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GUERRA NO CÁUCASO

Azerbaijão e Armênia estão em guerra. O conflito de alta intensidade explodiu há seis dias, mas na verdade trata-se da continuidade de uma disputa que tem suas origens na independência dos países da antiga União Soviética, no final dos anos 1980.

Para entender as causas da guerra, suas repercussões regionais e possíveis desdobramentos, é fundamental entender o contexto político, histórico e geográfico das duas partes em conflito.

O Cáucaso é a área geográfica que divide a Europa oriental da Ásia. Trata-se de uma faixa de terra espremida entre o Mar Negro, à Oeste e o Mar Cáspio, a Leste. Seu nome é emprestado da grande cordilheira que atravessa toda a região, de leste para oeste, separando a Rússia, ao Norte, da Georgia e do Azerbaijão, ao Sul.

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Cáucaso. Fonte – http://www.asia-turismo.com/mapas/caucaso-mapa.htm

 

Na região, existem três países independentes: Geórgia, Armênia e Azerbaijão. Os dois primeiros são considerados, normalmente, europeus, enquanto o último normalmente é vinculado ao continente asiático. Além dos três países, as partes vizinhas mais próximas de Rússia, Turquia e Irã também podem ser consideradas como parte do Cáucaso.

Armênia, Azerbaijão e Geórgia eram repúblicas da antiga União Soviética (URSS). A independência desses países ocorreu no final da década de 1980, durante o processo de esfacelamento soviético. Após a independência, o impasse sobre a região de Nagorno-Karabakh explodiu. O enclave tem sua população majoritariamente armênia mas localiza-se em território reconhecido internacionalmente como sendo azerbaijano. Esta é uma situação herdada do tempo em que toda aquela área era URSS, quando o governo central entregou o enclave ao Azerbaijão.

O descontentamento da maior parte dos moradores da região, que não se consideram azerbaijanos, levou ao conflito, travado entre 1988 e 1994 e que foi interrompido com um saldo de 30 mil mortes, por meio de um acordo de cessar-fogo que não resolveu politicamente a questão. Desde então diversas escaramuças fronteiriças vêm ocorrendo, com o Azerbaijão tentando retomar o controle sobre o autodeclarado (mas que não reconhecido por nenhum país, nem mesmo a Armênia) Estado de Nagorno-Karabakh.

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Conflito em Nagorno Karabakh. Fonte – BBC

 

Dessa forma, há cerca de uma semana, o conflito ressurgiu, desta vez com alta intensidade. As imagens divulgadas por todas as mídias mostram colunas de blindados, artilharia, aviação, sistemas de aeronaves remotamente pilotadas (SARP), enfim, o pleno emprego dos meios militares à disposição das partes em conflito. Como em qualquer guerra, como já disse Clausewitz, “as notícias que nos chegam da guerra são quase sempre contraditórias, na maior parte, também falsas. As mais numerosas são em grande quantidade sofrivelmente suspeitas.” Assim, no calor do momento e entre as campanhas de desinformação e de operações psicológicas de ambos os lados, o mundo vai tomando conhecimento das operações militares no terreno. Entretanto, pelo que se pode vislumbrar através da bruma da guerra, e em uma avaliação bastante preliminar, o emprego dos SARP e o apoio decisivo dos turcos aos azerbaijanos talvez desequilibre o poder de combate em favor dos últimos.

As potências regionais e globais vão se alinhando às partes em conflito, sempre na defesa de seus próprios interesses. A Turquia e a Rússia são os principais atores externos envolvidos e, mais uma vez, assim como na Líbia e na Síria, estão em lados opostos. Os turcos apoiam abertamente os azerbaijanos, com quem possuem grande identificação histórica, linguística e cultural. Mas também há fortes interesses econômicos. O Azerbaijão é parceiro da Turquia na operação do gasoduto Transanatoliano, uma alternativa de fornecimento energético que reduz a dependência turca em relação ao gás russo.

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Gasoduto TANAP. Fonte – https://www.researchgate.net/figure/The-TANAP-TAP-and-Nabucco-pipelines_fig1_322927029

 

Já os russos, que integram juntamente com Bielorrússia, Cazaquistão, Quirguistão e Tadjiquistão uma aliança militar com a Armênia, a Organização do Tratado de Segurança Coletiva (OTSC), e já têm problemas na Líbia, Síria, Ucrânia e Bielorrússia, não parecem muito dispostos a se engajar decisivamente em um conflito no Cáucaso.

Assim, vê-se que a resposta calculada da Rússia frustra a Armênia, cuja solicitação formal de apoio militar à OTSC não foi atendida até o momento, em contraste com o decisivo apoio turco aos Azerbaijanos.

Os EUA, completamente concentrados em suas questões internas e nas eleições presidenciais, não passaram de exortações protocolares pela paz. A Europa, com o presidente Macron à frente, assim como as Nações Unidas, também fizeram declarações em favor da paz que não alcançaram qualquer resultado prático.

Assim, parece que a solução do conflito dependerá de as partes envolvidas chegarem a um acordo, ou da ação da Turquia e Rússia. Mais exatamente de até onde os russos tolerarão a expansão da influência turca, também naquela região.

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PUTIN 2036

Vladimir Putin já se referiu à desintegração da antiga União Soviética (URSS), ocorrida em 1991, como o “grande desastre geopolítico do século”. Em 2004, ele já estava no poder quando todos os países membros do antigo Pacto de Varsóvia [1], com exceção da própria Rússia, já estavam integrados à inimiga OTAN ou à União Europeia. Ou seja, às portas da Rússia. E, do ponto de vista do presidente russo – e de grande parte da opinião pública daquele país – essa sempre foi uma situação difícil de aceitar.

Desde 1999 no poder, o presidente Vladimir Putin acaba de obter mais uma importante vitória política. Em referendo realizado para a aprovação de mudanças constitucionais, os russos votaram para concordar com a alteração das regras eleitorais. Dessa forma, Putin poderá se candidatar novamente nas duas próximas eleições. Caso seja vitorioso, o presidente, que já está no poder há 20 anos, permanecerá despachando do Kremlin até 2036, tornando-se o mais longevo líder russo em tempos modernos, ultrapassando o ditador Stálin e, em toda a história, ficando atrás apenas do Tzar Pedro, o Grande, que governou o império russo por 43 anos entre 1682 e 1725.

Às vésperas do referendo, no último dia 22 de junho, em plena pandemia da Covid-19, Putin determinou que fossem realizados os desfiles militares em comemoração aos 75 anos da vitória na 2ª Guerra Mundial. Ao mesmo tempo, fez divulgar um artigo[2] de sua autoria, de 18 páginas, no qual celebra a atuação soviética na guerra, ao mesmo tempo em que defende a ordem geopolítica inaugurada no pós-guerra, especialmente o Conselho de Segurança da ONU e seus cinco membros permanentes, Rússia, China, Estados Unidos, França e Reino Unido, que possuem poder de veto. Putin atribui ao Conselho de Segurança e, muito especialmente, ao poder de veto que cada um desses cinco países possui naquele fórum, o fato de o mundo não ter enfrentado uma nova guerra mundial nos últimos 75 anos.

No mesmo documento, Putin reforçou sua intenção, expressa no início do ano, de promover uma reunião de cúpula com os líderes desses cinco países para “encontrar respostas para os modernos desafios e ameaças, demonstrando um comprometimento comum e espírito de aliança”. A ênfase no fórum formado pelos 5 membros permanentes do Conselho de Segurança em detrimento de outros grupos mais representativos, como por exemplo o G20, demonstra sem disfarces o esforço de Putin de manter seu país relevante geopoliticamente, como legítimo herdeiro da União Soviética, em um momento em que o crescimento da China mostra que a bipolaridade mundial teve o seu polo oriental transferido de Moscou para Beijing. Em resumo, Putin quer garantir um lugar de decisão e influência no palco das decisões globais.

Mas o esforço russo não é apenas retórico. Nos 20 anos em que está no poder, Putin adotou políticas no sentido de que a Rússia recuperasse a grandeza e prestígio geopolítico da antiga União Soviética e recuperasse sua esfera de influência sobre os países vizinhos, em especial no leste europeu, no centro da Ásia e, ainda, no Oriente Médio, além de trabalhar para reconstruir seu poderio militar.

Assim, o país ampliou suas aspirações globais, atuando militarmente na Chechênia, na Geórgia e no norte do Cáucaso. Putin interveio na Ucrânia, retomando a Criméia e controlando boa parte da região de Donbass. Além disso, a Rússia interfere decisivamente nas guerras civis da Síria e da Líbia, apoia financeira e militarmente o governo de Nicolás Maduro, envia mercenários do Wagner Group para atuar na República Centro Africana e atua no chamado “amplo espectro dos conflitos” por meio da internet, em ciberataques contra instituições privadas e públicas em vários países estrangeiros, além de desencadear campanhas de propaganda e desinformação inflamando tensões sociais e tentando interferir em campanhas eleitorais estrangeiras, sendo as últimas eleições presidenciais norte-americanas o caso mais relevante.

No campo militar, a Rússia tem obtido avanços tecnológicos importantes em seu arsenal, como a nova classe de mísseis hipersônicos, novos drones submarinos, além de um novo carro de combate principal.

A “ordem global”, anárquica por natureza, apresenta vários sinais de estar em crise. A absoluta ausência de uma resposta internacionalmente coordenada para a crise da Covid-19 é apenas o sinal mais recente e nítido. O sistema internacional se apresenta menos colaborativo e mais frágil. As instâncias internacionais de coordenação e resolução de controvérsias demonstram baixos níveis de representatividade ou credibilidade. É nesse ambiente que o Presidente Putin encontra espaço para projetar sua atuação, uma vez que, para ele, as relações internacionais são encaradas como um jogo de soma-zero, nos quais os interesses russos são considerados sempre em primeiro lugar.

O primeiro ministro inglês Winston Churchill afirmou, em 1946: “Estou convencido de que não há nada que [os russos] admirem tanto quanto a força, e que não há nada por que tenham menor respeito do que a fraqueza, especialmente a fraqueza militar”. Talvez esse espírito explique a longevidade de Vladimir Putin no poder.

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[1] aliança militar liderada pela URSS nos tempos de Guerra Fria
[2] Artigo



A RÚSSIA E O ÁRTICO

A maneira como cada um de nós entende a geografia do mundo é condicionada pela imagem que conhecemos do planeta. Assim, aqui no Brasil e no restante do ocidente, a ideia que temos do planeta é a da projeção cilíndrica de Mercator. As Américas estão “à esquerda”, Europa e África “ao centro” e Ásia e Oceania “à direita”. “Abaixo”, a Antártida e “acima”, o Oceano Glacial Ártico.

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Projeção Cilíndrica de Mercator

Acostumados a ver o mundo desse ponto de vista, os ocidentais se habituaram a tratar o Oceano Glacial Ártico e a Antártida como grandes áreas passivas, completamente fora dos interesses da imensa maioria das pessoas. Entretanto, para os russos, o Ártico tem uma importância geoestratégica vital. E fica bem mais fácil entender isto se, ao invés da projeção cilíndrica de Mercator, utilizarmos uma projeção plana, também chamada azimutal, para observar aquela parte do mundo.

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Projeção Polar plana do Hemisfério Norte

Como se vê, a imagem do hemisfério norte agora mostra, “à esquerda”, a América do Norte, com destaque para o Canadá, o Alasca e a Groelândia. “Ao centro”, o Ártico, e “à direita”, a Eurásia, com destaque para a Rússia. É possível se observar com mais clareza o gigantesco litoral ártico russo, de mais de 24 mil quilômetros de extensão, mais de três vezes o tamanho do litoral atlântico brasileiro. Salta aos olhos que o Oceano Glacial Ártico é uma ligação entre os oceanos Pacífico e Atlântico, além de ser inescapável a proximidade da Ásia e da América no Estreito de Bering, que separa a Sibéria russa do Alasca[1] norte-americano.

Em 1935, os russos conseguiram, pela primeira vez, estabelecer com regularidade o trânsito de navios mercantes pela Rota Norte, ou passagem do Noroeste[2], ligando os Oceanos Pacífico e Atlântico, navegando ao longo da costa russa. A navegação, durante décadas, ficou restrita ao período de agosto a outubro, mas sempre com o constante risco representado pelos icebergs e pela instabilidade climática da região.

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Rota Norte

A Rota Norte encurta consideravelmente distâncias de transporte. Uma viagem do Porto de Roterdã, na Holanda, à cidade japonesa de Yokohama é reduzida em 3.840 milhas náuticas, cerca de 9 dias de navegação. Do mesmo porto até Xangai, o encurtamento é de 2.361 milhas náuticas, ou cerca de 5,5 dias, se comparadas com a rota alternativa, que circunda a Eurásia pelo Sul, utilizando o Canal de Suez e o Oceano Índico até chegar ao Pacífico.

Com o esfacelamento da antiga União Soviética, esta rota praticamente fechou. Entretanto, a partir da segunda década deste século, a Rússia voltou a investir na viabilidade comercial da rota. Para isto, alguns fatores contribuíram, como uma nova classe de navios quebra-gelo, inclusive de propulsão nuclear, modernas tecnologias de auxílio à navegação e o próprio aquecimento do clima global, fatores que, somados, permitiram a ampliação do prazo navegável de três meses, em 1935, para seis ou sete meses por ano, nos dias atuais. Outro estímulo importante foi o incremento da produção de gás natural siberiano que, liquefeito, encontra na Rota Norte o seu melhor caminho até os países importadores. Assim, de 2015 a 2019 o volume de cargas transportado pelos navios mercantes ao longo da costa ártica da Rússia saiu de 5,4 milhões para 29 milhões de toneladas/ano. Isto mostra um esforço logístico de melhoria das condições de transporte, que superam dificuldades como os altos preços dos seguros e os riscos de atrasos causados pelas condições climáticas muitas vezes desfavoráveis na região.

Apesar de sua importância, o estabelecimento da Rota Norte não é o único motivo pelo qual a Rússia está atenta ao Ártico. A importância econômica da região não é nada desprezível. Segundo estimativas do Observatório Geográfico dos EUA, cerca de 13% do petróleo e 30% do gás natural por ser descoberto está no interior do Círculo Polar Ártico. Isto sem falar da comprovada existência de outras riquezas minerais de grande valor, como ouro, magnésio, níquel, cobalto e prata.

Há ainda o aspecto militar. O país criou, em 2014, um comando conjunto voltado para o Ártico, que, não custa lembrar, é a região em que Ásia e América mais se aproximam geograficamente. Trata-se do Comando Estratégico Conjunto da Frota do Norte. Esta criação permitiu a retomada, ampliação e modernização de várias bases militares do país na região. A realocação e readequação das forças permitiu a ampliação da instalação de radares, baterias antiaéreas, baterias de mísseis e equipamentos de guerra eletrônica, dentre outras inúmeras possibilidades. Além disso, o Ártico é a região mais adequada para testes de novos armamentos, por sua vastidão, vazio demográfico e dificuldade de acesso.

Dessa forma, a Rússia, uma nação tradicionalmente voltada ao poder terrestre, vai conquistando espaço e larga na frente na competição pela exploração da região ártica, seguindo os preceitos do Almirante Alfred Thayer Mahan, teórico da importância estratégica do domínio de rotas marítimas – o chamado “poder marítimo”. Além disso, na medida em que avança em direção ao Norte, estabelece no Ártico a mesma estratégia de projeção de poder que tem executado em outras regiões de seu interesse, notadamente o leste europeu e o norte da África. Nesse sentido, foi emblemático o gesto ocorrido em 02 de março de 2007, quando uma expedição submarina do país instalou a bandeira da Federação Russa no leito do oceano, a mais de 4 mil metros de profundidade, no ponto que define o “polo norte real”. Para os russos, não há dúvidas sobre qual nação deve ter a primazia da exploração das riquezas árticas.

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Bandeira russa, instalada no leito do oceano, a mais de 4 mil metros de profundidade, no Pólo Norte


[1] O Alasca, no que hoje parece uma ironia do destino, foi território russo e foi vendido por 7,2 milhões de dólares, pelo Tzar Alexandre II, aos EUA, em 1867, pelas dificuldades do Império Russo em manter o distante território.
[2] A passagem noroeste tinha sido feita pela primeira vez, a duras penas, pelo explorador norueguês Ronald Amundsen, em seu pequeno navio Gjøa, que está exposto à visitação na cidade de Oslo, capital da Norega, ao lado do Fram, o navio usado pelo mesmo explorador na conquista do Polo Sul, em 1911.



RUSSOS E TURCOS EM LADOS OPOSTOS NA SÍRIA

Os presidentes da Turquia, Recep Erdogan, e da Rússia, Vladimir Putin possuem boas relações pessoais. Essa aproximação ajudou os dois países a firmarem, em 2018, um acordo no qual se criava uma zona desmilitarizada em Idlib, noroeste da Síria. Mas a ofensiva do governo sírio, apoiada pelos russos, contra grupos rebeldes da região, transformaram aquele acordo em “letra-morta”, uma vez que os dois países estão em lados contrários na guerra civil que assola a Síria há 9 anos.

Esse antagonismo assumiu contornos mais graves recentemente, quando soldados turcos que estão na região foram mortos em combates contra tropas sírias diretamente apoiadas pela força aérea russa.

Para entender como os acontecimentos chegaram a este ponto, é importante retroceder a outubro do ano passado. Naquele mês, os norte-americanos declararam ter vencido o grupo terrorista Estado Islâmico na região e, por isso, iriam retirar o grosso de suas tropas da Síria. Essa retirada criou as condições necessárias para que a Turquia interviesse diretamente no conflito. Assim, foi desencadeada a Operação “Primavera da Paz”, uma ofensiva no território sírio. Os objetivos, segundo o governo turco, seriam: combater grupos paramilitares curdos – considerados terroristas por Ancara, mas aliados dos norte-americanos na luta contra o Estado Islâmico – e garantir uma “Zona de Segurança” no território sírio, para onde seriam levados grande parte dos 3,5 milhões de refugiados da guerra civil que estão hoje em território turco.

Os militares turcos que foram mortos pelos sírios são integrantes das forças participantes da Operação “Primavera da Paz”. Os combates têm se aproximado cada vez mais de regiões densamente povoadas, especialmente da cidade de Idlib e da região fronteiriça de Bab al-Hawa. Trata-se de um dos últimos territórios controlados pelas forças rebeldes (compostas, hoje, principalmente pelo grupo jihadista Hayat Tahrir al-Sham, integrado por antigos militantes da Al Qaeda), mas o governo do Presidente Bashar al-Assad, firmemente apoiado pela aviação e apoio logístico russos, pretende retomar o controle da área.

Teme-se que a ofensiva do governo provoque uma enorme leva de refugiados, além de uma tragédia humanitária. E isso está se comprovando. Somente de dezembro até hoje, estima-se em 900 mil o número de novos deslocados, na sua maioria mulheres e crianças, que fogem tentando, em vão, chegar à Turquia. Essas pessoas estão na faixa de fronteira entre os dois países, desabrigadas ou em abrigos improvisados, enfrentando as baixas temperaturas da região, agravando a crise dos refugiados.

A tragédia humanitária em Idlib não tem obtido quase nenhuma atenção no ocidente. Os EUA, que adotaram no governo Trump uma política externa mais isolacionista, estão concentrados nas eleições presidenciais que se aproximam. As potências europeias tampouco demonstram interesse ou força política para definir rumos no conflito. A ONU tem feito apelos vãos por um cessar fogo, que não é implementado porque não encontram eco nas potências do Conselho de Segurança, que efetivamente teriam poder para adotar ações práticas.

Assim, restam a Rússia e a Turquia, países sobre os quais parecem repousar os destinos da guerra na Síria e, em consequência, de milhões de refugiados. Os russos bancaram a permanência de Assad no poder. Com isso, fincaram o pé como uma potência extrarregional capaz de interferir nos destinos do Oriente Médio, ao mesmo tempo em que garantiram um governo amigo aos russos em um país estratégico aos seus interesses políticos, econômicos e militares. Nesse sentido, é importante destacar a relevância estratégica, para a Rússia, do porto de Tartus, base naval cedida aos russos pelos sírios, em seu território, que concede à marinha russa o acesso às águas do Mar Mediterrâneo.

A Turquia, por sua vez, possui desafios difíceis pela frente. Se decidir impulsionar sua ofensiva na região de Idlib, atacando as tropas sírias para evitar que estas retomem a cidade, arrisca-se a engajar-se decisivamente em uma guerra que não deseja, em um enfrentamento direto contra os russos. Se, por outro lado, contiver suas ações militares evitando o engajamento decisivo nos combates, certamente verá fracassar seus esforços de conter o fluxo de refugiados em razão de uma tragédia humanitária ainda maior em suas fronteiras.

Percebendo a situação difícil em que se encontra, o Presidente Erdogan decidiu atuar com mais intensidade no campo diplomático. Por um lado, fez questão de relembrar que seu país é membro da OTAN, solicitando aos EUA baterias de mísseis Patriot, para a defesa de seu espaço aéreo. De outro lado, marcou, para o dia 05 de março, uma reunião com os Presidentes Putin e Macron, além da chanceler Angela Merkel. Note-se uma ausência: a dos norte-americanos. Uma novidade para a geopolítica da região, que enfraquece a liderança que a superpotência sempre desempenhou na definição dos destinos do Oriente Médio




A TURQUIA E OS CURDOS. OS RUSSOS, OS IRANIANOS E A SIRIA. E OS EUA COM ISSO

O Presidente Trump ordenou a retirada das tropas norte-americanas que estavam na Síria. Talvez esta tenha sido a decisão de política externa mais criticada de seu período como presidente, tanto por integrantes da oposição quanto por membros do seu próprio partido, por vários motivos. O mais evidente foi o fato de a retirada das tropas servir como senha para a invasão do norte da Síria pela Turquia, em uma ofensiva contra os Curdos, que dominam a região desde 2012. Curdos esses que, aliados aos próprios norte-americanos, foram os grandes responsáveis por combater com êxito o grupo terrorista Estado Islâmico, na Síria.

Para entender a confusa situação da Síria, é preciso consultar a história da formação das fronteiras dos países do Oriente Médio. Essas fronteiras inexistiam até as potências vencedoras da 1ª Guerra Mundial dividirem o território que antes fora o Império Otomano. Pelo acordo Sykes-Picot, celebrado entre Reino Unido e França, confirmado pela Conferência de San Remo, em 1920, os europeus traçaram linhas em mapas, linhas que não existiam na realidade e que criaram algumas das fronteiras mais artificiais da história. Antes, não havia nenhuma Síria, nem Líbano. Tampouco Israel, ou Palestina, Iraque, Kuait, Arábia Saudita, Jordânia. Esses e outros países foram criados, de um lado, unindo pessoas e povos que não estavam habituados a conviver e, de outro, separando etnias e povos de origens e costumes comuns.

Assim, a área onde hoje é a Síria, logo após a I Guerra Mundial, tornou-se um protetorado francês. Essa condição só foi modificada com a independência, em 1946. Em 2011, na esteira da chamada Primavera Árabe, teve início a Guerra Civil que se prolonga até hoje.

Bashar al-Assad, ditador sírio, esteve a ponto de ser derrubado, mas graças ao apoio de russos e iranianos, o regime se manteve. O apoio russo tem forte motivação geopolítica. Após a queda de Kadafi, na Líbia, na Primavera Árabe, os russos viram sua influência na região ser ameaçada. E o risco de perder um governo amigo também na Síria era intolerável. É neste país que, desde 1971, os russos mantêm a base naval de Tartus, um porto de águas profundas. A base é fundamental para garantir a presença naval russa no Mediterrâneo.

O Irã é outro forte ponto de apoio do regime de Assad. Isso se deve a alguns fatores, políticos e religiosos. O principal é que os sunitas, principais opositores de Bashar al-Assad, são também rivais dos xiitas iranianos. A eventual troca de governo na Síria, e a consequente ascensão sunita, aproximaria a Síria da esfera de influência da Arábia Saudita, significando um forte revés para a influência iraniana na área.

A Turquia aproveitou a retirada das tropas norte americanas da Síria para lançar uma ofensiva contra os curdos, que detêm o controle da posição nordeste do país, mantendo-se em uma situação de semiautonomia. O motivo alegado é o de criar uma “faixa de segurança” na fronteira, do lado sírio, para onde seriam enviados de volta parte dos 3,6 milhões de refugiados que estão no país, em fuga da guerra civil síria. Para um país de economia frágil e de 80 milhões de habitantes, esse é um problema de dificílima resolução. O presidente turco Recep Erdogan acusa as autoridades europeias e norte-americanas de não cumprirem acordos, deixando de enviar ao país 3 bilhões de euros que foram prometidos pela União Europeia em 2016. Ameaça também, caso não consiga enviar os sírios de volta ao seu país, “abrir as portas” para que os refugiados entrem Europa adentro.

Os curdos são um povo originário da região que hoje engloba a parte sudeste da Turquia, norte do Iraque, noroeste do Irã e sudoeste da Armênia. Estima-se que hoje sejam entre 25 e 35 milhões de pessoas.

Curdistão

Na Turquia, os curdos são vistos como uma ameaça. Desde a década de 1980, o grupo PKK, ou Partido dos Trabalhadores do Curdistão, fez uma opção pela luta armada, em busca da independência do Curdistão. Mais de 40 mil pessoas já morreram em atentados terroristas e em enfrentamentos com o Exército Turco desde então. Para os turcos, os curdos que estão na Síria nada mais são do que um dos braços de apoio ao PKK.

E, em meio a esse cenário conturbado, a decisão do presidente Trump afeta fortemente o equilíbrio das forças, redundando em um reequilíbrio que dificilmente será favorável aos interesses dos proprios norte-americanos na região. Em primeiro lugar, os curdos se sentiram traídos e abandonados, imediatamente entrando em acordo com o Presidente Bashar al-Assad. A fama de “parceiro não confiável” dos norte-americanos será espalhada pela máquina de propaganda dos seus inimigos no Oriente Médio, e exigirá um grande esforço futuro para que essa narrativa seja revertida. Em segundo lugar, o aforismo “o poder não deixa vácuo” foi comprovado pela enésima vez. Quase imediatamente, o presidente russo Vladimir Putin intermediou o acordo entre o presidente sírio e os curdos, e iniciou contatos com o presidente turco. Posicionou tropas em locais estratégicos no norte da Síria e tenta mediar o conflito. A Rússia assume o papel que até então era desempenhado pelos EUA na região.

O presidente norte-americano talvez ampare a decisão de retirar as tropas da Síria na premissa de que os cidadãos do seu país desejem uma política exterior mais isolacionista. Uma em que os EUA não se metam em “problema dos outros”. Afinal, o país tem enviado tropas para combater em lugares distantes já há um bom tempo. O que talvez essa postura não considere, é que os EUA só chegaram a ocupar o lugar de única superpotência do planeta porque, a partir da 2ª Guerra Mundial, souberam defender seus próprios interesses no xadrez geopolítico global. Decisões implicam em consequências. Somente o tempo indicará quais as repercussões geopolíticas das decisões do Presidente Trump.




TAMBORES DA GUERRA?

A Rússia acaba de encerrar a Operação Vostok 2018. Tratou-se certamente do maior exercício militar russo desde o fim da guerra fria. Talvez tenha sido o maior da História. O Ministério da Defesa daquele país divulgou que cerca de 300 mil militares participaram, utilizando mil aeronaves, 80 navios e 36 mil veículos. Tropas da China e da Mongólia também estavam presentes. Embora seja muito provável que esse número esteja consideravelmente inflado, a operação não deixa de ser impressionante. A título de comparação, as manobras do ano passado, chamadas Zapad 2017 e realizadas no Leste Europeu, envolveram, em números oficiais, 12.700 militares.

Manobras militares têm muitas finalidades. Do ponto de vista tático/operacional, servem como excelente ferramenta de treinamento, permitindo a imitação do combate e o emprego conjunto das forças de terra, ar e mar, além da prática dos sistemas de armas, dos sistemas de comando e controle, de cibernética, e de uma infinidade de outros aspectos da guerra. Do ponto de vista logístico, que parece ter sido um dos mais relevantes neste caso, é uma excelente oportunidade de verificar e testar as linhas de transporte, permitir a chamada “aproximação dos meios”, o deslocamento de tropas e de todo o apoio logístico desde suas bases até o teatro de operações – onde as operações militares são realizadas. Não esqueçamos que essa é uma tarefa especialmente complexa quando se trata da Rússia, país de dimensões continentais, que se estende por toda a Eurásia, das fronteiras com os países europeus até o Estreito de Bering e o Oceano Pacífico, no extremo oriental asiático.

Mas além desses aspectos eminentemente militares há os aspectos estratégicos e geopolíticos, talvez ainda mais relevantes. A dissuasão é uma antiga e importante estratégia de segurança. Por meio dela um país demonstra possuir poder militar suficiente e apto a ser empregado de imediato, capaz de se contrapor a qualquer ameaça. Nessa direção, a realização do Vostok 2018 faz todo o sentido: uma grande demonstração de força destinada a impressionar e dissuadir potenciais adversários.

Há também a participação da China. Divulgou-se que o Exército Popular de Libertação enviou ao Teatro de Operações 3.200 militares, cerca de mil veículos e 30 aeronaves. O emprego das tropas de forma combinada com a Rússia já havia sido utilizado em manobras no âmbito da Organização de Cooperação de Xangai (Shangai Cooperation Organization). Entretanto, aqueles exercícios usavam como cenário operações contra ameaças não tradicionais – terrorismo, catástrofes naturais e ilícitos transnacionais, por exemplo. Agora, pela primeira vez desde a década de 1960, os exércitos dos dois países operam juntos num cenário de guerra de alta intensidade. Esse tipo de treinamento é muito importante para a China. Operar com outro exército não é tarefa fácil. Conciliar diferentes doutrinas, técnicas, táticas, procedimentos, equipamentos, mentalidades, tudo isso enfrentando a barreira de um idioma completamente diferente, é complexo e exige muita prática.

Do ponto de vista geopolítico, as manobras enviam um recado aos Estados Unidos e seus aliados da Otan: China e Rússia são capazes de atuar em conjunto num cenário de guerra de alta intensidade e de amplo espectro. E essa capacidade é demonstrada exatamente neste momento de conflito comercial nas relações sino-americanas e de tensões políticas entre Rússia e EUA em razão das acusações de interferência nas eleições norte-americanas e pelas posições antagônicas assumidas por cada uma das potências na Síria e no Leste Europeu.

A China, além do mais, tenta demonstrar que é capaz de operar fora de seu território. Mas não só isso. Ao mesmo tempo que tenta impressionar os russos enviando tropas de elite, resultado de um processo de crescente modernização de suas Forças Armadas, os chineses têm a rara oportunidade de operar com um exército formado por soldados experimentados em combate. As lições aprendidas pelos comandantes russos nas guerras da Síria e da Ucrânia certamente serão de algum modo transmitidas aos inexperientes comandantes chineses.

Todo o cenário aponta para uma preocupação crescente dos estrategistas militares com a possibilidade de eclosão de um conflito de largas proporções envolvendo as grandes potências. Tratei desse assunto neste espaço, em 18 de abril, quando escrevi sobre a nova Estratégia de Defesa dos EUA, que reorienta a preparação de suas Forças Armadas na direção da preparação para conflitos de alta intensidade, ao invés da chamada guerra ao terror.

O analista militar russo Pavel Felgenhauer, citado pela versão eletrônica do jornal japonês The Japan Times em reportagem de 10 deste mês, diz que o Vostok 2018 “não é apenas sobre mandar um sinal, ou uma mensagem, mas a preparação para uma guerra real de grande magnitude”. O analista russo declara ainda que “o Estado-Maior russo acredita que uma guerra mundial acontecerá depois de 2020, ou em uma guerra global, ou em uma série de conflitos de magnitude”.

Não se trata de anunciar o fim do mundo, ou de afirmar que a humanidade caminha de forma inexorável para uma guerra de grandes proporções. As relações internacionais são sujeitas a um enorme número de variáveis e guerras sempre podem ser evitadas. Quase ao mesmo tempo que os tambores da guerra tocavam no Vostok 2018, perto dali, na Península da Coreia, os presidentes das Coreias do Norte e do Sul se encontravam, em mais um passo em favor da paz e na direção do encerramento formal da Guerra da Coreia.

Fazendo votos de que a paz sempre encontre o caminho, fica o alerta para que os espectadores, como nós aqui, do outro lado do mundo, não deixemos de estar atentos a eventos que certamente trarão consequências para o Brasil e para os brasileiros.




O ENCONTRO DE CÚPULA DE HELSINQUE

Um dia após premiar os franceses, campeões da Copa da Rússia, perante uma audiência global de mais de 1 bilhão de pessoas, Vladimir Putin viajou a Helsinque, capital da Finlândia, para encontrar-se com o presidente dos EUA, Donald Trump.

O encontro ocorreu após uma intensa movimentação diplomática de ambos os presidentes. Putin vinha de encontrar-se na semana anterior com Ali Akbar Velayati, ex-ministro das Relações Exteriores do Irã, homem de confiança e conselheiro do presidente Ali Khamenei. Antes disso, em 11 de julho, reunira-se com o primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu. A guerra civil na Síria certamente esteve na pauta das conversas.

Trump encerrou com o encontro de Helsinque uma atribulada viagem à Europa, que se iniciou em Bruxelas, com a reunião dos países-membros da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan). Foi um encontro tenso, no qual Trump exigiu que países-membros da aliança militar aumentassem seus gastos com defesa. Ao mesmo tempo, criticou fortemente a Alemanha por, no seu entender, depender excessivamente do fornecimento de gás natural russo. De Bruxelas, seguiu para Londres, para encontrar-se com a primeira-ministra Thereza May. Lá, concedeu uma entrevista em que criticou May pela forma como está conduzindo a saída do Reino Unido da União Europeia. Trump ainda encontrou tempo para chocar os líderes europeus declarando que a União Europeia seria “inimiga comercial” dos EUA.

A semana que antecedeu a reunião de Helsinque contextualiza o encontro e mostra como é o momento dos dois presidentes. Putin vive fase de grande visibilidade, surfando a onda positiva de ter sido o anfitrião de uma Copa do Mundo. Trump, bastante criticado no seu país e na Europa, acusado de tratar melhor os russos, inimigos históricos, do que os próprios aliados europeus. Como se não bastasse, no dia do encontro uma sequência inacreditável de publicações no Twitter expôs Trump a uma onda de críticas ainda maior. Ele escreveu que o relacionamento entre os EUA e a Rússia nunca tinha estado tão ruim quanto atualmente graças a muitos anos de “tolices e estupidez” dos próprios EUA. Imediatamente depois, a conta oficial do Ministério das Relações Exteriores russo respondeu simplesmente: “Nós concordamos”. Talvez seja um caso único na história em que um presidente publicamente e algumas horas antes de se encontrar com o maior adversário reconhece que os problemas que existem entre seus países são de sua própria culpa.

Os problemas a que o presidente Trump se refere e que colocaram as relações entre Rússia e EUA num nível alto de tensão são variados e complexos. Há a questão da interferência dos russos, acusados de atuar por meio de ações de guerra cibernética nas eleições americanas de 2016. Há, também, a guerra civil na Síria, com toda a sua complexidade, que opõe nos campos de batalha sírios coalizões lideradas, de um lado, pelos EUA e, de outro, pelos russos. Outro ponto de grande sensibilidade são a anexação da Crimeia e a ação militar russa (encoberta, mas nem tanto) na Ucrânia, que é a causa das sanções econômicas impostas à Rússia pelos EUA e por seus aliados.

Como se vê, assuntos a serem resolvidos – ou pelo menos que merecessem alguma tentativa de encaminhamento de soluções futuras – não faltavam. Entretanto, na entrevista coletiva concedida ao término da reunião, Trump focou suas respostas na política interna, preocupado em tentar demonstrar que os russos não interferiram nas eleições que o conduziram ao poder. Afinal, admitir tal interferência, tida como certa pelas próprias autoridades das agências de inteligência norte-americanas, seria de alguma forma admitir uma sombra de ilegitimidade no processo eleitoral que o conduziu à presidência. Para isso, disse que Putin negara peremptoriamente tais ações e que ele não tinha nenhum motivo para desconfiar de que isso não fosse verdade. Evidentemente, Putin disse o mesmo. Quanto à crise da Ucrânia/Crimeia, nenhuma novidade. Quanto à Síria, a reafirmação de que ambos os países estão combatendo os terroristas. Ou seja, quanto aos assuntos que realmente importam do ponto de vista geopolítico, nada de relevante.

Ou quase nada. Putin e Trump afirmaram que a era de desconfianças da guerra fria não deveria existir mais, que o mundo hoje mudou e que não deveria haver razão para tensões entre Rússia e EUA.

Essa afirmação não encontra amparo na realidade e é negada pelos próprios documentos de nível político/estratégico de ambos os países. A Estratégia Nacional de Defesa dos EUA, documento de janeiro deste ano, portanto da administração Trump, identifica que os EUA enfrentam uma era em que a competição estratégica entre os Estados é a maior ameaça à segurança e cita a Rússia como um país que viola fronteiras e pressiona diplomática e economicamente seus vizinhos.

Já os russos, em sua Estratégia de Segurança Nacional, publicada em 31 de dezembro de 2015, citam que os EUA e aliados, a fim de manter a atual dominância sobre os assuntos internacionais, adotam uma “política de contenção” que se opõe à implementação de uma política externa russa independente. Expressa, ainda, que a Otan atua em violação às normas do Direito Internacional, expandindo as atividades militares em direção às fronteiras da Rússia, sendo uma ameaça à segurança daquele país.

Ou seja, o discurso de Trump foi focado em seus problemas internos e não levou em consideração os graves desafios geopolíticos identificados nos documentos produzidos por sua própria administração. Já Putin, para aproveitar a metáfora futebolística, entrou em campo e nem precisou se defender. O adversário cedeu o terreno e ele jogou solto, fez embaixadinhas para a torcida e correu para o abraço. A torcida adversária e os comentaristas não entenderam nada…