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Vladimir Putin e o sonho de grandeza: Um quarto de século no poder

As eleições russas irão reeleger hoje o presidente Putin para mais um mandato. Com isso, Vladimir Vladimirovitch Putin, nascido em uma família de operários na cidade de Leningrado (atual São Petesburgo), em 07 de outubro de 1952, completará, já no próximo ano, um quarto de século como o líder supremo da Rússia.

Putin estudou Direito na sua cidade natal, ingressando depois na KGB, a conhecida agência de inteligência soviética. Dos quinze anos em que lá prestou seus serviços, seis foram passados em Dresden, na Alemanha Oriental. Em 1990 ele deixou a KGB, no posto de Tenente Coronel, para trabalhar na Universidade de Leningrado. Em seguida, passou a trabalhar na prefeitura de São Petesburgo, ascendendo ao posto de Vice-Prefeito em 1994. Em 1996, mudou-se para Moscou, onde passou a trabalhar no governo federal. Em 1998, o então presidente Boris Yeltsin o nomeou para comandar o FSB, herdeiro da KGB. Um ano depois, Yeltsin o escolhe para seu herdeiro como presidente, nomeando-o Primeiro Ministro.

Putin, então desconhecido, ganhou fama e a aprovação do público ao liderar uma operação bem-sucedida contra separatistas na Chechênia. Após a renúncia de Yeltsin, em 31 de dezembro de 1999, Putin venceu facilmente as eleições de março de 2000, com cerca de 53% dos votos. À época, não se podia imaginar que ele se perpetuaria no poder.

O objetivo geopolítico de Putin sempre foi o de afirmar a Rússia como uma grande potência, que deve estar sentada à mesa onde as principais decisões são tomadas. Essa postura reflete uma visão quase messiânica, em que Putin se vê como responsável por restaurar a grandeza perdida da Rússia após o fim do Império Russo e a dissolução da União Soviética. Isso fica claro em inúmeras manifestações de Putin, como por exemplo na que ele fez em junho de 2022, por ocasião do 350º aniversário de nascimento de Pedro, O Grande. Em discurso, ele comparou a guerra de vinte e um anos travada por Pedro contra a Suécia, da qual resultou a conquista da região onde foi fundada a cidade de São Petesburgo, à atual guerra na Ucrânia. Para Putin, essas campanhas militares não ocorreram em terras estrangeiras, mas foram guerras para retomar territórios historicamente russos.

Na visão de Putin, a Rússia trava uma guerra contra inimigos liderados pelos EUA, que manipulam a União Europeia e a OTAN com o objetivo de humilhar a Rússia. O governo da Ucrânia, nesse sentido, seria apenas mais um desses peões à serviço norte-americano.

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O atual processo eleitoral, claramente carente das condições para ser genuinamente democrático, ainda assim oferece a Putin um verniz de legalidade e democracia. Isso permite que ele se apresente, tanto aos cidadãos russos quanto à comunidade internacional como o legítimo líder político da Rússia. Transposta essa formalidade, Putin prosseguirá em sua cruzada para a transformação da ordem internacional, assumindo, como a invasão da Ucrânia demonstra, todos os riscos que julgar necessários.

Putin percebe o momento histórico como sendo favorável à consecução de seus objetivos de reconstrução de uma Rússia poderosa. Esse momento é favorecido pelo apoio da “amizade sem limites” da China liderada por Xi Jinping e pela acirrada tensão interna nos EUA, causada pela polarização política, que faz com que os eleitores norte-americanos prestem muito mais atenção aos problemas domésticos do que ao expansionismo russo. Além disso a incapacidade militar da Europa de enfrentar a Rússia sozinha e a posição pragmática de neutralidade adotada por países do “Sul Global” contribuem para essa situação.

Aos 71 anos, Putin garante sua permanência no poder até pelo menos até 2030. Se ele fosse um Romanov, já poderia ser listado como um dos czares mais longevos. Pedro, o Grande, reinou por 39 anos. No ritmo que vai, não se pode descartar a possibilidade de Putin chegar lá.

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Dois Anos de Guerra na Ucrânia: Repercussões Geopolíticas, Humanitárias e Militares

A data de hoje marca os dois anos da invasão russa à Ucrânia, momento oportuno para uma breve análise acerca de alguns, dentre vários, desdobramentos que o conflito trouxe aos campos da geopolítica, da economia, das relações internacionais e da defesa. Isso sem falar nas terríveis consequências humanitárias para as pessoas, contadas aos milhões, diretamente afetadas pela tragédia da guerra.

As repercussões geopolíticas são evidentes. A guerra é a manifestação mais violenta do momento de contestação da ordem internacional liderada pelos Estados Unidos, erigida no pós Guerra Fria. Trata-se principalmente da ascensão chinesa e do desafio que passou a ser oferecido à liderança norte-americana por atores estatais que buscam o protagonismo no sistema internacional. Isso ficou muito bem caracterizado na conversa entre Putin e Xi Jinping, em frente aos repórteres, em Moscou, em março do ano passado, quando Xi disse a Putin que o mundo estava vivendo um momento de mudanças, como não era visto há cem anos, e que eram eles próprios, os dois líderes, que as estavam promovendo. Putin respondeu, concordando.

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A Rússia, tendo conquistado quase 20% do território ucraniano, renovou a preocupação de segurança entre os europeus, que até 24 de fevereiro de 2022 pareciam acreditar que os conflitos de grande escala estavam superados no continente. Esta mudança de percepção foi acompanhada por um notável redirecionamento nos investimentos em defesa por parte dos países europeus. De acordo com um levantamento realizado pelo Institut de Relations Internationales et Stratégiques, entre 2022 e meados de 2023, as aquisições de sistemas e materiais militares pelos países europeus totalizaram quase 100 bilhões de euros, representando um aumento de cerca de 33% em relação ao ano anterior. A Alemanha e a Polônia foram responsáveis por aproximadamente um terço desse aumento substancial, com encomendas avaliadas em cerca de 28 e 16 bilhões de euros, respectivamente. Dos 27 países europeus pesquisados, 25 aumentaram seus orçamentos de defesa de 2022 para 2023, evidenciando uma mudança de tendência. Apenas Hungria e Grécia foram exceções, registrando uma diminuição em seus orçamentos de defesa neste período.

No campo dos estudos estratégicos, a guerra na Ucrânia veio para derrubar mitos, reforçar fundamentos e apresentar novidades. A principal característica do conflito – sua alta intensidade, caracterizada pelo atrito e pelo maciço emprego da artilharia pelos dois lados – derrubou uma crença recente de que os conflitos modernos poderiam ser resolvidos apenas por pequenos exércitos, altamente móveis, dotados de ferramentas tecnológicas no estado da arte. É claro que mobilidade e tecnologia são importantes. Mas, para se conquistar um território invadido, defendido em linhas de trincheiras apoiadas por extensos campos de minas e por poderosa artilharia, o que ainda importa são as massas dos exércitos, constituídos por uma reserva mobilizável contada em centenas de milhares de soldados. Essa é a razão pela qual o serviço militar obrigatório volta a ser adotado e discutido por diversos países europeus. Também se deve a isso o esforço acelerado de abertura de fábricas de munições, para superar a enorme deficiência europeia nessa produção, especialmente quanto à granadas de artilharia.

Ao mesmo tempo em que se assiste ao emprego de técnicas, táticas e procedimentos utilizados desde a Primeira Guerra Mundial, o Teatro de Operações da Ucrânia serve de palco para inovações. Os sistemas aéreos remotamente pilotados, ou drones aéreos, que já tinham surgido como armas importantes na guerra de 2020 entre Armênia e Azerbaijão, se apresentam como sistemas fundamentais nos conflitos atuais. Seus congêneres navais, entretanto, fazem sua estreia, com resultados surpreendentes, sendo os responsáveis pelo afundamento de diversos navios da frota russa no Mar Negro. O emprego dos mísseis hipersônicos russos também é uma inovação digna de nota.

No campo econômico, um primeiro aspecto a se destacar é a constatação de que a coerção econômica que os EUA e seus aliados pretendiam infligir à Rússia por intermédio das dezenas de sanções e embargos não atingiram os resultados esperados. Os russos conseguiram, em grande medida, substituir as trocas comerciais embargadas por novas relações com países do chamado “Sul Global”, que não aderiram às sanções. Nesse sentido, o caso da Índia é exemplar. O país aumentou em mais de 13 vezes o valor das importações de petróleo da Rússia, totalizando, em 2023, cerca de 37 bilhões de dólares.

Essa não é uma boa notícia para a manutenção da paz no mundo. A constatação, por parte das grandes potências, de que a ferramenta da coerção econômica não é mais tão eficaz como foi no passado, pode vir a significar uma opção direta pela solução militar, sem a “escala” pela pressão econômica. Ou seja, pode vir a significar o aumento do risco da eclosão de novos conflitos armados.

Finalmente, há que se destacar a questão humanitária. A guerra sempre impõe enorme sofrimento às populações atingidas, e não seria diferente no caso da guerra na Ucrânia. Cerca de 14 milhões de pessoas foram forçadas a abandonar as suas casas desde o início da invasão russa, há dois anos, e quase 6,5 milhões vivem fora do país como refugiados. O número de baixas fatais de combatentes de ambos os lados é tratada com sigilo, e os números não são confiáveis. Entretanto, é um consenso entre os analistas que, somadas, ultrapassam facilmente a cifra de meio milhão de soldados. Há também os deploráveis episódios de maus tratos e violações graves e generalizadas dos direitos humanos, com centenas de casos relatados de violações do Direito Internacional dos Conflitos Armados, sem falar na enorme destruição de infraestrutura, inclusive de cidades quase por completo, como os casos de Bakhmut e Avdiivka.

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Assim, constata-se que a guerra na Ucrânia pode ser caracterizada como um divisor de águas, evidenciando a fragilidade da ordem internacional pós-Guerra Fria e o recrudescimento das tensões geopolíticas.

O conflito na Ucrânia também terá impactos importantes e duradouros no campo dos estudos estratégicos. O retorno da guerra de alta intensidade, de atrito e da artilharia, convivendo com novas armas e tecnologia no estado da arte, obrigará os governos de todo o mundo a aumentarem seus investimentos em defesa, repensarem suas estratégias, suas formas de mobilização e o preparo de suas forças armadas.

Por fim, embora no momento não se vislumbre a possibilidade de um desfecho a curto prazo, destaca-se a urgência de uma solução para o conflito. A guerra na Ucrânia causou um enorme sofrimento humano, com milhões de pessoas deslocadas, cidades devastadas e enormes perdas de vidas. A reconstrução da Ucrânia será um desafio monumental, que exigirá um esforço global para garantir a recuperação do país e o bem-estar de sua população.

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A OTAN cuida de manter sua pólvora seca

A frase “Confie em Deus e mantenha a pólvora seca”, atribuída a Oliver Cromwell, político e militar inglês do século XVII, sugere que, embora a confiança na providência divina seja fundamental, a preparação e a ação humana desempenham papéis cruciais. Esta sábia lembrança ressalta a importância de que os homens estejam preparados tomem medidas práticas para enfrentar os desafios da vida, especialmente em tempos de conflito e incerteza.

Indubitavelmente, os tempos atuais, especialmente no contexto das Relações Internacionais, Estratégia e Geopolítica, caracterizam-se por uma notável incerteza e conflitualidade. Portanto, não é surpreendente que os líderes das potências mundiais – e aqueles mais conscientes dos riscos iminentes – estejam atentos à condição de seus arsenais, garantindo que “a pólvora esteja seca”.

Traduzindo-se a metáfora para as ações práticas da realidade, “manter a pólvora seca” implica assegurar que o aparato militar do Estado esteja plenamente operacional. No caso da OTAN, há evidências que indicam uma crescente preocupação em manter a Aliança como um instrumento de combate eficiente e eficaz, dessa forma percebido pela opinião pública ocidental mas também, e talvez principalmente, por seus principais adversários.

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Os investimentos em Defesa têm experimentado um aumento significativo em escala global. Segundo o Instituto Internacional de Pesquisa para a Paz de Estocolmo (SIPRI), a despesa militar global total registrou um incremento[1] de 3,7% em termos reais em 2022, alcançando um patamar recorde de 2,240 trilhões de dólares. Notavelmente, as despesas militares na Europa apresentaram o maior aumento anual em pelo menos 30 anos. Paralelamente, a OTAN anunciou recentemente um substancial incremento[2] de 12%, elevando seus investimentos para 2.03 bilhões de Euros até 2024. Esses números refletem uma clara resposta ao conflagrado ambiente geopolítico atual, destacando o comprometimento dos países membros da aliança em fortalecer suas capacidades de defesa e a prontidão para enfrentar os desafios emergentes.

Na próxima semana, a OTAN dará início ao que se tornará o maior exercício militar desde o término da Guerra Fria: o “Steadfast Defender”. As manobras militares sinalizam uma clara e renovada ênfase na preparação militar e na coordenação entre os países-membros, evidenciando a determinação da aliança em responder às ameaças percebidas. O Steadfast Defense contará com a participação de 90 mil militares, mais de 50 navios de guerra, aproximadamente 80 aeronaves e 1,1 mil veículos de combate. Destaque-se que o exercício simulará um conflito contra um “adversário de poder militar semelhante” à OTAN, sendo a Rússia o inimigo subentendido, embora não explicitamente nomeado. Este exercício, de magnitude sem precedentes, reforça a prontidão da OTAN com vistas a fortalecer sua capacidade de enfrentar desafios complexos no cenário geopolítico atual.

A intensificação da cooperação entre os países-membros da OTAN é evidenciada por recentes acordos de cooperação e planejamentos estratégicos integrados. Notavelmente, os países bálticos – Estônia, Letônia e Lituânia – solidificaram seu compromisso ao assinar um acordo para a construção da “Linha Defensiva do Báltico”. Este projeto visa a estabelecer uma robusta linha defensiva na fronteira entre essas nações e a Rússia, bem como com a Bielorrússia. A linha defensiva coordenará ações conjuntas dos três países, integrando medidas ativas e passivas de defesa desde os primeiros metros do território, preparando-se para eventuais incursões russas. Essa iniciativa destaca a colaboração proativa dos membros da OTAN na região, fortalecendo a segurança coletiva diante de desafios específicos e reforçando a prontidão para proteger suas soberanias.

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Além dos aspectos acima citados, é crucial ressaltar as declarações públicas proferidas por líderes da OTAN, tanto civis quanto militares, sublinhando a vital importância da prontidão militar e expressando inquietações específicas relacionadas aos desafios à segurança dos países-membros da aliança. O Almirante Rob Bauer, presidente do Comitê Militar da aliança, recentemente afirmou que, embora a OTAN não busque um conflito com a Rússia, está se preparando de maneira ativa para essa possibilidade. Já o ministro da defesa da Alemanha, Boris Pistorius, disse em entrevista que a Rússia poderia atacar a OTAN em menos de uma década, alertando que os estrategistas alemães acreditam que isso seria possível em um intervalo de 5 a 8 anos a partir do fim da guerra na Ucrânia. Essas declarações refletem não apenas o reconhecimento da complexidade do cenário geopolítico atual, mas também a determinação da OTAN em reforçar sua capacidade de resposta diante de potenciais ameaças à segurança coletiva.

Em síntese, a metáfora da “pólvora seca” ressoa de maneira notável no atual cenário geopolítico, onde os líderes da OTAN demonstram não estarem dispostos a deixar os acontecimentos correrem à própria sorte atuando proativamente para a construção de um instrumento militar capaz de fazer face às ameaças. A busca pela prontidão da OTAN para enfrentar desafios é evidenciada não apenas por investimentos substanciais em defesa, mas também pela realização do exercício militar “Steadfast Defender” e pela intensificação da cooperação entre os países-membros, como observado na construção da “Linha Defensiva do Báltico”.

A resposta unificada dos líderes da aliança, expressa por declarações públicas e estratégias coordenadas, reflete a seriedade com que a OTAN encara as ameaças percebidas, principalmente as relacionadas à Rússia. O compromisso declarado de se preparar para eventualidades, destaca a postura prudente adotada pela aliança.

À medida que a incerteza e a conflitualidade permeiam as Relações Internacionais, a OTAN busca integrar a cooperação entre os países-membros e a prontidão. Esta abordagem, alinhada à sabedoria da metáfora, oferece um paradigma eficaz para enfrentar os desafios do século XXI, onde a segurança global demanda uma preparação ativa e uma diplomacia assertiva.

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[1] Veja em https://www.sipri.org/media/press-release/2023/world-military-expenditure-reaches-new-record-high-european-spending-surges

[2] Veja em https://www.reuters.com/world/nato-increases-military-budget-by-12-203-billion-euros-2023-12-13/




Seiscentos dias de guerra na Ucrânia

Hoje, segunda-feira, 16 de outubro de 2023, completam-se seiscentos dias da invasão russa à Ucrânia. Os combates entre ucranianos e russos continuam a acontecer de forma feroz na planície sul da Ucrânia e no leste do país. Os bombardeios russos se mantêm impiedosos, atingindo alvos de forma indiscriminada em todo o território ucraniano. Mas, a opinião pública mundial está concentrada em outra tragédia: a guerra entre Israel e o grupo terrorista Hamas.

Para os ucranianos, que veem sua contraofensiva obter resultados muito mais modestos do que o esperado pelos políticos e pela opinião pública ocidental, que apoia o esforço de guerra ucraniano e está ávida por boas notícias do campo de batalha, a explosão da violência na Terra Santa foi mais uma má notícia. O esforço de guerra ucraniano, totalmente dependente do apoio financeiro e material dos EUA e de seus aliados europeus, agora tem um competidor a dividir as atenções e recursos: o esforço de guerra israelense.

Muitas coisas surpreendentes aconteceram nos últimos seiscentos dias. A primeira delas, é termos chegado a esta data com a Ucrânia ainda combatendo. Quando, em 24 de fevereiro do ano passado, os russos invadiram o território internacionalmente reconhecido da Ucrânia, poucos poderiam prever que a resiliência das forças armadas e do povo ucraniano pudesse nos trazer à situação atual, de seiscentos dias de resistência. Afinal, tratava-se de um ataque em quatro direções estratégicas, duas delas tendo a capital, Kiev, como objetivo, feito por aquele que é considerado o segundo mais poderoso exército do mundo. A Ucrânia era presidida por um político inexperiente, em primeiro mandato, mal avaliado nas pesquisas, que, nos cálculos russos, não tinha condições de fazer face ao desafio e provavelmente fugiria do país. Para o presidente Putin e seu entorno, em duas ou três semanas, no máximo, o exército ucraniano seria batido e seria instalado no palácio presidencial de Kiev um novo governo, chefiado por um líder amigável aos russos, no estilo da vizinha Belarus e do seu eterno presidente Lukashenko.

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Como se sabe, nada disso aconteceu. O exército russo apresentou falhas de planejamento, liderança e execução das operações militares que eram inesperadas em razão de sua fama. O exército ucraniano, por sua vez, bem liderado, bem treinado e usando uma estratégia inteligente, além de táticas, técnicas e procedimentos de combate muito eficientes, conseguiu resistir ao ataque inicial russo, ganhando o tempo necessário para que o indispensável apoio internacional e financeiro começasse a chegar. A liderança política ucraniana, por sua vez, surpreendeu. O presidente Zelensky não fugiu, como esperavam os russos. Pelo contrário: fez o que se espera de um líder político de um país em guerra: galvanizou a vontade de lutar de seu povo, reunindo os apoios internos necessários ao esforço de guerra, ao mesmo tempo em que iniciou uma incessante e bem-sucedida campanha internacional, angariando apoios materiais e financeiros que já somam cifras da ordem de dezenas de bilhões de dólares.

A segunda surpresa foi o fortalecimento da OTAN. Há seiscentos dias, ninguém poderia prever que hoje a Finlândia seria o 31º membro da aliança atlântica, ou que a Suécia estaria às portas de se tornar o 32º. Os dois países renunciaram a políticas de neutralidade longevas e decidiram buscar abrigo no guarda-chuvas dissuasório da OTAN, em uma reação ao expansionismo da Rússia, país contra o qual os dois Estados nórdicos já guerrearam no passado. A resposta praticamente uníssona da Aliança é a antítese do que foi expresso há menos de quatro anos pelo presidente da França, Emmanuel Macron, que afirmou literalmente que a OTAN estava em morte cerebral, no dia 07 de novembro de 2019. O reavivamento da ameaça da guerra contra um inimigo comum foi responsável pela saída da Aliança do estado vegetativo em que se encontrava, de acordo com diagnóstico feito pelo líder francês.

A terceira constatação surpreendente foi a da maior liberdade de ação e autonomia do grupo de países que passou a receber a genérica denominação de “Sul Global”. Países africanos, latino-americanos, do grande Oriente Médio, do Sul e do sudeste asiático, com especial destaque para China e Índia, foram diretamente responsáveis por evitar que as sanções econômicas sem precedentes impostas pelos Estados Unidos, pela Europa e seus principais aliados levassem a Rússia ao colapso econômico. Afinal, se quarenta países sancionam a Rússia, cerca de 2/3 da população do mundo vivem em Estados que não o fazem.

Isso não significa que esses países apoiem a invasão russa. Em março do ano passado, em sessão de emergência da Assembleia Geral das Nações Unidas, 141 nações votaram a favor de uma resolução condenando a agressão da Rússia contra a Ucrânia, 35 abstiveram-se e apenas cinco votaram contra. No entanto, para muitos, esta é uma “guerra europeia”, que não lhes diz respeito, embora sofram as consequências, especialmente nos campos da segurança alimentar e energética. Isso foi expresso de maneira enfática pelo Ministro das Relações Exteriores da Índia, Subrahmanyam Jaishankar, ao afirmar que a Europa “pensa que os problemas da Europa são os problemas do mundo, mas que os problemas do mundo não são os problemas da Europa”. A conclusão mais evidente é a de que, se os Estados Unidos e a Europa não conseguiram levar tantos países a concordarem com suas políticas retaliatórias em relação à Rússia, é porque sua influência e poder globais estão a enfraquecer. Isso reflete um momento de mudanças na arquitetura global de poder, com profundas implicações nas relações entre os Estados.

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As três constatações acima são apenas algumas das que podem ser destacadas dentre tantas surpresas e reviravoltas da política internacional nesses seiscentos dias. Outras devem continuar a surgir, uma vez que, infelizmente, o flagelo da guerra parece não estar próximo do fim nos campos de batalha da Ucrânia.

Os russos e os ucranianos estão atualmente se enfrentando em uma feroz guerra de atrito, com a presente ofensiva ucraniana já chegando a seu ponto culminante e com o período chuvoso e de inverno a transformar o campo de batalha em um imenso lamaçal, que estabilizará as operações nos próximos meses. A guerra, portanto, continuará a cobrar seu enorme preço em vidas humanas e destruição.

A essa situação se some a deflagração da guerra entre Israel e Hamas, apenas no início, mas que, se vislumbra, também se estenderá por um longo período, com todo seu potencial de gerar ainda mais instabilidade no sistema internacional.

Os dois conflitos, separados geograficamente, estão interligados. Como dito no início deste texto, a guerra na Terra Santa tende a beneficiar a Rússia, embora os EUA e seus aliados digam que o apoio a Israel não afetará o apoio à Ucrânia. Mas, repercussões como uma possível crise no abastecimento de petróleo, em uma eventual escalada do conflito, podem ter consequências importantes no Teatro de Operações ucraniano. Isso sem falar nas surpresas e repercussões imprevistas, que assim como no conflito europeu, podem surgir da guerra na Faixa de Gaza.

As guerras em curso afetam terrível e profundamente as pessoas das áreas conflagradas, mas não deixarão ilesos os habitantes dos demais países do globo. Todos já estão sendo indiretamente afetados. E as coisas, infelizmente, não parecem estar destinadas a melhorar no curto prazo.

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Cáucaso em Transformação: Nagorno-Karabakh e suas Implicações Regionais

Em apenas dois dias, com rápidos movimentos de tropas apoiadas por fogos de artilharia, o exército do Azerbaijão retomou o controle sobre toda a região de Nagorno-Karabakh, forçando as lideranças da minoria armênia que controlavam aquele enclave montanhoso, localizado entre os territórios da Armênia e do Azerbaijão, a se renderem. Os azerbaijanos reconquistaram, assim, uma grande porção de territórios, que embora internacionalmente fossem reconhecidos como pertencentes ao Azerbaijão, na prática eram uma região autônoma mantida pelos separatistas, com apoio militar armênio, há cerca de três décadas, desde as guerras que se seguiram ao esfacelamento da antiga União Soviética.

Em 2020, foi travada uma guerra de seis semanas em que o Azerbaijão, fortemente apoiado pela Turquia, derrotou uma Armênia que reclamou não ter recebido o apoio que esperava de seus aliados russos. Como resultado, os azeris reconquistaram porções importantes do enclave, derrotando as forças separatistas e armênias, o que lhes permitiu cercar completamente a região.

As posições operacionalmente vantajosas conquistadas em 2020 permitiram que o Azerbaijão estrangulasse o fluxo logístico para Nagorno-Karabakh, em um cerco que se intensificou no final do ano passado e causou uma grave crise humanitária. O chamado “corredor Lachin”, por onde passa a principal via de transporte que liga o enclave à Armênia, e por intermédio dessa, ao resto do mundo, passou a ser rigorosamente controlado pelas tropas azerbaijanas, causando uma grave escassez de alimentos, medicamentos, produtos de higiene e combustível, o que redundou em uma grave crise humanitária na região.

Figura 1 – Corredor Lachin

Fonte – BBC

É importante destacar que o cessar-fogo de 2020, mediado pela Rússia, e cujo acordo estabeleceu a permanência de forças russas na região, como uma espécie de “tropas de paz”, estabelecia que era das forças russas a responsabilidade pelo controle do tráfego no corredor Lachin. Entretanto, os russos foram incapazes de impedir que o exército do Azerbaijão assumisse esse controle.

Esse é também um indício de que, para fazer valer sua vontade e reconquistar Nagorno-Karabakh em uma operação de apenas 48 horas, os azerbaijanos souberam escolher um momento que lhes favorecia. A guerra na Ucrânia atrai todos os esforços e atenções da Rússia. Assim, a “tropa de manutenção da paz” daquele país, que tinha por finalidade garantir o cessar-fogo acordado sob sua liderança após a guerra de 2020, foi incapaz de qualquer ação que impedisse a ofensiva do Azerbaijão. Houve, inclusive, baixas fatais dentre os militares russos que foram surpreendidos pelo fogo cruzado durante a ofensiva.

A incapacidade da Rússia de impedir a ofensiva do Azerbaijão também pode ser considerada um indicador do declínio da influência russa no sul do Cáucaso. Afinal, a mediação da questão entre a Armênia e o Azerbaijão concedia aos russos uma posição de relevância geopolítica, que eles perdem com o desenlace da crise.

As consequências políticas dos acontecimentos também estão sendo fortemente sentidas em Yerevan, capital da Armênia. Centenas de manifestantes saíram às ruas, furiosos com o governo, em especial com o primeiro-ministro Nikol Pashinyan, acusado de trair os habitantes de etnia armênia de Arstakh, o nome pelo qual Nagorno-Karabakh é conhecido naquele país. Embora o presidente do Azerbaijão, Ilham Aliyev, tenha afirmado que os direitos dos habitantes da etnia armênia seriam garantidos, dadas as circunstâncias históricas, muitas dessas pessoas se opõem veementemente a ficar sob governo azerbaijano, o que cria mais um problema humanitário com os deslocados pela guerra. A solução mais óbvia para essas pessoas deverá ser fugir para a Armênia. Não se descarta o agravamento da crise política naquele país, inclusive com a queda do governo de Pashinyan.

Outros dois países da região têm interesse nos acontecimentos de Nagorno-Karabakh: Turquia e Irã. Os turcos comemoram o resultado do Azerbaijão, um aliado histórico. O lema “dois países, uma nação”, enfatizado pelo presidente da Turquia, Recep Erdogan, é anterior ao seu mandato, e relembra a origem étnica comum das duas nações. Além de acordos na área militar, também são importantes as relações econômicas entre os dois parceiros. Um aspecto muito relevante dessa relação é o energético. O Azerbaijão é o maior fornecedor de gás natural para a Turquia. Os dois países operam em conjunto o gasoduto Transanatólio, que leva gás do Azerbaijão para a Europa via Turquia. Há planos para expansão da rede de gasodutos, incluindo uma iniciativa de trazer gás do Turcomenistão, aproveitando a necessidade de gás europeia, que aumentou muito em razão da guerra na Ucrânia e dos consequentes embargos europeus ao gás russo.

Figura 2 – Gasodutos

Fonte JAM News

O Irã, por sua vez, que possui uma rivalidade histórica com o Azerbaijão, tem visto com grande desconfiança o estreitamento das relações entre aquele país e Israel. Por outro lado, a crescente influência turca no sul do Cáucaso também preocupa os iranianos. É provável que o país tente salvaguardar seus interesses geopolíticos na região com uma postura ainda mais assertiva.

Como se vê, o sul do Cáucaso vive um momento de mudanças geopolíticas. E, como a história ensina, muitas vezes esses momentos são acompanhados por enorme turbulência.

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500 dias de guerra na Ucrânia

Hoje, se completam 500 dias desde que as tropas russas ultrapassaram as fronteiras ucranianas, em 24 de fevereiro do ano passado, no que previam ser uma ação militar fulminante, com a qual esperavam derrotar o exército ucraniano, retirando o presidente Zelensky do poder e substituindo-o por um governante “amigável” ao regime russo.

A invasão russa é flagrantemente ilegal. Contraria, no mínimo, três instrumentos do Direito Internacional dos quais o país é signatário. O primeiro é a Carta da ONU, especificamente o previsto no nº 4 do artigo 2º, que prevê que “os Membros (da ONU) deverão evitar em suas relações internacionais a ameaça ou o uso da força contra a integridade territorial ou a dependência política de qualquer Estado”. O segundo é o Memorando de Budapeste, de 1994, no qual Grã-Bretanha, Rússia e Estados Unidos se comprometeram a “abster-se de recorrer à ameaça ou uso da força contra a integridade territorial ou a independência política da Ucrânia”, em troca da adesão desta ao Tratado de Não Proliferação Nuclear e da entrega à Rússia de todas as suas ogivas nucleares, herdadas da União Soviética. O terceiro é o Acordo de Helsinki, de 1975, quando representantes dos blocos capitalista (ocidental) e comunista (oriental) encontraram-se em Helsinque, para negociações sobre um futuro pacífico para a Europa. Naquela oportunidade, todos os trinta e cinco países signatários, dentre eles a União Soviética, comprometeram-se com “a cooperação econômica, a inviolabilidade das fronteiras, a solução pacífica de conflitos e a não intromissão em assuntos de ordem interna”.

A despeito de tudo isso, os russos, e em especial o presidente Vladimir Putin, apresentam razões históricas e securitárias para justificar a invasão. Tentar compreendê-las não significa concordar com elas. Mas é fundamental para se entender como chegamos a esses quinhentos dias de guerra.

As razões históricas se amparam na narrativa da origem comum de russos e ucranianos, herdeiros do mesmo ente político seminal, a Rus Kievana, proto-estado que há pouco mais de mil anos existiu na porção oriental da Europa. Sob a justificativa da ancestralidade compartilhada, se constrói a retórica de que a própria existência da Ucrânia como um Estado independente é absurda, portanto, a invasão seria justificável na medida em que desfaz uma separação que, a priori, nunca deveria ter acontecido.

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As razões securitárias são relacionadas à sensação de insegurança entranhada na cultura estratégica russa. Terra das planícies intermináveis, que facilitam os movimentos dos exércitos, a Rússia teve seu território invadido inúmeras vezes ao longo de sua história. A começar pelos mongóis no século XIII, mas também em tempos mais recentes. Desde o século XVII até o atual, não houve nenhum em que a Rússia não fosse invadida, a começar pelos poloneses, do rei Sigismundo III, em 1609​, pela Suécia do rei Carlos XII, em 1708​, pela França, de Napoleão, em 1812​ e pela Alemanha, nas duas grandes guerras, no século XX​. Em levantamento feito por Tim Marshall, no livro Prisioneiros da Geografia, se acrescentarmos a guerra na Crimeia, os russos terão combatido na planície norte europeia, ou no entorno dela, em média, uma vez a cada 33 anos, desde as invasões napoleônicas até os dias atuais. Isso significa que todas as gerações de militares russos dos últimos dois séculos participaram de combates na Europa.

É claro que isso tem profundas implicações nas preocupações de segurança e na cultura estratégica russa. É nesse contexto que a paulatina adesão de países cada vez mais a leste da Europa, consequentemente cada vez mais próximos à fronteira da Rússia, à Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), e a perspectiva da entrada da Ucrânia à Aliança, passou a ser vista pelo presidente Putin e seu entorno como uma ameaça insuportável à segurança do país.

Todas essas justificativas possuem contrapontos válidos. Os ucranianos alegam, baseados em boas razões históricas e culturais, possuir uma identidade política, cultural e histórica própria. Europeus e norte-americanos, por sua vez, alegam que a expansão da OTAN não possui caráter ofensivo e que a Rússia não teria nenhuma razão objetiva para se sentir ameaçada.

O fato é que, independentemente da sua ilegalidade, ou de suas justificativas, a guerra de alta intensidade voltou ao coração da Europa e já se prolonga há 500 dias. Cenas que se julgava tivessem ficado na história do Velho Continente, como combates em trincheiras, avanços de colunas de blindados, barragens de artilharia e bombardeios indiscriminados de cidades, voltaram a fazer parte do cotidiano, com toda a sorte de sofrimento humano, prejuízos econômicos e desequilíbrios políticos e geopolíticos que uma guerra dessa natureza produz.

A longa duração do conflito – que no momento atual não permite antever um desfecho em curto prazo – pode ser creditada a dois fatores principais. Em um primeiro momento, à decidida mobilização da sociedade ucraniana, que se reuniu em torno de sua liderança política e de suas forças armadas com o firme propósito de se defender. Isso surpreendeu os russos, que não esperavam encontrar uma resistência tão forte ao seu avanço inicial. Em um segundo momento, ao decidido apoio de norte-americanos, europeus e seus aliados que, por um lado, enviaram aos ucranianos recursos financeiros, treinamento e sistemas e materiais de emprego militar que proporcionaram à Ucrânia as condições mínimas para equilibrar as ações no Teatro de Operações, e por outro, impuseram embargos comerciais à Rússia, que se não a debilitaram decisivamente, como talvez se pudesse esperar, causaram certamente muitos percalços econômicos, com reflexos para seu esforço de guerra.

As operações militares em curso na Ucrânia comprovam mais uma vez o caráter total das guerras, como ensinava Clausewitz, ainda no século XIX. Infelizmente, a violência da guerra vem sendo reiterada a cada um dos últimos 500 dias. Nada mais significativo dessa realidade que a constatação do colossal consumo de munição de artilharia, em especial da de maior calibre. Os Estados Unidos já enviaram à Ucrânia, desde o início da guerra, mais de 1,5 milhões de granadas de 155mm, que são consumidas aos milhares pelos obuseiros ucranianos, todos os dias. Pelo lado russo, estima-se o consumo desse tipo de munição na casa das dezenas de milhares, diariamente. Esses números somente encontram paralelo histórico nas grandes guerras mundiais. A guerra de alta intensidade em curso na Ucrânia usa também outros sistemas e materiais de emprego militar, além de técnicas, táticas e procedimentos de combate típicos das grandes guerras do século 20: vasta utilização de campos de minas, emprego de carros de combate, linhas de trincheiras, baterias antiaéreas, para citar apenas alguns exemplos.

Mas a guerra também aponta para novas tecnologias, como o extensivo uso de sistemas de aeronaves remotamente pilotadas, os chamados drones, mísseis hipersônicos, vasta utilização de sistemas satelitais e guerra cibernética. No campo da informação, as mídias sociais fazem a guerra parecer ser narrada em primeira pessoa, com vídeos de combates onipresentes nas redes, ajudando a conformar narrativas, que os dois lados em disputa tentam fazer prevalecer.

Essa guerra também trouxe de volta – e de forma surpreendentemente preocupante – o espectro do conflito nuclear. O uso da arma nuclear é um tabu, uma vez que, após os terríveis efeitos de sua única utilização, pelos norte-americanos, em Hiroshima e Nagasaki, nunca mais qualquer país ousou sequer ameaçar empregá-la. De lá para cá, potências nucleares perderam guerras, sem jamais recorrer à ameaça de sua utilização. Foi o caso dos EUA, no Vietnã e da União Soviética, no Afeganistão. Mas, na guerra em curso na Ucrânia, isso mudou. A ameaça da escalada nuclear já foi feita diversas vezes ao longo desses 500 dias, por diferentes autoridades russas, sendo verbalizada com especial ênfase – e de forma reiterada – pelo ex-presidente da Rússia, Dmitry Medvedev.

Para além dessas condições táticas e operacionais, é importante também compreender que o conflito gerou crises múltiplas, em diferentes níveis.

A guerra, somada a ascensão chinesa, caracterizam a emergência de um mundo multipolar, onde a hegemonia norte-americana é desafiada. Esse mundo multipolar confere mais liberdade de ação aos países do chamado “Sul Global”, que se sentem mais confortáveis para adotar uma postura independente, descolada, por exemplo, do que norte-americanos e europeus desejariam. Assim, Índia e diversos países africanos, do Oriente Médio e da América do Sul, deixaram de aderir às sanções econômicas impostas pelas potências ocidentais à Rússia. A guerra também mostra a necessidade de reformulação da ONU, em especial de seu Conselho de Segurança, uma vez que o mais importante organismo multilateral se mostra completamente incapaz de mediar um processo de paz.

No campo econômico, a guerra traz consequências desfavoráveis em um ambiente já estressado pela pandemia da Covid 19, especialmente para a Europa. A Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) projeta um crescimento dos países da zona do Euro, em 2023, de apenas 0,9%, muito menor do que se previa antes da invasão russa.

As consequências humanitárias da guerra são graves. As vítimas da guerra, nos dois lados do conflito, já podem ser contadas na casa das centenas de milhar. As pessoas forçadas a migrar para outros países, ou a se deslocarem no interior da própria Ucrânia já são contadas na casa dos milhões, com todas as inúmeras consequências pessoais para os afetados, além das consequências sociais e políticas para as comunidades que recebem os refugiados. Na Ucrânia, a destruição das cidades vai exigir investimentos na casa das centenas de bilhões de dólares para a reconstrução. Isso sem falar dos transtornos causados por munições falhadas, que permanecerão por anos sendo encontradas na Ucrânia e das minas terrestres, espalhadas por milhares de quilômetros quadrados no que exigirão um esforço de anos para serem completamente desativadas.

A essa altura o leitor pode estar se perguntando sobre as perspectivas para o fim da guerra. Confrontos militares dessa natureza só terminam quando um dos contendores – ou os dois – desistem ou são forçados a desistir de lutar. Isso pode acontecer pela derrota militar, como no caso da rendição da Alemanha, que encerrou a Segunda Guerra Mundial. Ou, pela completa exaustão, como aconteceu no conflito Irã x Iraque, em que os dois lados se exauriram completamente, após quase uma década de guerra, chegando a um acordo. Ou, como na Guerra da Coreia, onde a guerra não foi oficialmente encerrada, mas “congelada” por um armistício acertado pelos dois lados após uma estabilização do campo de batalha por cerca de dois anos.

Infelizmente, no caso da Ucrânia, é forçoso se reconhecer que não há, no momento, nenhuma perspectiva realista para o fim da guerra. O presidente ucraniano, Volodymir Zelensky já declarou reiteradas vezes que não aceita negociar enquanto houver tropas russas no território internacionalmente reconhecido como ucraniano. Os seus aliados ocidentais, notadamente os EUA, também já reiteraram a disposição de continuar apoiando decisivamente a Ucrânia, pelo tempo que se fizer necessário. Os russos, por outro lado, estão firmemente aferrados ao terreno conquistado em solo ucraniano, o que tornará a ofensiva que a Ucrânia acabou de iniciar para tentar retomar território uma operação muitíssimo difícil e de resultado bastante incerto. Ademais, do ponto de vista do presidente da Rússia, Vladimir Putin, é impensável recuar suas tropas de volta para a casa sem uma vitória, ainda mais em uma guerra que ele mesmo iniciou. Isso muito provavelmente significaria o fim de sua carreira política como presidente da Rússia.

A guerra pode, dessa forma, perdurar por muito tempo ainda. Do lado ucraniano, tudo depende da disposição de seus parceiros em manter o apoio militar. Do lado russo, é provável que sejam capazes de manter a atual operação defensiva por muito tempo, mantida por suas ainda amplas capacidades militares, na esperança de que os governos do ocidente, em especial dos EUA, encerrem seu apoio à Ucrânia, talvez pressionados por suas populações, quando essas se cansarem da guerra, ou talvez por uma mudança de postura em uma eventual nova administração que possa assumir o governo após as eleições presidenciais do ano que vem.

Finalmente, no triste aniversário de 500 dias da guerra na Ucrânia, não se vislumbra o encerramento do conflito, que infelizmente continuará causando muito sofrimento às populações envolvidas e graves consequências para o restante da humanidade.

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O início da contraofensiva ucraniana

Finalmente, a tão anunciada contraofensiva ucraniana teve início. Junto com ela, a intensificação da disputa de versões e de narrativas, naturais em tempos de guerra, em que cada uma das partes em conflito tenta fazer parecer, à opinião pública local e estrangeira, que a balança da guerra está a pender para o seu lado. Enxergar por entre a bruma da guerra, na magistral imagem clausewitzniana que ilustra a incerteza e a confusão inerentes ao conflito, não é tarefa fácil. Para isso, entretanto, pode-se recorrer à algumas ferramentas, como o conhecimento histórico e doutrinário acerca das operações ofensivas.

Vamos começar por uma definição. Operações ofensivas são operações agressivas, onde predominam o movimento, a manobra e a iniciativa, para lançar-se contra o inimigo, no local e momentos decisivos, destruindo-o ou neutralizando-o. Para ter sucesso, o atacante precisa ter uma superioridade de meios em relação ao seu adversário. Por isso, deve evitar as partes mais fortes do inimigo, procurando forçá-lo a atuar em uma direção inesperada, preferencialmente onde o terreno não esteja preparado para a defesa.

Dito assim, pode parecer simples, mas realmente não é. Por isso, não espere resultados rápidos da ofensiva ucraniana.

No caso, é importante notar que os russos dispõem de uma maior quantidade de soldados; tiveram bastante tempo para preparar suas defesas, construindo centenas de quilômetros de linhas de trincheiras, tanto em largura quanto em profundidade; lançaram muitos campos de minas, ao logo de toda a frente; prepararam os tiros de artilharia, que certamente já estão regulados nas direções de ataque mais prováveis; pré-posicionaram suprimentos logísticos, especialmente munições e treinaram contra-ataques em suas linhas defensivas.

Os ucranianos sabem disso tudo. Por isso, não se espera que os primeiros movimentos – justamente os que estão em curso atualmente – sejam decisivos. Esses devem ser, de acordo com a doutrina e à luz do que a história militar nos ensina, ataques limitados ou secundários, para “testar” as defesas russas, iludi-las quanto à localização do ataque principal, descobrir fragilidades em seus dispositivos e atrair a movimentação das reservas inimigas para determinadas partes da frente de combate. Provavelmente os objetivos ucranianos nesse primeiro momento são curtos, sobre as primeiras linhas de defesa. Conquistando esses pontos na primeira linha, os ucranianos abrem “buracos” na defesa russa, que se sentirá obrigada a deslocar novas tropas para posições mais em profundidade, tamponando as brechas que foram abertas na defesa.

Seguindo-se essa linha de raciocínio, espera-se que os planejadores ucranianos tenham imaginado que, quando essa primeira fase do ataque estiver concluída a figura do campo de batalha vai mostrar pequenos avanços ucranianos em diferentes partes da frente. Prestem atenção a isso quando virem os mapas que serão divulgados pela imprensa.

Quando isso acontecer, os atacantes ucranianos estarão combatendo tropas russas em uma segunda ou terceira linha de defesa, ou seja, mais em profundidade. Lembrem-se que esses defensores mais em profundidade são aquelas reservas, a que me referi antes. Este será o momento para o desencadeamento de uma segunda onda de ataques, em outras partes da frente, essa sim, destinada a alcançar os objetivos decisivos mais em profundidade.

Como as reservas russas não poderão estar em dois lugares ao mesmo tempo, os ucranianos não precisarão enfrentar tantas linhas de defesa. Pelo menos é isso que os planejadores ucranianos provavelmente esperam que aconteça.

Tudo isso levará, no mínimo, algumas semanas para acontecer. A menos que aconteça um desastre nas defesas russas, o que não parece provável neste momento.

Mas prossigamos na tentativa de antever os movimentos do exército da Ucrânia, sempre à luz dos ensinamentos históricos e doutrinários. Se os planos da ofensiva derem certo, os ucranianos controlarão, ao final dessa fase, objetivos operacionais relevantes. Os locais escolhidos para a definição desses objetivos são aqueles que proporcionam aos ucranianos uma vantagem operacional marcante, como a cidade de Melitopol, por exemplo, que interrompe a ligação terrestre entre a Crimeia e a Rússia. De posse desses objetivos, a Ucrânia poderá tentar passar para a próxima fase de seu plano de campanha: o cerco e a destruição. Com as defesas desorganizadas pelo avanço da ofensiva, restarão bolsões russos. Estes passarão a ser cercados e destruídos.

É claro que a visão descrita acima é aquela em que tudo dá certo para os ucranianos. Os russos conhecem a doutrina e a história. Aprenderam com os erros da primeira fase da guerra e farão o que estiver a seu alcance para impedir que isso aconteça.

As próximas semanas e meses serão de combates muito duros na Ucrânia.

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O G7, a guerra na Ucrânia e a China

O Grupo dos Sete (G7), formado por Estados Unidos, Reino Unido, Japão, França, Canadá, Alemanha e Itália, reuniu-se para sua cúpula anual, na cidade de Hiroshima, no Japão, entre os dias 19 e 21 de maio. Além dos países que compõem o grupo, alguns outros foram convidados: Brasil, Índia, Austrália, Coreia do Sul, Vietnã, Indonésia, Ilhas Cook e Comores. Além desses, um chefe de Estado foi recebido, com especial deferência: Volodymyr Zelensky, presidente da Ucrânia, país invadido pela Rússia em 24 de fevereiro do ano passado. Dois assuntos ganharam destaque no encontro: a guerra na Ucrânia e as relações dos países do G7 com a China.

O espectro da guerra em curso no território ucraniano acompanhou toda a reunião. A crise ganhou tal destaque nas conversas que é citada no comunicado final[1] do encontro como primeiro item das medidas concretas que estão sendo tomadas pelo G7: “Estamos tomando medidas concretas para apoiar a Ucrânia pelo tempo que for necessário diante da guerra de agressão ilegal da Rússia”.

A invasão da Ucrânia pela Rússia foi citada como uma séria violação do Direito Internacional, especialmente da Carta da ONU. Em face disso, o G7 se compromete a “intensificar seu apoio diplomático, financeiro, humanitário e militar à Ucrânia, aumentando os custos para a Rússia e aqueles que apoiam seu esforço de guerra e continuar a combater os impactos negativos da guerra sobre o resto do mundo”.

A região do Indo-Pacífico também recebeu destaque na declaração final do encontro. Os países do G7 se disseram comprometidos com um “Indo-Pacífico livre e aberto, que seja inclusivo, próspero, seguro, baseado no estado de direito e que proteja os princípios compartilhados, incluindo soberania, integridade territorial, resolução pacífica de disputas, liberdades fundamentais e direitos humanos”.

As relações dos países do grupo com a China também mereceram uma atenção especial. Eles afirmam que suas políticas não são projetadas para prejudicar a China ou impedir o seu progresso e o desenvolvimento econômico. Pelo contrário, o G7 afirma que uma China em crescimento, que obedeça às regras internacionais, seria de interesse global. Em seguida, entretanto, o grupo afirma que a China praticaria políticas não comerciais, que distorceriam a economia global. O país transferiria ilegalmente tecnologia e divulgaria dados descumprindo as normas internacionais. Outro foco de preocupação do G7 em relação à China é a situação no Mar do Sul da China e em Taiwan. O grupo declarou que se oporia fortemente a qualquer tentativa unilateral de mudança do status quo da região pela força ou pela coerção, em clara referência à situação taiwanesa. Também afirmou ser contrário à militarização do Mar do Sul da China, afirmando que as pretensões territoriais chinesas não encontram amparo na Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Uso do Mar. O grupo ainda se disse preocupado com a situação dos direitos humanos em Xinjiang, no Tibete e em Hong Kong.

Os chineses imediatamente reagiram, se dizendo gravemente preocupados com a declaração. Afirmaram que os países do G7 vêm, ao longo dos últimos anos, interferindo grosseiramente nos assuntos internos da China referentes à Taiwan, Hong Kong, Xijiang e Tibete. Além disso, o grupo semearia a discórdia entre os países no Mar do Sul da China. Em alerta ao Ocidente, os chineses disseram que para a manutenção da paz no Estreito de Taiwan é imperativo que os países do G7 se oponham a qualquer ato que estimule a independência do arquipélago. Os chineses, por fim, pediram ao G7 que “descarte a mentalidade da Guerra Fria e o preconceito ideológico, pare de interferir grosseiramente nos assuntos internos de outros países, pare com a prática de formar pequenos círculos para o confronto em bloco e pare de criar deliberadamente antagonismo e divisão na comunidade internacional”.

As posições apresentadas pelos países que compõem o G7 em sua reunião, que acaba de se encerrar, explicita o momento de intensa disputa geopolítica em curso. A guerra na Ucrânia é um sintoma dessa confrontação, e a troca de acusações entre os países do grupo e a China, é outro. Espera-se que as tensões no Indo-Pacífico não ultrapassem o nível da retórica e evitem a confrontação armada porque, diferentemente da guerra entre russos e ucranianos, onde a participação direta da OTAN no conflito vem sendo evitada, no Mar do Sul da China ou no Estreito de Taiwan essa contenção dificilmente seria possível, o que transformaria tais conflitos em crises muito maiores do que a atualmente em curso na Ucrânia.

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[1] https://www.whitehouse.gov/briefing-room/statements-releases/2023/05/20/g7-hiroshima-leaders-communique/




A Finlândia entra para OTAN

A Finlândia ingressou oficialmente na Organização do Tratado do Atlântico Norte no último dia 04 de abril.  Somou-se, assim, à aliança ocidental de segurança, que agora passa a contar com trinta e um países.

Criada em 1949, no ambiente marcado pela bipolaridade do sistema internacional entre EUA e União Soviética, no pós 2ª Guerra Mundial e início da Guerra Fria, a OTAN se conformou como um arranjo de defesa coletiva, por intermédio do qual os Estados-membros concordam em atuar conjuntamente, em apoio mútuo, caso qualquer um dos países da aliança seja atacado.

Figura 1 – Países da OTAN. Fonte Al Jazeera

O crescimento da organização se deu de forma paulatina. Em 1949, foi constituída por apenas doze membros, dez da Europa Ocidental, mais EUA e Canadá.  Foi com a implosão da União Soviética e o fim da Guerra Fria que a aliança ganhou vários novos integrantes, países localizados cada vez mais ao leste da Europa, no que a Rússia sempre percebeu como sendo o seu “espaço de influência”. Isso aconteceu inclusive com os antigos membros do Pacto de Varsóvia, a aliança militar liderada pela então União Soviética, além de países que a tinham integrado, como os países Bálticos: Estônia, Letônia e Lituânia. A última adesão tinha sido a da Macedônia do Norte, em 2020.

A Finlândia e a Suécia, entretanto, haviam resistido às tentações de entrar para a aliança, adotando uma neutralidade pragmática, que acabou por caracterizar sua postura estratégica até aqui. Os finlandeses tinham boas razões para isso. Parte integrante da Suécia do século doze até 1809, a partir daquele ano seu território passou a ser um Grão Ducado do império russo, conseguindo tornar-se independente apenas após a revolução russa, em 1917. Na segunda guerra mundial, apesar de uma defensiva obstinada na guerra russo – finlandesa, foi obrigada a ceder parcela de seu território à Rússia.

Esse histórico de enfrentamentos com o poderoso vizinho de Leste convenceu os finlandeses de que a coisa certa a se fazer seria, a partir daí, garantir uma neutralidade que, como contrapartida, permitisse uma boa convivência com a Rússia.

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Isso mudou em 24 de fevereiro do ano passado. A invasão do território ucraniano pelos russos trouxe insegurança para a população finlandesa, que passou considerar que a melhor forma de se proteger seria buscar a segurança sob o pacto de defesa coletiva da OTAN.

O desfecho evidentemente desagradou a Rússia, e foi um enorme revés estratégico para o presidente Putin. Afinal, a principal justificativa apresentada pela Rússia para a invasão da Ucrânia foi a aproximação da OTAN de suas fronteiras, desconsiderando os alertas russos e as alegações de que o país sentia sua própria segurança ameaçada. Uma Ucrânia integrada a OTAN era inadmissível para Putin, segundo sua própria lógica.

Acontece que, com a entrada da Finlândia para a OTAN, a fronteira direta entre os países da aliança e a Rússia, que se restringia a poucas centenas de quilômetros com os países bálticos, com a Noruega no extremo Norte, e no exclave de Kaliningrado, foi acrescentada em mais de 1.300 Km de fronteiras diretas entre Finlândia e Rússia.

A expansão da OTAN não se restringirá à Finlândia. A Suécia, que vem tendo seu ingresso postergado pela Turquia, por razões mais explicadas pelas dinâmicas internas da política turca do que de outra ordem, vinculadas a questões que envolvem a concessão de asilo pela Suécia a cidadãos turcos de origem curda acusados de terrorismo, certamente será aceita até o ano que vem.

Uma OTAN fortalecida pela guerra na Ucrânia certamente será um componente fortemente considerado por estrategistas russos, mas também pelos chineses. O desdobramento de armamento nuclear russo em território de Belarus já pode ser considerada uma reação. Outras virão, e isso se refletirá na corrida por maiores investimentos em defesa em todo mundo.

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Xi Jinping e Putin se encontram em Moscou

O presidente da China, Xi Jinping viajou à Rússia, onde se encontrou com o presidente Vladimir Putin, pela quadragésima vez desde que se tornou presidente, em 2013. Tendo sido seu primeiro destino depois de assumir seu terceiro mandato, foi um encontro muito significativo, especialmente por ocorrer em meio à invasão russa à Ucrânia. Até por isso, foi um movimento criticado no Ocidente, onde vozes europeias e norte-americanas denunciaram a visita como uma demonstração explícita do apoio chinês à Rússia.

No documento conjunto[1] divulgado após o encontro, Xi e Putin reafirmaram a solidez da parceria entre os dois países, afirmando que “as relações russo-chinesas […] atingiram o nível mais alto de sua história e continuam a se desenvolver de forma constante”. Os dois países declararam não constituírem uma aliança político-militar nos moldes da Guerra Fria, mas uma “forma superior” de interação estatal, que não se dirige contra terceiros países. Disseram notar a grande velocidade das transformações em curso no mundo, que estaria rumando aceleradamente para um modelo multipolar, em que potências regionais teriam o legítimo direito de defender seus interesses. Para os dois líderes, entretanto, manifestações de hegemonismo, unilateralismo e protecionismo ainda seriam generalizadas no sistema internacional, em uma afirmação claramente endereçada aos EUA.

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Os dois presidentes concordaram em fornecer apoio mútuo na proteção dos interesses fundamentais de cada um de seus Estados, principalmente soberania, integridade territorial, segurança e desenvolvimento; reafirmaram o interesse em aprofundar e expandir a cooperação no processo de modernização de seus países e declararam trabalhar para promover “uma ordem mundial multipolar, a globalização econômica e a democratização das relações internacionais”, para o desenvolvimento de uma “governança global de forma mais equitativa e racional”.

Novamente tendo os EUA como alvo, o documento informa que China e Rússia “se opõem à que um Estado imponha os seus valores a outros Estados, traçando linhas ideológicas, criando uma falsa narrativa sobre o chamado confronto entre democracias e autocracias, usando a democracia e a liberdade como pretexto e instrumento político para pressionar outros Estados” e que “cada Estado tem o direito de escolher independentemente o caminho do desenvolvimento no campo dos direitos humanos”, opondo-se a interferência de forças externas em assuntos internos.

Foram fechados diversos acordos, além de promessas de maior integração nas áreas de Defesa, do comércio bilateral, do setor financeiro, apoiando a expansão do uso de moedas nacionais em suas trocas comerciais, dos setores de energia, indústria, espacial, educacional, cultural e da ciência e tecnologia. As duas partes concordaram ainda em prover a integração entre a União Econômica da Eurásia e a Iniciativa Cinturão e Rota, ou One Belt, one Road.

Em relação à segurança internacional, Putin e Xi Jinping disseram que nenhum Estado deve garantir sua segurança em detrimento da segurança de outro Estado. Essa afirmação se coaduna perfeitamente com a retórica de Putin em relação à ameaça que a aproximação da OTAN das fronteiras russas representaria ao seu país. Os dois líderes também expressaram séria preocupação com a parceria trilateral AUKUS (Austrália – Reino Unido – EUA, para fornecimento de submarinos de propulsão nuclear à Austrália), a qual acusaram de ameaçar a estabilidade estratégica na região do Indo-Pacífico.

Tendo Xi Jinping chegado à Moscou após ter divulgado seu plano de doze pontos para a celebração da paz entre Rússia e China, havia expectativa de que ocorresse algum anúncio nessa direção. Entretanto, a visita não trouxe nenhuma contribuição efetiva para a paz. Anunciou-se entretanto, que o presidente Xi Jinping pretende conversar com o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky sobre sua proposta para o fim das hostilidades.

Durante a visita houve ainda um episódio muito representativo do atual momento de transformações geopolíticas. Ao se despedirem de uma das reuniões, antes de entrar no carro, em frente aos repórteres, Xi disse a Putin que o mundo está vivendo um momento de mudanças, como não se vê há cem anos, e que são eles próprios, os dois líderes, que as estão promovendo. Putin respondeu, concordando. Ao afirmar isso perante as câmeras, Xi assume o protagonismo chinês e concede aos russos um papel relevante no processo de transição em curso no ambiente internacional, rumo a um mundo multipolar, mesmo que o papel da Rússia nessa transformação esteja sendo desempenhado preponderantemente pelo uso do poder militar, em uma guerra de conquista de territórios que contraria princípios basilares do direito internacional.

A viagem de Xi Jinping à Rússia não deixa margem para dúvida acerca do alinhamento das duas nações, acima de qualquer outra relação bilateral que ambos os países possam ter, em claro desafio aos EUA e ao Ocidente que tentam isolar a Rússia. A China, entretanto, redobra a aposta no relacionamento com aquele país. O cálculo chinês passa pela convicção de que um futuro confronto com os EUA no campo militar, se não é uma certeza, é uma possibilidade. E, nesse caso, a China precisará contar com o valioso apoio russo nos campos militar e tecnológico, bem como de seus valiosos estoques de energia.

[1] http://kremlin.ru/supplement/5920

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