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Diálogos e divergências em Xangrilá: as Perspectivas de EUA e China sobre a Segurança no Indo-Pacífico

Xangrilá é um lugar paradisíaco isolado nos vales montanhosos do Tibete, descrito no livro Horizonte Perdido, de James Hilton, como um lugar onde o tempo parece deter-se, no qual as pessoas vivem vidas extremamente longas em paz e harmonia, distante das turbulências do mundo exterior. Entretanto, as personagens do livro, ante a escolha de permanecer ou não por lá, vivem dilemas morais e filosóficos, o que sugere que a utopia de Xangrilá tem um preço. Mesmo o paraíso oferece complexidades e desafios.

O Hotel Sangri-la, em Cingapura, embora luxuoso, está longe de ser o paraíso. Ele é a sede de uma conferência anual de Segurança da Ásia, conhecida como “Sangri-la Dialogue”, promovida pelo International Institute for Strategic Studies (IISS). A escolha do nome da conferência é evidentemente simbólica e intencional. Se a fictícia Xangrilá de Hilton é um lugar de paz e reflexão, a conferência busca ser um fórum de discussão para a busca de soluções pacíficas para os conflitos na região asiática do Indo-Pacífico.

A conferência deste ano, que acabou de acontecer, ecoou o aumento das tensões na região, consubstanciadas pelo grande exercício militar chinês no entorno da ilha de Taiwan e pelas frequentes escaramuças entre navios chineses e filipinos no Mar do Sul da China.

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Muita gente importante esteve presente no encontro, realizado entre os dias 31 de maio e 2 de junho. Os presidentes das Filipinas, Ferdinando Marcos Junior, do Timor Leste, José Ramos Horta e da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, além da Primeira-Ministra da Lituânia Ingrid Simonyte, e do presidente eleito da Indonésia, Prabowo Subianto, fizeram seus discursos e participaram dos debates. Dentre os vários ministros da defesa presentes, destaco a participação do norte-americano, General Lloyd Austin, e do chinês, Almirante Dong Jun, que se esforçaram para convencer a plateia da validade de seus argumentos, em um ambiente em que o assunto, ao fim e ao cabo, girava em torno das relações EUA-China e seus reflexos para os países da região.

O General Austin, que fez sua décima visita ao Indo-Pacífico desde que assumiu a função de Secretário de Defesa, em 2021, fez questão de destacar que aquela é uma região de fundamental importância para os EUA. Deixou isso muito claro, dizendo que seu país estava profundamente comprometido com os países da região, e que isso não iria mudar.

Ao destacar o período conturbado que o mundo atravessa, referiu-se aos riscos para a segurança global representados pelas mudanças climáticas, pelas pandemias e pelos perigos representados pelo terrorismo e pelas armas nucleares. Lembrou da guerra e da instabilidade no Oriente Médio e da invasão russa à Ucrânia. Mas, de forma significativa, se referiu a “ações na região (do Indo-Pacífico) que erodem o status quo e ameaçam a paz e a estabilidade”. Essa última lembrança foi uma referência nada sutil à China, tanto na questão de Taiwan, quanto nas disputas em curso no Mar do Sul da China.

Austin ressaltou a importância das parcerias estratégicas que, de acordo com sua perspectiva, seriam guiadas não pela imposição da vontade de um único país, mas por uma visão compartilhada pelos EUA e seus parceiros na região em torno de princípios comuns, uma espécie de senso de mútua responsabilidade, que fortaleceria a capacidade de defesa e a interoperabilidade entre os países da região.

O ministro reafirmou que a região do Indo-Pacífico está “no coração” da Estratégia norte-americana, mesmo em um mundo em que a guerra na Ucrânia e o conflito no Oriente Médio exigem atenção do país. Para ressaltar ainda mais a sua importância, ele afirmou que seu país só pode estar seguro se a Ásia estiver segura. Essa é a razão pela qual os EUA continuarão mantendo sua presença e investimentos na região. Como exemplos, Lloyd citou a realização de diversos exercícios militares, acordos de cooperação e iniciativas conjuntas na área de desenvolvimento de sistemas e materiais de emprego militar que os EUA mantêm com vários países da área, com especial destaque para o Japão, Coreia do Sul, Índia e Filipinas.

Encerrando suas palavras, sem citar nominalmente a China, mas claramente se referindo a ela, Lloyd disse que ainda haverá quem desrespeite as leis internacionais, tentando impor sua vontade pela coerção e pela agressão, mas que os EUA e seus parceiros continuarão a buscar novos pontos de convergência para a construção de um futuro melhor para todos.

Recentemente nomeado ministro da Defesa da China, o Almirante Dong Jun, primeiro oficial da marinha a ocupar o cargo, enfatizou o compromisso dos povos da Ásia-Pacífico com a harmonia e a paz. Entretanto, segundo Dong, esses mesmos povos teriam uma memória compartilhada do sofrimento e da opressão impostos pelo colonialismo e pelo imperialismo.

Por essa razão, os países da região concedem uma grande importância à sua independência, rejeitando relações de vassalagem ou de submissão a blocos de países que levem à confrontação. Dessa forma, segundo o almirante, os países asiáticos desejariam conviver com uma ordem internacional igualitária e multipolar.

A linha de raciocínio do ministro chinês prossegue no sentido de mostrar que os países da região têm plenas condições de resolver suas questões de forma autônoma, sem receber ordens de países hegemônicos, em clara referência ao que os chineses consideram ser uma intromissão indevida dos EUA nas questões regionais.

Dong apresenta as iniciativas chinesas de “Desenvolvimento Global”, em conjunto com as iniciativas de “Segurança Global” e de “Civilização Global” como propostas de visão de um futuro compartilhado para toda a humanidade, que pode levar a um mundo de paz e desenvolvimento.

Dizendo que uma guerra nuclear não pode ser vencida e nunca deve ser travada, o ministro reafirmou o compromisso da China de nunca utilizar seu armamento nuclear a não ser como resposta a um ataque, ou seja, de nunca ser o primeiro a utilizar esse tipo de arma contra um inimigo.

Referindo-se aos conflitos da Ucrânia e do Oriente Médio, o almirante afirmou que a China se coloca de forma imparcial, na busca de uma solução pelo diálogo. Em relação aos EUA, disse que as duas partes não deveriam buscar a confrontação e deveriam valorizar a paz, promover a estabilidade e agir de boa-fé, atitudes que aumentariam a confiança mútua.

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Dong reafirmou que a questão de Taiwan é central para a China e criticou as ações do partido no poder na ilha, acusando-o de tentativas de suprimir a identidade chinesa e de minar as conexões sociais, históricas e culturais entre taiwaneses e chineses. Referindo-se de forma velada aos EUA, acusou o país vender armas e de ter contatos ilegais com o governo de Taiwan, o que eleva as tensões no Estreito, criando uma situação perigosa. Lembrou que a questão é um problema exclusivamente chinês, em relação ao qual não se admite interferência estrangeira, e que, apesar da China buscar uma reunificação pacífica, que as forças armadas do país permaneceriam em condições de impedir que a ilha busque a independência.

Em relação às disputas no Mar do Sul da China, o ministro da defesa da China disse que “um determinado país”, em clara referência às Filipinas, “encorajado por potências externas, quebrou acordos bilaterais e as suas próprias promessas, fez provocações premeditadas e criou cenários falsos para enganar o público”. Além disso, ao autorizar os EUA a desdobrarem mísseis em seu território, teria violado a carta da ASEAN, prejudicando a paz e a estabilidade da região. Nesse sentido, Dong afirmou que “a China tem exercido grande contenção face a tais infrações e provocações”, mas que havia um limite à essa restrição, esperando que as Filipinas “retornassem ao caminho correto do diálogo”.

Como se pode inferir das participações dos ministros da defesa de EUA e China na Conferência do Hotel Shangri-lá, os dois países possuem visões estratégicas concorrentes no que se refere à estabilidade, segurança e cooperação na região do Indo-Pacífico.

Enquanto Austin propõe uma rede de parcerias estratégicas liderada pelos EUA com os países da região, com o objetivo de solidificar uma postura de força coletiva, Dong promove uma visão de segurança regionalizada e autônoma, ressaltando a capacidade dos países da região de resolverem suas questões sem interferência externa.

Ambas as autoridades atribuem importância ao multilateralismo, entretanto, atribuem a seus respectivos países uma posição de liderança, nem sempre expressa com clareza, mas claramente presente nas entrelinhas dos discursos, caracterizando a disputa hegemônica em curso entre os dois países.

Nas principais questões geopolíticas envolvendo a China na região, referentes à Taiwan e ao Mar do Sul da China, enquanto Austin se posiciona de maneira velada contra ações que ele vê como ameaçadoras à paz regional por parte da China, Dong refuta essas alegações, reiterando o direito da China à soberania e à integridade territorial.

Dessa forma, fica claro que Austin e Dong representam duas abordagens distintas que refletem os interesses e as políticas externas de seus respectivos países. Conclui-se que a busca por pontos de convergência, como sugerido por Austin, e a disposição para diálogo, enfatizada por Dong, são essenciais para o desenvolvimento de uma paisagem geopolítica mais estável e pacífica no Indo-Pacífico.

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A posse do novo presidente de Taiwan aumenta as tensões na Ásia

O discurso anual do primeiro-ministro da China ao Congresso Nacional do Povo, feito em março, durante as chamadas “Duas Sessões”, é acompanhado atentamente pelos analistas, pois constitui uma rara oportunidade para se identificar as prioridades e tendências políticas que nortearão as ações do governo chinês.

Não foi diferente neste ano, ainda mais em razão de ser o discurso inaugural do primeiro-ministro Li Qiang, que assumiu suas funções no ano passado. Dentre os diversos aspectos mencionados por Li, as relações da China com a ilha de Taiwan se destacaram.

A reunificação com Taiwan, ilha que possui governo autônomo mas é vista como província rebelde pela China, é um objetivo inegociável para o governo chinês. No entanto, o tema não é frequente nesses discursos. Em uma década, só foi mencionado em 2022, pelo então primeiro-ministro Li Keqiang.

Uma diferença crucial entre os dois discursos chamou atenção. Em 2022, Keqiang fez referência à “reunificação pacífica” de Taiwan à China continental. Neste ano, as palavras de Qiang foram praticamente as mesmas, no sentido de conclamar os presentes a “promoverem resolutamente a grande causa da reunificação do país e defenderem os interesses fundamentais da nação chinesa”. Entretanto, a expressão “reunificação pacífica”, diferentemente de 2022, não apareceu.

A omissão não passou despercebida pelos analistas e repercutiu na imprensa. Ainda mais dado o contexto atual das relações entre a ilha e o continente. Hoje, 20 de maio, “William” Lai Ching-te toma posse como novo presidente de Taiwan. Considerado separatista pelos chineses, sua eleição irritou as autoridades do país, que durante a campanha alertaram os taiwaneses para que não o escolhessem. Os chineses identificam indícios de uma postura separatista nos vários contatos internacionais feitos pelas lideranças do partido de Lai com autoridades estrangeiras.

A pressão chinesa sobre a ilha de Taiwan vem aumentando, tanto pela utilização de meios ostensivamente militares quanto pela adoção de táticas dissimuladas. Assim, ao mesmo tempo em que há o constante sobrevoo de aeronaves militares e a presença de navios de guerra ultrapassando a linha mediana do Estreito de Taiwan, que, historicamente, funcionava como um limite tácito entre ambos os lados, também há um exponencial aumento da presença de barcos civis chineses no entorno da ilha, ou de balões sobrevoando seu espaço aéreo. Essa escalada visa a sobrecarregar as defesas da ilha, normalizando o que seria extraordinário, para que, quando (e se) uma invasão vier, ela não seja facilmente distinguível dos acontecimentos do dia a dia.

A importância econômica e geopolítica de Taiwan vem aumentando no contexto das mudanças em curso no sistema internacional. A produção de semicondutores é uma questão a se destacar. Na ilha, são produzidos cerca de 50% do total global de chips, além de em torno de 90% dos chips mais avançados. Uma interrupção na produção de semicondutores, mesmo breve, devido a um conflito armado, provocaria uma crise econômica grave com impacto mundial, semelhante ao auge da pandemia de covid-19. Se a produção continuasse, mas sob controle chinês, tal cenário seria estrategicamente inaceitável para os Estados Unidos.

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O general Douglas MacArthur, comandante das forças aliadas no Teatro do Pacífico durante a 2.ª Guerra Mundial, afirmou que Taiwan era “um porta-aviões que não poderia ser afundado”. A intenção do general ao usar a metáfora foi a de destacar a enorme importância geoestratégica da ilha para a dinâmica da disputa geopolítica no leste da Ásia. A ilha serviu de trampolim ao império japonês para suas conquistas em direção ao Sudeste Asiático. Depois disso, a partir de 1949, Taiwan serviu à estratégia da contenção norte-americana, uma vez que, em conjunto com a península coreana, as ilhas do Japão e as Filipinas, todas áreas sob a influência dos EUA, conforma uma linha de contenção a dificultar a saída da China para o Pacífico.

A importância de Taiwan transcende os interesses estratégicos de EUA e China, sendo também vital para outros países, como por exemplo o Japão, que tem disputas territoriais com os chineses. O reflexo da percepção japonesa do agravamento do risco geopolítico fica claro com o aumento do orçamento de Defesa de 2023 para 2024 em 16,5%, além da previsão de contínuo crescimento até 2027.

As crises internacionais, como a invasão russa à Ucrânia e o conflito entre Hamas e Israel, juntamente com outros conflitos globais, podem desviar a atenção sobre o que ocorre em Taiwan. No entanto, os desafios enfrentados pela ilha, embora sejam de extrema importância para seus habitantes, transcendem uma mera questão local. Eles constituem um equilíbrio delicado com implicações globais. A situação geopolítica em Taiwan é de vital importância e tem o potencial de se agravar rapidamente, gerando consequências em escala mundial, inclusive afetando o Brasil.

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O resultado das eleições presidenciais em Taiwan pode levar a um aumento das tensões com a China

Lai Ching-te, conhecido como William Lai, venceu as eleições em Taiwan, tendo conquistado cerca de 40% dos votos válidos. Hou Yu-ih, candidato do Partido Nacionalista (Kuomintang), obteve 33% dos votos, enquanto Ko Wen-je, candidato de uma terceira via, que se opõe aos dois partidos tradicionais, obteve uma surpreendente votação, com 26% dos votos. O resultado demonstra que os mais de dezenove milhões de eleitores da ilha decidiram manter no poder o grupo governista, do Partido Democrático Popular (DPP), para decepção do presidente Xi Jinping, da China, e de todo o Partido Comunista Chinês.

Lai Ching-te

Lai, um médico com mestrado em Harvard, é o atual vice-presidente. Com a vitória, seu partido iniciará um inédito terceiro mandato consecutivo. Desta forma, os eleitores referendaram a política da atual presidente Tsai Ing-wen, e do DPP, que busca manter Taiwan longe da influência chinesa, procurando evitar conflitos, mas fortalecendo os laços com os Estados Unidos e outros países do Ocidente. Além disso, ele promete também aumentar a capacidade militar de Taiwan e fortalecer a economia da ilha. O apoio da maioria dos eleitores à essa política fica ainda mais claro tendo-se em vista que um dos candidatos vencidos, Hou Yu-ih, do Kuomitang, fez sua campanha prometendo expandir os laços e reiniciar negociações comerciais com Pequim.

Foi o oitavo pleito eleitoral presidencial em Taiwan, que realiza eleições livres e diretas desde 1996. Os chineses não queriam a vitória de Lai, e deixaram isso bastante claro, sugerindo que sua vitória poderia levar Taiwan para mais perto da guerra. A China, que considera Taiwan uma província rebelde que deve ser reincorporada à plena soberania chinesa, vê em Lai um defensor da independência de Taiwan. Na verdade, ele mesmo, embora não tenha adotado essa retórica na campanha eleitoral, enfatizando que não planeja declarar a independência formal da ilha, chegou a declarar no passado ser um “pragmático defensor da independência” da ilha, algo que é absolutamente inaceitável para o governo chinês.

Xi Jinping tem aumentado de forma notável a atividade militar chinesa no entorno da ilha, em uma demonstração que reforça a mensagem que ele quer transmitir a Taiwan, aos chineses e ao mundo: a de que a reunificação é inevitável.

Taiwan é uma ilha de grande importância geoestratégica, posicionada em local fundamental para o comércio e a segurança regionais, já tendo sido definida pelo general norte-americano Douglas MacArthur como um “porta-aviões inafundável” ancorado eternamente em frente à China. Por isso, seu destino está ligado à competição sistêmica em curso entre Estados Unidos e China. Nesse sentido, os EUA devem manter sua postura de ambiguidade, sem reconhecer seu governo como um ente soberano, mas mantendo o apoio militar e relações próximas.

A vitória de Lai é, sem dúvida, um contratempo para Pequim. Suas políticas e atitudes no governo serão acompanhadas muito de perto por chineses e norte-americanos, bem como pelas demais potências mundiais. O mundo não pode ignorar o que acontece nessa pequena ilha, que está no centro do tabuleiro geopolítico global.

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A China usará seu poder militar em Taiwan?

Mais uma vez se elevaram as tensões no Estreito de Taiwan. A China fez um grande exercício militar, com dezenas de aeronaves e navios de guerra, simulando uma operação de ataque e bloqueio naval do arquipélago.

As manobras se iniciaram imediatamente após o encontro entre a líder taiwanesa, Tsai Ing-wen, e o presidente da Câmara dos Representantes dos EUA, deputado Kevin McCarthy, em território norte-americano. Foi uma repetição do que aconteceu no ano passado, quando a reação chinesa à visita da deputada Nancy Pelosi, antecessora de McCarthy, também foi expressa por intermédio de exercícios militares de vulto em torno da ilha de Taiwan.

A reintegração de Taiwan à soberania chinesa é um ponto central e inegociável para o governo chinês. Trata-se de um objetivo permanente que o Partido Comunista Chinês se impôs atingir até o ano de 2049, data do centenário da República Popular da China.

O uso do instrumento militar para forçar o retorno de Taiwan à soberania chinesa não é descartado nos documentos de segurança de Pequim. Também não o é nos discursos do presidente Xi Jinping. Ao contrário, no discurso de abertura do 20.º Congresso do Partido Comunista, realizado em 16 de outubro do ano passado, o presidente declarou: “Continuaremos a lutar pela reunificação (com Taiwan) pacífica, com a maior sinceridade e o maior esforço, mas nunca prometeremos renunciar ao uso da força, e nos reservamos a opção de tomar todas as medidas necessárias”.

A conjuntura internacional, tensionada a níveis altíssimos pela invasão russa do território ucraniano, adiciona ainda mais complexidade à questão taiwanesa. Embora sejam questões diferentes, a guerra na Europa relembrou a todos que o instrumento militar continua disponível para ser usado pelas nações para alcançar objetivos políticos e estratégicos.

Assim, toda a modernização das forças armadas chinesas ocorrida nas últimas décadas e bastante acelerada nos últimos dez anos sob a liderança de Xi Jinping é claramente voltada para a construção de um instrumento militar capaz de realizar a conquista militar de Taiwan.

A projeção de uma força militar do mar para a terra, a chamada operação anfíbia, que necessariamente ocorre quando se tenta conquistar militarmente uma ilha, talvez seja a mais complexa entre as operações militares. Para fazer face a tal desafio, uma eventual ação militar chinesa para a conquista do arquipélago de Taiwan dependeria de uma marinha poderosa, capaz de isolar o arquipélago de forma que os taiwaneses não recebessem apoio externo de seus aliados. Os chineses já superam os norte-americanos em número de navios de guerra, somando cerca de 340 belonaves. Os submarinos, as armas mais adequadas à missão clássica das marinhas de negar ao adversário o uso do mar, fundamentais num bloqueio naval, são contados, na China, às dezenas: 6 submarinos lançadores de mísseis balísticos intercontinentais, 9 de ataque de propulsão nuclear e 56 convencionais, de motor diesel/elétrico. Quando Xi Jinping chegou ao poder, a China não possuía nenhum porta-aviões. Hoje, o país já tem dois, sendo um de fabricação própria, e há um terceiro em construção. Os navios-escolta, fragatas, corvetas, contratorpedeiros, entre outros, somam mais de uma centena.

Junte-se a isso a modernização estrutural das forças armadas, que foram reunidas por Xi Jinping em comandos conjuntos permanentemente ativados, e a transformação das demais forças, com a mecanização completa do exército e o seu desenvolvimento em múltiplos domínios, com moderna missilística, meios de guerra eletrônica e cibernética.

Ainda assim, uma opção militar seria arriscadíssima para Pequim. Suas forças armadas carecem de experiência de combate e sua cultura organizacional desencoraja a iniciativa das lideranças intermediárias, o que pode ser um problema grave numa operação altamente descentralizada como o são os assaltos anfíbios que projetariam as forças chinesas em Taiwan.

Além disso, há o possível adversário extracontinental. As forças armadas norte-americanas são a mais poderosa máquina de guerra já formada. Até que ponto haveria um decisivo engajamento do poder militar norte-americano em face de um ataque chinês à ilha é uma questão em aberto. Via de regra, países somente se envolvem diretamente em conflitos militares na defesa de seus interesses vitais. Os interesses dos EUA na manutenção do atual status quo do Estreito de Taiwan são, sem dúvida, consideráveis, mas não se tem como certeza de que sejam suficientes para fazer com que se envolvam diretamente num conflito naquela região.

A guerra é a maior de todas as adversidades. Foi o general Eisenhower, justamente o comandante da mais importante operação anfíbia da História – o assalto das tropas aliadas às praias da Normandia, no dia D –, que afirmou: “Odeio a guerra como só pode odiá-la um soldado que a vivenciou, sua brutalidade, sua estupidez”. Esperemos que os tambores da guerra não voltem a ser ouvidos Estreito de Taiwan.

Este artigo foi originalmente publicado no jorna O Estado de São Paulo, em 23 de abril de 2023

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A China comunica suas intenções em relação a Taiwan

Livros brancos são relatórios oficiais que têm a finalidade de apresentar assuntos complexos ao grande público, de uma forma acessível. Mais do que simplesmente relatar aquele assunto, um livro branco tem a finalidade de transmitir a filosofia que orienta o direcionamento daquela política pública. Quando trata de assuntos de Defesa, eles são uma das ferramentas que um Estado utiliza para comunicar seus objetivos políticos e estratégicos, de modo a delinear com clareza os seus conceitos de Segurança Nacional e os limites de sua atuação, tanto para os próprios cidadãos, quanto para a comunidade internacional.

Nesse sentido, foi com a finalidade de deixar claríssima a sua postura em relação a Taiwan que a República Popular da China acaba de divulgar seu livro branco intitulado “The Taiwan Question and China’s Reunification in the New Era”. Trata-se do terceiro documento do tipo. Os anteriores foram publicados em 1993 e 2000. A nova edição é divulgada em um momento especialmente sensível, após a visita da presidente da Câmara dos Representantes dos EUA e terceira na linha sucessória do governo norte-americano, deputada Nancy Pelosi, à ilha, fato que causou profunda contrariedade no governo chinês e elevou as tensões no Estreito de Taiwan ao nível mais alto desde a década de 1990.

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O livro branco é constituído de um preâmbulo, cinco capítulos e uma conclusão. A seguir, farei um resumo dos seus principais aspectos, certo de que o entendimento da compreensão oficial dos chineses acerca da questão taiwanesa é fundamental para todos aqueles que pretendem entender a China atual e a dinâmica de segurança naquela importante região do planeta.

Logo na primeira frase, o documento afirma que resolver a questão taiwanesa e completar a reunificação da China é aspiração de todos os “filhos e filhas da nação chinesa”, além de ser uma missão histórica do Partido Comunista chinês. O uso da expressão “filhos e filhas da nação” não é mero recurso estilístico. As palavras foram escolhidas para remeter ao sentimento patriótico: trata-se de uma aspiração da “mãe pátria”, o que eleva a questão ao nível máximo da nacionalidade, acima de quaisquer divergências políticas.

O primeiro capítulo traz uma longa exposição histórica, para concluir que o território taiwanês pertence à China desde a antiguidade e que há uma só China, fato que seria comprovado pela história e pelas leis internacionais.

O segundo capítulo trata dos esforços empreendidos pelo Partido Comunista chinês para reunificar a ilha ao continente. Destaca que isso teria se iniciado mesmo antes da conquista do poder, uma vez que desde sua fundação o partido teria definido o objetivo de livrar a ilha do domínio colonial imposto pelos japoneses desde a vitória na primeira guerra sino-japonesa, no final do século 19.

O documento destaca que o partido criou, em 1978, o conceito de “Um país, dois sistemas”, aplicando-o primeiro em Hong Kong e Macau, que no final do século 20 retornaram à soberania chinesa. A adoção desse conceito teria possibilitado o início de um novo capítulo nas relações entre os dois lados do Estreito de Taiwan, contribuindo para o aumento do comércio entre as duas partes, que passou de 46 milhões de dólares, em 1978, para 328,34 bilhões, em 2021. Há 21 anos que a China é o maior destino das exportações taiwanesas.

O terceiro capítulo afirma em seu título que o processo de reunificação da China é um processo que não pode ser interrompido. Neste ponto, o documento se volta para o chamado “século da humilhação”, período que vai de meados do século 19 até a vitória comunista na guerra civil, em 1949. Essa foi a época em que os impérios ocidentais, além de Rússia e Japão impuseram uma série de humilhações aos chineses. É a época das duas guerras do ópio e da exploração colonial de diversas áreas do território chinês.

Ao relembrar esse período especialmente sensível aos chineses, o documento afirma que somente realizando uma completa reunificação, o povo chinês, em ambos os lados do Estreito, poderá deixar no passado a sombra da guerra civil e criar e desfrutar de uma paz duradoura. A reunificação seria a única maneira de evitar o risco de Taiwan ser invadida e ocupada novamente por estrangeiros e de frustrar as tentativas de forças externas para conter a China.

O partido atualmente no poder em Taiwan, o DPP (Partido Progressista Democrático) é acusado de colocar em perigo a paz e a estabilidade no Estreito de Taiwan, uma vez que estaria promovendo políticas independentistas, em “conluio” com forças externas

Essas forças externas (os EUA são citados diretamente) estariam interferindo e seriam um obstáculo à reunificação da China. A questão taiwanesa é colocada como uma questão interna da China e a interferência dos EUA teria a intenção encoberta de conter a China, minando seu desenvolvimento e progresso.

O quarto capítulo fala sobre a “reunificação nacional em uma nova era”. Nele, os chineses propagandeiam como se daria a reunificação. Afirmam que a solução pacífica é a “primeira opção” do Partido Comunista Chinês, sendo a que melhor atende aos interesses em ambos os lados do Estreito. Aos taiwaneses seria concedido muita autonomia, baseada no conceito de “um país dois sistemas”.

Os chineses afirmam, ainda, que o separatismo e a interferência estrangeira levarão a ilha ao abismo e ao desastre. Neste ponto, o documento, diferentemente das versões de 1993 e 2000, afirma que a China, apesar de preferir a solução pacífica, não abrirá mão de utilizar a força se for necessário. E faz um alerta aos EUA, dizendo que algumas forças naquele país estão incitando grupos taiwaneses à agitação e usando Taiwan como um peão contra a China. Isso comprometeria a paz e estabilidade no Estreito de Taiwan, obstruindo os esforços do governo chinês para a reunificação pacífica, e minando o desenvolvimento saudável e estável das relações sino-americanas. Afirmam que se não for controlada, a tensão continuará a aumentar em todo o Estreito. Segundo os chineses, os EUA devem respeitar o princípio de uma só China, lidar com questões relacionadas com Taiwan de forma prudente e adequada, manter seus compromissos anteriores e parar de apoiar os separatistas de Taiwan.

No quinto e último capítulo, os chineses listam o que chamam de “brilhantes perspectivas” para a reunificação pacífica. Reafirmam que os taiwaneses terão um grande espaço para se desenvolver, que terão seus direitos e interesses protegidos e que a reunificação será benéfica para toda a região do Indo-Pacífico e fará com que a China seja ainda mais forte e próspera, aumentando sua influência internacional.

Na conclusão do livro branco os chineses sintetizam a mensagem que querem passar ao mundo através do documento: a reunificação precisa ser, e será, efetivada.

A divulgação deste documento, neste momento, é significativa também porque é uma resposta chinesa a uma crescente assertividade norte-americana na região do Indo-Pacífico. Além disso, os chineses travam uma batalha pelos corações e mentes dos taiwaneses. As ideias separatistas ganham corpo naquela sociedade. Em recentes pesquisas, o percentual de cidadãos que deseja a reunificação imediata atingiu os menores índices da série histórica[1], sendo a opção de apenas 1,3% da população.

A Guerra na Ucrânia tem um papel no retorno desse tema às manchetes internacionais. Afinal, a guerra como instrumento para conquista de territórios, que se julgava ultrapassada, especialmente dentre as grandes potências, voltou a se mostrar possível. E essa opção, se antes não era explicitada pelos chineses, agora passou a ser claramente apresentada como possível, em um documento oficial.

The Taiwan Question and China’s Reunification in the New Era

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Um mundo mais perigoso

Mesmo o observador mais desatento já percebeu que algo está fora de ordem no mundo. A Europa caminha para completar seis meses assistindo a uma guerra de alta intensidade em seu território. Mísseis chineses cruzam o espaço aéreo de Taiwan para atingir mares da Zona Econômica Exclusiva do Japão. Foguetes palestinos cruzam-se no ar com mísseis israelenses, de forma tristemente rotineira. Autoridades iranianas dizem que, embora não desejem, poderiam construir a bomba atômica, se quisessem, a qualquer momento. No Cáucaso, azerbaijanos e armênios rompem o frágil cessar-fogo na região de Nagorno Karabakh. Tudo isso em meio ao agravamento das consequências das mudanças climáticas, da gravíssima crise alimentar na África, da resiliência da pandemia da covid e do surgimento de uma possível nova pandemia, da varíola dos macacos.

A solução para tantas controvérsias internacionais e desafios mundiais, na ordem internacional pós-guerra fria, teria de passar obrigatoriamente por uma ação concertada dos Estados, tendo a Organização das Nações Unidas (ONU) como centro de gravidade. Mas não é isso o que se vê. A ONU, modelada pelos vencedores da 2.ª Guerra Mundial, está sendo incapaz de fazer face aos desafios que se impõem. Seu Conselho de Segurança, instância mais importante do organismo e local em que tais assuntos são prioritariamente tratados, está bloqueado, com a Rússia exercendo constantemente seu poder de veto.

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Toda essa instabilidade não ocorre por acaso. Estamos a assistir às dores do fim de uma ordem internacional estabelecida no pós-guerra fria e o surgimento de outra, ainda lutando para emergir; um momento em que as velhas certezas foram postas em dúvida e as novas ainda não surgiram, em que as instâncias de poder, os freios e contrapesos que valiam antes, perdem aceleradamente sua relevância. Percebendo o momento, os principais Estados do sistema internacional se movimentam na defesa do que consideram ser seus interesses vitais.

A invasão russa à Ucrânia, flagrantemente ilegal sob o prisma do Direito Internacional, é a culminância de um processo de décadas, para o qual Vladimir Putin vinha preparando seu país há alguns anos. Em 2007, numa conferência na Alemanha, Putin declarou que o mundo testemunhava um “quase incondicional hiperuso da força nas relações internacionais, força que está mergulhando o mundo num abismo de permanente conflito”. Ele se referia, obviamente, aos EUA. Um ano depois dessa declaração, os EUA declararam que Geórgia e Ucrânia, dois antigos Estados da União Soviética, poderiam se unir à Otan. Para Putin, era mais um exemplo deste “hiperuso da força”. Ato contínuo, a Rússia invadiu a Geórgia. Em 2014, aconteceu o que Michael Mandelbaum, no livro The Four Ages of American Foreign Policy (Ed. Oxford, 2022), considera ser o episódio que é, ao mesmo tempo, símbolo e causa do fim da era pós-guerra fria: a anexação da Crimeia e a guerra civil provocada pelos russos na Ucrânia. Os russos procuravam mudar o status quo do continente, desafiando, em última análise, o país que era seu garantidor: os EUA. Como obteve êxito em 2014, Putin se sentiu confiante para a invasão de 2022.

Percebendo que sua segurança está em risco, os países europeus resolveram prestar atenção a uma verdade que foi bem sintetizada numa máxima atribuída frequentemente a Rui Barbosa: “Uma nação que confia em seus direitos, em vez de confiar em seus soldados, engana-se a si mesma e prepara a sua própria queda”.

Desde que a invasão da Ucrânia pela Rússia começou, em fevereiro, os Estados-membros da União Europeia anunciaram aumentos nos gastos com defesa no valor de cerca de € 200 bilhões. Isso representa uma enorme mudança. Entre 1999 e 2021, os gastos combinados do bloco em defesa haviam aumentado apenas 20%, em comparação com 66% dos EUA, 292% da Rússia e 592% da China.

Deste modo, a Alemanha anunciou um vigoroso aumento dos investimentos em defesa, a começar por uma injeção de € 100 bilhões. A Polônia decidiu aumentar seus gastos para 3% do PIB, anunciando a aquisição de centenas de veículos blindados e aeronaves. A França anunciou um aumento de € 3 bilhões em seus investimentos, para citar apenas alguns exemplos.

O rearmamento dos países europeus ocorre de forma simultânea ao aumento das tensões na Ásia, onde, no Estreito de Taiwan, se desenrola a maior crise desde a década de 1990 e, no Japão, toma vulto um movimento para a modificação da Constituição pacifista e reestruturação das Forças Armadas. Ao mesmo tempo, no Oriente Médio, o Irã se aproxima da fabricação da arma atômica.

A solução para a diminuição de tantas tensões passaria, necessariamente, por uma revisão das instâncias de interlocução entre os países, especialmente da mais importante delas, a ONU. Urge modernizar suas estruturas, tornando-a mais representativa da ordem internacional atual, para que ela possa, de fato, ser eficaz em seu propósito primeiro: manter a paz e a segurança internacionais.

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A conversa entre Biden e Xi Jinping sobre Taiwan

No último dia 19 de julho, o jornal britânico Financial Times divulgou, citando “seis fontes familiarizadas com o assunto”, que a deputada Nancy Pelosi, do Partido Democrata, presidente da Câmara dos Representantes, o equivalente à Câmara dos Deputados no Brasil, terceira autoridade na linha sucessória da presidência dos EUA, planejava viajar à Taiwan. Oficialmente, Pelosi visitará a Ásia, com escalas no Japão, Indonésia e Cingapura. Taiwan, até o momento, não consta oficialmente do programa, embora a reportagem não tenha sido desmentida por nenhuma autoridade norte-americana.

A reação à possibilidade de uma visita de uma autoridade norte-americana de tamanha importância a Taiwan enfureceu o governo chinês. Isso porque o tema já estava sensível em razão de uma declaração de Biden, no dia 23 de maio, quando afirmou que seu governo interviria militarmente caso a China invadisse Taiwan. Assim, no mesmo dia em que o Financial Times divulgou a matéria, e em repetidas oportunidades depois disso, o Ministério das Relações Exteriores da China demonstrou forte oposição à presença de Pelosi em Taiwan. O porta-voz do Ministério da Defesa do país disse que a China exigia que os Estados Unidos tomassem medidas concretas para cumprir seu compromisso de não apoiar a independência de Taiwan, não permitindo a visita de Pelosi à ilha. As declarações insinuaram que a China utilizaria os meios necessários, inclusive militares, para “defender resolutamente a soberania e a integridade nacionais”.

Para que se possa compreender corretamente a sensibilidade do assunto, é necessário se retornar à história de Taiwan. Acredita-se que os primeiros habitantes chegaram à ilha há cerca de 8 mil anos, vindos de outras ilhas do Oceano Pacífico. Os chineses da etnia Han teriam tentado se estabelecer nas Ilhas Pescadores no século 13, mas o enfrentamento com os aborígenes e a falta de atrativos econômicos impediram uma efetiva colonização. Em 1517, navegadores portugueses a avistaram, sem, no entanto, aportar na ilha, batizando-a com o nome de Formosa, pelo qual ficou bastante conhecida no Ocidente. No século 17, espanhóis e holandeses se estabeleceram na ilha. Os últimos conseguiram expulsar os primeiros e permaneceram na ilha, explorando-a colonialmente. Com a queda da dinastia Ming, na China, um líder militar fiel à dinastia derrubada, que ficou conhecido como Koxinga (Zheng Chenggong), conquistou a ilha, em 1662, expulsando os holandeses e fundando um reino, o Reino de Tungnin, de onde passou a enfrentar os Manchus da dinastia Qing, que governavam a China. Em 1683, o neto de Koxinga foi derrotado pela dinastia Qing, que anexou a ilha de Taiwan ao império chinês. A partir de então o império chinês controlou efetivamente a ilha por dois séculos, até que, em 1895, o Japão venceu a Guerra Sino-Japonesa e tomou a ilha, que passou a ser tratada como colônia japonesa. Em 1945, a ilha voltou à soberania chinesa, em razão da derrota japonesa na Segunda Guerra Mundial.

Taiwan – Fonte wikimedia

Em 1949, depois de quase vinte anos de combates, Mao Zedong tomou o poder na China, saindo vitorioso em sua revolução comunista. O governante derrubado, Chiang Kai-Shek, fugiu com seu governo para a ilha de Taiwan. Desde então estabeleceram-se, de facto, dois governos. A República Popular da China, comunista, e a República da China (Taiwan), capitalista. A separação criou duas posições conflitantes para uma mesma identidade nacional. Do ponto de vista dos nacionalistas de Chiang Kai-shek, Taiwan não era um estado independente, era, isto sim, a sede do governo chinês no exílio, temporariamente deposto pelos comunistas e que iria retornar ao poder no continente. Na concepção de Pequim, Taiwan era — e continua sendo até hoje — sua 23ª província, uma província rebelde. O reconhecimento internacional de Taiwan foi escasseando na medida em que o tempo passava e o regime comunista chinês se consolidava. Em 1971, a ONU passou a reconhecer a China, ao invés de Taiwan, como representante oficial do povo chinês naquele organismo multinacional. Em 1974, foi a vez do Brasil. Os EUA reconheceram a China em 1979. Todos esses atos formais de reconhecimento significaram que, para estes países e organismos internacionais, a China é única e Taiwan não constitui um país independente. Atualmente, apenas treze[1] países no mundo, além do Vaticano, reconhecem Taiwan como um estado soberano. Na América do Sul, o Paraguai é o único dentre esses países.

Assim, para os chineses, como os EUA não reconhecem e não mantêm relações formais com o governo de Taiwan, o fato de eles fornecerem armamentos para a ilha é inadmissível. Tal apoio é considerado uma grave afronta e a China julga estar amparada pelo direito internacional ao condenar veementemente a atitude norte-americana. Mas, na disputa de interesses entre as potências, as coisas não são tão simples. No mesmo dia em que as relações entre EUA e China foram normalizadas, em 01 de janeiro de 1979, os EUA promulgaram a Lei de Relações com Taiwan[2] que, dentre outras coisas, estabelece que “para ajudar a manter a paz, a segurança e a estabilidade no Pacífico Ocidental”, mesmo não mantendo relações diplomáticas oficiais ou não reconhecendo Taiwan como um país soberano, é política dos EUA fornecer armamentos para que Taiwan possa prover sua autodefesa. Além disso, a lei estabelece que qualquer tentativa de se determinar o futuro de Taiwan pelo uso da força, incluindo-se aí embargos e boicotes, será considerada pelos EUA uma “séria ameaça à paz e a segurança do Pacífico Ocidental” e, consequentemente, uma “grave preocupação” para os EUA. Essa foi a razão pela qual, nas três crises do Estreito de Taiwan, os EUA enviaram sua frota para a Região.

A posição norte-americana é, portanto, deliberadamente ambígua. Não reconhece Taiwan, mas mantém seu apoio, econômico e militar.

Assim, voltemos ao momento atual, ao dia 28 de julho, em que Joe Biden presidente dos EUA, e Xi Jinping, presidente da China, conversaram ao telefone por 2h e 17 minutos. A viagem de Pelosi a Taiwan foi o assunto principal. Segundo a Casa Branca[3], a conversa teve os objetivos de gerenciar diferenças e trabalhar em conjunto nos temas em que há interesses comuns. As mudanças climáticas e questões de segurança sanitária teriam sido objetos da conversa. Não há menção no comunicado da Casa Branca sobre a guerra na Ucrânia. Sobre a questão taiwanesa, Biden teria reafirmado a Xi Jinping que a política norte-americana em relação à China e Taiwan não havia mudado, que o país se opõe fortemente a uma mudança unilateral do status quo, que mine a paz e a estabilidade no Estreito de Taiwan. Essa posição mostra bem a ambiguidade norte-americana. Ao se opor a uma mudança unilateral do status quo, o país afirma, por um lado, não apoiar uma ação taiwanesa pela independência, mas também não admite uma ação chinesa pela reintegração da ilha. Apenas uma ação que não fosse unilateral, ou seja, que fosse adotada em consenso por ambas as partes, seria admitida. Esse consenso, como se sabe, está muito longe de acontecer.

Segundo os chineses, a conversa foi mais incisiva. A imprensa oficial divulgou a versão de que Biden foi avisado por Xi Jinping para “não brincar com fogo” em relação a Taiwan. Analistas chineses na imprensa fizeram questão de lembrar aos norte-americanos que a questão de Taiwan é inegociável para a China, um ponto fundamental, onde não há nenhuma possibilidade de negociação. Esses mesmos analistas também salientaram que a China de hoje é uma potência militar capaz de fazer valer seus interesses no Estreito de Taiwan, muito diferentemente daquela China de 25 anos atrás, quando outro presidente da Câmara dos Representantes dos EUA visitou Taiwan. Finalmente, os analistas afirmam que o povo chinês apoiaria firmemente uma resposta mais incisiva do governo em reação à visita de Pelosi.

A divulgação da possibilidade da visita deixou Pelosi — e os EUA em uma situação difícil. Se não fizer a viagem, ficará a impressão de que cedeu às ameaças chinesas, o que enfraquecerá a posição dos EUA perante a opinião pública taiwanesa e de outros países asiáticos, especialmente Japão e Coreia do Sul, que começam a ter dúvidas se os EUA realmente se envolveriam decisivamente ao lado deles em caso de conflito com a China. Se fizer a viagem, poderá provocar um incidente de graves e imprevisíveis consequências.

De qualquer forma, em breve saberemos. Definitivamente, 2022 não está dando margem à monotonia.

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[1] Disponível aqui (em inglês) https://en.mofa.gov.tw/AlliesIndex.aspx?n=1294&sms=1007

[2] Disponível aqui (em inglês) – https://www.ait.org.tw/policy-history/taiwan-relations-act/?_ga=2.198922671.1499685768.1659046188-1333509346.1659046188

[3] Disponível aqui (em inglês) https://www.whitehouse.gov/briefing-room/statements-releases/2022/07/28/readout-of-president-bidens-call-with-president-xi-




Chineses e taiwaneses prestam atenção à Ucrânia

Estrategistas de todo o mundo estão atentos aos acontecimentos em curso na invasão russa à Ucrânia. Por dever de ofício, são obrigados a analisar os acontecimentos não só no campo militar, mas também em seus aspectos políticos, econômicos, sociais, culturais e tecnológicos.

Mas há dois grupos de analistas especialmente interessados nos desdobramentos do conflito: os chineses e os taiwaneses. A razão para isso está no paralelismo que pode ser encontrado nas aspirações russas de absorver parte do território ucraniano com a possibilidade de os chineses também conduzirem uma operação militar para reintegrar Taiwan à soberania da China continental.

É importante, de início, deixar claras as diferenças existentes entre os dois casos. Em primeiro lugar, relembre-se que a Ucrânia é um país soberano, reconhecido por todos os países do mundo, inclusive pela Rússia. Já Taiwan, embora na prática seja um ente político independente, não é reconhecido desta forma pela comunidade internacional. A ampla maioria dos países reconhece a República Popular da China e, por consequência, formalmente concorda com princípio de “uma só China”, que aquele país advoga como exigência fundamental para o estabelecimento de relações com qualquer nação.

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A política externa da Rússia e da China em relação ao uso de suas forças armadas como instrumento de projeção de poder também apresenta diferenças. Os russos enviam tropas ao exterior para operações militares com frequência, como na própria Ucrânia, em 2014, além de Geórgia, Síria, Belarus e Casaquistão, sem falar no grupo mercenário Wagner, que trabalha em perfeito alinhamento com os interesses russos em dezenas de países. Já os chineses, embora tenham adotado um comportamento mais assertivo nos últimos anos, especialmente por intermédio de sua marinha no Mar do Sul da China, excetuando-se os contingentes que compõem as missões de paz da ONU, desdobrou tropas para uma ação militar no estrangeiro pela última vez na campanha contra o Vietnã, no já longínquo ano de 1979.

Para os russos, que negaram até o último instante a intenção de invadir a Ucrânia, a causa da guerra está ancorada nas preocupações com uma Ucrânia cada vez mais sob a influência do Ocidente, caminhando para uma adesão à Otan que, desde o ponto de vista da Rússia, representaria uma ameaça à sua segurança. Já para os chineses, que nunca negaram a possibilidade de agir militarmente, a reunificação de Taiwan é um objetivo permanente a ser perseguido, reiterado em várias oportunidades pelo presidente Xi Jinping e presente em diversos documentos do Estado chinês.

Mas, se as diferenças são marcantes, são as semelhanças que atraem os estrategistas de ambos os lados do Estreito de Taiwan a se debruçarem sobre algumas questões: a comunidade internacional reagiria no caso de uma invasão chinesa a Taiwan de forma semelhante à adotada no caso ucraniano? A surpreendente resiliência ucraniana na defesa de sua pátria seria reproduzida também pelos defensores da ilha de Taiwan? O Exército de Libertação Popular da China, muito menos experimentado em combate que o poderoso exército russo, enfrentaria as mesmas dificuldades operacionais e logísticas que são observadas pelos invasores da Ucrânia?

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A reação da comunidade internacional a uma invasão a Taiwan seria modulada principalmente pela provável aceitação, por muitos países, da narrativa chinesa de que se trataria de uma questão interna, e não de uma agressão a um país estrangeiro, uma vez que Taiwan não é um Estado soberano. Este seria um pretexto ideal para todos os países que, em razão dos enormes interesses econômicos envolvidos, dependem da manutenção de boas relações com a China. Mas, certamente, essa não seria a posição dos EUA e seus principais aliados: Canadá, cerca de três dezenas de países da Europa Ocidental, Austrália, Japão e Coreia do Sul. A este conjunto restariam a alternativa pouquíssimo provável de atuar militarmente em apoio a Taiwan ou a replicação das sanções econômicas – como impostas à Rússia –, com a enorme diferença de que sancionar a China, maior parceira econômica da maior parte das nações do mundo, é tarefa muitíssimo mais complicada do que embargar economicamente a Rússia.

Taiwan, ao que parece, já percebeu, observando a invasão da Ucrânia, que estará sozinha no campo militar, caso seja invadida. Várias recentes notícias dão mostras de que a ilha se prepara para a hipótese de ter de se defender sozinha. O anúncio da possível ampliação do tempo do serviço militar obrigatório, a aquisição de sistemas antiaéreos Patriot, dos EUA, e o desenvolvimento próprio de um míssil com alcance de 1.200 km, assim capaz de atingir importantes cidades chinesas, são exemplos claros dessa atitude.

As diferenças e semelhanças da guerra na Ucrânia com uma possível crise no Estreito de Taiwan, como se vê, merecem ampla reflexão. Esperemos que as conclusões sejam as que levem à solução pacífica das controvérsias e à paz mundial.

Este artigo foi originalmente publicado no jornal O Estado de S. Paulo, em 03/05/2022

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A China vai à guerra por Taiwan?

Essa é uma pergunta que vem sendo feita com cada vez mais frequência, em razão da vertiginosa ascensão política, econômica e militar da China e de sua retórica cada vez mais assertiva no sentido da inevitabilidade da reincorporação da ilha de Taiwan – que os chineses consideram ser uma província rebelde – à plena soberania chinesa.Muitas análises já foram produzidas sobre o tema, com resultados divergentes. Há os que alertam para a grande probabilidade de um conflito armado, que inexoravelmente envolveria os Estados Unidos, e há os que apostam em uma solução pacífica, na qual todos os interesses seriam acomodados.

Gosto muito do estudo feito por Graham Allison e sua equipe, descrito no livro “A Caminho da Guerra”, publicado no Brasil pela Editora Intrínseca. Já escrevi um artigo sobre o livro, disponível aqui no blog, para os que queiram saber um pouco mais sobre aquela análise. Nele, Allison apresenta sua teoria, batizada de “Armadilha de Tucídides”, para descrever as tensões geradas pela ascensão de uma potência e o desafio que ela passa a representar para a potência estabelecida. Allison conclui que a guerra não é inevitável, mas a dinâmica de escalada de tensões pode sim, levar a um conflito de grandes proporções.

O atual comandante norte-americano no Indo-Pacífico, Almirante Philip Davidson, declarou a uma comissão do Senado de seu país, no início de março, que acreditava que a China invadiria Taiwan nos próximos seis anos. Certamente o Almirante Philip tem acesso a dados e informações que podem tê-lo levado a uma conclusão tão peremptória. Por outro lado, pode-se também considerar que o cenário apresentado pelo Almirante contribui para conscientizar o Senado do seu país da necessidade de se alocar recursos para as forças desdobradas no Oriente.

Ainda assim, as atividades militares chinesas na região estão intensas, o que reforça o cenário de guerra. No início deste mês, uma Força-tarefa aeronaval liderada pelo porta-aviões chinês Liaoning cruzou o estreito ao sul da ilha de Okinawa e ao norte de Taiwan, em seu caminho para o Pacífico. Neste exato momento, a marinha do país está realizando um exercício de tiro nas proximidades do arquipélago das Ilhas Pratas, controladas por Taiwan, mas também reclamadas pela China. O exercício se iniciou após a incursão simultânea de 25 aeronaves militares chinesas na chamada “Zona de Identificação Aérea” taiwanesa. Essas incursões, praticamente diárias no último ano, já se tornaram rotina. O que chamou atenção, desta vez, foi a quantidade de aeronaves, dentre as quais caças e bombardeiros, a maior registrada até hoje.

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Entretanto, uma invasão militar da Ilha de Taiwan seria uma tarefa muito difícil, mesmo para os chineses. A escolha militar mais óbvia seria por uma operação anfíbia, ou seja, os chineses teriam que conquistar uma praia no litoral de Taiwan – uma “cabeça de praia” – para, a partir dela, realizar a conquista da Ilha. Acontece que a geopolítica mais uma vez se impõe, determinando muitos fatores complicadores dentro do campo militar.

Taiwan dista cerca de 160 Km do litoral da China. Isso significa que a Força-Tarefa Anfíbia, composta pelas Unidades Navais e pela Força de Desembarque, levaria cerca de 5 horas para atravessar o Estreito de Taiwan até chegar à Área de Objetivo Anfíbio, onde ocorreria o assalto e a conquista das cabeças de praia.

Esse tempo de deslocamento aniquilaria a surpresa, um fator essencial nesse tipo de operação. Durante boa parte de seu deslocamento, as forças chinesas estariam sujeitas a um intenso bombardeio da artilharia taiwanesa, o que certamente cobraria, logo de início, um preço muito alto das forças chinesas.

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Autor – Graham Allison

Outro fator muito favorável aos taiwaneses é a geografia da ilha. Em sua porção leste, o terreno é montanhoso e rochoso. As escarpas muitas vezes se aproximam bastante do mar, praticamente retirando a possibilidade de um assalto anfíbio naquela porção da ilha. Assim restariam poucos locais – estima-se em apenas 12 – passíveis de serem escolhidos pelos chineses para serem os objetivos anfíbios. É evidente que as Forças Armadas taiwanesas estão fortemente preparadas e com todos os planejamentos prontos para a defesa desses locais, o que tornaria a luta pela conquista dessas praias uma verdadeira carnificina.

Outras possibilidades militares clássicas seriam as operações aeromóveis ou aeroterrestres, nas quais a invasão seria iniciada por tropas paraquedistas ou tropas de assalto transportadas por aeronaves. De qualquer maneira, mesmo que um assalto dessa natureza seja exitoso, os suprimentos e reforços necessários à conquista da ilha exigiriam um esforço logístico tremendo, muito difícil de ser executado.

Mais um aspecto importante é a autolimitação de meios a que a China está submetida em relação à Taiwan. Seu arsenal nuclear, por exemplo, é inútil, uma vez que é impensável a utilização desse tipo de arma contra aquele que eles consideram ser seu próprio território. Além disso, o emprego de armas nucleares fatalmente retiraria a legitimidade da ação chinesa, tanto perante a comunidade internacional quanto perante sua própria população.

Restaria aos chineses a opção de ações indiretas, como a conquista dos arquipélagos de Quemoy e Matsu, sob controle de Taiwan, mas praticamente colados à China continental, e de Pescadores, a 2/3 do caminho. As primeiras conquistas (Quemoy e Matsu), poderiam causar menos reação internacional. Já a conquista do arquipélago de Pescadores causaria forte reação, mas é um objetivo bem menos complicado que a Ilha principal, possibilitaria uma progressiva aproximação dos meios, e serviria de ensaio para as operações futuras. Não se deve esquecer que as Forças Armadas chinesas não possuem experiência de combate real. Sua última campanha militar foi em 1979, contra o Vietnã, e não se pode considerar que tenha sido um sucesso. Nesse contexto, uma ação preliminar, uma espécie de ensaio, seria importante tanto para os comandantes, quanto para as forças chinesas no teatro de operações.

Uma sequência para a invasão
Fonte – Naval War College

 

Outra ação indireta seria a larga utilização da guerra híbrida, com ações na chamada “área cinzenta”, abaixo da linha da guerra. Propaganda, guerra cibernética, pressões econômicas, infiltração de agentes subversivos visando à desestabilização do governo taiwanês, todas essas são ações possíveis de serem implementadas desde já, e provavelmente algumas delas já estão em andamento. Um exemplo atual desse tipo de ação é a que a Rússia patrocina na região de Dombass, leste da Ucrânia.

Ponderadas as dificuldades militares, certamente conhecidas dos estrategistas chineses, resta saber se elas serão suficientes para conter o ímpeto político. Afinal, a decisão de ir à guerra não é dos militares e, sim, dos políticos.

Xi Jinping já divulgou, em diversos documentos, seu “Sonho chinês”, que consiste, basicamente, em devolver à China seu papel predominante na Ásia, retirado pela intromissão das potências europeias no século 19, restabelecer o controle de todos os territórios chineses, onde se inclui a questão de Taiwan, e exigir que a China seja respeitada como uma potência perante as demais potências mundiais e organismos internacionais. Como se vê, Taiwan é a principal peça que falta para a construção do sonho chinês de Xi Jinping.

Allison alerta em seu livro que potências emergentes normalmente são superconfiantes, embriagadas por sua sequência de sucessos. Tucídides, o historiador grego que escreveu “A história da Guerra do Peloponeso”, lista a “honra” como uma das principais causas daquela guerra. Esse conceito pode ser interpretado como a ideia que o Estado faz de si mesmo, suas convicções sobre o reconhecimento e o respeito que merece receber dos demais Estados, seu “orgulho nacional”.

Muitas vezes na história, sentimentos como esses levaram à guerra, superando quaisquer análises estratégicas, operacionais ou táticas dos militares. Talvez sejam esses os fatores preponderantes na análise feita pelo Almirante Philip Davidson ao prever a invasão de Taiwan para os próximos seis anos.




TENSÕES NO ESTREITO DE TAIWAN

“Analistas na China Continental afirmam que uma quantidade cada vez maior de chineses está perdendo a fé em uma reunificação pacífica… Eles acreditam que uma reunificação pela força poderia resolver a questão de uma forma mais efetiva e eficiente.”

Essas afirmações, tratando das relações entre China e Taiwan, constam de uma reportagem publicada pelo jornal chinês Global Times, na edição do dia 16 de janeiro (https://www.globaltimes.cn/content/1176998.shtml). O texto faz, ainda, comparações sobre o poderio militar da China e de Taiwan, demonstrando a grande superioridade chinesa, além de recomendar que o país intensifique os exercícios militares de desembarque anfíbio, o tipo de operação que seria realizada no caso de uma invasão a Taiwan. É importante destacar que o jornal Global Times é controlado pelo Partido Comunista Chinês. Seus textos, via de regra, enviam as mensagens que as autoridades chinesas desejam passar. Aliás, sobre esse mesmo assunto, o próprio presidente Xi Jinping já havia afirmado que não faria promessas de que abandonaria a possibilidade de uso da força; pelo contrário, manteria a opção de utilizar todas as medidas que se fizessem necessárias para a “completa reunificação da nação chinesa”.

O artigo do Global Times foi publicado na esteira da reeleição, em Taiwan, da presidente Tsai Ing-wen, que desagrada a Pequim por manter uma postura mais independente em relação à China, e da promulgação da chamada “Lei Anti-infiltração”, editada com a finalidade de tentar restringir a influência chinesa na política taiwanesa.

Taiwan, considerada pelo governo de Pequim como uma província rebelde, se mantém, de facto, independente. Essa situação surgiu com a vitória da revolução comunista, em 1949. O governo derrubado por Mao Tse-tung exilou-se na ilha e, desde então, nunca se submeteu à autoridade chinesa. Entretanto, apenas 14 dos 193 países-membros da ONU, além do Vaticano, reconhecem a soberania de Taiwan. Todos os demais membros da comunidade internacional reconhecem a China e comprometem-se com o princípio de “uma única China”, o que necessariamente implica em não apoiar a independência de Taiwan.

A postura dos EUA em relação a Taiwan é aquela que atende aos seus próprios interesses geopolíticos. No mesmo dia em que as relações entre EUA e China foram normalizadas, em 01 de janeiro de 1979, os norte-americanos promulgaram a Lei de Relações com Taiwan que, dentre outras coisas, estabelece que “para ajudar a manter a paz, a segurança e a estabilidade no Pacífico Ocidental”, mesmo não mantendo relações diplomáticas oficiais ou não  reconhecendo Taiwan como um país soberano, é política dos EUA fornecer armamentos para que Taiwan possa prover sua autodefesa. Além disso, a lei estabelece que qualquer tentativa de se determinar o futuro de Taiwan pelo uso da força, incluindo-se aí embargos e boicotes, será considerada pelos EUA uma “séria ameaça à paz e a segurança do Pacífico Ocidental” e, consequentemente, uma “grave preocupação” para os EUA. Em atenção à essa política, no ano passado, os EUA autorizaram uma venda de armamentos para Taiwan de cerca de US$ 2,2 bilhões, o que provocou protestos do governo chinês.

A elevação do tom da retórica chinesa demonstrada na matéria do Global Times certamente está relacionada, também, aos acontecimentos em Hong Kong. A política chamada “um país, dois sistemas”, adotada pela China em relação à antiga colônia inglesa era o chamariz com o qual Pequim pretendia convencer os taiwaneses de que a reunificação poderia ser vantajosa. Eles poderiam ser favorecidos pelo progresso econômico da China ao mesmo tempo em que manteriam seu modo de vida, mantendo as liberdades individuais que não existem na China continental. Entretanto, os protestos que persistem em Hong Kong escancaram a insatisfação, especialmente dos jovens, com a política “um país, dois sistemas”, acendendo um alerta para os taiwaneses, de que os “dois sistemas” talvez não fossem suficientemente diferentes entre si. Assim, a crise em Hong Kong acabou por colaborar para a reeleição, em Taiwan, da presidente Tsai.

A reunificação completa é, para os chineses, um objetivo nacional permanente. O governo chinês definiu, em diversos documentos oficiais, o ano de 2049, centenário da revolução comunista, como o marco para se alcançar o “sonho chinês”, que inclui a completa reunificação do país.

“Taiwan é um porta-aviões que não se pode afundar”. A frase, atribuída ao General MacArthur, mostra a importância geopolítica da ilha para os interesses norte-americanos no Pacífico. Chegará o momento, e este se dará entre um futuro próximo e o ano de 2049, em que a situação de Taiwan terá que se resolver. Ou a ilha passará integralmente à soberania chinesa, com grandes perdas geopolíticas para os EUA, ou se tornará independente, nesse caso com a China sendo a grande perdedora. Em qualquer dos cenários, as chances de fricção entre as duas potências mundiais serão grandes.