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Cemitério de Impérios

A cena pareceu familiar aos norte-americanos. Um helicóptero de suas Forças Armadas sobrevoou a Embaixada dos EUA num país distante, recolheu passageiros para uma evacuação às pressas, enquanto o inimigo se aproximava por todos os lados. As tropas, depois de longa guerra, estão retornando para casa sem poder comemorar a vitória. As semelhanças entre a retirada de Saigon, ao fim da Guerra do Vietnã, e a retirada de Cabul no último domingo, 15 de agosto, marcando o fim da Guerra do Afeganistão, são óbvias e inescapáveis.

Tudo aconteceu numa velocidade espantosa. Numa ofensiva de cerca de dez dias, o Taleban conquistou todas as capitais provinciais e chegou à capital do Afeganistão, Cabul. O presidente Ashraf Ghani fugiu para o Usbequistão e o grupo reconquistou o poder praticamente sem encontrar resistência em sua ofensiva final.

Trinta e seis dias antes da cena do helicóptero na embaixada norte-americana em Cabul, no último dia 8 de julho o presidente Biden foi questionado por um repórter se era inevitável que o Taleban reconquistasse o Afeganistão. Biden foi firme: “Não! Não é (inevitável)!”. E prosseguiu: “Você tem no Afeganistão 300 mil militares bem equipados (…) e Força Aérea. Contra cerca de 75 mil taleban. Não é inevitável!”. Na mesma entrevista, o presidente negou que a inteligência de seu país lhe tivesse apresentado dados de que o governo afegão entraria em colapso. “Eles claramente têm a capacidade de manter o governo”.

E numa pergunta que se mostrou preditiva dos acontecimentos, uma repórter questionou: “O senhor vê algum paralelo entre esta retirada (das tropas dos EUA do Afeganistão) e o que aconteceu no Vietnã?”. Biden mais uma vez foi firme: “De jeito nenhum! O Taleban não é o exército do Vietnã do Norte. (…) Não há possibilidade de você ver cenas de pessoas sendo resgatadas do telhado da embaixada dos EUA no Afeganistão… A possibilidade de o Taleban tomar o controle de todo o país é muito remota”.

A entrevista do presidente Biden, se vista novamente, mostra como a liderança norte-americana estava equivocada acerca das capacidades das Forças Armadas do Afeganistão. Depois de 20 anos de treinamento e reequipamento que custaram bilhões de dólares aos EUA e à Otan, o dispositivo militar afegão desmoronou como um castelo de cartas, deixando muito armamento e equipamento militar nas mãos do Taleban. As razões para isso ainda serão estudadas e apresentadas, pois certamente a sociedade norte-americana cobrará respostas de seus políticos e militares.

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Autora – Adriana Carranca

A decisão de retirar todas as tropas norte-americanas do Afeganistão já vinha sendo ensaiada há vários anos, desde a Presidência Obama, passando por Donald Trump, que até abriu as negociações com o Taleban. Mas coube a Joe Biden tomar a decisão e marcar uma data: 11 de setembro de 2021. Exatamente 20 anos após os atentados de 2001, planejados no Afeganistão pela rede terrorista Al-Qaeda, de Osama bin Laden, havia chegado o momento de deixar o Afeganistão.

Entretanto, o anúncio do porta-voz do Taleban, no final do dia 15 de agosto, de que a “guerra no Afeganistão tinha terminado” e a imagem dos dirigentes do grupo sentados à mesa do presidente, na sede do governo, demonstram claramente que as coisas não ocorreram da maneira que Washington previra. Vinte anos, milhares de baixas militares e bilhões de dólares depois, o Taleban está no mesmo lugar onde estava em 11 de setembro de 2001: no governo do Afeganistão.

O fracasso dos EUA é indisfarçável. E trará consequências não só para norte-americanos e afegãos, mas também para toda a Ásia Central e o Oriente Médio, com reflexos em diversos outros países.

Uma primeira consequência, já visível, será o aumento exponencial no número de refugiados. As cenas caóticas das pessoas no aeroporto de Cabul em busca de uma maneira de deixar o país servem para ilustrar o desespero com que centenas de milhares de afegãos buscam asilo em outros países, o que pode causar tensões e desequilíbrios na região, especialmente para o Irã e países da Ásia Central.

Outra consequência, no campo geopolítico, será o aumento da presença chinesa no Afeganistão. A China, sempre é bom lembrar, faz fronteira com o Afeganistão, justamente na província de Xinjiang, berço do separatismo uigur e do grupo Movimento Islâmico do Turquestão Oriental, que já praticou dezenas de ações terroristas na China. Antevendo a ascensão do Taleban, o governo chinês já recebera suas lideranças. E deve trocar pesados investimentos econômicos no Afeganistão pela garantia de que o Taleban não apoiará grupos islâmicos uigures, garantindo tranquilidade nas suas fronteiras.

Ao retomar o controle do Afeganistão, o Taleban alimentou o mito da invencibilidade afegã, que tornou o país conhecido como “cemitério de impérios”. Afinal, os afegãos venceram Alexandre, o Grande, os britânicos por duas vezes no século 19 e os soviéticos no século 20. Certamente, agora, os taleban festejam a entrada dos norte-americanos nessa lista.




O que Sun Tzu tem a ensinar sobre a Guerra no Afeganistão?

A surpreendente ofensiva final do Talibã, que varreu o país em poucos dias, vencendo o Exército afegão praticamente sem luta, será exaustivamente estudada pelos principais exércitos do mundo, muito especialmente, pelos norte-americanos.

É evidente que neste momento os dados para uma análise fidedigna estão indisponíveis. Pode-se apenas inferir e especular sobre as causas do fracasso dos norte-americanos e do governo afegão de um lado, e de outro, a acachapante e vitoriosa ofensiva final talibã.

Apesar disso, para estudiosos de estratégia, história militar e operações militares, é irresistível fazer algumas conjecturas.

Resolvi fazer as minhas, tendo como referência os ensinamentos de Sun Tzu, em “A Arte da Guerra”. Escolhi cinco máximas do grande general chinês, escritas há 2500 anos, que podem ser aplicadas ao Afeganistão atual. Muitas outras poderiam ser encontradas no magistral livro. Convido o leitor a fazer esse exercício.

1. Logo na primeira frase do livro, Sun Tzu escreve algo que o presidente norte-americano Joe Biden certamente está sentindo na pele: “A guerra é de vital importância para o Estado. É uma questão de vida ou morte, uma estrada tanto para a segurança, quanto para a ruína. Portanto, é um tema de estudos que não pode ser negligenciado.” Ainda no primeiro, capítulo se lê: O general que perde a batalha faz apenas poucos cálculos de antemão. Assim, muitos cálculos levam à vitória e poucos cálculos, à derrota. As repercussões do fracasso no Afeganistão, embora evidentemente não ameacem a existência do Estado norte-americano, podem ser de vital importância para o projeto político de Joe Biden. Será que os estudos sobre as repercussões da retirada foram negligenciados? Será que foram feitos todos os cálculos necessários, ou seja, as possibilidades do Talibã foram corretamente confrontadas com as capacidades do exército afegão, no “jogo da guerra” que precede todas as decisões militares?

2. No segundo capítulo, um ensinamento valioso:se a campanha for prolongada, os recursos do Estado não serão proporcionais ao esforço. Assim, uma vitória rápida deve ser o principal objetivo. Se a duração da guerra for excessiva, o exército ficará fatigado e a moral, baixa. Líderes de países vizinhos despontarão para tirar vantagem tuas dificuldades. Em resumo, na guerra, faze com que teu grande objetivo seja a vitória, e não campanhas prolongadas. Os vinte anos de guerra cobraram um preço altíssimo, em recursos financeiros e, principalmente, em vítimas, em sua maioria, afegãos. Mas também norte-americanas e da OTAN. Fatigados pela guerra interminável, e sem alcançar a vitória, os EUA e a OTAN decidiram se retirar. A China e a Rússia, “os vizinhos” apontados por Sun Tzu, já correm para ocupar o vácuo deixado pela saída dos EUA e de seus aliados.

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Autor – Sun Tzu

3. “Lutar e vencer todas as batalhas não é a suprema vitória. A excelência suprema consiste em quebrar a resistência do inimigo sem lutar”, é um dos conselhos existentes no terceiro capítulo. De alguma maneira, que ainda será esclarecida, foi exatamente o que o Talibã conseguiu em sua fulminante ofensiva de cerca de dez dias para conquistar as principais cidades do Afeganistão. As tropas do governo foram vencidas sem lutar. Logo, os talibãs conseguiram atingir a “excelência suprema” descrita por Sun Tzu.

4. Também no terceiro capítulo está aquela que talvez seja a mais famosa passagem de A Arte da Guerra:Se conheceres o inimigo e a ti mesmo, não temas o resultado de cem batalhas. Se conheceres a ti mesmo, mas não ao inimigo, para cada vitória, também sofrerás uma derrota. Se não conheceres nem o inimigo, nem a ti mesmo, sucumbirás a todas as batalhas.” Esta é uma premissa básica. Conhecer possibilidades e limitações do seu exército, de seus aliados, e do inimigo. Incrivelmente, parece que os EUA desconheciam as reais possibilidades das tropas do governo afegão, que eles mesmos treinaram e armaram por duas décadas. Esta é uma falha tão inacreditável para uma Força Armada como a norte-americana que chego a duvidar que possa ter ocorrido. Então, resta a possibilidade de que as capacidades e limitações das tropas afegãs deixadas para enfrentar o Talibã não tenham sido informadas adequadamente aos níveis de comando. Também acho difícil que isso tenha ocorrido. Restam, portanto, duas opções: os comandantes militares sabiam e não informaram corretamente ao nível político ou, o nível político sabia e nada fez, jogando com a sorte. Certamente saberemos o que aconteceu quando a história dessa guerra for contada, nos próximos anos.

5. No capítulo 4, Sun Tzu ensina:Os bons guerreiros primeiro colocam-se além da possibilidade da derrota, então, aguardam pela oportunidade de derrotar o inimigo. Assegurarmo-nos de não sermos derrotados está em nossas mãos. Mas a oportunidade de derrotar o inimigo e dada por ele mesmo.” Essa lição parece ter sido executada com maestria pelo Talibã. Durante os vinte anos de permanência dos EUA no Afeganistão, o grupo de manteve, evitando a derrota final. Quando os EUA deram a oportunidade de agir, passaram à ofensiva com grande velocidade e determinação.




A retirada das tropas dos EUA do Afeganistão

Os EUA se comprometeram, em acordo firmado com o grupo Talibã no ano passado, a retirar completamente suas tropas do Afeganistão. O prazo final acordado era hoje, 01 de maio de 2021. E as tropas permanecem por lá. Mas, antes de nos debruçarmos sobre esse acordo, vamos entender por que as tropas americanas estão há quase 20 anos no Afeganistão.

Os ataques de 11 de setembro de 2001 às torres gêmeas do World Trade Center e ao Pentágono vitimaram quase três mil pessoas, causando dor, revolta, perplexidade e raiva aos norte-americanos. Rapidamente, os EUA identificaram Osama Bin Laden, chefe da Al Qaeda, como sendo o responsável pelos atentados terroristas que mudariam a história.

Os EUA, superpotência econômica e militar dominante à época, iniciaram praticamente de imediato a chamada “Guerra ao Terror”, definindo o Afeganistão, território que dava abrigo à Al Qaeda, como primeiro teatro de operações.

Apenas 15 dias depois do atentado, em 26 de setembro, uma equipe da CIA se infiltrou clandestinamente no país e iniciou os contatos com a Aliança do Norte, um grupo contrário ao regime fundamentalista islâmico dos Talibãs, que governava o país. Iniciava-se o planejamento para derrubar o regime que havia se recusado a entregar Bin Laden aos norte-americanos. Em 7 de outubro, os EUA, com o apoio dos britânicos, desencadearam uma intensa campanha aérea de bombardeios à alvos militares no Afeganistão, desarticulando os campos de treinamento da Al Qaeda no país. Em 13 de novembro, a Aliança do Norte conquistava Cabul, a capital do país. Em 6 de dezembro, Kandahar, maior cidade do sul e sede espiritual do regime, também era conquistada pela Aliança do Norte. O regime Talibã havia sido apeado do poder, refugiando-se, juntamente com integrantes da Al Qaeda, nas regiões tribais do norte do Paquistão.

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Osama Bin Laden não havia sido encontrado, mas em abril de 2002, o presidente George Bush anunciava um “Plano Marshall” para o Afeganistão, com o investimento “substancial” de recursos para a reconstrução do país. Mas a atenção dos EUA havia se voltado para o Iraque, que seria invadido em março de 2003. Assim, entre 2001 e 2009, os EUA investiram pouco mais de 38 bilhões de dólares em ajuda humanitária e em apoio à reconstrução do Afeganistão. Mais da metade desse valor foi investida nas forças de segurança do país. A OTAN, representada por tropas de mais de 20 países, também enviou contingentes ao Afeganistão, em seu primeiro desdobramento fora da Europa.

Mas os enfrentamentos de baixa intensidade nunca cessaram. Em 2010, os EUA já tinham perdido mais de mil soldados na campanha. Britânicos, trezentos. Canadenses, cento e cinquenta. Baixas ocorreram ainda em todos os contingentes, o que foi tornando a presença no Afeganistão cada vez mais impopular nos países europeus e nos EUA.

Em 2009, o Presidente Obama assumiu o governo dos EUA e passou a dedicar mais atenção ao Afeganistão, enviando 17 mil soldados para se somarem aos já 36 mil norte-americanos e aos 32 mil de outras nações da OTAN, que já estavam no Afeganistão. Obama também trocou o comandante militar norte-americano, enviando o General  Stanley McChrystal, com a tarefa de modificar a estratégia militar da operação.

O novo comandante, em relatório enviado ao governo norte-americano, concluía que a guerra seria perdida em um ano se ele não recebesse um considerável reforço. Assim, os EUA decidem enviar mais 30 mil soldados ao Afeganistão.

Em junho de 2010, descontente com declarações de McChrystal à imprensa, Obama novamente troca o comandante, nomeando o General David Petraeus para o comando. Petraeus era conhecido no Exército como o arquiteto da doutrina de contrainsurgência em vigor à época.

Finalmente, em 02 de maio de 2011, quase dez anos após os atentados terroristas que deram origem à guerra, Bin Laden foi morto por uma equipe das Forças Especiais da Marinha dos EUA na cidade de Abbottabad, no Paquistão.

Em junho do mesmo ano, o presidente Obama anuncia um plano para a retirada de tropas do Afeganistão, que deveria ocorrer totalmente até 2014. A missão de combate da OTAN foi formalmente encerrada em dezembro daquele mesmo ano, mas as tropas norte-americanas continuariam no país para “treinar as tropas afegãs e fornecer apoio às operações contra o terror”. Ashraf Ghani, presidente eleito em 2014, iniciou conversações para a paz com o Talibã e outros grupos armados.

 

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O Afeganistão depois do Talibã: Onze histórias afegãs do 11 de Setembro e a década do terror: Onze histórias afegãs do 11 de Setembro e a década do terror

 

Entre idas e vindas, que resultaram inclusive em um aumento dos efetivos militares norte-americanos no país em 2017, as conversações para a paz continuaram. Em dezembro de 2018, já na presidência de Trump, EUA, Arábia Saudita e Paquistão se reuniram com representantes do Talibã em Abu Dhabi. Alguns dias depois, os EUA anunciaram a retirada de mais uma significativa parcela de suas tropas. Até que, em 29 de fevereiro de 2020, EUA e Talibã anunciaram um acordo pelo qual os EUA se retirariam completamente em 14 meses. Por outro lado, o Talibã se comprometia a continuar as conversações de paz com o governo e a não permitir a operação da Al Qaeda ou do Estado Islâmico em território Afegão.

Este prazo se encerra exatamente hoje, dia 01 de maio de 2021. Entretanto, ainda há tropas norte-americanas no Afeganistão. O presidente Joe Biden já havia declarado que o prazo não seria cumprido, por razões de segurança, estabelecendo um novo prazo: 11 de setembro, exatamente 20 anos depois dos atentados que originaram a guerra.

O Talibã evidentemente não gostou do descumprimento do acordo, e já declarou que isto abriria o caminho para “ações que se julguem adequadas contra as tropas de ocupação”. As forças de segurança do país estão no mais elevado nível de alerta após o recrudescimento da violência nos últimos dias.

A retirada das tropas estrangeiras do Afeganistão exige um considerável esforço logístico para que seja feita com um adequado nível de segurança. Essa é a principal razão alegada pelos EUA para mais esse adiamento. Mas, depois de reiteradas promessas de retirada não serem cumpridas, é natural que exista certa desconfiança.

Não deixa de ser irônico que, 20 anos após o início da guerra, após dezenas de milhares de mortos entre as forças regulares afegãs e alguns milhares de vidas perdidas dentre as forças da coalizão, as negociações estejam sendo feitas com o Talibã, mesmo grupo que foi retirado do poder ainda em 2001. A sensação de fracasso é indisfarçável. E deixa uma lição para todos os envolvidos, acerca da grande dificuldade de se travar um combate dessa natureza.

Assim, apesar dos indícios indicarem que dessa vez há um firme propósito dos EUA em realmente encerrar a guerra, há uma grande incerteza sobre os destinos do Afeganistão, devastado por 20 anos de conflitos. É bastante provável que a China, país que inclusive faz fronteira com o Afeganistão, venha a ocupar o espaço deixado pelos EUA, como principal fiadora e financiadora da reconstrução do país. Afinal, para a China não interessa um vizinho instável, que possa oferecer abrigo aos grupos terroristas uigures da Região autônoma de Xinijiang. Vamos acompanhar.