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A Finlândia entra para OTAN

A Finlândia ingressou oficialmente na Organização do Tratado do Atlântico Norte no último dia 04 de abril.  Somou-se, assim, à aliança ocidental de segurança, que agora passa a contar com trinta e um países.

Criada em 1949, no ambiente marcado pela bipolaridade do sistema internacional entre EUA e União Soviética, no pós 2ª Guerra Mundial e início da Guerra Fria, a OTAN se conformou como um arranjo de defesa coletiva, por intermédio do qual os Estados-membros concordam em atuar conjuntamente, em apoio mútuo, caso qualquer um dos países da aliança seja atacado.

Figura 1 – Países da OTAN. Fonte Al Jazeera

O crescimento da organização se deu de forma paulatina. Em 1949, foi constituída por apenas doze membros, dez da Europa Ocidental, mais EUA e Canadá.  Foi com a implosão da União Soviética e o fim da Guerra Fria que a aliança ganhou vários novos integrantes, países localizados cada vez mais ao leste da Europa, no que a Rússia sempre percebeu como sendo o seu “espaço de influência”. Isso aconteceu inclusive com os antigos membros do Pacto de Varsóvia, a aliança militar liderada pela então União Soviética, além de países que a tinham integrado, como os países Bálticos: Estônia, Letônia e Lituânia. A última adesão tinha sido a da Macedônia do Norte, em 2020.

A Finlândia e a Suécia, entretanto, haviam resistido às tentações de entrar para a aliança, adotando uma neutralidade pragmática, que acabou por caracterizar sua postura estratégica até aqui. Os finlandeses tinham boas razões para isso. Parte integrante da Suécia do século doze até 1809, a partir daquele ano seu território passou a ser um Grão Ducado do império russo, conseguindo tornar-se independente apenas após a revolução russa, em 1917. Na segunda guerra mundial, apesar de uma defensiva obstinada na guerra russo – finlandesa, foi obrigada a ceder parcela de seu território à Rússia.

Esse histórico de enfrentamentos com o poderoso vizinho de Leste convenceu os finlandeses de que a coisa certa a se fazer seria, a partir daí, garantir uma neutralidade que, como contrapartida, permitisse uma boa convivência com a Rússia.

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Isso mudou em 24 de fevereiro do ano passado. A invasão do território ucraniano pelos russos trouxe insegurança para a população finlandesa, que passou considerar que a melhor forma de se proteger seria buscar a segurança sob o pacto de defesa coletiva da OTAN.

O desfecho evidentemente desagradou a Rússia, e foi um enorme revés estratégico para o presidente Putin. Afinal, a principal justificativa apresentada pela Rússia para a invasão da Ucrânia foi a aproximação da OTAN de suas fronteiras, desconsiderando os alertas russos e as alegações de que o país sentia sua própria segurança ameaçada. Uma Ucrânia integrada a OTAN era inadmissível para Putin, segundo sua própria lógica.

Acontece que, com a entrada da Finlândia para a OTAN, a fronteira direta entre os países da aliança e a Rússia, que se restringia a poucas centenas de quilômetros com os países bálticos, com a Noruega no extremo Norte, e no exclave de Kaliningrado, foi acrescentada em mais de 1.300 Km de fronteiras diretas entre Finlândia e Rússia.

A expansão da OTAN não se restringirá à Finlândia. A Suécia, que vem tendo seu ingresso postergado pela Turquia, por razões mais explicadas pelas dinâmicas internas da política turca do que de outra ordem, vinculadas a questões que envolvem a concessão de asilo pela Suécia a cidadãos turcos de origem curda acusados de terrorismo, certamente será aceita até o ano que vem.

Uma OTAN fortalecida pela guerra na Ucrânia certamente será um componente fortemente considerado por estrategistas russos, mas também pelos chineses. O desdobramento de armamento nuclear russo em território de Belarus já pode ser considerada uma reação. Outras virão, e isso se refletirá na corrida por maiores investimentos em defesa em todo mundo.

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Xi Jinping e Putin se encontram em Moscou

O presidente da China, Xi Jinping viajou à Rússia, onde se encontrou com o presidente Vladimir Putin, pela quadragésima vez desde que se tornou presidente, em 2013. Tendo sido seu primeiro destino depois de assumir seu terceiro mandato, foi um encontro muito significativo, especialmente por ocorrer em meio à invasão russa à Ucrânia. Até por isso, foi um movimento criticado no Ocidente, onde vozes europeias e norte-americanas denunciaram a visita como uma demonstração explícita do apoio chinês à Rússia.

No documento conjunto[1] divulgado após o encontro, Xi e Putin reafirmaram a solidez da parceria entre os dois países, afirmando que “as relações russo-chinesas […] atingiram o nível mais alto de sua história e continuam a se desenvolver de forma constante”. Os dois países declararam não constituírem uma aliança político-militar nos moldes da Guerra Fria, mas uma “forma superior” de interação estatal, que não se dirige contra terceiros países. Disseram notar a grande velocidade das transformações em curso no mundo, que estaria rumando aceleradamente para um modelo multipolar, em que potências regionais teriam o legítimo direito de defender seus interesses. Para os dois líderes, entretanto, manifestações de hegemonismo, unilateralismo e protecionismo ainda seriam generalizadas no sistema internacional, em uma afirmação claramente endereçada aos EUA.

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Os dois presidentes concordaram em fornecer apoio mútuo na proteção dos interesses fundamentais de cada um de seus Estados, principalmente soberania, integridade territorial, segurança e desenvolvimento; reafirmaram o interesse em aprofundar e expandir a cooperação no processo de modernização de seus países e declararam trabalhar para promover “uma ordem mundial multipolar, a globalização econômica e a democratização das relações internacionais”, para o desenvolvimento de uma “governança global de forma mais equitativa e racional”.

Novamente tendo os EUA como alvo, o documento informa que China e Rússia “se opõem à que um Estado imponha os seus valores a outros Estados, traçando linhas ideológicas, criando uma falsa narrativa sobre o chamado confronto entre democracias e autocracias, usando a democracia e a liberdade como pretexto e instrumento político para pressionar outros Estados” e que “cada Estado tem o direito de escolher independentemente o caminho do desenvolvimento no campo dos direitos humanos”, opondo-se a interferência de forças externas em assuntos internos.

Foram fechados diversos acordos, além de promessas de maior integração nas áreas de Defesa, do comércio bilateral, do setor financeiro, apoiando a expansão do uso de moedas nacionais em suas trocas comerciais, dos setores de energia, indústria, espacial, educacional, cultural e da ciência e tecnologia. As duas partes concordaram ainda em prover a integração entre a União Econômica da Eurásia e a Iniciativa Cinturão e Rota, ou One Belt, one Road.

Em relação à segurança internacional, Putin e Xi Jinping disseram que nenhum Estado deve garantir sua segurança em detrimento da segurança de outro Estado. Essa afirmação se coaduna perfeitamente com a retórica de Putin em relação à ameaça que a aproximação da OTAN das fronteiras russas representaria ao seu país. Os dois líderes também expressaram séria preocupação com a parceria trilateral AUKUS (Austrália – Reino Unido – EUA, para fornecimento de submarinos de propulsão nuclear à Austrália), a qual acusaram de ameaçar a estabilidade estratégica na região do Indo-Pacífico.

Tendo Xi Jinping chegado à Moscou após ter divulgado seu plano de doze pontos para a celebração da paz entre Rússia e China, havia expectativa de que ocorresse algum anúncio nessa direção. Entretanto, a visita não trouxe nenhuma contribuição efetiva para a paz. Anunciou-se entretanto, que o presidente Xi Jinping pretende conversar com o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky sobre sua proposta para o fim das hostilidades.

Durante a visita houve ainda um episódio muito representativo do atual momento de transformações geopolíticas. Ao se despedirem de uma das reuniões, antes de entrar no carro, em frente aos repórteres, Xi disse a Putin que o mundo está vivendo um momento de mudanças, como não se vê há cem anos, e que são eles próprios, os dois líderes, que as estão promovendo. Putin respondeu, concordando. Ao afirmar isso perante as câmeras, Xi assume o protagonismo chinês e concede aos russos um papel relevante no processo de transição em curso no ambiente internacional, rumo a um mundo multipolar, mesmo que o papel da Rússia nessa transformação esteja sendo desempenhado preponderantemente pelo uso do poder militar, em uma guerra de conquista de territórios que contraria princípios basilares do direito internacional.

A viagem de Xi Jinping à Rússia não deixa margem para dúvida acerca do alinhamento das duas nações, acima de qualquer outra relação bilateral que ambos os países possam ter, em claro desafio aos EUA e ao Ocidente que tentam isolar a Rússia. A China, entretanto, redobra a aposta no relacionamento com aquele país. O cálculo chinês passa pela convicção de que um futuro confronto com os EUA no campo militar, se não é uma certeza, é uma possibilidade. E, nesse caso, a China precisará contar com o valioso apoio russo nos campos militar e tecnológico, bem como de seus valiosos estoques de energia.

[1] http://kremlin.ru/supplement/5920

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No aniversário da guerra, dois discursos que aumentam as tensões

No dia 21 de fevereiro, no intervalo de poucas horas, os presidentes das duas maiores potências nucleares do planeta discursaram, tendo a guerra na Ucrânia, que no dia 24 completará um ano de duração, como pano de fundo.

Na Rússia, o presidente Vladimir Putin fez seu discurso anual ao congresso e às maiores lideranças civis e militares do país. Na Polônia, o presidente dos EUA, que chegava de uma histórica visita à Kiev, capital da Ucrânia, discursou para uma multidão do lado de fora do Castelo Real da Polônia.

As duas visões de mundo apresentadas não poderiam ser mais contraditórias.

Putin reafirmou sua narrativa, sem surpresas. Responsabilizou o Ocidente e a OTAN, a quem acusa de querer “destruir a Rússia”, pela guerra na Ucrânia. Atacou o governo ucraniano, chamando-o de “regime neonazista”, enfatizando que a Rússia não desistiria de seus objetivos.

Além disso, Putin reforçou a narrativa da guerra cultural, colocando a Rússia como o país que protege os verdadeiros valores cristãos e acusando o Ocidente de “destruição da família”.

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Joe Biden, por sua vez, reafirmou o compromisso dos EUA com a Ucrânia, instando as demais nações do mundo a assumirem um compromisso com o país. Afirmou que a democracia global estava em jogo e acusou a Rússia de cometer graves crimes contra civis.

Em resposta à acusação que Putin tinha feito horas antes, disse que foi a Rússia quem escolheu a guerra e que o Ocidente nunca havia planejado invadir a Rússia. Mas, afirmou que os EUA, a Europa e o mundo foram testados pela invasão russa, uma vez que teriam que escolher entre apoiar os ucranianos ou fazer vista grossa. A decisão, de acordo com o presidente dos EUA, não poderia ser outra a não ser apoiar os ucranianos.

Entretanto, foi um anúncio de Putin que teve maior repercussão. O presidente russo anunciou que seu país suspenderia o cumprimento do previsto no tratado Novo Start, de 2011, que limita em 1.550 o número de ogivas nucleares, além de controlar a quantidade de lançadores e de mísseis balísticos intercontinentais que podem ser desdobrados por EUA ou Rússia.

O acordo prevê 18 visitas anuais das equipes de controle de cada um dos lados, de modo a garantir o cumprimento das resoluções. Essas visitas já estavam, na prática, interrompidas há três anos, primeiramente em razão da pandemia da Covid-19 e, depois, por causa da guerra na Ucrânia. Com a decisão anunciada por Putin, a Rússia simplesmente não aceitará mais as visitas.

Os russos afirmaram, entretanto, que não se trata de “se retirar” do acordo, e que não têm intenção de aumentar seu arsenal nuclear, mantendo-o na quantidade atual. Mas, Putin afirmou que “se os EUA realizarem testes, nós também o faremos”.

Dessa forma, o último acordo que regulava os arsenais nucleares entre as duas potências cai por terra. Outros acordos de não proliferação, incluindo o Tratado de Forças Nucleares de Alcance Intermediário, do qual os EUA se retiraram em 2018, no que foram seguidos pela Rússia em retaliação, desmoronaram nos últimos anos.

O fim dos acordos de controle das armas nucleares entre EUA e Rússia, em um contexto em que os dois países acirram suas retóricas, em plena guerra na Ucrânia, não é um bom presságio. Ainda mais se se juntam a este contexto o desenvolvimento cada vez maior da missilística intercontinental da Coreia do Norte, o desenvolvimento do programa nuclear iraniano e a intenção chinesa de elevar seus estoques de armas nucleares ao mesmo nível dos russos e norte-americanos.

O resultado dessa conjuntura é a possibilidade cada vez maior de o mundo observar o surgimento de novos atores com capacidade nuclear. Recentes pesquisas na Coreia do Sul indicam que 76% dos sul-coreanos defendem que o país desenvolva e adote armas nucleares como forma de dissuasão.

Desconfio que se essa pergunta for feita em vários outros países, os resultados podem ser semelhantes.

A sensação de insegurança, cada vez maior, já está acelerando os gastos militares em todo o mundo. Os discursos de Putin e Biden nada mais fizeram do que explicitar cabalmente essa insegurança.

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A OTAN dobra a aposta

A ajuda militar à Ucrânia anunciada nos últimos dias por Estados Unidos, França e Alemanha, além das promessas no mesmo sentido feitas por outros países europeus, aumentará significativamente o poder de combate ucraniano para a guerra contra a Rússia em 2023. 

Embora o apoio ocidental à Ucrânia até aqui tenha sido fundamental para evitar uma derrota para os russos, é importante notar que o que aconteceu recentemente, com os anúncios de novas levas de ajuda militar feitos de forma praticamente simultânea por EUA, França e Alemanha, foi uma indicação de que esses países dobram a aposta e se comprometem definitivamente com a causa ucraniana. 

Isso porque, desta vez, além de fornecer os itens que já vinham repassando desde o início da guerra, os ocidentais resolveram apoiar com materiais militares que podem fazer grande diferença em favor dos ucranianos. Os alemães anunciaram o envio de 40 Viaturas Blindadas de Combate de Infantaria (VBCI) Marder. Os norte-americanos, por sua vez, enviarão 50 VBCI Bradley M2A2 e 18 obuseiros autopropulsados M109 Paladin. Já os franceses, garantiram o envio de Viaturas Blindadas de Combate de Cavalaria (VBCCav) AMX-10 RC. Em conjunto, essas viaturas vão aumentar a potência de fogo, a mobilidade, a proteção blindada, a ação de choque e a capacidade de comunicação das tropas de infantaria, cavalaria e artilharia ucranianas, o que sem dúvida será muito útil na ofensiva de primavera, a ser provavelmente desencadeada pelos ucranianos assim que as condições meteorológicas se mostrarem mais favoráveis. 

Ainda não são os Carros de Combate Principais, os mais importantes meios blindados para uma operação ofensiva, como os Leopard II alemães, os Leclerc franceses ou os Abrams norte-americanos. Mas, parece que esses, apesar de escassos nos inventários de todos os exércitos do mundo, também poderão ser enviados à Ucrânia em curto prazo.  Finlândia e Polônia já declararam que podem ceder seus carros à Ucrânia, caso a Europa encontre uma forma de doação coletiva que mantenha o poder de combate dos países doadores. Outra possibilidade que vem sendo aventada é a de o Reino Unido enviar os carros Challenger II. 

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É claro que o simples envio dos blindados não resolve a questão. É necessário providenciar o treinamento das tripulações e assegurar a complexa cadeia logística de cada um dos blindados. O carro francês, por exemplo, possui um canhão de calibre 105 mm, que não usa munição padrão OTAN, exigindo uma cadeia de suprimentos específica. Não é um esforço trivial ou simples de ser executado. 

O movimento das potências ocidentais certamente provocará reações por parte da Rússia. O Kremlin reforçará a retórica, especialmente para sua própria população, de que a Rússia não enfrenta apenas a Ucrânia, e sim toda a OTAN. Com isso, a população russa poderia ser levada a aceitar com mais facilidade as provações a que está sendo submetida pela guerra, incluindo-se aí uma nova mobilização de recrutas. Serviços de inteligência ocidentais teriam informações de que, dessa vez, o objetivo seria o de recrutar meio milhão de soldados, e que tal movimento poderia ocorrer a partir de março.

Ao mesmo tempo, os russos intensificarão seu esforço de guerra, como já anunciou o presidente Putin. Além disso, provavelmente buscarão novos fornecedores externos de material de emprego militar, além de intensificar as importações que já fazem do Irã e, muito provavelmente, também da Coreia do Norte. A Rússia poderá ainda pressionar seus aliados por mais apoio, especialmente Belarus e demais países aliados da Organização do Tratado de Segurança Coletiva (OTSC): Armênia, Cazaquistão, Quirguistão e Tajiquistão. China e Índia dificilmente concordarão em exportar armas ao país, pelo menos de forma ostensiva, mas continuarão fundamentais aos russos do ponto de vista econômico. 

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Também é provável que a Rússia amplifique sua retórica nuclear, reforçando em declarações de suas autoridades as capacidades do país e enfatizando aos líderes do Ocidente que poderia usar armas atômicas caso alguma “linha vermelha” russa venha a ser ultrapassada pelos ucranianos ou pelo próprio Ocidente. 

Em síntese, o que se vê com esse movimento Ocidental de reforçar as doações de material bélico à Ucrânia é a OTAN redobrando sua aposta na Ucrânia. Entretanto, o inimigo não é débil. Longe disso, está aprendendo com os erros que cometeu até aqui.  

Assim, não se pode fazer nenhuma previsão de encerramento do conflito em curto prazo. Pelo contrário, 2023 provavelmente será um ano de combates ainda mais encarniçados em território ucraniano. 

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Os principais pontos de tensão geopolítica em 2023


O novo ano traz muitos desafios para a paz mundial. Na Europa, a guerra de alta intensidade provocada pela invasão russa da Ucrânia continua longe de um final. Na Ásia, a China reafirma seus interesses no Indo-Pacífico com crescente assertividade, enquanto a Coreia do Norte prossegue em seus programas nuclear e de mísseis e o Japão anuncia um amplo programa de modernização de suas forças armadas, que prevê que o país passará a ser o terceiro do mundo em investimentos militares até 2027. No Oriente Médio, o Irã exporta armas para a Rússia em guerra e mantém seu programa nuclear ao mesmo tempo que, em Israel, Netanyahu está de volta ao poder, liderando um governo nacionalista que tenderá ao confronto, não à acomodação, com os palestinos e iranianos. O continente africano segue sendo palco de dezenas de conflitos armados. Na América Latina, apesar da ausência de conflitos formais, a atuação de grupos criminosos e narcoterroristas, especialmente na Colômbia e no México, se mantém como um fator de instabilidade.

Em 2023, a guerra na Ucrânia prosseguirá, com alguns cenários possíveis. O primeiro é aquele em que a Rússia, que reforçou seus efetivos pela mobilização de centenas de milhares de soldados, retoma a iniciativa e inicia uma ofensiva para tentar controlar inteiramente as províncias de Kherson e Zaporizhzhia, no Sul da Ucrânia, e Lugansk e Donetsk, no Leste do país, todas anexadas ilegalmente ao território russo em 2022. O segundo cenário contempla a Ucrânia, fortemente apoiada financeira e materialmente pelos EUA e países europeus, prosseguir no esforço de retomar os territórios perdidos. Um terceiro cenário seria a Rússia novamente tentar conquistar a capital, Kiev, atacando por Norte, a partir do território bielorrusso. Um quarto cenário, menos provável, mas mais perigoso, seria o transbordamento da guerra para fora do território ucraniano, para a Transnístria, na Moldávia, ou para Belarus, ou mesmo para um país membro da Otan, como a Polônia. Esta última possibilidade poderia provocar uma escalada acentuada do conflito, com repercussões inimagináveis.

Nenhum dos cenários acima contempla a possibilidade de paz em curto prazo, uma vez que nem Rússia, nem Ucrânia, possuem poder militar/econômico suficiente para atingir os objetivos descritos nos cenários acima, especialmente em curto prazo. Uma guerra termina quando um dos contendores desiste da luta, concordando com termos que lhe são desvantajosos para celebrar a paz. Essa não parece ser uma opção para os ucranianos, que como o presidente Zelensky repetidas vezes afirmou, não aceita ceder territórios ao invasor. Como retirar as tropas para celebrar a paz também não é uma opção para o presidente Putin, que não teria como justificar para o povo russo uma invasão que não redundasse em nenhum ganho para a Rússia, o impasse prosseguirá.

Assim, é certo que até que se encontre uma saída para essa encruzilhada, a guerra prosseguirá na Europa, e com ela todas as repercussões sociais, políticas, econômicas e comerciais, como a escassez energética, a inflação e o aumento do fluxo de refugiados servindo como exemplos. Tal situação provavelmente levará a uma diminuição do apoio da opinião pública europeia à Ucrânia, e a uma consequente pressão pelo fim das hostilidades, o que colocará os líderes europeus diante de uma escolha entre duas opções, ambas ruins. A primeira seria pressionar a Ucrânia a buscar imediatamente a paz, o que levaria os europeus a admitir que a Rússia ampliasse seus territórios pela conquista em uma guerra, um fato inadmissível para as potências ocidentais. A segunda seria apoiar ainda mais a Ucrânia com armas, equipamento e dinheiro, tentando desequilibrar a balança da guerra em seu favor, o que poderia levar a Rússia a uma escalada, não se descartando o uso de artefatos nucleares táticos, com repercussões ainda mais graves.

Dado o exponencial crescimento da conflitividade do ambiente, é certo que os investimentos em defesa continuarão a crescer na Europa, em ritmo que não era visto desde o fim da Guerra Fria. Os países da comunidade europeia já concordaram em aumentar seus gastos, de modo que em 2027 se somem cerca de 70 bilhões de dólares aos pouco mais de 200 bilhões atualmente aplicados. A Polônia se destaca nesse quesito, devendo passar a ter o mais poderoso exército europeu nos próximos anos. Por outro lado, apesar dos embargos econômicos impostos pelo Ocidente e em boa medida driblados pelo incremento das relações comerciais russas com parceiros como a Índia e a China, o presidente Putin tem reiterado que continuará a incrementar os investimentos em defesa do país.

Na Ásia, o presidente da China, Xi Jinping, após garantir um terceiro mandato inédito, enfrenta dificuldades sociais e econômicas. O fim da política da Covid Zero, após a pressão de protestos ocorridos em diferentes regiões do país, ocasionou um exponencial aumento dos casos e das mortes, que colocam em risco o sistema de saúde e a confiança do povo no gerenciamento da pandemia por parte do Partido Comunista. Isso ocorre ao tempo em que a economia desacelera, a crise no setor imobiliário persiste e o desemprego, especialmente dentre os mais jovens, atinge níveis elevados. Ainda no campo interno, uma questão bastante sensível é a que envolve a minoria uighur da província de Xinjiang, onde o governo chinês é acusado de violações graves dos direitos humanos.

Ao mesmo tempo, a China coleciona situações de potencial conflito com seus vizinhos. Há a questão da ilha de Taiwan, que possui um governo autônomo, mas é considerada uma província rebelde que deverá ser reincorporada à soberania chinesa. Há também disputas fronteiriças com a Índia, que volta e meia retornam à baila em razão de incidentes entre as tropas de fronteira e a disputa com o Japão pelas ilhas Senkaku, chamadas pelos chineses de Diaoyu Dao, além dos embates no Mar do Sul da China, com diversos países vizinhos.

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A acirrada competição geopolítica e comercial entre os Estados Unidos e a China se manterá em 2023. Os EUA sustentarão sua presença no Indo-Pacífico, fortalecendo parcerias e alianças naquela região com o objetivo de garantir sua influência. Tal atitude certamente provocará reação chinesa, uma vez que os interesses das duas potências em vários momentos serão conflitantes.

Na península da Coreia, o ditador Kim Jong un continua a acelerar os programas nuclear e de mísseis, com um recorde de lançamentos e testes em 2022. A guerra na Ucrânia ofereceu uma oportunidade ao país, que enfrenta há anos embargos econômicos, para a venda de armamentos. Há notícias de venda de armas para a Rússia e o prolongamento da guerra deverá constituir oportunidade para intensificação dessas vendas, ainda que de forma velada.

A Coreia do Sul, por sua vez, divulgou sua estratégia para a região do Indo-Pacífico, destacando que a capacidade nuclear, assim como o programa de mísseis da Coreia do Norte, são uma forte ameaça à paz na região.

A movimentação militar da China e da Coreia do Norte provocou a reação do Japão, que após aprovar uma nova estratégia nacional de segurança, divulgou um amplo programa de modernização de suas forças armadas, com um substancial incremento de seus investimentos em defesa, que deverão duplicar até 2027, o que colocará o país em terceiro lugar no mundo no quesito investimentos militares.

No Oriente Médio, o Irã prossegue no desenvolvimento de suas capacidades nucleares, que voltaram a ser desenvolvidas com o fim do acordo nuclear, em 2018. O país já enriquece urânio a níveis próximos dos necessários à fabricação da bomba nuclear, mas nega a intenção de possuir tal tipo de armamento. O Irã vem sendo palco de uma série de manifestações populares, desde a morte de uma jovem da minoria curda, após ser presa pela polícia dos costumes do país. O regime vem reprimindo as manifestações com violência, já tendo, inclusive, condenado manifestantes à morte, sendo pouco provável que os protestos venham a ameaçar a estabilidade do governo. Mas, a guerra na Ucrânia se mostrou uma oportunidade para os iranianos venderem material de emprego militar aos russos, especialmente sistemas de aeronaves remotamente pilotadas e as loitering munitions, conhecidas como “drones kamikazes”. Especula-se que, em troca, os russos poderiam auxiliar os iranianos em seu programa nuclear.

Em Israel, Benjamin Netanyahu reassumiu o governo, formando uma coalizão nacionalista e escalando alguns ministros com um histórico de ações anti-palestinas. Ele afirmou, em diversas oportunidades, que Israel não admitirá que o Irã alcance o status de potência nuclear, de modo que as tensões entre os dois países deverão se elevar ainda mais na gestão do novo primeiro-ministro israelense.

Além disso, a rivalidade entre Arábia Saudita e Irã permanece alta. Os dois países estão com as relações diplomáticas rompidas desde 2016 e apoiam lados contrários nas guerras civis do Iêmen e da Síria, além de disputarem a proeminência geopolítica na região.

A África e a América Latina, que convivem há anos com conflitos que, embora causem muito sofrimento às populações locais, são crônicos e considerados de baixa intensidade, apresentam pontos locais de tensão que merecerão a atenção dos governos e dos organismos multilaterais regionais sem, entretanto, afetar significativamente a geopolítica global.

Nas relações entre os países, o chamado Dilema de Segurança surge como um paradoxo inerente ao próprio Sistema de Estados. Afinal, uma razão fundamental para a existência do Estado é proporcionar segurança aos seus cidadãos em relação a ameaças externas e internas. Para isso, ao identificar ameaças, o Estado investe em sistemas de armas para sua defesa, mas isso faz com que ele próprio passe a representar uma ameaça aos outros Estados, que também passam a se armar. É o que popularmente se chama “corrida armamentista”.

Como procurei demonstrar, em 2023 o mundo observará a instalação desses dilemas de segurança em três regiões ao mesmo tempo: na Europa, em razão da guerra da Ucrânia, na região do Indo-Pacífico, em razão da crescente tensão nas relações entre os principais atores regionais e entre a China e os Estados Unidos, e no Oriente Médio, motivada pela desconfiança mútua entre Irã, Israel e Arábia Saudita. Esses três serão, portanto, os principais focos de tensão geopolítica do mundo em 2023.

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Trezentos dias de guerra na Ucrânia

No dia 21 de dezembro, a invasão russa à Ucrânia completou 300 dias. A marca impressiona pela persistência do conflito que, antes de iniciar, era dado como improvável e que, depois de iniciado, era apontado como um evento destinado a ser de curta duração. Afinal, o poderio militar russo, incontestavelmente superior, deveria sobrepujar as defesas ucranianas em questão de dias. Mas a guerra, já ensinava Clausewitz, é o “reino da incerteza” e, ao se atingir a tricentésima alvorada do conflito, a máxima do general prussiano se vê confirmada mais uma vez.

Estamos acompanhando a uma guerra de alta intensidade, com largo emprego de artilharia e de blindados, operações aeromóveis, milhares de quilômetros quadrados de áreas minadas, combates em localidades, ampla destruição de infraestrutura de uso civil, mobilização de reservistas, milhões de refugiados e dezenas de milhares de mortos e de feridos. Uma guerra daquelas que os europeus imaginavam que não mais seria travada, pelo menos em seu próprio continente.

A crença no “fim das guerras” se refletiu na relativa desaceleração dos investimentos em Defesa nas duas primeiras décadas do século 21 e no descrédito dos próprios europeus ocidentais em sua aliança militar, a OTAN. Nesse sentido, o presidente francês Emmanuel Macron, em uma entrevista publicada na revista The Economist, em novembro de 2019, afirmou que não sabia se o compromisso da OTAN com a defesa coletiva ainda era válido e que a aliança estava passando por “morte cerebral” devido à falta de coordenação estratégica e liderança dos Estados Unidos.

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Nesse contexto, e certamente muito mal impressionado pelas imagens desastrosas de afegãos desesperados pendurados nas aeronaves norte-americanas quando da retirada das tropas daquele país do Afeganistão, o presidente Putin começou a ficar excessivamente confiante. Acreditar na própria propaganda é um erro que líderes autocráticos cometem com frequência ao longo da história, e Putin talvez tenha acreditado demais no suposto “declínio do Ocidente”. Ele aparentemente julgou que dispunha de capacidades militares e econômicas mais que suficientes para impor uma derrota rápida aos ucranianos, instalar um governo simpático à Rússia em Kiev e consolidar a posse da Crimeia, além da instalação de dois Estados fantoche, as repúblicas de Lugansk e Donetsk, palcos da guerra civil financiada pelos russos contra a Ucrânia desde 2014.

Mas, aos russos, “faltou combinar com os ucranianos”. Foi nesse ponto que surgiu uma liderança surpreendente e improvável, o presidente Volodymir Zelensky. O humorista, político inexperiente em primeiro mandato, mostrou a que veio logo em sua primeira decisão crucial, a de permanecer em Kiev. Os EUA ofereceram providenciar sua evacuação, mas sua resposta foi: “A luta é aqui. Eu preciso de munição, não de uma carona”. A partir de então, o presidente ucraniano fez o que se espera de um líder de um país em guerra: galvanizou os esforços de construção de um arco de alianças, que ficou consubstanciado no enorme apoio em recursos financeiros e material de emprego militar que o país vem recebendo ao longo desses trezentos dias, e liderou seu próprio povo no esforço de guerra. Ele foi visto frequentemente visitando as frentes de combate e hospitais e dirige-se diariamente à população, conquistando apoio e respeito dos ucranianos, que é refletido nas altas taxas de popularidade do presidente.

Mas é claro que a liderança de Zelensky não é a única explicação para a impressionante resiliência ucraniana. O exército do país aprendeu muito desde a tomada da Crimeia pelos russos e o início na guerra na região do Donbass, em 2014, e demonstra ser uma força bem treinada e bem liderada. Além disso, há o fundamental apoio material do Ocidente, mais especificamente dos países da OTAN, aquela mesma aliança desacreditada pelo presidente Macron em 2019, a quem a guerra de Putin não somente fez reoxigenar, como também expandir em direção às fronteiras russas, com os avançados processos de inclusão da Suécia e Finlândia. Sem modernos sistemas de armas como o lançador múltiplo de foguetes norte-americano HIMARS, sem as centenas de milhares de granadas de artilharia, sem o apoio em inteligência e cibernética, e principalmente sem o apoio financeiro dos países da OTAN, a guerra já teria sido vencida pelos russos.

Os russos, ao depararem-se com a surpreendente resistência oferecida pela Ucrânia, além das já esperadas sanções econômicas – que se diga, não atingiram os efeitos esperados pelo Ocidente – foram forçados a adaptar sua estratégia e alterar seus objetivos. Aparentemente, ficariam satisfeitos se o término da guerra lhes premiasse com a posse dos territórios hoje ocupados, nas províncias da Lugansk, Donetsk, Zaporizhzhia e Kherson, além da Crimeia.

Mas, se de um lado a Ucrânia não parece estar disposta a ceder nenhum centímetro de seu território, de outro, ao presidente russo, seria impensável sair da guerra sem qualquer conquista, uma vez que seria impossível justificar ao povo russo a “operação militar especial”, seus enormes prejuízos econômicos e as milhares de vítimas.

Assim, o impasse permanece garantido, e é ainda prematuro fazer qualquer previsão realista de um final para essa guerra em um curto prazo.

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A ameaça nuclear de Putin

No discurso feito no último dia 21 de setembro, em que anunciou a “mobilização parcial” dos meios em pessoal e material para a guerra na Ucrânia, o presidente Putin ameaçou utilizar seu arsenal nuclear: “…gostaria de lembrar àqueles que fazem afirmações sobre a Rússia que o nosso país também dispõe de vários meios de destruição e que, em alguns casos, eles são mais modernos do que os dos países da Otan. Se a integridade territorial russa for ameaçada, utilizaremos todos os meios disponíveis para proteger a Rússia e o nosso povo.” Não é a primeira vez que Putin ou outras autoridades russas acenam com a carta nuclear desde o início da guerra. Em maio, o chanceler Sergey Lavrov, já havia afirmado que o perigo de uma escalada nuclear era “sério, real e não deveria ser subestimado”.

A frase de Putin foi dita no contexto da realização dos referendos que os russos e seus proxies promoveram em quatro províncias ucranianas que atualmente se encontram parcialmente ocupadas pelas tropas russas: Lugansk, Donetsk, Zaporzhizia e Kherson. O resultado do referendo, como era evidente, decidiu pela incorporação dos territórios à Rússia, o que já foi formalizado pelo governo russo.

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Uma vez anexadas, na narrativa engendrada por Putin, aquelas áreas passaram a ser Rússia, e suas populações, “povo russo”, mesmo que toda a comunidade internacional permaneça considerando-as solo e povo ucranianos.

Assim, a guerra, na narrativa russa, deixa de ser travada em solo ucraniano e passa a ser disputada em território da própria Rússia. O emprego de “todos os meios disponíveis” passa a ser legitimado pela narrativa da defesa do próprio território. O uso da arma nuclear pelos russos deixaria de ser uma ação ofensiva, uma vez que se tratava de uma invasão de um país soberano, para ser uma ação defensiva, a defesa de seu próprio território.

É evidente que a maior parte da comunidade internacional não aceitou a anexação. Mas, para Putin, isso não faz a menor diferença. A guerra claramente não saiu como ele previa e a contraofensiva ucraniana, que causa enormes perdas em pessoal e material às suas forças armadas, já o obrigou a mobilizar tropas pela primeira vez desde a Segunda Guerra Mundial, uma medida que vem se mostrando muito impopular na Rússia. Não conquistando os objetivos iniciais e vendo sua popularidade diminuir, Putin precisa pelo menos salvar as aparências, propósito a que a anexação das quatro províncias pode servir, pois seria uma situação que poderia ser apresentada aos cidadãos russos como uma vitória.

Mas, os ucranianos já demonstraram não estar dispostos a renunciar a seus territórios e uma paz que exigisse essa condição certamente seria recusada por Kiev. Caso a ofensiva ucraniana continue obtendo êxitos, teme-se que Putin, cada vez mais acuado pelos insucessos na guerra e pelas pressões internas, resolva fazer o impensável: apelar ao seu arsenal nuclear.

Caso tomasse essa decisão, Putin ultrapassaria seu Rubicão, provocando reações por parte dos EUA, da OTAN e da Ucrânia que podem não ser exatamente aquelas que ele prevê. O mais provável é que ele fizesse isso como uma demonstração de força e de disposição para escalar o conflito, lançando um artefato nuclear tático. Há várias formas de se definir esse tipo de armamento nuclear, mas, para simplificar, basta dizer que se trata de uma arma com menor alcance e menor poder explosivo, destinada a ser utilizada no próprio Teatro de Operações, muitas vezes na presença das tropas da própria força que a utiliza.

Também se especula que os russos a lançariam sobre o mar – poderia ser no Mar Negro, por exemplo – ou em alguma região rural, pouco habitada e relativamente isolada na Ucrânia que, não nos esqueçamos, é um país de grande extensão territorial. Os russos também poderiam lançar suas bombas sobre efetivos militares ucranianos, o que exigiria a utilização de várias armas ao mesmo tempo. Em um cenário ainda mais grave, as bombas poderiam ser utilizadas contra cidades ucranianas.

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A lógica russa por trás desse ataque seria o pressuposto – correto – de que os EUA e a OTAN não desejam escalar o conflito para se contrapor diretamente aos russos. Nessa linha de raciocínio, uma ação nuclear não ensejaria uma resposta nuclear, dada a mútua destruição assegurada de um conflito dessa natureza. Mas, ao lançar as bombas atômicas, Putin tentaria demonstrar que diferentemente dos ocidentais, não temeria essa escalada e que seria exatamente isso que estaria prestes a acontecer caso a Ucrânia não mudasse de rumo e aceitasse negociar uma paz nos termos russos. Seria o que se denomina “escalar para desescalar”: levar o conflito a um nível insuportável para obrigar a rendição do inimigo.

Ocorre que mesmo no cenário mais brando, da explosão sobre o mar ou em áreas desabitadas, causando relativamente poucas baixas, essa seria uma escalada no conflito que exigiria que os principais atores do sistema internacional se posicionassem, e eles o fariam, isolando ainda mais a Rússia.

Países que tem evitado posicionar-se contra a Rússia, em especial China e Índia, certamente desaprovariam vigorosamente a ação. Embora provavelmente continuassem a manter distância do conflito, evitando envolvimentos, e provavelmente pugnassem pela imediata negociação entre as partes, eles acabariam por aderir a novos embargos e sanções contra a Rússia, deixando o país presidido por Putin completamente isolado.

Já os EUA e a OTAN, poderiam reagir, em tese, de uma das seguintes formas:

  1. Contra-atacando o território russo com armas nucleares
  2. Atacando convencionalmente as forças russas na Ucrânia ou mesmo fora daquele território.
  3. Aumentando ainda mais o apoio à Ucrânia, fornecendo mais armamentos, de tipos ainda não disponibilizados, como mísseis de longo alcance, e recursos financeiros, além de assessoria militar e de inteligência.
  4. Pressionando a Ucrânia a resolver o conflito, dando à Rússia uma saída honrosa.

As hipóteses 1 e 2 mudariam fundamentalmente a natureza do conflito, uma vez que a OTAN e os EUA passariam a estar diretamente envolvidos. A hipótese 4 é politicamente inviável, dada a solidariedade e o apoio até aqui oferecidos à Ucrânia pelo Ocidente. Mais do que isso, significaria que a chantagem nuclear teve sucesso, um desdobramento que os EUA e a OTAN não podem admitir. Assim, considero as hipóteses 1 e 4 muito improváveis. A segunda hipótese, pouco provável, somente seria adotada caso o ataque nuclear russo à Ucrânia causasse muitas e insuportáveis baixas.

Dessa forma, creio que a terceira hipótese seja a que seria adotada, à qual se somaria a organização de embargos que isolariam quase completamente a Rússia do Sistema Internacional. O problema de se aumentar ainda mais o apoio à Ucrânia em armamento convencional, é que isso poderia estimular os russos a novos empregos de armas nucleares táticas, com alvos mais relevantes, levando o conflito a uma nova e mais perigosa escalada.

Potências nucleares já foram derrotadas em guerras convencionais. Os EUA, no Vietnã, e os próprios russos, no Afeganistão. Mas a situação que se apresenta na guerra da Ucrânia é inteiramente nova pois, pela primeira vez, desde 1945, um país que detém armamento nuclear admite empregá-lo contra um adversário que não possui o mesmo recurso. Isso leva a um questionamento. Nesta circunstância, uma potência nuclear pode ser derrotada?

Por considerar que não pode, é que Putin e os seus generais acenam com a possibilidade de usar a arma atômica. Os desdobramentos, caso isso aconteça, serão gravíssimos.

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O legado de Mikhail Gorbachev

Morreu Mikhail Gorbachev, aos 91 anos, no último dia 30 de agosto. O líder russo foi uma dessas pessoas cuja existência influiu direta e decisivamente no curso da história. A vida de milhões de pessoas, bem como a história de dezenas de países, mudou decisivamente em razão de sua atuação como último líder da extinta União Soviética.

Filho de camponeses do sudoeste da Rússia, na juventude Gorbachev trabalhou em uma fazenda coletiva, ingressando na Liga da Juventude Comunista aos quinze anos, em 1946. Formando-se em Direito em Moscou em 1955, progrediu na hierarquia local do Partido até tornar-se primeiro secretário do Comitê Regional do Partido Comunista, em sua cidade de Stavropol, em 1970.

Em 1980, tornou-se membro do Politburo. Durante o mandato de 15 meses de Yury Andropov (1982-1984) como secretário-geral do Partido Comunista, Gorbachev tornou-se um dos membros mais ativos do Politburo. Com a morte de Andropov e a assunção de Konstantin Chernenko como secretário-geral, em fevereiro de 1984, Gorbachev tornou-se um sucessor natural ao cargo.

O destino moveu as peças muito rapidamente. Chernenko morreu em 10 de março de 1984. No dia seguinte, Gorbachev assumia a liderança do Partido Comunista da União soviética e, em consequência, de todo o país. Os soviéticos viam a assunção do terceiro líder em três anos.

Gorbachev rapidamente entendeu que deveria transformar a economia soviética, estagnada há anos. Tentou modernizar o país tecnologicamente, aumentar a produtividade do trabalhador e tornar a pesada burocracia soviética mais eficiente.

Em 1987, teve início a “Glasnost”, política soviética de discussão aberta de questões políticas e sociais, permitindo uma maior liberdade de crítica e de opinião, inclusive na imprensa. Foi essa política que permitiu mudanças fundamentais na estrutura política da União Soviética. O poder do Partido Comunista foi reduzido e ocorreram eleições com candidaturas múltiplas. A Glasnost permitiu críticas a funcionários do governo e uma divulgação mais livre de notícias e informações pelos meios de comunicações.

A “Perestroika” foi a outra política importante implementada por Gorbachev. Tinha o objetivo de reestruturar a políticas econômica e a organização política da União Soviética. A Perestroika diminuiu o poder central do Estado soviético e incrementou o poder dos governos locais. Em 1988, um novo parlamento, tanto no governo central quanto nos locais, foi criado, com a possibilidade de se elegerem parlamentares não-comunistas.

Dessa forma, Gorbachev acabou se tornando o principal responsável pelos acontecimentos que mudaram o curso da história em 1989, culminando com a queda do muro de Berlim e o fim da Guerra Fria. Ao longo daquele ano, ele apoiou os comunistas reformistas nos países do bloco soviético da Europa Oriental e, quando os regimes comunistas desmoronaram como dominós no final daquele ano, Gorbachev concordou tacitamente com suas quedas.

Em 1990, ele concordou com a reunificação da Alemanha Oriental com a Alemanha Ocidental assentindo, inclusive, com a perspectiva de que a nação reunificada passasse a integrar a OTAN, aliança inimiga da União Soviética. Em 1990, Gorbachev recebeu o Prêmio Nobel da Paz por suas notáveis realizações nas relações internacionais. No campo interno, no mesmo ano, Gorbachev foi eleito Presidente da URSS, cargo que não existia, e o Congresso, sob sua liderança, aboliu o monopólio do poder político pelo Partido Comunista, abrindo caminho para que outros partidos chegassem ao poder.

Apesar de bem-sucedido em encaminhar seu país em direção a uma democracia representativa, Gorbachev falhou na condução da economia, ficando “no meio do caminho” entre uma economia de mercado e a antiga economia planificada. Isso levou a uma sensível piora nas condições econômicas do país em 1990.

A frustração da linha dura do Partido Comunista com os rumos do país redundou em uma tentativa de golpe de estado, em 19 de agosto de 1991, que não foi bem-sucedida pela firmeza da reação de Boris Yeltsin, presidente da República da Rússia, até aquele momento uma das repúblicas integrantes da União Soviética. Gorbachev retornou ao poder depois de dois dias de prisão domiciliar, mas sua posição estava irremediavelmente enfraquecida.

Yeltsin saiu fortalecido do episódio e, em 25 de dezembro de 1991, a União Soviética foi dissolvida, com as repúblicas soviéticas se reunindo em uma comunidade de nações sob a liderança do presidente russo. Gorbachev via as reformas que implementou provocarem um resultado que ele não esperava e nunca desejou: a implosão da União Soviética.

Gorbachev é visto, de forma geral, de maneira diametralmente oposta pelo Ocidente e pelos russos. Se no Ocidente ele é visto de forma predominantemente positiva, como um promotor da democracia e o responsável pelo fim da Guerra Fria, na Rússia ele é responsabilizado pelo desmoronamento da URSS – acontecimento que o presidente Putin considera o maior desastre geopolítico do século 20 – e pela pesada herança de uma Rússia fraca e instável nos anos 1990. Um exemplo de sua baixíssima popularidade foi o resultado de sua candidatura às eleições presidenciais de 1996, quando obteve menos de 1% dos votos.

Trata-se, portanto, de um desses personagens trágicos da história, amado e odiado, mas cuja obra individual afetou decisivamente, e como poucos, o curso da história.




Um mundo mais perigoso

Mesmo o observador mais desatento já percebeu que algo está fora de ordem no mundo. A Europa caminha para completar seis meses assistindo a uma guerra de alta intensidade em seu território. Mísseis chineses cruzam o espaço aéreo de Taiwan para atingir mares da Zona Econômica Exclusiva do Japão. Foguetes palestinos cruzam-se no ar com mísseis israelenses, de forma tristemente rotineira. Autoridades iranianas dizem que, embora não desejem, poderiam construir a bomba atômica, se quisessem, a qualquer momento. No Cáucaso, azerbaijanos e armênios rompem o frágil cessar-fogo na região de Nagorno Karabakh. Tudo isso em meio ao agravamento das consequências das mudanças climáticas, da gravíssima crise alimentar na África, da resiliência da pandemia da covid e do surgimento de uma possível nova pandemia, da varíola dos macacos.

A solução para tantas controvérsias internacionais e desafios mundiais, na ordem internacional pós-guerra fria, teria de passar obrigatoriamente por uma ação concertada dos Estados, tendo a Organização das Nações Unidas (ONU) como centro de gravidade. Mas não é isso o que se vê. A ONU, modelada pelos vencedores da 2.ª Guerra Mundial, está sendo incapaz de fazer face aos desafios que se impõem. Seu Conselho de Segurança, instância mais importante do organismo e local em que tais assuntos são prioritariamente tratados, está bloqueado, com a Rússia exercendo constantemente seu poder de veto.

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Toda essa instabilidade não ocorre por acaso. Estamos a assistir às dores do fim de uma ordem internacional estabelecida no pós-guerra fria e o surgimento de outra, ainda lutando para emergir; um momento em que as velhas certezas foram postas em dúvida e as novas ainda não surgiram, em que as instâncias de poder, os freios e contrapesos que valiam antes, perdem aceleradamente sua relevância. Percebendo o momento, os principais Estados do sistema internacional se movimentam na defesa do que consideram ser seus interesses vitais.

A invasão russa à Ucrânia, flagrantemente ilegal sob o prisma do Direito Internacional, é a culminância de um processo de décadas, para o qual Vladimir Putin vinha preparando seu país há alguns anos. Em 2007, numa conferência na Alemanha, Putin declarou que o mundo testemunhava um “quase incondicional hiperuso da força nas relações internacionais, força que está mergulhando o mundo num abismo de permanente conflito”. Ele se referia, obviamente, aos EUA. Um ano depois dessa declaração, os EUA declararam que Geórgia e Ucrânia, dois antigos Estados da União Soviética, poderiam se unir à Otan. Para Putin, era mais um exemplo deste “hiperuso da força”. Ato contínuo, a Rússia invadiu a Geórgia. Em 2014, aconteceu o que Michael Mandelbaum, no livro The Four Ages of American Foreign Policy (Ed. Oxford, 2022), considera ser o episódio que é, ao mesmo tempo, símbolo e causa do fim da era pós-guerra fria: a anexação da Crimeia e a guerra civil provocada pelos russos na Ucrânia. Os russos procuravam mudar o status quo do continente, desafiando, em última análise, o país que era seu garantidor: os EUA. Como obteve êxito em 2014, Putin se sentiu confiante para a invasão de 2022.

Percebendo que sua segurança está em risco, os países europeus resolveram prestar atenção a uma verdade que foi bem sintetizada numa máxima atribuída frequentemente a Rui Barbosa: “Uma nação que confia em seus direitos, em vez de confiar em seus soldados, engana-se a si mesma e prepara a sua própria queda”.

Desde que a invasão da Ucrânia pela Rússia começou, em fevereiro, os Estados-membros da União Europeia anunciaram aumentos nos gastos com defesa no valor de cerca de € 200 bilhões. Isso representa uma enorme mudança. Entre 1999 e 2021, os gastos combinados do bloco em defesa haviam aumentado apenas 20%, em comparação com 66% dos EUA, 292% da Rússia e 592% da China.

Deste modo, a Alemanha anunciou um vigoroso aumento dos investimentos em defesa, a começar por uma injeção de € 100 bilhões. A Polônia decidiu aumentar seus gastos para 3% do PIB, anunciando a aquisição de centenas de veículos blindados e aeronaves. A França anunciou um aumento de € 3 bilhões em seus investimentos, para citar apenas alguns exemplos.

O rearmamento dos países europeus ocorre de forma simultânea ao aumento das tensões na Ásia, onde, no Estreito de Taiwan, se desenrola a maior crise desde a década de 1990 e, no Japão, toma vulto um movimento para a modificação da Constituição pacifista e reestruturação das Forças Armadas. Ao mesmo tempo, no Oriente Médio, o Irã se aproxima da fabricação da arma atômica.

A solução para a diminuição de tantas tensões passaria, necessariamente, por uma revisão das instâncias de interlocução entre os países, especialmente da mais importante delas, a ONU. Urge modernizar suas estruturas, tornando-a mais representativa da ordem internacional atual, para que ela possa, de fato, ser eficaz em seu propósito primeiro: manter a paz e a segurança internacionais.

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A liderança política na guerra da Ucrânia

Uma boa definição de liderança é a adotada pelo Exército Brasileiro: “A liderança militar consiste em um processo de influência interpessoal do líder militar sobre seus liderados, na medida em que implica o estabelecimento de vínculos afetivos entre os indivíduos, de modo a favorecer o logro dos objetivos da organização militar em dada situação”[1].

Ou seja, o líder deve se esforçar em construir engajamento, deve levar as pessoas a quererem fazer o que deve ser feito para o atingimento dos objetivos da organização a que todos pertencem.

A guerra da Ucrânia contrapõe dois líderes políticos, os presidentes Volodymyr Zelensky e Vladimir Putin. Putin está no poder há mais de 22 anos, sendo um líder experiente e experimentado na cena internacional. Já conduziu seu país por crises e guerras. Lidera de forma autocrática, cercado por um grupo fiel de assessores que estão ao seu lado há vários anos e que, por isso mesmo, dificilmente divergem de suas decisões. Coerentemente com esse estilo de liderança, permanece afastado, cultivando uma imagem quase venerável. A foto de uma reunião, no início da guerra, com seus mais importantes generais, Shoigu e Gerasimov, sentados em uma extremidade de uma enorme mesa, à uma grande distância do líder, bem representa essa postura.

Para conduzir os russos na direção dos objetivos que ele traçou, Putin se apoia em uma narrativa que tenta transmitir aos seus concidadãos uma situação de relativa normalidade. Nesse sentido proibiu que a guerra seja chamada pelo que é – efetivamente uma guerra – determinando que ela fosse apresentada aos russos apenas como uma “Operação Militar Especial”. Coerentemente com essa narrativa, até o momento, não decretou uma mobilização geral, evitando assim reconhecer que o país necessite adotar medidas extraordinárias em razão do conflito.

Putin apela ao nacionalismo e ao orgulho russos, alegando que o país estava sendo ameaçado pela expansão da OTAN em direção às fronteiras russas e que as minorias étnicas russas na Ucrânia estavam sendo maltratadas pelo governo ucraniano. Ele recorre constantemente às imagens de grandeza do império russo e desdenha da legitimidade da própria existência da Ucrânia como nação independente. Esse discurso encontra eco na sociedade russa e as taxas de aprovação de Putin, que estavam em torno de 60% antes da guerra, passaram a ser de mais de 80%[2] depois do início do conflito.

Zelensky, por sua vez, é um outsider, novato na política, o que torna seu caso interessante de ser analisado sob o prisma dos estudos de liderança. Comediante famoso em seu país, foi guindado à presidência sem antes ter passado por qualquer cargo político. Eleito em 2019 com mais de 70% dos votos, sua aprovação pelos ucranianos, no início de 2022, estava em torno de 30%. Após o início do conflito, sua popularidade triplicou, passando de 90% de aprovação[3].

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Tal fato demonstra que, quando testado pelo conflito, Zelensky surpreendeu a todos fazendo basicamente o que se espera de um líder político nessas situações: galvanizar a vontade de lutar do povo ucraniano e angariar apoios internacionais fundamentais ao esforço de guerra de seu país.

Para efetivamente exercer a liderança, a pessoa deve reunir três qualidades fundamentais: proficiência profissional, ou seja, saber fazer o que deve ser feito no cargo que desempenha; senso moral, servindo de exemplo das virtudes morais esperadas dos liderados; e atitude, tomando as medidas adequadas, no tempo correto, em prol do atingimento dos objetivos almejados por toda a coletividade.

Zelensky soube exercer a presidência em tempos de guerra, até o momento, atendendo a esses requisitos. Mantendo-se no nível de decisão político/estratégico, delegou as decisões de nível operacional e tático aos generais ucranianos. Manteve-se na capital do país, Kiev, durante todo o tempo, mesmo na fase inicial da guerra, com a cidade sob ataque e quando se acreditava que as tropas russas conquistariam a capital rapidamente, demonstrando com isso coragem pessoal e empatia com a população.

Utilizando com maestria sua capacidade de comunicação, cultivada certamente pela profissão de ator, Zelensky passou a se dirigir diariamente à população, sempre com uma mensagem de otimismo e de união do povo ucraniano. Ao mesmo tempo, se dirigiu à comunidade das nações, falando em inúmeros fóruns por videoconferência, conversando com os mais importantes chefes de Estado, inclusive recebendo muitos deles em Kiev. Soube assim aproveitar-se da boa vontade já existente em favor da Ucrânia no Ocidente para angariar apoios importantíssimos para o esforço de guerra ucraniano.

Zelensky é visto visitando as tropas e condecorando soldados, inspecionando hospitais, indo à frente de combate. Ele se comunica diretamente ao mundo pelas redes sociais. Sua mensagem é de colaboração, objetivos compartilhados e formação de equipe.

Tal estilo de liderança, entretanto, não o constrange de tomar medidas duras, se julgar necessário. Um exemplo foi o recente afastamento de seu chefe do serviço de inteligência, um amigo de infância, além da procuradora geral, em razão de centenas de casos de servidores acusados de traição e colaboracionismo com os russos.

Ao se comparar os estilos de liderança de Zelensky e Putin, vemos as enormes diferenças entre os dois. É inegável que Zelensky se comunica muito melhor e com mais facilidade, e comunicação é uma capacidade fundamental aos líderes. Seu estilo é mais adequado aos parâmetros ocidentais modernos, de uma liderança participativa, que conta com o engajamento e as ideias dos liderados.

Putin prefere o estilo autocrático, que chama para si a responsabilidade das decisões, estabelecendo objetivos, fixando normas e avaliando resultados. Ele é o único a encontrar as soluções e espera que sua equipe cumpra seus planos e ordens sem qualquer tipo de ponderação.

É inegável que ambos os estilos apresentam resultados. Pessoalmente, prefiro o estilo participativo, mas sei que haverá momentos em que cabe somente ao comandante supremo a decisão, sendo necessária uma ação imediata, sem espaço para ponderações.

Das guerras sempre emergiram, ao longo da história, líderes que souberam conduzir povos e exércitos em face a enormes desafios. Não será diferente agora. Caso a Ucrânia venha a ser exitosa, conseguindo, se não a vitória completa, que parece ser muito distante nesse momento, pelo menos um acordo de paz digno, que mantenha o país independente e viável, não tenho dúvidas, Zelensky, um ator ucraniano desconhecido, será alçado a condição de um dos mais importantes líderes do século 21, um século até aqui bastante carente de figuras políticas inspiradoras.

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[1] Manual de Liderança Militar do Exército Brasileiro. Leia em https://bdex.eb.mil.br/jspui/bitstream/123456789/302/1/C-20-10.pdf

[2] Veja em https://www.statista.com/statistics/896181/putin-approval-rating-russia/

[3] Veja em https://www.newstatesman.com/chart-of-the-day/2022/03/how-president-zelenskys-approval-ratings-have-surged