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Chineses e taiwaneses prestam atenção à Ucrânia

Estrategistas de todo o mundo estão atentos aos acontecimentos em curso na invasão russa à Ucrânia. Por dever de ofício, são obrigados a analisar os acontecimentos não só no campo militar, mas também em seus aspectos políticos, econômicos, sociais, culturais e tecnológicos.

Mas há dois grupos de analistas especialmente interessados nos desdobramentos do conflito: os chineses e os taiwaneses. A razão para isso está no paralelismo que pode ser encontrado nas aspirações russas de absorver parte do território ucraniano com a possibilidade de os chineses também conduzirem uma operação militar para reintegrar Taiwan à soberania da China continental.

É importante, de início, deixar claras as diferenças existentes entre os dois casos. Em primeiro lugar, relembre-se que a Ucrânia é um país soberano, reconhecido por todos os países do mundo, inclusive pela Rússia. Já Taiwan, embora na prática seja um ente político independente, não é reconhecido desta forma pela comunidade internacional. A ampla maioria dos países reconhece a República Popular da China e, por consequência, formalmente concorda com princípio de “uma só China”, que aquele país advoga como exigência fundamental para o estabelecimento de relações com qualquer nação.

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A política externa da Rússia e da China em relação ao uso de suas forças armadas como instrumento de projeção de poder também apresenta diferenças. Os russos enviam tropas ao exterior para operações militares com frequência, como na própria Ucrânia, em 2014, além de Geórgia, Síria, Belarus e Casaquistão, sem falar no grupo mercenário Wagner, que trabalha em perfeito alinhamento com os interesses russos em dezenas de países. Já os chineses, embora tenham adotado um comportamento mais assertivo nos últimos anos, especialmente por intermédio de sua marinha no Mar do Sul da China, excetuando-se os contingentes que compõem as missões de paz da ONU, desdobrou tropas para uma ação militar no estrangeiro pela última vez na campanha contra o Vietnã, no já longínquo ano de 1979.

Para os russos, que negaram até o último instante a intenção de invadir a Ucrânia, a causa da guerra está ancorada nas preocupações com uma Ucrânia cada vez mais sob a influência do Ocidente, caminhando para uma adesão à Otan que, desde o ponto de vista da Rússia, representaria uma ameaça à sua segurança. Já para os chineses, que nunca negaram a possibilidade de agir militarmente, a reunificação de Taiwan é um objetivo permanente a ser perseguido, reiterado em várias oportunidades pelo presidente Xi Jinping e presente em diversos documentos do Estado chinês.

Mas, se as diferenças são marcantes, são as semelhanças que atraem os estrategistas de ambos os lados do Estreito de Taiwan a se debruçarem sobre algumas questões: a comunidade internacional reagiria no caso de uma invasão chinesa a Taiwan de forma semelhante à adotada no caso ucraniano? A surpreendente resiliência ucraniana na defesa de sua pátria seria reproduzida também pelos defensores da ilha de Taiwan? O Exército de Libertação Popular da China, muito menos experimentado em combate que o poderoso exército russo, enfrentaria as mesmas dificuldades operacionais e logísticas que são observadas pelos invasores da Ucrânia?

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A reação da comunidade internacional a uma invasão a Taiwan seria modulada principalmente pela provável aceitação, por muitos países, da narrativa chinesa de que se trataria de uma questão interna, e não de uma agressão a um país estrangeiro, uma vez que Taiwan não é um Estado soberano. Este seria um pretexto ideal para todos os países que, em razão dos enormes interesses econômicos envolvidos, dependem da manutenção de boas relações com a China. Mas, certamente, essa não seria a posição dos EUA e seus principais aliados: Canadá, cerca de três dezenas de países da Europa Ocidental, Austrália, Japão e Coreia do Sul. A este conjunto restariam a alternativa pouquíssimo provável de atuar militarmente em apoio a Taiwan ou a replicação das sanções econômicas – como impostas à Rússia –, com a enorme diferença de que sancionar a China, maior parceira econômica da maior parte das nações do mundo, é tarefa muitíssimo mais complicada do que embargar economicamente a Rússia.

Taiwan, ao que parece, já percebeu, observando a invasão da Ucrânia, que estará sozinha no campo militar, caso seja invadida. Várias recentes notícias dão mostras de que a ilha se prepara para a hipótese de ter de se defender sozinha. O anúncio da possível ampliação do tempo do serviço militar obrigatório, a aquisição de sistemas antiaéreos Patriot, dos EUA, e o desenvolvimento próprio de um míssil com alcance de 1.200 km, assim capaz de atingir importantes cidades chinesas, são exemplos claros dessa atitude.

As diferenças e semelhanças da guerra na Ucrânia com uma possível crise no Estreito de Taiwan, como se vê, merecem ampla reflexão. Esperemos que as conclusões sejam as que levem à solução pacífica das controvérsias e à paz mundial.

Este artigo foi originalmente publicado no jornal O Estado de S. Paulo, em 03/05/2022

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O fantasma do emprego de uma bomba nuclear volta a assombrar

A possibilidade de emprego de uma arma nuclear tática pelos russos, na guerra da Ucrânia, embora remota, não pode ser descartada. Antes de tratar desta possibilidade assustadora, vejamos como tudo começou.

A Era nuclear, ou atômica, teve início com o teste do primeiro artefato dessa natureza, no deserto do Novo México, nos EUA, em 16 de julho de 1945. Cerca de mês depois, os EUA lançariam as duas únicas bombas nucleares lançadas até hoje em uma situação de conflito, sobre as cidades japonesas de Hiroshima (06 de agosto 1945) e Nagasaki (09 de agosto 1945).

Em Hiroshima, apenas uma fração de segundo após a detonação, a temperatura ao nível do solo ultrapassou 7.000o C e uma poderosa onda de choque varreu a paisagem. De uma população de 343.000 habitantes, cerca de 70.000 pessoas morreram instantaneamente, e até o final do ano, o número de mortos ultrapassou 100.000. Dois terços da área da cidade foram destruídos. “Sombras nucleares” eram tudo o que restava das pessoas que haviam sido submetidas à intensa radiação térmica. Uma enorme nuvem em forma de cogumelo subiu a uma altura de mais de 12 km.

Na manhã de 09 de agosto, os soviéticos, que acabavam de declarar guerra ao Japão, já haviam invadido a Manchúria e as ilhas Sakalinas. Os japoneses, mesmo atacados em Hiroshima, não falavam em rendição. Então aconteceu o ataque a Nagasaki, com 40 mil vítimas instantâneas. No dia 14, os japoneses aceitavam os termos aliados. Era o fim da 2ª Guerra Mundial. O impacto do ataque norte-americano causou profundas transformações na forma como os estrategistas da época passaram a encarar as possibilidades de conflitos entre potências nucleares.

A estratégia atômica, ou melhor, a aplicação pela estratégia das consequências da arma atômica, produziu importantes reviravoltas na concepção do emprego das forças, sob o ponto de vista da guerra ou da manutenção da paz.

A arma atômica não é uma arma como as outras, apenas mais poderosa. Por sua potência, ela está fora de proporção com tudo que a humanidade havia conhecido até o seu desenvolvimento. Além disso, os vetores que transportam as armas nucleares podem atingir qualquer local do Globo terrestre, com precisão notável, com uma rapidez que, na maior parte das vezes, inviabiliza uma resposta defensiva. Esses vetores compõem a capacidade de lançamento de um arsenal nuclear, comumente conhecida por “tríade nuclear”. Os componentes dessa tríade são os mísseis balísticos intercontinentais terrestres, os bombardeiros estratégicos e os mísseis balísticos lançados por submarinos.

Essa característica de incomparável poder destrutivo, os terríveis efeitos da radiação nuclear, aliada ao fato de poder ser lançada sobre qualquer ponto da Terra pelos modernos meios de lançamento, criou uma situação inteiramente nova: uma única bomba passou a ser capaz de produzir os efeitos que antes só poderiam ser alcançados com enormes quantidades de bombas, granadas, aviões, canhões e obuseiros.

As bombas nucleares liberam sua energia pelos processos de fissão ou fusão nuclear, ou pela combinação dos dois processos. As bombas de fissão são comumente chamadas de bombas atômicas. As bombas de fusão são as termonucleares, ou de hidrogênio. Seu poder destrutivo é de tal magnitude, que duas unidades de medidas tiveram que ser criadas: o quiloton, que corresponde 1.000 Ton de TNT, e o megaton, que corresponde a 1.000.000 Ton do mesmo explosivo. A bomba de Hiroshima, por exemplo, era de cerca de 15 quilotons. A maior bomba já testada, a russa “Tsar”, chegou à inacreditáveis 57 megatons, potência suficiente para destruir uma grande cidade, do porte das maiores capitais do mundo.

As armas nucleares tiveram um imenso e rápido desenvolvimento durante a Guerra Fria, o enfrentamento entre os EUA e seus aliados, de um lado, e União Soviética e seus satélites, de outro, entre 1945 e 1991. Para se ter uma ideia, em 1966, o arsenal nuclear norte-americano alcançava cerca de 32 mil armas, de 30 diferentes tipos. Os soviéticos, por sua vez, em 1988 chegaram a possuir um arsenal de 33 mil bombas. Após a desintegração da URSS, seu arsenal foi herdado pela Rússia.

Mas EUA e Rússia não são os únicos países possuidores de armamento nuclear. Reino Unido, França, China, Índia, Paquistão, Coreia do Norte e Israel, embora este último país não reconheça, também possuem tais armas em seus arsenais.

Na Guerra Fria, cada um dos lados se deparou com a realidade de que a única maneira de evitar um ataque nuclear por parte do adversário, que certamente resultaria na destruição completa do Estado, seria impor ao oponente o medo de represálias. Para isso, era preciso possuir uma força de ataque de potência suficiente para desviar o adversário do propósito de empregar a sua força. É a chamada Estratégia da Dissuasão.

dissuasão repousa antes de tudo sobre o fator material: é preciso ter um grande poder de destruição, um alcance adequado e uma boa precisão. Outro fator a se considerar é, qual dos dois partidos será o primeiro a atirar. Este cálculo não tinha grande importância na época dos aviões relativamente lentos, porque os prazos de execução decorrentes do alerta eram tais que o ataque e a resposta se cruzavam no ar.

Com os mísseis, entretanto, não há mais dissuasão se a primeira rajada do atacante possuir capacidade de destruição tal que a resposta do defensor seja consideravelmente enfraquecida. Assim, o valor da dissuasão encontra-se ligado não à potência de fogo da força de ataque, mas à sua potência de fogo restante, após ter sofrido os efeitos da primeira rajada do defensor.

Assim, é importante o fator psicológico. O que se quer é impressionar o adversário até o ponto de impedi-lo de usar sua força de ataque. Então é preciso, antes de mais nada, ter uma capacidade de destruição tal que ele a tema suficientemente. Em seguida, é imperioso levá-lo a crer que se é capaz de desencadear uma represália em resposta, ou numa primeira rajada, qualquer que seja a hipótese.

Todos os cálculos levados em consideração para o desenvolvimento da Estratégia da Dissuasão Nuclear levavam em consideração as armas nucleares estratégicas. É sobre elas que estamos a falar até este ponto. São as armas de grande poder destrutivo que podem ser levadas pelos vetores da tríade nuclear a qualquer parte do Globo Terrestre.

Mas, e aqui começamos a nos aproximar da questão referente ao temor que envolve o atual conflito na Ucrânia, existem também as chamadas armas nucleares táticas. Elas são armas de muito menor poder explosivo, desenvolvidas para serem utilizadas no campo de batalha, mesmo na proximidade de tropas amigas ou em territórios em disputa ou contestados.

Podem ser bombas de gravidade, lançadas por bombardeiros, ou podem ser mísseis de curto alcance, granadas de artilharia, minas terrestres, cargas de profundidade, ou torpedos que estejam equipados com cabeças de guerra nucleares. Não há uma definição universalmente aceita para a potência de tais armas, mas elas podem ser bastante limitadas, de 0,5 a 5Kt, por exemplo.

Estima-se que, hoje em dia, a Rússia possua cerca de 2 mil armas nucleares táticas em seus arsenais. Dois sistemas de armas que podem conduzir em seus mísseis cabeças de guerra deste tipo são o “Kalibr”, míssil lançado a partir de submarinos e o “Iskander”, lançado de plataformas terrestres móveis.

Os russos utilizam em seus planejamentos militares uma estratégia chamada de “Escalar para Desescalar”. Tal ideia pressupõe uma ação de alto impacto — como o lançamento de uma arma nuclear tática no campo de batalha — de modo a causar tamanha repercussão no adversário, e na sua opinião pública, que ele será forçado a recuar.

A preocupação, cada vez maior, é a de que o presidente Putin, caso sinta-se encurralado, ou perceba que seus planos na Ucrânia estão falhando e pressinta que o insucesso pode ameaçar até mesmo sua permanência no poder, determine o uso de uma bomba nuclear tática como um “divisor de águas”, para reverter a situação e evitar a derrota.

Tal cálculo leva em consideração a premissa, provavelmente verdadeira, de que o uso de uma bomba atômica de pequeno porte não provocaria uma reação no Ocidente que causasse uma confrontação nuclear. Para isso, o alvo seria cuidadosamente escolhido para, mesmo provando a determinação russa de usar tal arma, causar uma destruição limitada, não muito diferente da que está atualmente em curso na guerra.

É claro que esta não é uma decisão simples e fácil de ser tomada. Putin quebraria um tabu e seria o primeiro líder a usar tal armamento desde Hiroshima e Nagasaki. Outro aspecto a ser considerado é o de que ele afirma que os povos russo e ucraniano são na verdade um só povo, o que o colocaria na absurda posição de lançar uma arma atômica contra aqueles que seriam, nas suas próprias palavras — seus compatriotas. Há ainda o fortíssimo impacto que tal atitude teria na opinião pública internacional e nos governos de todo o mundo, inclusive naqueles que lhe são favoráveis. A China e a Índia, por exemplo, teriam muita dificuldade em apoiar a Rússia em uma atitude como essa. O emprego da arma nuclear certamente significaria, portanto, o completo isolamento da Rússia no cenário internacional.

Mas, como a própria invasão da Ucrânia comprovou, Putin nem sempre toma as decisões consideradas mais racionais. Assim, é bom recordar dos conselhos dados por Sun Tzu, o autor da magistral obra Arte da Guerra, escrita há 2.500 anos. O general chinês aconselhava, no capítulo VII do livro, a quando cercar um exército, deixar uma saída, pois um inimigo aflito e sem escapatória poderá tomar medidas desesperadas para tentar sobreviver.

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Um mês de guerra na Ucrânia

A invasão russa à Ucrânia, iniciada em 24 de fevereiro, completa seu primeiro mês. É hora de um balanço dos eventos em curso nos campos de batalha da Ucrânia, ressaltando-se que se trata de uma análise parcial, uma vez que a guerra está em andamento, e incompleta, em razão de só possuirmos os dados que nos chegam pela imprensa ou pelas mídias sociais.

Comecemos pelas razões políticas da guerra, afinal Clausewitz já ensinava que “A guerra é a continuação da política por outros meios”. Parece claro que Putin, ao decidir travar a guerra, tinha como seu principal objetivo político impedir a Ucrânia de entrar para a OTAN. Tal adesão, mesmo que informal, seria inaceitável para o presidente russo, que inclusive tem dificuldades em aceitar a própria existência da Ucrânia como nação soberana, como declarou reiteradas vezes[1].

No trigésimo dia de guerra, apesar de uma série de problemas no desenvolvimento tático da campanha, parece que a Rússia conseguirá, no mínimo, garantir que as províncias de Luhansk e Donetsk se separem de facto da Ucrânia. Também parece provável que o litoral sul do país, especialmente a leste da foz do Rio Dnieper, também seja separado da Ucrânia. A conquista da capital Kiev ainda não está garantida, mas se for conseguida, é provável que o atual governo se mude para alguma cidade ocidental do país, como Lviv, por exemplo. Na hipótese da Ucrânia resultar dividida da guerra, Putin talvez consiga o controle do território a leste do rio Dnieper. A pergunta que se impõe, a partir dessa hipótese, é a seguinte: terá valido a pena?

Para responder essa pergunta é necessário se analisar o que Putin esperava alcançar em relação à OTAN. A aliança militar Ocidental, criada para se antepor à União Soviética e – por extensão – à Rússia, vivia nos últimos anos um período de indefinição, para dizer o mínimo. Diversos países não cumpriam a meta acordada de investir 2% de seus PIB em defesa[2]. Os EUA, líderes da aliança, se voltavam com clareza para a região do Indo-Pacífico, criando novos arranjos como o “Quad[3]” – sua aliança com Japão, Índia e Austrália para conter a China – e a “Aukus”[4], o pacto militar entre EUA, Reino Unido e Austrália para a construção de um submarino nuclear pela Austrália, deixando aos poucos de priorizar a Europa. Não se pode esquecer, ainda, que há menos de três anos, em novembro de 2019, o presidente Macron declarava que a OTAN estava em “morte cerebral”[5].

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Pois bem, a invasão russa à Ucrânia teve o condão de reunir novamente os países da Aliança contra um inimigo comum. Países que vinham investindo pouco em defesa, sendo a Alemanha[6] o exemplo paradigmático, decidiram incrementar em muito seus investimentos na área. A Aliança reposicionou suas tropas e equipamentos, aumentando seus efetivos nos países do leste. Haverá, a partir de agora, na Europa e nos EUA, um novo e forte estímulo para se reforçar a OTAN em todos os seus aspectos. Se a Aliança Atlântica estava em morte cerebral, parece que a guerra a ressuscitou.

Apesar dos reiterados pedidos do presidente Zelenski, da Ucrânia, para que a OTAN intercedesse militarmente na guerra, especialmente pela garantia de uma zona de exclusão aérea sobre os céus da Ucrânia que impedisse as aeronaves russas de sobrevoar e, consequentemente, atacar com mais proximidade, alvos no país, a Aliança evitou se envolver diretamente, restringindo-se ao fornecimento de sistemas e material de emprego militar. Afinal, isso significaria um enorme risco de confronto direto entre aeronaves da OTAN e da Rússia. E, como afirmou o presidente dos EUA, Joe Biden, quando russos e norte-americanos trocarem tiros, isso significará a 3ª guerra mundial.

Aqui se vê com clareza que a estratégia da dissuasão[7] funcionou muito bem para o lado russo, evitando que a OTAN interviesse diretamente no conflito, claramente contida pela ameaça da escalada nuclear da guerra pelo lado russo. Por outro lado, os ucranianos não se mostraram suficientemente fortes para impedir os russos de atacarem, bem como os EUA e seus aliados que também foram incapazes de dissuadir os russos e evitar a invasão, apenas com as ameaças de “sanções econômicas nunca vistas”.

Mas, apesar de não evitarem a guerra, as sanções econômicas foram utilizadas com uma intensidade até aqui inédita, infligindo pesados custos econômicos à Rússia, mas também aos países e corporações que mantinham negócios como os russos. Foram impostas sanções a bancos e membros do governo e da elite econômica, incluindo o congelamento de ativos, restrições de viagens e exclusão de grandes bancos russos do sistema financeiro e do sistema de comunicação usado para transações internacionais (Sistema SWIFT). Outras medidas incluíram restrição de importações de petróleo, gás e carvão da Rússia, proibição da exportação de diversos produtos para o país, incluindo artigos de luxo, taxação sobre importação de produtos e restrições a aeronaves russas no espaço aéreo de diversos países.

As sanções atingiram diretamente também os cidadãos russos comuns, que de uma hora para a outra não puderam mais usar seus cartões de crédito e deixaram de contar com os serviços e a presença de diversas empresas ocidentais, de lojas de departamentos a lanchonetes, bancos, empresas de streaming, etc. Grandes empresas do setor privado, como Coca-Cola, McDonald’s, Starbucks e várias outras, suspenderam operações na Rússia. Certamente essa situação gera inúmeros transtornos aos cidadãos russos comuns, o que pode criar uma crescente insatisfação com as consequências práticas da operação militar em curso.

Aliás, na guerra, a percepção que a população tem da realidade é de suma importância. Dessa percepção advém o apoio ou não às operações, consequentemente, a legitimidade que cada um dos lados recebe, tanto de sua população quanto da comunidade internacional, para travar o combate.  Neste sentido, ocorre a disputa no campo informacional, com ambos os lados tentando impor sua narrativa. De um lado, os russos falam em “desnazificar” e “desmilitarizar” a Ucrânia, além de acusarem o governo de promover um “genocídio” contra as minorias russas do leste do país. Por outro lado, os ucranianos adotam a narrativa de “Davi x Golias”, do país injustamente agredido que luta pela própria sobrevivência, acusando os russos de atacarem civis e destruírem as cidades. A Ucrânia vem vencendo essa guerra, tanto pelo apelo da narrativa, muito mais facilmente compreensível pela opinião pública, que inclusive se mostra empática com o sofrimento da população atacada, quanto pela falta de verossimilhança da narrativa russa.

Nesse sentido, o sofrimento dos milhões de refugiados e deslocados pela guerra é muito palpável para os europeus, especialmente para os países mais de leste, como Polônia, Romênia e Moldávia. Em trinta dias de guerra já são cerca de 3,6 milhões de refugiados, um grande problema, com efeitos de longo prazo.

Finalmente, passemos a uma breve análise dos combates propriamente ditos. Os russos optaram por atacar a Ucrânia em quatro frentes. Uma que vem de Norte, de Belarus, em direção a Kiev. Outra que vem de Nordeste, em direção a Kharkiv. Há ainda a direção leste, na região de Donbas e a Sul, que vem da Criméia e dos mares de Azov e Negro.

Após um avanço inicial em todas as frentes, o movimento russo foi interrompido há cerca de dez dias, aproximadamente aonde se encontram as manchas vermelhas, no mapa.

As causas para a interrupção do movimento podem apenas ser especuladas, uma vez que não se dispõe de informações fidedignas a este respeito. Entretanto, é bastante provável que tenha ocorrido uma conjunção de fatores.

Em primeiro lugar o fator logístico. A tarefa de apoiar logisticamente uma invasão em território estrangeiro, de uma tropa de cerca de 190 mil homens, é gigantesca. Especialmente em se tratando, como é o caso, de tropas mecanizadas e blindadas. Os volumes de combustíveis e lubrificantes são contados nas casas dos milhões de litro por dia. Isso sem falar em rações e água, munição, material de intendência, como equipamentos, capacetes, barracas, coletes balísticos, dentre inúmeros outros itens, munições e explosivos, peças e conjuntos de reparação, armamento, etc. Aparentemente, pelos relatos vindos do front, muitos desses itens escassearam, especialmente combustível, o que exigiu um intervalo operacional para reorganização dos atacantes.

Um segundo aspecto a considerar é a obstinada defesa ucraniana, talvez em um nível inesperado pelas tropas russas. Apoiados pelo armamento fornecido pelos países ocidentais, em especial os mísseis anticarro e antiaéreos, os ucranianos vem utilizando muito bem o terreno, que conhecem profundamente, afinal lutam em seu próprio país, para vender caro cada palmo conquistado pelos russos. Os ucranianos estão adotando uma “defesa elástica”, uma técnica defensiva que permite avanços do inimigo para coloca-los em posição de serem emboscados. Ao mesmo tempo, realizam com muita frequência contra-ataques e ações ofensivas de pequena profundidade, fustigando e impondo elevadas baixas ao inimigo.

A interrupção do avanço caracteriza o que Clausewitz chamava de atingimento do “ponto culminante da ofensiva”, um momento nas operações em que o atacante é detido. Quando isso acontece, segundo o grande general prussiano do século 19, autor do clássico “Da Guerra”, algumas coisas podem acontecer: negociações de paz que ponham fim às hostilidades, mudança da atitude do atacante, que passa à defensiva, ou uma reorganização para retomar a iniciativa da ofensiva. No caso, vemos as três coisas acontecendo, embora a construção de posições defensivas pelos russos não seja generalizada e apenas ocorra em alguns locais aonde os ucranianos fazem pequenos contra-ataques, e as negociações de paz, até o momento, tenham se mostrado inconclusivas. O mais provável é que os russos retomem a ofensiva, após uma reorganização.

Ao mesmo tempo em que os russos perderam a impulsão do ataque, eles passaram a atuar mais fortemente com os fogos, aumentando a intensidade e a frequência dos ataques aéreos, de artilharia de campanha, de mísseis e de foguetes, sobre as posições ucranianas. Esses ataques, muitas vezes feitos a alvos nas cidades, têm causado grande destruição suscitando críticas da comunidade internacional pelo sofrimento causado aos civis e dúvidas quanto a legalidade das ações segundo o Direito da Guerra

A este respeito, é importante que se separem os dois corpos jurídicos que tratam da guerra. O primeiro é o “Jus ad bellum”, ou o direito à guerra, que trata da legitimidade para se travar a guerra. A Carta das Nações Unidas[8], assinada tanto por Rússia como por Ucrânia, obriga as nações a buscarem a resolução de disputas por meios pacíficos e requer autorização das Nações Unidas antes que uma nação possa iniciar qualquer uso da força contra outra. Entretanto, a própria carta resguarda o direito do país soberano de se defender em caso de agressão. Sob esse ponto de vista, a invasão da Ucrânia pela Rússia é claramente ilegal, uma vez que não foi autorizada pela ONU. Um exemplo histórico de outra invasão não autorizada a um país soberano – portanto ilegal – foi a do Iraque, pelos EUA, em 2003. Já a defensiva ucraniana, em seu próprio território, em face de uma invasão estrangeira, é perfeitamente justificada legalmente.

O segundo é o “Jus in bello”, ou o direito na guerra. Este parte da premissa de que, uma vez que a guerra existe e está sendo travada, os dois lados combatentes devem respeitar certas normas, acordadas em convenções como as de Genebra e outras, que limitem as ações no sentido de limitar o sofrimento causado pelo conflito. Esse corpo jurídico, que conforma o Direito Internacional dos conflitos Armados[9] (DICA), também chamado de Direito Internacional humanitário (DIH) é regido por princípios e é focalizado sob sua luz que as ações de ambos os contendores estão sendo observadas, e que os comandantes poderão ser responsabilizados ao fim das hostilidades.

Com trinta dias de guerra, não é possível, evidentemente, se afirmar com certeza o rumo dos acontecimentos. Como tentei demonstrar, a guerra é uma atividade muitíssimo complexa, submetida a uma infinidade de variáveis, que podem em determinado momento interagir de uma forma inesperada e descortinar novos e imprevisíveis cenários.

O panorama apresentado dos acontecimentos decorridos até o momento visa apenas mostrar, muito sumariamente, alguns dos diversos aspectos envolvidos, com o objetivo de auxiliar o leitor a compreender melhor os acontecimentos, contribuindo para a formação de suas próprias conclusões.

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[1] “George, você precisa entender que a Ucrânia não é um país.” Estas foram as palavras de Vladimir Putin ao presidente George W. Bush em Bucareste, na cúpula da Otan, em 2008. Disponível em https://internacional.estadao.com.br/noticias/geral,putin-conseguiu-colocar-os-eua-exatamente-onde-ele-queria-leia-artigo,70003959787

[2] Os 70 anos da OTAN. Disponível em https://paulofilho.net.br/2019/12/09/os-setenta-anos-da-otan/

[3] Estados Unidos fortalecem aliança com Japão, Índia e Austrália para conter avanço da China no Indo-Pacífico. Disponível em https://brasil.elpais.com/internacional/2021-09-25/estados-unidos-fortalecem-alianca-com-japao-india-e-australia-para-conter-avanco-da-china-no-indo-pacifico.html

[4] Aukus: o que é o pacto militar anunciado por EUA, Reino Unido e Austrália para conter a China. Disponível em https://www.bbc.com/portuguese/internacional-58582195

[5] Macron afirma que OTAN está em “morte cerebral’ Disponível em https://www.dw.com/pt-br/macron-afirma-que-otan-est%C3%A1-em-estado-de-morte-cerebral/a-51159104

[6] Alemanha investirá 100 bilhões de euros nas Forças Armadas. Disponível em  https://www.dw.com/pt-br/alemanha-investir%C3%A1-100-bilh%C3%B5es-de-euros-nas-for%C3%A7as-armadas/a-60937933

[7] A Estratégia da Dissuasão caracteriza-se pela manutenção de forças militares suficientemente poderosas e prontas para o emprego imediato, capazes de desencorajar qualquer agressão militar. Esta é a definição do Manual de Estratégia do Exército Brasileiro. Disponível em  http://www.coter.eb.mil.br/images/noticias/2020/294/Painel_de_Manuais.pdf

[8] Leia o Capítulo VII da carta, que trata das ações relativas a ameaças à paz, rupturas da paz e atos de agressão – http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1930-1949/d19841.htm

[9] Saiba mais consultando o manual do Ministério da Defesa sobre DICA – https://www.gov.br/defesa/pt-br/arquivos/File/legislacao/emcfa/publicacoes/md34a_ma_03a_dicaa_1aed2011.pdf




A invasão russa à Ucrânia à luz dos ensinamentos de Sun Tzu

A Arte da Guerra é um clássico dos estudos estratégicos. O livro é atribuído a Sun Tzu, um General chinês que teria vivido na cidade de Lean (hoje Huimin, província de Shandong, China), por volta de 550 AC. Sun Wu seria seu nome. Tzu (ou Zi, como os chineses preferem) significa “Mestre”. Logo, Sun Tzu significa “Mestre Sun. Ele teria nascido no Estado de Qi, entretanto, viria a tornar-se General do Estado de Wu.

China à época de Sun Tzu

O Estado de Wu estava em guerra contra o Estado de Chu. Sun Tzu assumiu o comando das tropas após impressionar o Rei He Lu com o conhecimento militar exposto em seu tratado sobre a arte da guerra.

A Arte da Guerra é uma obra-prima do pensamento militar. Sua importância transcendeu o tempo, tornando-se um clássico obrigatório, não só para militares, mas para todos que se interessam por estratégia, no Ocidente e no Oriente.

E, em razão da incrível atualidade de seus ensinamentos, resolvi apresentar alguns fatos conhecidos sobre a invasão russa da Ucrânia, comentando-os à luz de alguns dos preceitos contidos em A Arte da Guerra.

A grande importância dos Estados se manterem preparados para a guerra

A primeira frase da obra é

Não há nenhum exemplo de um país que tenha se beneficiado de uma guerra prolongada.

Sun Tzu alerta que serão muitos os problemas se a guerra se prolongar excessivamente no tempo. Haverá problemas para financiar a campanha, as armas se desgastarão e o moral das tropas ficará abalado. E, depois disso, “quando suas forças estiverem desgastadas, suas provisões insuficientes, suas tropas desmoralizadas e seus recursos exauridos, governantes vizinhos tirarão proveito da situação para atacá-lo”.

Muitos analistas têm alertado para os grandes problemas que o exército russo enfrentará caso a campanha se estenda por muito tempo. Além de problemas logísticos e do aumento exponencial de gastos, não se pode afastar, apesar do total controle que o presidente Putin exerce sobre seu governo, que a insatisfação popular na própria Rússia cresça, ameaçando, de alguma forma, a estabilidade do governo.

Vencer sem lutar

Na arte prática da guerra, o melhor de tudo é tomar o país do inimigo inteiro e intacto; despedaçá-lo e destruí-lo não é tão bom. Portanto, lutar e vencer em todas as suas batalhas não é excelência suprema; excelência suprema consiste em quebrar a resistência do inimigo sem lutar.

Sun Tzu reconhecia a complexidade da guerra, seus muitos fatores intervenientes, as inúmeras possibilidades de ocorrência de revezes, os enormes gastos e as perdas. Assim, ele recomendava que a vitória fosse alcançada no campo da política, sem se recorrer ao campo militar. Esse é um ensinamento ao qual, suspeito, os russos não deram a devida importância nesta ação na Ucrânia, recorrendo ao campo militar antes de esgotar outros meios para alcançar seus objetivos. O andamento da campanha, até o momento, indica que este pode ter sido um grave erro.

A importância da inteligência

Aquele que conhece o inimigo e a si mesmo, lutará cem batalhas sem perigo de ser derrotado. Aquele que não conhece ao inimigo, mas conhece a si mesmo, para cada vitória terá uma derrota. Aquele que não conhece nem a si mesmo, nem ao inimigo, será derrotado em todas as batalhas.

Uma das mais famosas frases do livro A Arte da Guerra relembra a centralidade da inteligência no planejamento e na execução das operações militares. Não poderia ser diferente no conflito em curso. E, em razão do enorme acesso às informações dos tempos atuais, mesmo cidadãos comuns têm tido acesso a fotografias satelitais com a posição das forças, imagens em tempo real de ataques, análises psicológicas das lideranças etc. É claro que esse esforço de inteligência está sendo feito de forma muito intensa pelas duas partes em conflito.

Travar a batalha somente com a certeza da vitória

O que os antigos diziam que um general inteligente é aquele que não apenas vence, mas se destaca em vencer com facilidade. […]

Assim, um exército vitorioso não lutará com o inimigo até que esteja seguro das condições de vitória.

Sun Tzu destaca nesses trechos a importância de uma preparação completa para a guerra. Assim, um exército só pode se lançar à guerra quando tem a convicção de que obterá a vitória. Pelas informações até agora existentes, os russos parecem estar enfrentando dificuldades inesperadas em sua invasão. Ao fim da guerra, será possível fazer uma avaliação mais completa para se entender se essas máximas foram realmente seguidas pelo lado russo.

“Na guerra, o caminho é evitar o que é forte e atacar o que é fraco”. Esta é outra máxima de Sun Tzu acerca do cuidado que o general deve ter para se assegurar da vitória. Na invasão russa, claramente as defesas ucranianas estão centradas na defesa das cidades. A decisão de atacar a cidade, ocupando-a, muitas vezes será inescapável. Mas um planejamento adequado evitará as cidades ao máximo, restringindo-se apenas àquelas indispensáveis.1201.

Como se vê, o livro A Arte da Guerra, 2500 anos após ter sido escrito, continua incrivelmente atual, auxiliando planejadores, mas também a todos os estudiosos da guerra, a compreenderem com mais clareza os terríveis acontecimentos em curso na Ucrânia.

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Este artigo foi originalmente publicado no site Hoje no Mundo Militar




A guerra está de volta ao continente europeu

Em pleno século 21, a guerra de alta intensidade está de volta ao continente europeu. Perplexos, fomos acordados na manhã de 24 de fevereiro pelo som das explosões das granadas e dos disparos das armas de fogo.  Eram inacreditáveis as cenas de mísseis atingindo residências, de blindados em chamas e de engarrafamentos gigantescos provocados pelos veículos de ucranianos em fuga.

Os europeus, de uma maneira geral acreditavam que, depois da guerra do Kosovo, nos estertores do século 20, não mais testemunhariam um conflito como o que está em curso na Ucrânia. Os vencedores da Guerra Fria acreditaram que o mundo globalizado, no qual os fluxos de capitais, pessoas, serviços e ideias desconhecem fronteiras, criaria tal interdependência que tornaria os custos de um conflito tão altos que dissuadiriam qualquer iniciativa belicosa.

Além disso, a vitória na disputa contra o bloco socialista tinha levado ao “fim da história”. Todos os países caminhariam inexoravelmente para o modelo democrático liberal do Ocidente. Esse pensamento talvez tenha sido um dos fatores contribuintes para que os vencedores desprezassem a necessidade de se estabelecer um pacto com os derrotados. A Rússia, herdeira da União Soviética, teve suas preocupações de segurança ignoradas e a OTAN, nas duas primeiras décadas do século 21 foi se expandindo em sucessivas ondas em direção ao Leste, passando a incluir países que antes eram repúblicas integrantes da própria URSS. Este avanço causou profundo ressentimento dentre as lideranças russas.

Neste contexto, ocorreram os atentados de 11 de setembro em Nova York, que provocaram a reação dos EUA e foram o evento disparador de uma importante mudança nas estratégias militares: como não havia mais a ameaça de um conflito interestatal e a nova ameaça eram os grupos terroristas, grupos guerrilheiros e entes não-estatais, o esforço principal dos exércitos não deveria mais ser voltado para a preparação para o combate de alta intensidade, interestatal, mas, sim para a “Guerra ao Terror”.

Então, se já “não havia mais guerras”, como escreveu o General britânico Rupert Smith na abertura de sua obra “A utilidade da Força”, de 2005, por que os investimentos em Defesa europeus deveriam se manter nos níveis até então existentes? Para que investir em carros de combate, submarinos, caças, se essas armas eram desnecessárias para se enfrentar terroristas? Essa foi se tornando uma pergunta incômoda para os políticos em todo o mundo, que foram sendo cada vez mais pressionados a diminuírem seus investimentos em Defesa, priorizando outras áreas.

Até que veio o primeiro alerta, com a invasão da Geórgia pelos russos, em 2008, e o consequente reconhecimento de duas novas “repúblicas”, que se declararam independentes: Abecásia e Ossétia do Sul. A ascensão de Xi Jinping ao poder na China, em 2012, e o grande impulso estratégico que ele deu às suas forças armadas, que passaram por uma reorganização e rapidíssima modernização, também fizeram soar alarmes nos estrategistas ocidentais. O terceiro e decisivo alerta foi a anexação da Crimeia pelos russos e o apoio aos separatistas das regiões de Luhansk e Donetsk, na bacia do Rio Don, no Leste da Ucrânia.

Os alertas ecoaram nos centros de estudos estratégicos dos principais países do Ocidente. Em 2017, os EUA lançaram o conceito de Operações em Múltiplos Domínios, já voltado para a guerra de alta intensidade em largas frentes. Em 2018, o país publicou sua estratégia militar, onde “guerra ao terror” perdeu importância, e a nova prioridade passou a ser a competição entre Estados. O documento lista nominalmente os potenciais inimigos: China, Rússia, Irã e Coreia do Norte. À Rússia, o documento atribui ações de violação de fronteiras e a intimidação de países vizinhos.

Reino Unido e França, ambos em 2021, também lançaram revisões de seus documentos norteadores de Defesa. Os britânicos identificavam nominalmente a Rússia como sendo a maior ameaça à segurança europeia. O documento francês seguiu a mesma ideia.

Como se vê, a guerra russo-ucraniana estava anunciada nos documentos estratégicos das principais potências militares do Ocidente. Então, cabe a pergunta: se ela foi antevista pelos estrategistas militares, por que as lideranças políticas não foram capazes de evitá-la?

Essa é uma pergunta muito complexa, para a qual não existe uma explicação simples. Talvez um bom caminho a explorar na busca das respostas seja a análise da incapacidade dos líderes ocidentais de se afastarem das questões domésticas para enxergarem o todo, de identificarem prioridades e de estabeleceram ações com objetivos político-estratégicos claramente definidos. A inércia internacional face às sucessivas violações russas do Direito Internacional, em 2008 e 2014, certamente pavimentou o caminho para a guerra. Esperemos que, desta vez, a lição seja aprendida. Forças militares minimamente capazes não se improvisam, assim como vácuos de poder podem custar muito caro à segurança internacional.

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O Direito Internacional dos Conflitos Armados e a Guerra Russo-ucraniana

Soldados! É fácil a missão de comandar homens livres: basta apontar-lhes o caminho do dever. O nosso caminho está ali defronte. Não me é preciso lembrar-vos que o inimigo vencido e o paraguaio inerme ou pacífico devem ser sagrados para um exército composto de homens de honra e de coração. (OSÓRIO, abril de 1866)

General Osório

As ações russas e ucranianas acompanhadas por todos praticamente em tempo real pelas televisões e pela internet suscitam uma série de dúvidas acerca da legitimidade das ações de ambos os lados do conflito. Neste artigo, procuro esclarecer alguns aspectos do Direito Internacional dos Conflitos Armados (DICA) que podem ajudar na compreensão dos acontecimentos em curso na Ucrânia.

O DICA, como entendido atualmente, surgiu em 1864, ano em que foi celebrada a primeira Convenção de Genebra. Mas, desde a antiguidade, existiam regras sobre os meios e métodos a serem utilizados nos combates.

As leis da guerra nasceram do confronto entre forças armadas no campo de batalha. Até a metade do século XIX, essas regras permaneceram costumeiras por natureza, reconhecidas porque elas existiam desde tempos imemoriais e porque elas correspondiam às demandas da civilização. Todas as civilizações haviam desenvolvido regras com o intuito de minimizar a violência – até essa a forma de violência institucionalizada que chamamos de guerra – já que a limitação da violência faz parte da essência da civilização. (Henckaerts e Doswald-Beck, citados por Silva Gomes (2013)

O DICA é um conjunto de normas que, procura limitar os efeitos de conflitos armados. Protege as pessoas que não participam ou que deixaram de participar nas hostilidades, e restringe os meios e métodos de combate. Ele também designado por “Direito da Guerra” e por “Direito Internacional Humanitário (DIH). Ele faz parte faz parte do Direito Internacional que rege as relações entre Estados e que é constituído por acordos concluídos entre Estados – geralmente designados por tratados ou convenções – assim como pelos princípios gerais e costumes que os Estados aceitam como obrigações legais.

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As fontes do DICA são basicamente três: Os chamados Direito de Genebra, de Haia e de Nova York.

O Direito de Genebra é constituído pelas quatro convenções de Genebra, de 1949, que estabelecem normas de proteção das vítimas dos conflitos: membros das forças armadas fora de combate; feridos; doentes; náufragos; prisioneiros de guerra; população civil e todas as pessoas que não participem ou tenham deixado de participar das hostilidades.

As quatro convenções são complementadas por seus protocolos adicionais I e II que tratam, respectivamente, da proteção das vítimas dos conflitos armados internacionais e das vítimas dos conflitos armados não internacionais. Tanto Rússia, quanto Ucrânia, são signatários das Convenções de Genebra[1].

O Direito de Haia consubstancia-se nas Convenções de Haia, celebradas em 1889 e revistas em 1907, e em vários acordos internacionais posteriores. Trata da proibição ou regulação da utilização de armas, impondo limitações aos meios utilizados para provocar danos ao inimigo.

As normas originadas no âmbito da ONU ficaram conhecidas como o “Direito de Nova York”. Ele também ficou conhecido como “Direito Misto”, porque buscou complementar e aproximar as normas de Genebra e de Haia.

O DICA é regido por cinco princípios básicos: humanidade, distinção, limitação, proporcionalidade e necessidade militar.

Foi o princípio da humanidade que motivou o General Osório, na Guerra da Tríplice Aliança, a exortar seus homens em 13 de abril de 1866, às vésperas de cruzar o Rio Paraguai e entrar pela primeira vez em território inimigo, a agirem com “honra e com coração”. Uma exortação de claro caráter humanitário.

De acordo com o Comitê Internacional da Cruz Vermelha, a finalidade do princípio da humanidade é evitar e aliviar, a todo custo, em qualquer situação, o sofrimento humano. Ao final da invasão da Ucrânia pela Rússia, certamente a comunidade internacional vai se debruçar sobre os acontecimentos em território ucraniano e o princípio da humanidade será um dos que mais será verificado, especialmente se se verificarem ações, por parte dos comandantes dos dois partidos, que afrontem esses princípio tão fundamental.

O princípio da distinção, segundo Cinelli (2011) é aquele sobre o qual se assenta todo o edifício do DICA como corpo normativo destinado à proteção de pessoas e bens. Isso se deve à necessidade do combatente de identificar, com clareza, entre aqueles que são considerados “população civil” e aqueles considerados combatentes inimigos. O objetivo desse princípio é, em suma, impedir ataques amplos e indiscriminados sem preocupação com baixas civis e danos à propriedades. Esse princípio suscitará muita discussão no caso da Ucrânia. Convocar os civis para defender o país e armá-los, em tese, na constitui violação deste princípio, desde que esses civis utilizem sinais distintivos claros, como uniformes ou qualquer adereço que os identifique, utilizem as armas de forma ostensiva e entrem em uma organização com uma clara cadeia de comando. Caso contrário, caso escondam o fato de que atuam como combatentes, não atenderão ao princípio da distinção e estarão, em tese, cometerão o crime de perfídia, listado no artigo 37 do Protocolo I das Convenções de Genebra.

O princípio da limitação afirma que o direito das partes beligerantes na escolha dos meios para causar danos ao inimigo não é ilimitado, sendo imperiosa a exclusão de meios e métodos que causem sofrimento desnecessário ou danos supérfluos. De acordo com o artigo 52 do Protocolo I, “os ataques devem se limitar estritamente aos objetivos militares”.  Assim, a população civil, deve sempre ser protegida. A guerra, não é um vale-tudo. No caso da invasão russa à Ucrânia, as cenas de prédios civis destruídos por armas que infligem danos não só ao objetivo militar, mas também a todo o seu entorno, em tese, constituem violação desse princípio, exceto se ficar comprovado que os prédios civis também constituíam alvos legítimos segundo o DICA.

O princípio da proporcionalidade rege que os meios e métodos de combate devem ser proporcionais à vantagem militar concreta e direta. Nenhum alvo, mesmo militar, deve ser atacado se os prejuízos e sofrimento forem desproporcionais aos ganhos militares que se esperam da ação. No caso da ação russa na Ucrânia, chama atenção o caso da utilização da munição cluster, ou de fragmentação, pelos russos. Há muita discussão sobre o uso desse tipo de arma, que espalha submunições explosivas por uma grande área, muitas das vezes redundando em engenhos falhados espalhados por uma grande área, que após a cessação das hostilidades terão que ser desarmadas e poderão provocar danos por um longo período, mesmo após a guerra.

Finalmente, há o princípio da necessidade militar. Em todo o conflito armado, o uso da força deve corresponder à vantagem militar que se pretende obter. As necessidades militares não justificam condutas desumanas, tampouco atividades proibidas pelo DICA. Assim, qualquer ação que não traga uma vantagem militar clara deve ser evitada por ambas as partes em conflito.

Como se vê, o dito popular que afirma que “no amor e na guerra vale tudo”, não representa a verdade. Desde tempos imemoriais, há um esforço em se regular minimamente as ações das partes beligerantes, a fim de se preservar a ética no campo de batalha.

Um exemplo de cumprimento, por ambos os partidos, dos princípios do DICA, foi a Guerra das Malvinas. Tanto argentinos quanto britânicos se comportaram exemplarmente, e, ao fim do conflito os dois lados foram reconhecidos e respeitados em relação ao comportamento ético no campo de batalha.

Finalmente, espero que este artigo proporcione aos leitores algumas ferramentas mínimas para acompanhar com mais profundidade os acontecimentos da guerra que, tristemente, acontece em território ucraniano neste momento.

 

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REFERÊNCIAS

BRASIL, Ministério da Defesa. Manual de Emprego do Direito Internacional dos Conflitos Armados nas Forças Armadas. Disponível em https://www.gov.br/defesa/pt-br/arquivos/File/legislacao/emcfa/publicacoes/md34a_ma_03a_dicaa_1aed2011.pdf

CINELLI, Carlos Frederico. Direito Internacional Humanitário: ética e legitimidade na aplicação da força em conflitos armados. Editora Juruá. 2011

SILVA GOMES, Túlio Endres da. Impactos do Direito de Guerra para a Campanha do Exército Brasileiro na Guerra entre a Tríplice Aliança e o Paraguai (1864-1870). Tese de Doutorado. Escola de Comando e Estado-Maior do Exército. Disponível em http://www.eceme.eb.mil.br/images/IMM/producao_cientifica/teses/tulio-endres-da-silva-gomes.pdf

[1] Lista de países signatários aqui – https://ihl-databases.icrc.org/applic/ihl/ihl.nsf/States.xsp?xp_viewStates=XPages_NORMStatesParties&xp_treatySelected=375




Na guerra vale tudo?

Todas as guerras são baseadas no logro. Portanto, quando capazes de atacar, devemos parecer incapazes, ao usarmos as nossas forças, devemos parecer inativos, quando estivermos próximos, devemos parecer distantes e quando distantes, devemos parecer próximos.

Sun Tzu. A Arte da Guerra/Cap 1

Quem faz injuria vil e sem razão,

Com forças e poder em que está posto

Não vence, que a vitória verdadeira

É saber ter justiça nua e inteira

 

Camões. Os Lusíadas, Canto X, estrofe LVIII

 

O jornal The New York Times, em sua edição de 03 de fevereiro, publicou uma reportagem citando autoridades norte-americanas que, sem serem identificadas, afirmaram que a Rússia estava planejando divulgar um vídeo falso no qual seria mostrado um ataque ucraniano em território russo ou um ataque contra a comunidade étnica russa das regiões separatistas no leste da Ucrânia.

Esse tipo de operação, já utilizada muitas vezes ao longo da história em guerras passadas, em inglês recebem o nome de false flag operations[1].

Trata-se de atuar militarmente contra um objetivo e atribuir essa operação ao inimigo, com a finalidade de criar um pretexto para a reação – um casus belli[2] – legitimando-a aos olhos da comunidade internacional e perante seu próprio público interno.

É, evidentemente, uma ação realizada muito abaixo da linha da ética. Por essa razão, nos casos já documentados na história, dificilmente o Estado assume sua prática.

A Segunda Guerra Mundial foi iniciada coma invasão da Polônia pela Alemanha. E o pretexto para a invasão foi uma famosa operação de bandeira falsa, a Operação Himmler, que leva esse nome em razão de ter sido criada por Heinrich Himmler.

A Operação Himmler teve vários episódios: assalto à estação de rádio de Gleitwitz (atualmente Gliwice na Polônia); ataque à estação aduaneira de Hochlinden; e ataque à estação de serviço florestal de Pitschen.

O principal foi o assalto à estação de rádio de Gleitwitz (a cerca de 4 Km da então fronteira com a Polônia). Por volta das 20 horas do dia 31 de agosto de 1939, um pequeno grupo de seis agentes alemães das SS, vestidos com uniformes poloneses e liderado por Alfred Naujocks, atacou a estação de rádio de Gleiwitz e transmitiu uma curta mensagem antialemã, em polonês, afirmando que a rádio estava nas mãos dos poloneses. Os alemães deixaram os corpos de alguns poloneses fardados no local ao mesmo tempo em que as emissoras de rádio alemãs noticiaram o incidente na fronteira, relatando a invasão e a reação da polícia alemã, que teria matado os poloneses. Em Londres, a BBC retransmitiu a informação. No dia seguinte, Hitler usou o “incidente” como pretexto para iniciar a invasão da Polônia e a II Guerra Mundial.

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A invasão japonesa da Manchúria chinesa, em 1931, também foi uma operação de bandeira falsa. Em setembro de 1931, forças japonesas detonaram uma pequena quantidade de explosivos perto de uma linha férrea de propriedade de uma empresa japonesa, a South Manchuria Railway, nas proximidades de Mukden – atualmente Shenyang. A explosão não causou danos relevantes, e um trem passou pelo local sem problemas, minutos depois. Entretanto, o Exército japonês acusou chineses do ato e desencadeou a invasão que levou à ocupação da Manchúria, na qual o Japão estabeleceu seu estado fantoche de Manchukuo, seis meses depois. A operação foi exposta internacionalmente, levando o Japão ao isolamento diplomático e sua retirada da Liga das Nações em março de 1933.

Em setembro de 2003, o jornal The Guardian divulgou documentos em uma reportagem que mostrava a existência de um plano secreto, elaborado em 1957, de forma conjunta pelos serviços secretos britânico, o MI-6, e norte-americano, a CIA, para criar falsos incidentes na fronteira da Síria, a fim de criar um levante para derrubar o regime sírio. O plano não foi executado, por falta de apoio dos vizinhos árabes da Síria.

Em 26 de novembro de 1939, a União Soviética realizou disparos com sua própria artilharia contra a vila soviética de Mainila, acusando os finlandeses de terem efetuado os tiros. Assim, forjou o casus belli que desencadeou a Guerra do Inverno, contra a Finlândia.

Como disse Platão, somente os mortos verão o fim das guerras. O fenômeno acompanha a história humana desde tempos imemoriais e assim permanecerá por muito tempo. Entretanto, até as guerras, um ato de suprema violência, têm suas regras no Direito Internacional Humanitário (DIH), constantes nas convenções de Genebra e seus protocolos adicionais, além de outros tratados internacionais. Igualmente importantes são as normas não-escritas, consuetudinárias, vigentes por usos, tradições, convenções e costumes de honradez.

As operações de bandeira falsa são condenáveis sob todos os aspectos. Do ponto de vista do DIH, podem configurar crimes de guerra, enquadrados no artigo 8º do Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional: VII) utilizar indevidamente uma bandeira de trégua, a bandeira nacional, as insígnias militares ou o uniforme do inimigo ou das Nações Unidas, assim como os emblemas distintivos das Convenções de Genebra, causando deste modo a morte ou ferimentos graves.

Do ponto de vista moral, causam a repulsa de toda a comunidade internacional. Estratagemas para enganar o inimigo, como recomenda Sun Tzu no cabeçalho deste texto, sempre existiram, e sempre existirão. São exemplos notórios o cavalo de troia e o exército fictício comandado por Patton posicionado de modo a enganar os alemães sobre o local de desembarque no dia D, na II Guerra Mundial. Coisa completamente diferente é atuar de forma pérfida, desleal e traiçoeira, criando um casus belli falso.

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Afinal, as causas que justificam a guerra, como a legítima defesa contra uma agressão, a intenção moralmente correta, o fato de ser o último recurso e de ser travada para evitar um mal maior são os critérios que fazem com que os povos aceitem pagar o altíssimo preço de participar de um conflito armado.

Por tudo isso, a acusação feita à Rússia de que ela estaria preparando uma operação de bandeira falsa para forjar um casus belii é gravíssima. Se concretizada, por qualquer dos lados, certamente causará enorme repulsa internacional.

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[1] Na falta de uma tradução consagrada para a expressão, neste artigo vou usar “operação de bandeira falsa”.

[2] Na terminologia bélica, casus belli é uma expressão latina para designar um fato considerado suficientemente grave pelo Estado ofendido, para declarar guerra ao Estado supostamente ofensor.




Para entender a crise na Ucrânia

A crise na Ucrânia está em todos os noticiários internacionais, em razão de sua importância e da possibilidade de a situação se agravar, dando origem a um conflito de grande intensidade em território europeu.

Neste artigo, faço uma compilação de todas as informações que publiquei sobre o assunto, no meu blog e no twitter, de modo a tentar reunir em um único texto todo o desenrolar dos acontecimentos. Na conclusão, arrisco alguns possíveis desdobramentos.

A Ucrânia está no centro de uma crise que ameaça escalar para um confronto militar entre ucranianos e russos, com risco de transbordamento para outros países, o que seria gravíssimo para a estabilidade da Europa e do mundo. Mais do que uma simples disputa entre ucranianos e separatistas na região de Donbas, localizada no leste da Ucrânia e fronteira com a Rússia, os acontecimentos mostram o confronto entre duas visões de mundo. De um lado, europeus ocidentais e norte-americanos, que enxergam na Ucrânia um jovem país soberano que tenta trilhar o caminho apontado pelas democracias liberais europeias, desvencilhando-se da Rússia depois do esfacelamento da União Soviética. De outro, a Rússia, que vê a Ucrânia como um território historicamente ligado à sua própria nacionalidade, um país fundamental para sua visão geopolítica, que deve ser mantido sob sua esfera de influência sob pena de ver os adversários europeus e norte-americanos demasiadamente próximos de Moscou.

Para entender como se chegou à situação atual, é importante recapitular alguns acontecimentos.

O primeiro grande império do leste europeu foi o Principado de Kiev, atual capital da Ucrânia, surgido no século IX. Sua população era constituída por uma mistura de Vikings escandinavos, que chegavam do Norte pelos rios, e pelos eslavos orientais, nativos da própria região. A pobreza do solo logo obrigou essas populações a buscarem novas terras, expandindo o território e delineando um império. Como explica Robert Kaplan, em A Vingança da Geografia, a Rússia, como conceito geográfico e cultural nasceu do Principado de Kiev.

Figura 1 – Principado de Kiev / Fonte Wikipedia

Em permanente luta contra os nômades das estepes, no século XIII o principado foi devastado pelos mongóis comandados por Batu Khan, neto de Gengis Khan. A partir daí, com o passar do tempo, a história russa foi paulatinamente se deslocando para o Norte, até ficar centrada em Moscou, já no final da Idade Média.

Após a invasão mongol, o território onde hoje está a Ucrânia foi dominado por lituanos e poloneses. Em 1648, uma grande rebelião cossaca acabou por levar à partilha do território ucraniano entre russos e poloneses. Com a partilha da Polônia, no final do século XVIII, o território ucraniano é novamente dividido, agora entre russos e austríacos.

Os colapsos dos impérios russo e austríaco, bem como a revolução russa, no início do século 20, deram espaço ao ressurgimento de movimentos nacionalistas ucranianos, que buscavam a independência. Entretanto, em 1919, a Ucrânia foi incorporada à União Soviética.

O colapso da União Soviética, em 1991, permitiu a independência da Ucrânia. No plebiscito realizado naquele ano, 90% dos ucranianos se posicionaram favoravelmente à separação, incluindo-se aí 80% da população da região de Donbass e 54% dos votantes da Crimeia, península com grande população russa, reanexada ao território russo em 2014.

O fim da URSS foi seguido por uma significativa expansão da OTAN em direção às fronteiras russas. Entre 1999 e 2020, a Aliança incorporou vários países da Europa central e de leste, muitos deles antigos estados comunistas: República Tcheca, Hungria, Polônia, Bulgária, Estônia, Letônia, Lituânia, Romênia, Eslováquia, Eslovênia, Albânia, Croácia, Montenegro e Macedônia do Norte. A União Europeia seguiu os passos da OTAN, estendendo sua fronteira para o leste para incluir uma série de ex-repúblicas soviéticas e aliados, incluindo os Estados bálticos, República Tcheca, Hungria, Polônia, Eslováquia e Eslovênia.  Essa expansão foi um choque para as lideranças russas, que esperavam que, em troca do apoio dado aos norte-americanos na invasão do Afeganistão após o 11 de Setembro, os EUA se mantivessem fora do que a Rússia considerava ser sua esfera de influência, os antigos Estados integrantes da URSS. O presidente Putin se sentiu pessoalmente afrontado.

Figura 2 – Expansão da OTAN / Fonte Wikipedia

Os ucranianos permaneceram em uma espécie de limbo, entre o ocidente e a Rússia. No final de 2004, multidões saíram às ruas, na chamada Revolução Laranja. Os manifestantes deixavam claro que desejavam que a Ucrânia ingressasse na União Europeia.

Em 2008, a Rússia invadiu a Geórgia, demonstrando que os Russos não estavam dispostos a admitir nenhum passo a mais da União Europeia ou da OTAN em direção às suas fronteiras.

Em 2013, uma nova onda de protestos varreu a Ucrânia, em razão da recusa do então presidente, Viktor Yanukovych, de assinar um acordo de associação do país à União Europeia. A situação se agravou, com o aumento da violência até que, em fevereiro de 2014, o Congresso destituiu o presidente Yanukovych e determinou a realização de eleições, que foram vencidas pelo candidato com uma plataforma pró-europeus.

Em 01 de março de 2014, antes mesmo da realização das eleições, a Rússia invadiu a Crimeia, península estratégica que mantém, em Sebastopol, a sede da armada russa na Mar Negro. Em 6 de março, o parlamento da Crimeia aprovou uma decisão no sentido de entrar para a Federação Russa e, em 18 de março, tal adesão foi ratificada pelas duas partes, apesar da Assembleia Geral das Nações Unidas ter votado uma resolução se opondo a tal adesão.

Em abril, grupos pró-Rússia na região de Donbas, no leste da Ucrânia, iniciaram uma guerra civil. Embora a Rússia não reconheça, é fato hoje incontestável que o país apoiou militarmente os separatistas, em uma ação típica de Guerra Híbrida, com soldados e equipamentos, mas também com Operações de Informação e Cibernéticas, o que impediu a Ucrânia de controlar a situação. Diversos países do ocidente impuseram sanções econômicas à Rússia em razão dessa interferência.

Figura 3 – Regiões da Ucrânia oriental. Note-se, no centro do país, cortando-o de norte a sul, o Rio Dnieper / Fonte Wikipedia

Em 2015 foram celebrados os Acordos de Minsk, proporcionando ao menos uma estrutura de diálogo entre as partes, mas a violência se manteve e mais de 13 mil vidas já foram perdidas nos combates.

Assim, chegamos ao momento atual, no qual os ucranianos e norte-americanos acusam os russos de já terem concentrado na fronteira cerca de 100 mil soldados e estarem planejando uma invasão com um efetivo de cerca de 175 mil militares, com blindados, artilharia e tudo mais necessário para invadir a Ucrânia já nos primeiros meses de 2022.

Os russos negam a intenção ofensiva, afirmando que quem está se preparando para uma ação armada são os ucranianos, que estariam planejando atacar a região de Donbas. O presidente Putin reiterou que há “linhas vermelhas” que não devem ser cruzadas pelo Ocidente, referindo-se claramente à integração da Ucrânia à União Europeia ou à OTAN.

Em meio à crise, os presidentes dos EUA, Joe Biden, e da Rússia, Vladimir Putin, reuniram-se em videoconferência no dia 07 de dezembro de 2021, para tratar do assunto.

Em seguida, no dia 17 de dezembro, os russos divulgaram uma proposta de acordo, com medidas para “garantir a segurança da Federação Russa e dos Estados membros da Organização do Tratado do Atlântico Norte”[1].

No documento os russos listaram, basicamente, as seguintes exigências:

  1. Que a OTAN não posicione tropas em território de países que não pertenciam à OTAN em 1997, data em que a Aliança e a Rússia celebraram o “Ato de Relações Mútuas, Cooperação e Segurança”;
  2. o compromisso de não instalação de mísseis de curto e médio alcance, que tenham a capacidade de atingir o território russo;
  3. que a OTAN se comprometa a não aceitar nenhum novo membro, especialmente a Ucrânia e;
  4. que a OTAN se comprometa a não conduzir nenhuma atividade militar no território da Ucrânia, bem como em outros Estados da Europa Oriental, do Sul do Cáucaso e da Ásia Central. A Rússia assumiria o mesmo compromisso em faixa territorial correspondente do seu lado da fronteira.

Em seguida, entre 09 e 14 de janeiro de 2022, já conhecendo as exigências russas. EUA, OTAN e demais países europeus realizaram uma série de reuniões com os russos para tratarem da crise. Chama atenção o formato adotado para reunir as potências. Inicialmente, na segunda-feira, apenas russos e norte-americanos se reuniram. Na quarta-feira, foi a vez de os aliados da OTAN e, somente na quinta-feira, os 57 integrantes da Organização para Segurança e Cooperação na Europa (OSCE) tiveram a oportunidade de participar. Interessante notar que foi apenas nessa terceira reunião que Ucrânia e Rússia se sentaram à mesma mesa.

O fato das negociações terem sido iniciadas entre russos e norte-americanos, sem a presença de nenhum europeu, para tratar de um problema na Europa, causou muito desconforto no velho continente. Apesar dos representantes dos EUA reafirmarem várias vezes que nada seria decidido sem a participação da Europa e da própria Ucrânia, para os europeus ficou um sentimento de que eles estavam sendo ultrapassados nas tomadas de decisão. A ver, no futuro, se esse episódio deixará marcas nas relações entre norte-americanos e europeus.

O resultado das negociações não apontou para a solução do impasse. Os norte-americanos propuseram aos russos o agendamento de novas conversas. Os russos falaram em “beco sem saída”. Foi um resultado previsível, uma vez que parte das exigências russas são claramente incompatíveis com a própria natureza da aliança militar que congrega os principais países do Ocidente.

Os EUA e a OTAN reiteraram que a política de “portas abertas” da organização é inegociável. A Aliança considera que, como um país soberano, cabe somente à Ucrânia a decisão de solicitar a integração ao grupo e somente aos 30 membros da organização a decisão de aceitar ou não um novo membro. Isso elimina a possibilidade de a Rússia – ou qualquer outro país que não seja membro da Otan – vetar de antemão qualquer expansão da organização em qualquer direção.

O segundo ponto inegociável é a liberdade que a Aliança arroga de posicionar tropas e material de emprego militar no território de qualquer Estado-membro, a qualquer tempo, nas quantidades que julgar necessárias. Isso evidentemente inclui os 14 países, muitos deles ex-repúblicas soviéticas, que aderiram à OTAN entre 1999 e 2020.

Apesar de se posicionar de forma irredutível quanto aos dois aspectos acima, a OTAN deixou alguma margem de manobra em relação às propostas referentes ao posicionamento de mísseis de curto e médio alcance, bem como no que concerne à limitação de exercícios militares na porção leste da Europa, convidando o lado russo a agendar novas rodadas de negociações sobre esses pontos específicos.

Entretanto, os EUA e seus aliados europeus, embora tenham descartado uma atuação militar direta em território ucraniano, ameaçaram a Rússia de sanções econômicas “nunca vistas”, que fariam o país “pagar um alto preço pela invasão”, além de garantir que forneceriam armas, munições e materiais de emprego militar ao exército ucraniano, apoiando-o em uma eventual invasão.

Os russos, por sua vez, mostraram-se descontentes com os resultados das conversas, afirmando que as negociações não tinham avançado e que levavam a “um beco sem saída”. Entretanto, não fecharam as portas para futuras negociações.

Após a rodada de reuniões, os russos se mantiveram no controle dos acontecimentos, com uma série de ações e anúncios que se destinam, claramente, a manter a pressão sobre o Ocidente.

Já no dia seguinte ao fim das conversas, em 14 de janeiro, órgãos do governo e instituições privadas ucranianas foram alvos de um grande ataque cibernético, que tirou do ar inúmeras páginas eletrônicas e interrompeu diversos serviços. Embora a origem do ataque seja encoberta, é obvio que as suspeitas recaíram sobre os russos.

Divulgou-se que a Rússia faria novas manobras militares, sobre as quais não se tinha notícia anteriormente, em território de Belarus, país que faz fronteira com a Ucrânia pelo Norte e que é governado por Aleksandr Lukashenko, governante muito alinhado a Putin.

Outro anúncio foi o de que a marinha russa fará um enorme exercício, que envolverá todas as suas frotas, do Atlântico ao Pacífico, com cerca de 140 navios de guerra e embarcações de apoio, 60 aviões, e 10.000 militares, passando pelo Mar Mediterrâneo, Mar do Norte e Mar de Okhotsk, este último nas proximidades do Japão.

Ao mesmo tempo, Rússia, China e Irã divulgaram a realização de exercícios navais conjuntos, o terceiro da série, chamado “2022 Marine Security Belt”, no norte do Oceano Índico.

Outro fato que chamou atenção foi a grande diminuição do efetivo de diplomatas russos na embaixada do país em Kiev, capital da Ucrânia. A diminuição do corpo diplomático, com o retorno de suas famílias à Rússia, poderia indicar uma escalada da crise e a previsão de um conflito.

Houve ainda pronunciamentos de autoridades russas, dando a entender que poderiam aumentar a aproximação de países nas Américas, inclusive no campo militar, como Cuba e Venezuela. O presidente Putin inclusive divulgou uma conversa telefônica com o presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, realizada em 20 de janeiro, expressando seu “apoio inabalável aos esforços das autoridades venezuelanas para fortalecer sua soberania”.

Foi nessas circunstâncias que no dia em que escrevo este artigo, 21 de janeiro, ocorreu novo encontro diplomático, dessa vez entre o Secretário de Estado Antony Blinken, dos EUA, e o Ministro das Relações Exteriores da Rússia, Sergey Lavrov. Após a reunião, divulgou-se que os EUA responderiam por escrito se aceitavam ou não as condições propostas pelos russos em 17 de dezembro de 2021, e que ambas as partes estariam dispostas a “prosseguir no diálogo”.

Interessante notar que ao longo de toda a crise, foi o lado russo que definiu o ritmo das negociações, impôs a pauta e tomou iniciativas. O lado Ocidental permaneceu o tempo todo na posição daquele que reagia, sem conseguir impor as negociações segundo seus próprios termos ou ritmo.

Assim, pode-se considerar que até este momento, Putin é, do ponto de vista político, o grande vencedor. Conseguiu obrigar os EUA, a OTAN e a Europa a se sentarem em uma mesa para negociar os seus próprios termos, mostrando, para os próprios russos e para a comunidade internacional, uma Rússia poderosa do ponto de vista político/militar. Uma potência que relembra o status soviético, dos tempos de guerra fria.

Tentar antever os próximos acontecimentos não é tarefa fácil. Mas são quatro os cenários que julgo possíveis, um em que não há emprego do poder militar e outros três em que ocorre a invasão:

  1. A Rússia arranca algumas garantias do Ocidente, públicas ou secretas, e desescala a crise, apresentando à sua população razões que demonstrem que ela atingiu seus objetivos e evitou uma guerra. Creio ser esse o cenário de maior probabilidade. Uma ação militar na Ucrânia traria enormes consequencias para os russos, e eles sabem disso.
  2. A Rússia adota ações militares de baixa intensidade e no campo da guerra híbrida, atuando fortemente com guerra cibernética e propaganda, ocupando apenas as regiões de Luhansk e Donetsk (ver figura 3), alegando estar atuando em defesa daquelas populações, majoritariamente russas étnicas.
  3. A Rússia atua militarmente de forma um pouco mais incisiva, também nas regiões de Zaporizhia e Kherson (ver figura 3), no sudeste do país, criando um corredor terrestre que uniria a Rússia até a Crimeia, o que seria um ganho importante do ponto de vista geoestratégico para o país.
  4. A Rússia invadiria a Ucrânia até o corte do rio Dnieper, que separa o país nas porções oriental e ocidental, tentando provocar a criação de um Estado-tampão na porção leste do país.

Ainda no arriscado campo das previsões, passemos a considerar as opções em que a Rússia decide empregar seu poder militar. Creio que, caso a opção escolhida fosse a de número 4, haveria uma forte reação militar da Ucrânia, apoiada decisivamente pela OTAN e alguns outros países europeus, como Suécia e Finlândia. Já as possibilidades de números 2 e 3 seriam apenas o agravamento da crise já em curso na Ucrânia desde 2014. Caso se efetivassem, provocariam as sanções comerciais norte-americanas e europeias, mas não muito mais do que isso.

Assim, na hipótese de emprego do poder militar, creio que as opções 2 e 3 sejam as mais prováveis.

É claro que as avaliações acima estão pautadas nas informações a que tive acesso até o momento em que escrevo este artigo, dia 21 de janeiro de 2022, exclusivamente pela imprensa. Outros fatos, dados e informações podem alterar consideravelmente os rumos dos acontecimentos.

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As tensões na Ucrânia

Artigo primeiramente publicado no jornal O Estado de S. Paulo, em 20/01/2022

Desde novembro do ano passado, o mundo tem assistido ao acirramento das tensões entre a Rússia, a Ucrânia e a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), em razão da concentração de 100 mil soldados russos, com meios blindados, artilharia e helicópteros, nas proximidades da fronteira com a Ucrânia. Dados de inteligência ucraniana e da própria aliança atlântica alertaram que os russos estariam planejando uma invasão, que poderia acontecer a partir de fevereiro deste ano. A Rússia nega a intenção de desencadear a ofensiva militar.

O emprego de forças militares de vulto, em um ataque a um país europeu soberano, mudaria o cenário de segurança da Europa de uma forma ainda não vista desde a Segunda Guerra Mundial, com consequências graves para a própria Europa e para todo o mundo.

Os EUA e seus aliados europeus, embora tenham descartado uma atuação militar direta em território ucraniano, reagiram à concentração de forças, ameaçando a Rússia de sanções econômicas “nunca vistas”, que fariam o país “pagar um alto preço pela invasão”, além de garantir que forneceriam armas, munições e materiais de emprego militar ao exército ucraniano, apoiando-o em uma eventual invasão.

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Autor – Steven Lee Myers

Em dezembro, os russos apresentaram suas exigências em um documento contendo uma proposta de tratado sobre “garantias de segurança”, entre a Rússia e os EUA. Na sequência, houve um encontro virtual entre os presidentes Putin e Biden e três reuniões foram agendadas para janeiro, as quais acabaram de ocorrer.

A primeira, somente entre os representantes dos EUA e da Rússia, a segunda, entre a Otan e a Rússia e a terceira, reunindo todos os 57 integrantes da Organização para Segurança e Cooperação na Europa (OSCE). Interessante notar que foi apenas nessa terceira reunião que Ucrânia e Rússia tiveram oportunidade de se sentar à mesma mesa.

O resultado das negociações não apontou para a solução do impasse. Os norte-americanos propuseram aos russos o agendamento de novas conversas. Os russos falaram em “beco sem saída”. Foi um resultado previsível, uma vez que parte das exigências russas são claramente incompatíveis com a própria natureza da aliança militar que congrega os principais países do Ocidente.

As demandas russas são, basicamente, quatro: 1) que a Otan não posicione tropas em território de países que não pertenciam ao grupo em 1997, data em que a Aliança e a Rússia celebraram o “Ato de Relações Mútuas, Cooperação e Segurança”; 2) o compromisso de não instalação, pela Otan, de mísseis de curto e médio alcance em posições que os possibilitem atingir alvos em território russo; 3) que a Otan se comprometa a não se expandir para o leste, não agregando nenhuma ex-república soviética, especialmente a Ucrânia e; 4) que a Otan se comprometa a não conduzir nenhuma atividade militar no território ucraniano, bem como em outros Estados da Europa Oriental, do sul do Cáucaso e da Ásia Central. A Rússia assumiria o mesmo compromisso em faixa territorial correspondente do seu lado da fronteira.

Em resposta, os EUA e a Otan reiteraram que a política de “portas abertas” da Aliança é inegociável. A Aliança considera que, como um país soberano, cabe somente à Ucrânia a decisão de solicitar a integração ao grupo e somente aos 30 membros da organização a decisão de aceitar ou não um novo membro. Isso elimina a possibilidade de a Rússia – ou qualquer outro país que não seja membro da Otan – vetar de antemão qualquer expansão da organização em qualquer direção.

O segundo ponto inegociável é a liberdade que a Aliança arroga de posicionar tropas e material de emprego militar no território de qualquer Estado-membro, a qualquer tempo, nas quantidades que julgar necessárias. Isso evidentemente inclui os 14 países, muitos deles ex-repúblicas soviéticas, que aderiram à Otan entre 1999 e 2020.

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Apesar de se posicionar de forma irredutível quanto aos dois aspectos acima, a Otan deixou alguma margem de manobra em relação às propostas referentes ao posicionamento de mísseis de curto e médio alcance, bem como no que concerne à limitação de exercícios militares na porção leste da Europa, convidando o lado russo a agendar novas rodadas de negociações sobre esses pontos específicos.

Os russos, por sua vez, mostraram-se descontentes com os resultados, afirmando que as negociações não tinham avançado e que levavam a “um beco sem saída”. Entretanto, não fecharam as portas para futuras negociações.

É importante notar que a simples realização das reuniões já pode ser considerada uma vitória para o presidente Putin. Ele conseguiu mostrar ao mundo – e aos próprios cidadãos russos – uma Rússia forte, uma potência militar que obrigou os EUA e a Otan a negociarem em termos escolhidos pelos russos. A iniciativa das ações continua em suas mãos, podendo escalar ou desescalar a crise ao seu bel-prazer, para grande infortúnio dos ucranianos, ameaçados há meses por um poderoso exército postado à porta da antiga Rus Kievana, origem primeira da atual Federação Russa. Um nó górdio para os diplomatas ocidentais desatarem nesse início de 2022.

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Russos, norte-americanos e europeus debatem o futuro da Ucrânia

Amanhã, 10 de janeiro de 2022, começam as negociações entre os EUA e seus aliados, de um lado, e a Rússia, de outro, sobre a questão ucraniana. As conversas foram propostas pelo lado russo, após concentrarem, ao longo do segundo semestre de 2021, cerca de 100 mil soldados, com artilharia, blindados e meios aéreos, do seu lado da fronteira com a Ucrânia, em uma escalada de tensões sem precedentes na Europa desde o término da Guerra Fria.

A Rússia se considera ameaçada pela existência de laços entre a OTAN e a Ucrânia, mesmo que esses sejam informais. Em razão disso vai exigir que os EUA e seus aliados atendam às chamadas “garantias de segurança”[1], uma lista de exigências que o país divulgou em dezembro como uma proposta de acordo, cujos tópicos principais são os seguintes:

  1. que a OTAN não posicione tropas em território de países que não pertenciam à OTAN em 1997, data em que a Aliança e a Rússia celebraram o “Ato de Relações Mútuas, Cooperação e Segurança”;
  2. o compromisso de não instalação de mísseis de curto e médio alcance, que tenham a capacidade de atingir o território russo;
  3. que a OTAN se comprometa a não aceitar nenhum novo membro, especialmente a Ucrânia e;
  4. que a OTAN se comprometa a não conduzir nenhuma atividade militar no território da Ucrânia, bem como em outros Estados da Europa Oriental, do Sul do Cáucaso e da Ásia Central. A Rússia assumiria o mesmo compromisso em faixa territorial correspondente do seu lado da fronteira.

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Com a possível exceção do tópico que diz respeito aos mísseis e do que veda exercícios militares, trata-se de um acordo inviável para os EUA e a OTAN.

No que diz respeito ao posicionamento de tropas da OTAN, é importante lembrar que, entre 1999 e 2021, a aliança incorporou vários países da Europa central e de leste, muitos deles antigos estados comunistas: República Checa, Hungria, Polônia, Bulgária, Estônia, Letônia, Lituânia, Romênia, Eslováquia, Eslovênia, Albânia, Croácia, Montenegro e Macedônia do Norte.

A anexação da Criméia pela Rússia, em 2014, motivou uma forte condenação dos países da OTAN e o envio de 5 000 soldados para bases militares na Estônia, Lituânia, Letônia, Polônia, Romênia e Bulgária.

A possibilidade de se desdobrar pessoal e meios militares em qualquer um dos 30 Estados membros da aliança está no cerne da finalidade da própria existência da OTAN, sendo evidente que abrir mão dessa possibilidade está fora de cogitação.

Embora tal expressão não seja usada pelos russos, o que se está a assistir é uma tentativa do governo do presidente Putin de se estabelecer uma “zona de influência” sobre a qual o ocidente se abstenha de atuar e cuja liderança caberia naturalmente aos russos.

É a isso que o presidente Putin se refere quando fala sobre as “linhas vermelhas” que não devem ser ultrapassadas pelos EUA ou pela OTAN.

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Os EUA e seus aliados, por sua vez, entram nas negociações já tendo declarado que os termos do acordo, como estão propostos, não podem ser aceitos. Eles parecem estar dispostos a demonstrar ao lado russo que uma eventual invasão da Ucrânia custaria caro. A reação do ocidente não se daria no campo militar, uma vez que os EUA já descartaram a utilização de tropas na defesa da Ucrânia. Entretanto, os ucranianos seriam apoiados militarmente com suprimentos, armas e munições. Além disso, seriam impostos embargos econômicos nunca vistos, que vão desde a proibição de exportação de itens tecnológicos produzidos nos EUA ou cuja tecnologia pertença ao país, até a imposição de barreiras ao fluxo financeiro internacional, como a vedação do acesso dos russos ao sistema SWIFT de transferências financeiras internacionais. Dessa forma, os EUA e a OTAN querem dissuadir os russos, mostrando que o preço de uma eventual invasão seria altíssimo e que a resistência ucraniana, financiada pelo Ocidente, poderia perpetuar-se indefinidamente, em uma guerra altamente desgastante para a Rússia.

Para complicar ainda mais as negociações, elas ocorrerão em pleno desenvolvimento da crise no Cazaquistão, para onde os russos e seus aliados da Organização do Tratado de Segurança Coletiva (OTSC) enviaram tropas em socorro do governo aliado à Moscou, no enfrentamento dos violentos protestos que explodiram naquele país.

A crise no Cazaquistão[2], quando somada à que ocorreu em Belarus, em 2020, ambas ex repúblicas soviéticas, fronteiriças à Rússia e de grande importância para o país, pode aumentar nos russos a sensação de que estão sendo pressionados em mais de uma frente, e de que precisam agir na Ucrânia antes que seja tarde.

Semana que vem pode ser uma semana decisiva, não só para a Ucrânia, mas também para a Europa e para o futuro das relações entre as duas maiores potências militares do planeta.

[1] Leia o documento em https://mid.ru/ru/foreign_policy/rso/nato/1790803/?lang=en&clear_cache=Y

[2] Sobre essa crise leia o artigo Crise no Cazaquistão, em https://paulofilho.net.br/2022/01/06/crise-no-cazaquistao/