primeiro-ministro dos Países Baixos, Mark Rutte, afirmou que a Europa deveria parar de reclamar de Trump, e se concentrar em aumentar os investimentos em defesa e “aumentar maciçamente a produção de armas”. O ministro da Defesa da Alemanha, Boris Pistorius, afirmou que seu país atingirá a meta este ano, pela primeira vez desde o fim da Guerra Fria, embora reconhecendo que isso pode não ser suficiente para a construção das capacidades de defesa necessárias.

A Europa vive um momento crucial em sua história. A crise de segurança no continente, representada pela ameaça russa e a possível escalada da guerra para outros países europeus convive com a perspectiva da eleição de Donald Trump à presidência dos EUA, que pode significar que o maior aliado pode vir a faltar em um momento crítico.

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Diante dessa conjuntura, é imperioso que a Europa reavalie sua dependência estratégica dos EUA e invista decisivamente na construção de suas próprias capacidades de defesa. Isso não significa abandonar a OTAN. Pelo contrário, a construção de uma autonomia europeia fortalecerá a Aliança.

Então, é de se esperar que assistamos, já em 2024 e nos próximos anos, a um aumento significativo dos investimentos europeus em Defesa, a um maior desenvolvimento de suas capacidades militares combinadas, ao fortalecimento da cooperação em inteligência e à promoção da indústria de Defesa, com a ampliação da produção de armas e munições, bem como o desenvolvimento de novas tecnologias bélicas.

Tudo isso vai trazer repercussões para os outros continentes, com o provável desencadeamento de uma corrida armamentista, no chamado Dilema de Segurança. Mas isso é assunto para um próximo artigo.

[1] https://www.linkedin.com/feed/update/urn:li:activity:6902486582067044353/

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A OTAN cuida de manter sua pólvora seca

A frase “Confie em Deus e mantenha a pólvora seca”, atribuída a Oliver Cromwell, político e militar inglês do século XVII, sugere que, embora a confiança na providência divina seja fundamental, a preparação e a ação humana desempenham papéis cruciais. Esta sábia lembrança ressalta a importância de que os homens estejam preparados tomem medidas práticas para enfrentar os desafios da vida, especialmente em tempos de conflito e incerteza.

Indubitavelmente, os tempos atuais, especialmente no contexto das Relações Internacionais, Estratégia e Geopolítica, caracterizam-se por uma notável incerteza e conflitualidade. Portanto, não é surpreendente que os líderes das potências mundiais – e aqueles mais conscientes dos riscos iminentes – estejam atentos à condição de seus arsenais, garantindo que “a pólvora esteja seca”.

Traduzindo-se a metáfora para as ações práticas da realidade, “manter a pólvora seca” implica assegurar que o aparato militar do Estado esteja plenamente operacional. No caso da OTAN, há evidências que indicam uma crescente preocupação em manter a Aliança como um instrumento de combate eficiente e eficaz, dessa forma percebido pela opinião pública ocidental mas também, e talvez principalmente, por seus principais adversários.

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Os investimentos em Defesa têm experimentado um aumento significativo em escala global. Segundo o Instituto Internacional de Pesquisa para a Paz de Estocolmo (SIPRI), a despesa militar global total registrou um incremento[1] de 3,7% em termos reais em 2022, alcançando um patamar recorde de 2,240 trilhões de dólares. Notavelmente, as despesas militares na Europa apresentaram o maior aumento anual em pelo menos 30 anos. Paralelamente, a OTAN anunciou recentemente um substancial incremento[2] de 12%, elevando seus investimentos para 2.03 bilhões de Euros até 2024. Esses números refletem uma clara resposta ao conflagrado ambiente geopolítico atual, destacando o comprometimento dos países membros da aliança em fortalecer suas capacidades de defesa e a prontidão para enfrentar os desafios emergentes.

Na próxima semana, a OTAN dará início ao que se tornará o maior exercício militar desde o término da Guerra Fria: o “Steadfast Defender”. As manobras militares sinalizam uma clara e renovada ênfase na preparação militar e na coordenação entre os países-membros, evidenciando a determinação da aliança em responder às ameaças percebidas. O Steadfast Defense contará com a participação de 90 mil militares, mais de 50 navios de guerra, aproximadamente 80 aeronaves e 1,1 mil veículos de combate. Destaque-se que o exercício simulará um conflito contra um “adversário de poder militar semelhante” à OTAN, sendo a Rússia o inimigo subentendido, embora não explicitamente nomeado. Este exercício, de magnitude sem precedentes, reforça a prontidão da OTAN com vistas a fortalecer sua capacidade de enfrentar desafios complexos no cenário geopolítico atual.

A intensificação da cooperação entre os países-membros da OTAN é evidenciada por recentes acordos de cooperação e planejamentos estratégicos integrados. Notavelmente, os países bálticos – Estônia, Letônia e Lituânia – solidificaram seu compromisso ao assinar um acordo para a construção da “Linha Defensiva do Báltico”. Este projeto visa a estabelecer uma robusta linha defensiva na fronteira entre essas nações e a Rússia, bem como com a Bielorrússia. A linha defensiva coordenará ações conjuntas dos três países, integrando medidas ativas e passivas de defesa desde os primeiros metros do território, preparando-se para eventuais incursões russas. Essa iniciativa destaca a colaboração proativa dos membros da OTAN na região, fortalecendo a segurança coletiva diante de desafios específicos e reforçando a prontidão para proteger suas soberanias.

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Além dos aspectos acima citados, é crucial ressaltar as declarações públicas proferidas por líderes da OTAN, tanto civis quanto militares, sublinhando a vital importância da prontidão militar e expressando inquietações específicas relacionadas aos desafios à segurança dos países-membros da aliança. O Almirante Rob Bauer, presidente do Comitê Militar da aliança, recentemente afirmou que, embora a OTAN não busque um conflito com a Rússia, está se preparando de maneira ativa para essa possibilidade. Já o ministro da defesa da Alemanha, Boris Pistorius, disse em entrevista que a Rússia poderia atacar a OTAN em menos de uma década, alertando que os estrategistas alemães acreditam que isso seria possível em um intervalo de 5 a 8 anos a partir do fim da guerra na Ucrânia. Essas declarações refletem não apenas o reconhecimento da complexidade do cenário geopolítico atual, mas também a determinação da OTAN em reforçar sua capacidade de resposta diante de potenciais ameaças à segurança coletiva.

Em síntese, a metáfora da “pólvora seca” ressoa de maneira notável no atual cenário geopolítico, onde os líderes da OTAN demonstram não estarem dispostos a deixar os acontecimentos correrem à própria sorte atuando proativamente para a construção de um instrumento militar capaz de fazer face às ameaças. A busca pela prontidão da OTAN para enfrentar desafios é evidenciada não apenas por investimentos substanciais em defesa, mas também pela realização do exercício militar “Steadfast Defender” e pela intensificação da cooperação entre os países-membros, como observado na construção da “Linha Defensiva do Báltico”.

A resposta unificada dos líderes da aliança, expressa por declarações públicas e estratégias coordenadas, reflete a seriedade com que a OTAN encara as ameaças percebidas, principalmente as relacionadas à Rússia. O compromisso declarado de se preparar para eventualidades, destaca a postura prudente adotada pela aliança.

À medida que a incerteza e a conflitualidade permeiam as Relações Internacionais, a OTAN busca integrar a cooperação entre os países-membros e a prontidão. Esta abordagem, alinhada à sabedoria da metáfora, oferece um paradigma eficaz para enfrentar os desafios do século XXI, onde a segurança global demanda uma preparação ativa e uma diplomacia assertiva.

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[1] Veja em https://www.sipri.org/media/press-release/2023/world-military-expenditure-reaches-new-record-high-european-spending-surges

[2] Veja em https://www.reuters.com/world/nato-increases-military-budget-by-12-203-billion-euros-2023-12-13/




A Finlândia entra para OTAN

A Finlândia ingressou oficialmente na Organização do Tratado do Atlântico Norte no último dia 04 de abril.  Somou-se, assim, à aliança ocidental de segurança, que agora passa a contar com trinta e um países.

Criada em 1949, no ambiente marcado pela bipolaridade do sistema internacional entre EUA e União Soviética, no pós 2ª Guerra Mundial e início da Guerra Fria, a OTAN se conformou como um arranjo de defesa coletiva, por intermédio do qual os Estados-membros concordam em atuar conjuntamente, em apoio mútuo, caso qualquer um dos países da aliança seja atacado.

Figura 1 – Países da OTAN. Fonte Al Jazeera

O crescimento da organização se deu de forma paulatina. Em 1949, foi constituída por apenas doze membros, dez da Europa Ocidental, mais EUA e Canadá.  Foi com a implosão da União Soviética e o fim da Guerra Fria que a aliança ganhou vários novos integrantes, países localizados cada vez mais ao leste da Europa, no que a Rússia sempre percebeu como sendo o seu “espaço de influência”. Isso aconteceu inclusive com os antigos membros do Pacto de Varsóvia, a aliança militar liderada pela então União Soviética, além de países que a tinham integrado, como os países Bálticos: Estônia, Letônia e Lituânia. A última adesão tinha sido a da Macedônia do Norte, em 2020.

A Finlândia e a Suécia, entretanto, haviam resistido às tentações de entrar para a aliança, adotando uma neutralidade pragmática, que acabou por caracterizar sua postura estratégica até aqui. Os finlandeses tinham boas razões para isso. Parte integrante da Suécia do século doze até 1809, a partir daquele ano seu território passou a ser um Grão Ducado do império russo, conseguindo tornar-se independente apenas após a revolução russa, em 1917. Na segunda guerra mundial, apesar de uma defensiva obstinada na guerra russo – finlandesa, foi obrigada a ceder parcela de seu território à Rússia.

Esse histórico de enfrentamentos com o poderoso vizinho de Leste convenceu os finlandeses de que a coisa certa a se fazer seria, a partir daí, garantir uma neutralidade que, como contrapartida, permitisse uma boa convivência com a Rússia.

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Isso mudou em 24 de fevereiro do ano passado. A invasão do território ucraniano pelos russos trouxe insegurança para a população finlandesa, que passou considerar que a melhor forma de se proteger seria buscar a segurança sob o pacto de defesa coletiva da OTAN.

O desfecho evidentemente desagradou a Rússia, e foi um enorme revés estratégico para o presidente Putin. Afinal, a principal justificativa apresentada pela Rússia para a invasão da Ucrânia foi a aproximação da OTAN de suas fronteiras, desconsiderando os alertas russos e as alegações de que o país sentia sua própria segurança ameaçada. Uma Ucrânia integrada a OTAN era inadmissível para Putin, segundo sua própria lógica.

Acontece que, com a entrada da Finlândia para a OTAN, a fronteira direta entre os países da aliança e a Rússia, que se restringia a poucas centenas de quilômetros com os países bálticos, com a Noruega no extremo Norte, e no exclave de Kaliningrado, foi acrescentada em mais de 1.300 Km de fronteiras diretas entre Finlândia e Rússia.

A expansão da OTAN não se restringirá à Finlândia. A Suécia, que vem tendo seu ingresso postergado pela Turquia, por razões mais explicadas pelas dinâmicas internas da política turca do que de outra ordem, vinculadas a questões que envolvem a concessão de asilo pela Suécia a cidadãos turcos de origem curda acusados de terrorismo, certamente será aceita até o ano que vem.

Uma OTAN fortalecida pela guerra na Ucrânia certamente será um componente fortemente considerado por estrategistas russos, mas também pelos chineses. O desdobramento de armamento nuclear russo em território de Belarus já pode ser considerada uma reação. Outras virão, e isso se refletirá na corrida por maiores investimentos em defesa em todo mundo.

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A OTAN dobra a aposta

A ajuda militar à Ucrânia anunciada nos últimos dias por Estados Unidos, França e Alemanha, além das promessas no mesmo sentido feitas por outros países europeus, aumentará significativamente o poder de combate ucraniano para a guerra contra a Rússia em 2023. 

Embora o apoio ocidental à Ucrânia até aqui tenha sido fundamental para evitar uma derrota para os russos, é importante notar que o que aconteceu recentemente, com os anúncios de novas levas de ajuda militar feitos de forma praticamente simultânea por EUA, França e Alemanha, foi uma indicação de que esses países dobram a aposta e se comprometem definitivamente com a causa ucraniana. 

Isso porque, desta vez, além de fornecer os itens que já vinham repassando desde o início da guerra, os ocidentais resolveram apoiar com materiais militares que podem fazer grande diferença em favor dos ucranianos. Os alemães anunciaram o envio de 40 Viaturas Blindadas de Combate de Infantaria (VBCI) Marder. Os norte-americanos, por sua vez, enviarão 50 VBCI Bradley M2A2 e 18 obuseiros autopropulsados M109 Paladin. Já os franceses, garantiram o envio de Viaturas Blindadas de Combate de Cavalaria (VBCCav) AMX-10 RC. Em conjunto, essas viaturas vão aumentar a potência de fogo, a mobilidade, a proteção blindada, a ação de choque e a capacidade de comunicação das tropas de infantaria, cavalaria e artilharia ucranianas, o que sem dúvida será muito útil na ofensiva de primavera, a ser provavelmente desencadeada pelos ucranianos assim que as condições meteorológicas se mostrarem mais favoráveis. 

Ainda não são os Carros de Combate Principais, os mais importantes meios blindados para uma operação ofensiva, como os Leopard II alemães, os Leclerc franceses ou os Abrams norte-americanos. Mas, parece que esses, apesar de escassos nos inventários de todos os exércitos do mundo, também poderão ser enviados à Ucrânia em curto prazo.  Finlândia e Polônia já declararam que podem ceder seus carros à Ucrânia, caso a Europa encontre uma forma de doação coletiva que mantenha o poder de combate dos países doadores. Outra possibilidade que vem sendo aventada é a de o Reino Unido enviar os carros Challenger II. 

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É claro que o simples envio dos blindados não resolve a questão. É necessário providenciar o treinamento das tripulações e assegurar a complexa cadeia logística de cada um dos blindados. O carro francês, por exemplo, possui um canhão de calibre 105 mm, que não usa munição padrão OTAN, exigindo uma cadeia de suprimentos específica. Não é um esforço trivial ou simples de ser executado. 

O movimento das potências ocidentais certamente provocará reações por parte da Rússia. O Kremlin reforçará a retórica, especialmente para sua própria população, de que a Rússia não enfrenta apenas a Ucrânia, e sim toda a OTAN. Com isso, a população russa poderia ser levada a aceitar com mais facilidade as provações a que está sendo submetida pela guerra, incluindo-se aí uma nova mobilização de recrutas. Serviços de inteligência ocidentais teriam informações de que, dessa vez, o objetivo seria o de recrutar meio milhão de soldados, e que tal movimento poderia ocorrer a partir de março.

Ao mesmo tempo, os russos intensificarão seu esforço de guerra, como já anunciou o presidente Putin. Além disso, provavelmente buscarão novos fornecedores externos de material de emprego militar, além de intensificar as importações que já fazem do Irã e, muito provavelmente, também da Coreia do Norte. A Rússia poderá ainda pressionar seus aliados por mais apoio, especialmente Belarus e demais países aliados da Organização do Tratado de Segurança Coletiva (OTSC): Armênia, Cazaquistão, Quirguistão e Tajiquistão. China e Índia dificilmente concordarão em exportar armas ao país, pelo menos de forma ostensiva, mas continuarão fundamentais aos russos do ponto de vista econômico. 

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Também é provável que a Rússia amplifique sua retórica nuclear, reforçando em declarações de suas autoridades as capacidades do país e enfatizando aos líderes do Ocidente que poderia usar armas atômicas caso alguma “linha vermelha” russa venha a ser ultrapassada pelos ucranianos ou pelo próprio Ocidente. 

Em síntese, o que se vê com esse movimento Ocidental de reforçar as doações de material bélico à Ucrânia é a OTAN redobrando sua aposta na Ucrânia. Entretanto, o inimigo não é débil. Longe disso, está aprendendo com os erros que cometeu até aqui.  

Assim, não se pode fazer nenhuma previsão de encerramento do conflito em curto prazo. Pelo contrário, 2023 provavelmente será um ano de combates ainda mais encarniçados em território ucraniano. 

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A Finlândia e a Suécia na OTAN

O presidente da Rússia, Vladimir Putin, sempre deixou bastante claro que a principal razão para a invasão da Ucrânia era a ameaça que a possível adesão daquele país à OTAN representava para a segurança da Rússia.

A forte objeção não se deve, apenas, ao fato de ser a Ucrânia um país intimamente ligado à Rússia, com raízes históricas comuns, que estaria se afastando da órbita de influência russa em direção à Aliança Ocidental e à União Europeia. Mas, principalmente, sempre segundo a linha de raciocínio do presidente Putin, tratar-se-ia de mais um passo da contínua expansão da OTAN em direção às fronteiras russas. Afinal, as antigas ex-repúblicas soviéticas, Letônia, Estônia e Lituânia, além dos antigos aliados do Pacto de Varsóvia, Polônia, Bulgária, Romênia, Hungria, República Tcheca e Eslováquia, já integram a OTAN. Ver a Ucrânia se juntar a esse grupo não é aceitável para presidente russo.

Expansão da OTAN
Fonte – BBC

Dessa forma, se entende a contrariedade que o presidente Putin certamente está experimentando ao ver que a Suécia e a Finlândia, países historicamente neutros, manifestarem o firme propósito de aderir à OTAN.

A Suécia não faz parte de nenhuma aliança militar há mais de 200 anos, desde as guerras napoleônicas, e também manteve a neutralidade durante a Segunda Guerra Mundial. A Finlândia, por outro lado, tornou-se neutra após perder cerca de 10% de seus territórios para a então União Soviética, na Segunda Guerra Mundial.

A mudança de postura dos dois países nórdicos é surpreendente e reflete as grandes alterações no ambiente de segurança da Europa após a invasão russa à Ucrânia, em 24 de fevereiro. A percepção da ameaça se tornou palpável e a guerra de conquista de território, uma possibilidade impensável até pouco tempo, ainda mais na Europa, mostra-se real. E essa sensação de insegurança se refletiu na opinião pública finlandesa e sueca. Pesquisas de opinião feitas em fevereiro indicavam que apenas 53% dos finlandeses eram favoráveis à adesão à OTAN. Hoje, os índices mudaram bastante, informando que 76% da população passou a ser favorável à adesão.

A entrada na OTAN depende de um rito que, se depender das declarações do Secretário-geral da organização, Jens Stoltemberg, um Norueguês, será acelerado ao máximo. Entretanto, pode haver algumas dificuldades. Segundo as normas da organização, a aceitação de um novo integrante depende da concordância unânime de todos os seus membros.

O presidente da Turquia, Recep Erdogan, deu a entender que seu país seria contrário à entrada ao declarar que Estamos acompanhando o desenvolvimento da situação com a Finlândia e a Suécia, mas não temos certeza [sobre esse assunto]. Os países nórdicos são uma hospedaria para organizações terroristas”. Erdogan está se referindo a cidadãos turcos que o regime considera ligados a atividades terroristas curdas que são recebidos como refugiados em ambos os países nórdicos. O presidente turco ainda se referiu à Grécia, ao afirmar que foi um erro da OTAN aceitar aquele país como membro, no passado.

Apesar dessas manifestações do presidente turco, é pouco provável que a Turquia, quando chamada formalmente a se manifestar no âmbito da OTAN, realmente vete a entrada de suecos e finlandeses. Seria politicamente muito difícil sustentar tal posição na Aliança, colocando-se em posição antagônica a praticamente todos os parceiros justamente em um momento de crise. A Finlândia formalmente integrada à OTAN agregará 1.340 km de fronteira direta entre a Rússia e os aliados, praticamente dobrando a extensão atual, que é de 1.215 Km. Por sua vez, suecos na OTAN representam um grande aumento na segurança e na dissuasão da Aliança no Mar Báltico, uma região de capital importância para os interesses estratégicos russos.

Quase três meses depois do início da invasão à Ucrânia, os russos sofrem um duro revés político-estratégico. O fortalecimento da OTAN resultante da ação militar russa se constitui em um desfecho absolutamente contrário aos objetivos de Putin. Resta saber quais serão as respostas russas a esses acontecimentos.

Este texto foi originalmente publicado no site Hoje no Mundo Militar

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A viagem de Biden à Europa

Este artigo foi publicado no Jornal O Estado de S. Paulo em 28/06/2021

Joe Biden vem de fazer sua primeira viagem à Europa como presidente dos Estados Unidos. Durante oito dias visitou o Reino Unido, reuniu-se com o G-7, com a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) e com o presidente russo, Vladimir Putin. Foi uma viagem cheia de mensagens e significados, durante a qual as sombras da China e da Rússia estiveram sempre presentes nas conversas.

Ao chegar mais cedo ao Reino Unido, que sediaria a reunião do G-7, Biden reforçou a aliança preferencial de seu país com os britânicos. No comunicado conjunto, em 20 parágrafos Biden e o primeiro-ministro Boris Johnson reforçam a crença comum de seus países no que eles chamaram de defesa da democracia, dos direitos humanos e do multilateralismo, reforçando o papel da ONU, que eles afirmam ser central, no sistema internacional.

No prosseguimento, ainda no Reino Unido, Biden e Johnson se reuniram com os líderes dos outros cinco países que compõem o G-7: Canadá, França, Alemanha, Japão e Itália. O comunicado divulgado ao término dos trabalhos destaca seis pontos principais: tomar providências em relação à pandemia de covid-19, revigorar a economia dos países integrantes do grupo, assegurar um futuro de prosperidade, proteger o meio ambiente do planeta, fortalecer parcerias do grupo, em especial com a África, e fortalecer os valores democráticos e de liberdade, igualdade, respeito à lei e aos direitos humanos.

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O comunicado afirma ainda que para a pandemia ser vencida em 2022 cerca de 60% da população mundial terá de estar vacinada. Nesse sentido, o G-7 compromete-se a financiar mais 1 bilhão de doses de vacinas, a serem distribuídas principalmente aos países pobres, até o fim de 2022. O grupo apoia que sejam feitas investigações transparentes, lideradas pela Organização Mundial da Saúde, sobre as origens da doença, na China. Aliás, esse país foi citado mais duas vezes no comunicado, em aspectos bastante sensíveis para o gigante asiático. O G-7 alertou a China sobre as questões dos direitos humanos, especialmente no referente aos uigures, minoria islâmica que habita a região autônoma chinesa de Xinjiang, e também em relação aos habitantes de Hong Kong. Além disso, o grupo fez referência a Taiwan, clamando por uma solução pacífica das questões que envolvem a ilha e externando preocupações com o que chamou de tentativas de mudança do status quo na região dos Mares do Leste e do Sul da China.

O encontro da Otan, realizado em Bruxelas, reuniu os 30 países que compõem a aliança militar. No comunicado divulgado, a Rússia figura como a principal ameaça. O país é acusado de ações agressivas que estariam deteriorando a segurança internacional: exercícios militares de larga escala, até mesmo nas proximidades das fronteiras dos países da Otan, instalações de mísseis modernos e de uso dual em Kaliningrado, integração militar com Belarus e violações em série do espaço aéreo dos países aliados. A Rússia também é acusada de promover ações de guerra híbrida, como tentativas de interferência em eleições de países democráticos, estabelecimento de pressões políticas e econômicas com a finalidade de intimidar outros países, financiamento de campanhas de desinformação e de ataques cibernéticos. Além disso, os russos são acusados de atuar ilegalmente com suas agências de inteligência em território de países da Otan e de expandir e modernizar seu arsenal nuclear, com vista a desestabilizar o equilíbrio de forças hoje existente.

A China também não passou despercebida na reunião da Otan. O país foi acusado de se comportar de forma a desafiar a ordem internacional. O comunicado afirma que suas políticas coercitivas contrastam com os valores fundamentais da aliança e que causam preocupação a expansão e a modernização de seu arsenal nuclear, além de sua aproximação militar da Rússia, até mesmo com participação conjunta em exercícios militares.

O último evento do presidente Biden na Europa foi a reunião com o presidente Vladimir Putin, da Rússia, por três horas, em Genebra. Do encontro, a única medida prática anunciada foi o retorno dos embaixadores dos dois países aos seus postos, de onde estavam afastados havia alguns meses.

No dia seguinte ao término da viagem, o mundo assistiu às imagens em alta definição da espaçonave chinesa levando três tripulantes para a estação espacial que o país constrói na órbita terrestre. Para muitos analistas, a leitura dos comunicados do G-7 e da Otan, emoldurados pelas cenas dos chineses no espaço, escancara que o sistema internacional está assistindo, realmente, a um período de transição hegemônica. Como sempre, em momentos assim, as potências estabelecidas se esforçam na manutenção do status quo e das características sistêmicas que as conduziram à hegemonia. Ao mesmo tempo, a potência emergente tenta moldar o mundo de acordo com seus próprios interesses. O atrito resultante, como sempre, gera calor. Que os líderes mundiais saibam controlar a temperatura, manter o diálogo e favorecer a manutenção da paz.




A OTAN e as mudanças no equilíbrio do poder mundial

No último dia 14 de junho, os chefes de governo dos 30 países aliados que compõem a OTAN se reuniram em Bruxelas. A leitura da declaração(1) conjunta proporciona uma boa compreensão de como a mais poderosa aliança militar da história vê a atual conjuntura mundial, quais são as ameaças que eles identificam e quais caminhos eles irão traçar em assuntos de defesa, sempre mantendo em vista as três tarefas fundamentais da Aliança: prover segurança coletiva, gerenciar crises e fortalecer a cooperação em segurança.

Os aliados identificam ameaças provenientes de todas as direções estratégicas, representadas pela competição sistêmica de potências “autoritárias e assertivas”; terrorismo; atores estatais e não-estatais que atuam para minar a ordem internacional, o estado de direito e a democracia; instabilidades políticas e sociais além das fronteiras dos países da OTAN que causam a imigração ilegal e o tráfico de pessoas; aumento das ameaças cibernéticas, híbridas e assimétricas, que incluem campanhas de desinformação; aumento das ameaças no domínio espacial; proliferação de armas de destruição em massa e erosão da arquitetura legal internacional destinada a controla-las; além das ameaças representadas pelas mudanças climáticas.

Para fazer face a essa conjuntura e ameaças, a Aliança adotou a chamada OTAN 2030 – Agenda Transatlântica para o Futuro. O documento lista uma série de providências, dentre as quais destaco a seguir as que considero mais relevantes.

– Fortalecer a OTAN como instrumento de segurança coletiva da região Euro-atlântica, contra todas as ameaças, vindas de todas as direções. Reitera-se o compromisso de se manter um apropriado mix de armas nucleares e convencionais para dissuasão e defesa.

– Adotar medidas no sentido de acelerar a cooperação entre os Estados aliados para o desenvolvimento de novas tecnologias na área de defesa.

– Fortalecer a capacidade da OTAN de preservar a atual ordem internacional nos aspectos que afetam a segurança coletiva dos países da Aliança. Isso inclui fortalecer o diálogo e a cooperação com países não aliados da própria Europa, Ásia, África e América Latina.

– Transformar a OTAN em uma organização internacional que lidere a compreensão dos impactos das mudanças climáticas na área de segurança. Isso inclui esforços para que as próprias forças armadas dos países aliados atinjam o equilíbrio nas emissões de carbono que resultam das atividades militares até 2050.

– Prover a Aliança dos recursos necessários, por intermédio dos orçamentos de defesa dos países-membros e do fundo comum da OTAN, para financiar os ambiciosos objetivos propostos.

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Prisioneiros da Geografia – Tim Marshall

A Rússia é citada nominalmente 62 vezes na declaração de Bruxelas. É, sem dúvidas, a maior ameaça identificada pela OTAN. O relatório afirma que os russos continuam a violar os princípios, a confiança e os compromissos previstos nos documentos que sustentam as relações entre o país e a OTAN. Praticamente toda a cooperação civil e militar entre a OTAN e a Rússia permanece suspensa. Os aliados reafirmam que manterão o que consideram ser uma resposta à deterioração do ambiente de segurança com o aumento de seu poder dissuasório e de sua “postura defensiva”, inclusive com a presença militar nas fronteiras mais orientais da Aliança.

Os russos são acusados de crescente desenvolvimento de capacidades militares nos múltiplos-domínios, de promover atividades militares provocativas, como exercícios militares inopinados e em larga escala, inclusive nas proximidades das fronteiras de países aliados, de aumentar seu poderio militar estacionado na Criméia, instalação de sistemas modernos de mísseis em Kaliningrado, aumento da integração militar com a Belarus e repetidas violações do espaço aéreo da OTAN.

A Rússia também é acusada de promover ações de Guerra Híbrida como tentativas de interferência em processos eleitorais de países da Aliança, intimidar e exercer pressões políticas e econômicas, lançar campanhas de desinformação, guerra cibernética, além de atuar com seus serviços secretos em atividades ilegais nos países da OTAN.

A OTAN acusa a Rússia de diversificar seu arsenal nuclear, inclusive desdobrando sistemas de mísseis de curto e médio alcance de modo a ameaçar a aliança e de ocupar ilegalmente a Crimeia, atuando diretamente contra a soberania da Ucrânia. Ações contra a Geórgia e a Moldávia também são condenadas.

Após dedicar-se à ameaça representada pela Rússia, o documento passa a analisar os demais desafios à segurança da OTAN.

O terrorismo se mantém listado como uma ameaça direta à segurança das populações, e embora o documento reconheça que a segurança interna é responsabilidade de cada país, a OTAN está atenta e contribuirá sempre para o enfrentamento dessa ameaça. O documento cita a atuação no Afeganistão e no Iraque, dizendo que, apesar de estar retirando suas tropas do Afeganistão, permanecerá comprometida com o enfrentamento do terrorismo internacional.

A OTAN afirma seu apoio a uma completa, irreversível e verificável desnuclearização da Coreia do Norte e seu compromisso de não permitir que o Irã possua armamento nuclear. Afirma que apoia a retomada das negociações para que o JCPoA – o acordo nuclear com o Irã – seja retomado para que as atividades nucleares naquele país tenham finalidades exclusivamente pacíficas.

O conflito na Síria, que entra em seu 11º ano, também é listado como fonte de instabilidade na região e de insegurança para a fronteira sul da Aliança, que não hesitará em agir militarmente para preservar a segurança contra ameaças provenientes daquela região.

A instabilidade política em Belarus também causa preocupação, e a ação que obrigou o pouso de uma aeronave civil que sobrevoava o país, com a prisão de um opositor do regime que estava a bordo, foi classificada como inaceitável.

O “comportamento assertivo” e as ambições chinesas são apresentadas como ameaças à ordem internacional. Sua modernização e expansão do arsenal nuclear, a chamada “estratégia de fusão civil-militar”, a crescente cooperação militar com a Rússia, inclusive com a participação em exercícios militares conjuntos na área Euro-atlântica, sua falta de transparência e uso de campanhas de desinformação, são apontadas como causas de preocupação.

As mudanças climáticas são apontadas como os desafios conformadores dos tempos atuais. Significam ameaças com múltiplos impactos, tanto na área Euro-atlântica, quanto nas vizinhanças da Aliança. A OTAN se compromete a regularmente avaliar os impactos das mudanças climáticas no ambiente estratégico e nas suas operações.

A chamada “política de portas abertas”, que permite a entrada de novos países europeus na Aliança, é reforçada. O documento afirma que essa é uma questão que diz respeito apenas ao país que deseja entrar na Aliança e à própria OTAN, não interessando a terceiros países. Isto é um claro recado à Rússia, que é contrária ao ingresso dos países do leste europeu, em especial da Ucrânia e da Geórgia, na OTAN.

Para fazer face aos desafios acima listados, além de outros constantes no documento, a OTAN delineia uma série de medidas para fortalecer sua capacidade dissuasória, incluindo-se aí medidas de modernização de seu arsenal nuclear, inclusive por intermédio de suas capacidades missilísticas.

A declaração de Bruxelas deixa claro que a OTAN está preocupada com as mudanças no equilíbrio global de poder. A Rússia é apontada como a maior ameaça a Aliança, mas a China, o Irã e o terrorismo, além das mudanças climáticas, também são apresentados como desafios à segurança e à estabilidade mundial.

A Aliança Euro-atlântica reage ao que considera ser uma postura desafiadora de russos e chineses, que por sua vez alegam estar se preparando para ameaças à sua segurança por parte da OTAN. É o velho Dilema da Segurança, em que a percepção da ameaça externa provoca um maior investimento em segurança e defesa, que por sua vez desperta no outro lado o mesmo sentimento, em uma escalada que acaba por afetar ambos os lados da disputa.

A conclusão, evidente, é a de que há muitos pontos de atrito e confrontação, todos potenciais causadores de crises, que deverão ser manejadas com habilidade por todos os envolvidos, para a manutenção da paz.

(1) Leia a declaração em https://www.nato.int/cps/en/natohq/news_185000.htm




A visão da OTAN para 2030

A Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), mais poderosa aliança militar da história, acaba de publicar um documento[1] com análises e recomendações elaboradas por um Grupo de Trabalho designado especialmente para essa tarefa pelo Secretário Geral da Organização.

Ao grupo, foi solicitado que se dedicasse a encontrar formas de aumentar a unidade, coesão, solidariedade e coordenação entre os países-membros da Aliança. Além disso, o grupo também deveria buscar maneiras de reforçar o papel político da organização, além de indicar instrumentos para enfrentar as ameaças atuais e futuras, tudo isso tendo o ano de 2030 como horizonte temporal.

De início, o relatório diagnostica que o ambiente estratégico atual é caracterizado pelo retorno à rivalidade sistêmica, com a Rússia apontada como persistentemente agressiva e a China, como potência emergente. O ambiente ainda é marcado pelo surgimento acelerado de tecnologias disruptivas e pela elevação de ameaças e riscos transnacionais de toda a ordem.

O retorno à competição geopolítica é definido como sendo a principal característica do ambiente internacional de segurança. A Rússia é mantida no posto de principal ameaça à OTAN. O país é acusado de continuada agressão à Ucrânia e à Geórgia, ao mesmo tempo em que se volta para o Atlântico Norte e para o Oceano Ártico. Além disso, os russos estariam ampliando suas ações de guerra híbrida, com o objetivo de atuar no interior dos países da Aliança, para dividi-los e erodir sua coesão social. Os russos são ainda acusados de usar proxies e mercenários para atuarem em defesa de seus interesses em países do Norte da África e Oriente Médio.

Em relação à China, o documento aponta que sua maior assertividade constitui um desafio bastante diferente daquele representado pela Rússia. Embora os chineses não sejam considerados, no presente, uma ameaça militar direta à área Euro-atlântica, sua agenda internacional se apoia cada vez mais em seu peso econômico e crescente poderio militar. Isso indicaria que, em breve, os interesses chineses poderão colidir com os dos países da Aliança. Sua estratégia de fusão civil-militar presente no desenvolvimento tecnológico nas áreas nuclear, naval e de mísseis, para dar alguns exemplos, é um fator complicador, como demonstra a disputa que a China trava com países europeus na tecnologia de internet de 5ª geração.

O terrorismo tem sido, e permanecerá sendo, uma das ameaças mais imediatas aos países da Aliança e aos seus cidadãos. Embora o combate ao grupo Estado Islâmico tenha sido exitoso ao reduzir a capacidade de atuação daquele grupo, que vinha se constituindo na principal origem das ameaças terroristas, outros atores não-estatais motivados por extremismos religiosos ou políticos permanecem atuando.

Nos próximos dez anos, as tecnologias disruptivas representarão, tanto oportunidades, quanto ameaças à segurança dos países aliados e de suas populações. Essas tecnologias mudarão a natureza da guerra, possibilitando, por exemplo, ataques com misseis hipersônicos e operações de natureza híbrida ainda mais efetivas. A guerra estará cada vez mais presente no domínio espacial.

Sempre segundo as conclusões do relatório, mudanças climáticas poderão acelerar a escassez de recursos e gerar insegurança alimentar. Maiores efetivos populacionais sofrerão com a falta de água. Os níveis dos oceanos poderão se elevar. Tudo isso poderá aumentar ainda mais os fluxos de migrantes e refugiados em direção aos países da OTAN. O derretimento da calota polar ártica aumentará as disputas geopolíticas pelo controle das rotas marítimas comerciais que passarão a ser viáveis no Norte.

Para enfrentar essa realidade, o documento faz 138 recomendações. Dentre essas, podemos citar a proposição de que a OTAN mantenha, em relação à Rússia, uma dupla abordagem, ao mesmo tempo dissuasória e aberta ao diálogo. No que se refere à China, os aliados devem devotar muito mais recursos, tempo e ações para fazer face aos desafios de segurança impostos pelo gigante asiático.

Para o enfrentamento do terrorismo a Aliança deve prover recursos adequados ao fortalecimento dos sistemas de segurança cibernética e de defesa contra ameaças hibridas.

Quanto ao armamento nuclear, ao mesmo tempo em que o relatório aponta a necessidade do fortalecimento do controle desse tipo de arsenal, indica que a dissuasão nuclear deve ser mantida.

Outra recomendação relevante do documento é a de se criar um centro de excelência em segurança climática. As ameaças não militares à segurança, tais como as oferecidas pelo clima, mas também de outros tipos, como as pandêmicas, devem receber maior atenção da organização.

Enfim, o documento alerta os países membros da Aliança acerca dos muitos, variados e complexos riscos que se apresentam no curto espaço de tempo que nos separa de 2030. Mais uma vez os estrategistas alertam para o ambiente volátil, incerto, complexo e ambíguo que caracteriza o atual momento do Sistema Internacional.

Para nós, que estamos aqui na América do Sul, a leitura do documento é interessante não somente pela análise de cenário e pelas conclusões, mas também por desnudar a maneira de pensar dos formuladores das estratégias da Aliança. Quando 2030 chegar, é provável que nem todas as previsões se confirmem. Mas há uma boa possibilidade de que algumas já tenham se tornado realidade. Como seremos afetados? Estaremos prontos? São boas perguntas, para as quais não se deve ter necessariamente respostas. O importante é que, acompanhando cenários como os descritos no documento da OTAN, sejamos capazes de conhecer melhor as ameaças e nos preparemos adequadamente para as múltiplas possibilidades que o século XXI nos reserva.

[1] Disponível em https://paulofilho.net.br/wp-content/uploads/2020/12/Relatorio-OTAN.pdf




Relatório da OTAN 2030- ANÁLISES E RECOMENDAÇÕES

O Relatório OTAN 2030 lança um olhar sobre os  próximos 10 anos da aliança militar. O documento recomenda mudanças significativas afim de enfrentar os novos desafios de uma Rússia agressiva e de uma China em ascensão, recomendando revisões para fortalecer a coesão da aliança e para melhorar a coordenação com aliados democráticos em todo o mundo.

Clique no link:

Relatorio OTAN




OS SETENTA ANOS DA OTAN

Chefes de Estado e de Governo dos 29 países que compõem a Organização para o Tratado do Atlântico Norte reuniram-se recentemente em Londres para comemorar os 70 anos da Organização. Na cobertura da imprensa, ganhou destaque o desconforto causado pelas divergências nas visões de alguns dos presidentes dos países da Aliança, especialmente as dos Presidentes Trump, dos EUA, e Macron, da França. O francês reafirmou uma declaração anterior que havia causado desconforto no presidente americano, de que a Aliança estava em “morte-cerebral” em razão da falta de coordenação estratégica e liderança.

A OTAN foi criada em 1949, inicialmente composta por doze países, dentre os quais EUA, Reino Unido, França, Itália e Canadá. Na década de 1950, mais 3 países se juntaram ao grupo: Alemanha, Grécia e Turquia. Nenhum outro país se juntou à Aliança até a década de 1980, quando a Espanha foi incorporada.

Assim, quando a União Soviética se dissolveu, em 1991, a OTAN era composta por 16 membros. A partir de 1999, vários países do leste europeu, região que era tradicional área de influência dos soviéticos, foram sendo incorporados à Aliança. Em 2004, apenas 15 anos depois de 1989, todos os países do antigo Pacto de Varsóvia, com exceção da própria Rússia e da maioria dos Estados que compunham a antiga URSS, estavam na OTAN ou na União Europeia.

A Rússia considerou que essa expansão da OTAN em direção ao Leste caracterizava claramente uma estratégia de contenção e cerco. Na visão dos russos, a OTAN já havia se expandido além do aceitável quando incorporou os países bálticos – Estônia, Letônia e Lituânia – à Aliança. E definiu um limite: a Ucrânia. Esse país, que em 2008 havia solicitado à OTAN sua incorporação ao grupo, é a própria origem da “mãe Rússia”, a antiga Rus Kievana. Além disso, o porto de Sebastopol e as riquezas minerais do país são de grande importância para os russos. A intervenção militar, de um ponto de vista puramente geopolítico, passou a ser praticamente inevitável.

As ações militares russas na Geórgia, em 2008 e na Ucrânia, em 2014, acenderam uma luz vermelha nas salas de planejamento da OTAN.  A Aliança, que na primeira década do século 21 considerava a guerra ao terror a sua principal hipótese de emprego, retirou das gavetas os antigos planejamentos de um enfrentamento militar de alta intensidade contra a Rússia. E ao verificar seus planos, descobriu que não estava preparada para tal tipo de conflito. A razão para isso é simples de se explicar. Sem dinheiro, não se preparam Forças Armadas.

Os gastos dos europeus com defesa caíram substancialmente a partir do desmantelamento da União Soviética. A Alemanha, por exemplo, desde 1998 não gasta 2% do PIB com defesa. O mesmo ocorre com Itália, Espanha e outros 17 países da aliança.

Desde que assumiu a presidência dos EUA, o presidente Trump tem insistido na necessidade de os países-membros da OTAN investirem ao menos 2% de seus PIB em defesa. Os EUA investiram cerca de 3,2% em 2018. A mensagem implícita na exigência é a de que os europeus, maiores interessados na própria segurança, deveriam gastar mais e depender menos dos EUA.

Ao mesmo tempo em que a geopolítica alerta os países europeus, especialmente os do Leste e do Centro da Europa, para o ressurgimento da ameaça russa, a França e os EUA concentram suas atenções em outras partes do mundo. Os EUA passaram a considerar sua principal hipótese de emprego uma confrontação com a China, no Oceano Pacífico. Os franceses estão envolvidos nas crises de suas antigas colônias na África. O país mantém mais de dez mil militares desdobrados entre Senegal, Costa do Marfim, Gabão e Djibuti, além dos 5 países do chamado Sahel: Burkina Faso, Chade, Mali, Mauritânia e Níger. Além disso, os franceses mantêm tropas na Síria e no Iraque.

Assim, fica claro que a Aliança se defronta com 3 situações distintas, cada uma delas atraindo a atenção dos países membros em diferentes graus de intensidade: a ameaça russa, a ameaça chinesa e a ameaça do terrorismo. Não bastasse isso, há ainda uma inédita fonte de tensão interna. Um dos países membros enfrenta militarmente um grupo que atua como aliado de outros países membros. Estou tratando da Turquia, país de vital importância geoestratégica, que está combatendo os curdos na Síria, curdos esses que são aliados de norte-americanos e franceses no enfrentamento do governo de Bashar al-Assad. Além disso, a Turquia se aproxima da Rússia, inclusive com a aquisição de material de defesa.

Dessa forma, a OTAN passa por um momento desafiador na definição de seus destinos. Seu principal integrante, os EUA, está mudando seu foco para priorizar o Teatro de Operações do Pacífico, no Leste Asiático. A postura do atual governo, anunciada pelo slogan “America first” (América em 1º lugar), gera desconfiança dentre os aliados sobre se os norte-americanos realmente estariam dispostos a cumprir o pacto de defesa mútua em caso de agressão a um dos países membros da OTAN. Os franceses, por sua vez, continuam concentrados na contra-insurgência e no contraterrorismo na África e Oriente Médio. Em razão disso, reclamam que o foco estratégico voltado para a Rússia e para a guerra de alta intensidade está errado, daí a afirmação de Macron da “morte cerebral” da organização.

A OTAN não é apenas uma aliança militar. É sobretudo uma aliança política, que usa seu enorme poderio militar para dissuadir adversários e consubstanciar a máxima de Clausewitz, de que a “guerra é a continuação da política por outros meios”. Nesse sentido, é exitosa pois conseguiu, ao longo de seus 70 anos de história, atingir os interesses políticos de seus integrantes, inclusive o mais importante deles: vencer a Guerra Fria. Foi justamente essa vitória que levou à sua expansão e, paradoxalmente, torna cada vez mais difícil a definição de objetivos comuns.